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ANTÍGONA 442 AEC Não procedo com desonra;

Mas agir contrariando decisões dos


Quando Antígona é trazida pelos guardas à cidadãos,
presença de Creonte para ser questionada por Sou incapaz por natureza.
perfazer ritos fúnebres, o governante de Tebas Antígona
pergunta a ela: Alega esses pretextos, mas não deixarei
sem sepultura o meu irmão muito querido.
Tu, então, que baixas o rosto para o chão (...)
confirmas a autoria desse feito, ou negas? Ismene
(Antígona, v.441, grifo nosso) 1 Ao menos não reveles a ninguém teus
planos;
Antígona responde: oculta-os bem contigo e eu farei o mesmo.
Antígona
Declaro tê-lo feito, e nenhuma negação Não faças isso! Denuncia-os! Se calares,
ofereço e não contares minhas intenções a todos,
(Antígona, v.443, grifo nosso) meu ódio contra ti será maior ainda!
(Antígona, vv.69-87)
Frente ao questionamento, Antígona volta o Antígona, com a cabeça baixa, é interrogada
rosto para o chão. Mas sua resposta é impertinente, por Creonte e declara sua culpa pelos delitos
provocando o seguinte comentário do coro: cometidos. Ela defende a justiça do ato e se volta
mais uma vez para a expectativa da comunidade
Mostra-se a progênie selvagem da filha de fundada no conjunto de todos, mas de uma maneira
um pai selvagem bastante peculiar para nós. O ágon (disputa oratória)
E ela não sabe se recolher diante dos males entre ela e Creonte é o mesmo em que se iniciou no
(Antígona, v.471-472, grifo nosso) interrogatório, e assim segue:

O choque entre duas partes (família/pólis, Antígona


povo/tirano, deuses/mortais, mulheres/homens), Então, por que demoras? Em tuas palavras
remetido às figuras de Antígona e Creonte, já vinha não há - e nunca haja! - nada de agradável.
sendo anunciado e voltava-se não só para o embate Da mesma forma, as minhas devem ser-te
entre o tirano e a mulher/filha de Édipo. Tal conflito odiosas.
tocava também a dimensão da opinião pública dos E quanto à glória, poderia haver maior
cidadãos da pólis tebana, onde se passa a trama. Mas que dar ao meu irmão um funeral condigno?
como assim? Logo no início, Antígona e Ismene Eles me aprovariam, todos (pasin), se o
estabelecem um diálogo acerca da decisão de temor
Antígona de sepultar o irmão Polinices, contrariando não lhes tolhesse a língua, mas a tirania,
o decreto do governante. Ismene não concorda e entre outros privilégios, dá o de fazer
tenta dissuadir a irmã, ao que se segue o debate: e o de dizer sem restrições o que se quer.
Creonte
Antígona Só tu, entre os cadmeus, vês dessa maneira.
Não mais te exortarei e, mesmo que depois Antígona
quisesses me ajudar, não me satisfarias. Estes aí veem, eles mantêm a boca para
Procede como te aprouver; de qualquer baixo diante de ti
modo (Antígona, v.499-509)
hei de enterrá-lo e será belo para mim
morrer cumprindo esse dever: repousarei Durante esse ágon, é invocada por
ao lado dele, amada por quem tanto amei Antígona, constantemente, a ação de falar (legein),
e sagrado é o meu delito, pois terei de amar de expor em palavras o que a tirania (turanís) faz por
aos mortos muito, muito tempo mais que aos univocidade. Essa univocidade se dá por imposição
vivos. do medo, já que, segundo Antígona, todos (pasin)
Eu jazerei eternamente sob a terra falariam se o temor não lhes mantivesse com a
e tu, se queres, foge à lei mais cara aos língua recolhida. O temor, no entanto, não é o objeto
deuses. de sua fala nesse diálogo. Seu objeto é a
Ismene subordinação daqueles que não falam por medo.

1
As traduções de Antígona foram a partir do texto grego http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%
por Marta Mega de Andrade e Stephania Sansone Giglio, 3Atext%3A1999.01.0185%3Acard%3D441.
com base na edição grego-inglês disponível em
Mas Creonte parece ver de outra forma. Antígona ouço o murmúrio, escuto as queixas da
fala de “todos”, Creonte demanda falar por todos cidade
(como tirano da pólis) e garante que, entre eles, por causa dessa moça: "Nenhuma mulher",
Antígona é quem está só. O falar por todos do comentam, "mereceu jamais menos que ela
soberano faz surgir uma expectativa diferente da de essa condenação - nenhuma, em tempo
Antígona sobre o conjunto de “todos”: “todos”, para algum,
Creonte, são os cadmeus — nome arcaico dos terá por feitos tão gloriosos quanto os dela
habitantes de Tebas — e somente Antígona, sofrido morte mais ignóbil; ela que,
segundo o tirano, vê esse ato de sepultar o irmão que quando em sangrento embate seu irmão
combateu a pátria como justo, nesse conjunto (dos morreu
cadmeus). No entanto, ela se opõe a Creonte não o deixou sem sepultura, para pasto
afirmando que eles todos não podem ver (verbo ver, de carniceiros cães ou aves de rapina,
no sentido de tomar conhecimento) e assim não não merece, ao contrário, um áureo
reagem, pois voltam suas bocas para baixo. galardão?"
Possivelmente, o sentido do verso 509 é o de Este é o rumor obscuro ouvido pelas ruas.
silenciar, mas não voluntariamente. O verbo (Antígona, vv.693-701)
(upíllousin) tem o sentido de “forçar por baixo de”,
“manter abaixado”, e está associado à maneira pela
qual um cachorro põe o rabo entre as pernas quando
acuado. É a imagem de um movimento, o de manter
a boca para baixo, que invoca na cena o aspecto
soberano da tirania sobre a comunidade de fala.
Antígona diz que todos temem Creonte ao voltarem
suas bocas para baixo. Acuados, não se expõem em
público, como, aliás, foi o conselho de Ismene:
esconda o ato.
O recurso utilizado por Antígona para
intensificar o conflito com Creonte é, portanto, o que
se funda na ação de fala, na possibilidade de
exposição por palavras a uma comunidade. Para
Creonte, Tebas tem uma só voz cadmeia, que é a sua.
Para Antígona, Tebas tem outra voz — a de todos —
que ela espera mobilizar. A disputa entre as duas
perspectivas não se resolve, não é o momento da
reviravolta na peça; ela passa, com os mesmos
passos de Antígona para fora da cena, levada ao seu
termo, quer dizer, à sua sentença de morte. A
ambiguidade do que diz Creonte unificando os
cadmeus sob uma só voz (tirano e cidadão), é
pontuada pela visão indefinida de um conjunto
(todos), cujas cabeças se abaixam, cujas línguas se
recolhem. Esses pequenos movimentos do corpo se
projetam em uma comunidade, como apontamos
acima; e Antígona, vindo a público, fala a todos (os
que se calam por submissão).
Numa última tentativa de alertar o
governante, Hemon, noivo de Antígona e filho de
Creonte, aconselha o pai a perdoar, porque, segundo
ele:

É meu dever notar por ti, naturalmente,


tudo que os outros dizem, fazem ou
censuram,
pois o teu cenho inspirador de medo impede
os homens do povo de pronunciar palavras
que firam teus ouvidos. Eu, porém, na
sombra,

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