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Limites constitucionais do decreto

regulamentar na criação e extinção de


órgãos e cargos públicos no âmbito do
Estado do Rio Grande do Norte

Vladimir da Rocha França

Sumário
1. Introdução. 2. Previsão da competência
regulamentar na Constituição Federal de 1988
e na Constituição do Estado do Rio Grande do
Norte de 1989. 3. Criação e extinção de órgãos
públicos. 4. A criação e a extinção de cargo pú-
blico. 5. Conclusão.

1. Introdução
Na implantação ou mudança de modelos
para a gestão pública estadual, é freqüente
a demanda pela criação e extinção de ór-
gãos e cargos de provimento em comissão
no âmbito da Administração. Por diversas
razões, os compromissos partidários e as
reivindicações legítimas dos grupos que
partilham o poder político esbarram nos
limites jurídicos impostos pelo sistema do
direito positivo.
Como nem sempre o regime constitu-
cional do processo legislativo é compatível
com a celeridade que se deseja impor nesse
escopo organizacional, o Governador do
Estado pode-se sentir tentado a dispor
sobre a matéria mediante a expedição de
decretos. No caso do Estado do Rio Gran-
de do Norte, isso não encontraria maiores
Vladimir da Rocha França é mestre em
obstáculos em razão do disposto no art. 11
Direito Público pela Universidade Federal de
Pernambuco. Doutor em Direito Administrativo
da Lei Complementar Norte-rio-grandense
pela Pontifícia Universidade Católica de São no 163, de 5.2.1999.
Paulo. Professor Adjunto do Departamento de Nesse dispositivo, reconhece-se a com-
Direito Público pela Universidade Federal do petência do Governador do Estado para re-
Rio Grande do Norte. gulamentar a estrutura e o funcionamento

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de cada uma das unidades da administração Os decretos são os veículos previstos
direta, das autarquias e fundações públicas pelo direito positivo para as manifesta-
por meio de decreto.1 Todavia, nenhum ções do Chefe do Poder Executivo (Cf. DI
preceito legal deve ser compreendido com PIETRO, 2002, p. 222). Podem introduzir
desprezo às demais normas que compõem normas individuais (como um decreto de
o ordenamento jurídico vigente. desapropriação) ou normas gerais (quando
O objetivo do presente ensaio é justa- dão forma aos regulamentos) no ordena-
mente aferir que limites devem ser obser- mento jurídico.
vados pelo Governador do Estado no uso Os regulamentos são atos jurídicos
de decretos para a criação e extinção de expedidos pelo Chefe do Executivo que
órgãos públicos e de cargos de provimento inserem, no sistema do direito positivo,
em comissão, à luz da Constituição Federal normas gerais que têm por finalidade
de 1988 e da Constituição do Estado do Rio a complementação da lei ou da própria
Grande do Norte de 1989. Constituição, quando exigido o desenvol-
vimento de atividade administrativa (Cf.
2. Previsão da competência ATALIBA, 1998, p. 135).
regulamentar na Constituição Federal Como se sabe, cada Estado Federado
de 1988 e na Constituição do Estado tem os poderes de auto-organização e de
autolegislação, sendo-lhes conferido o
do Rio Grande do Norte de 1989
direito de se reger por sua Constituição e
A Administração Brasileira, por injun- pelas leis que editar na esfera de sua com-
ção do princípio da legalidade administrati- petência, respeitados os preceitos da Cons-
va, encontra-se subordinada à lei. Enquanto tituição Federal (Cf. CLÈVE, 1993, p. 56-83;
o particular pode realizar tudo o que lei não HORTA, 2003, p. 361-448; SILVA, 2002, p.
proíbe, a Administração somente tem legiti- 589-598)2. Na ordenação dos poderes do
midade para agir quando a lei lhe autoriza, Estado Federado na respectiva Constitui-
conforme da lição clássica de Hely Lopes ção, é preciso que se observe o modelo de
Meirelles (2001, p. 82-83). Poder Executivo previsto na Constituição
O princípio da legalidade administrati- Federal para a União (Cf. SILVA, 2002, p.
va constitui um dos alicerces fundamentais 609, 624-625).
do regime jurídico-administrativo. Não há No Estado do Rio Grande do Norte,
como se conceber um Estado de Direito a competência privativa do Governador
sem essa noção crucial. Entretanto, além do Estado para expedir decretos e regu-
de garantia do cidadão contra eventuais lamentos para a fiel execução da lei tem
arbítrios do Estado, a legalidade serve arrimo no art. 64, inciso V, da Constituição
como instrumento que viabiliza a ação da Estadual3.
Administração na concretização do inte- Para a compreensão do sentido e do
resse público. alcance do regulamento, perante o ordena-
Não obstante, a expedição de normas mento jurídico brasileiro, é imprescindível
gerais não é atributo exclusivo do legisla- entender a sua relação com a legalidade e
dor. Entre os instrumentos introdutores de com a teoria da “separação dos poderes”.
normas gerais no ordenamento jurídico, O direito positivo brasileiro consagrou,
há os decretos. como próprio de qualquer ordenamento ju-
1
“Art. 11. O Governador do Estado regulamen- 2
Vide art. 28 da Constituição Federal.
tará, por decreto, a estrutura e o funcionamento de 3
“Art. 64. Compete privativamente ao Governa-
cada uma das unidades da Administração Direta, dor do Estado: (...) V – sancionar, promulgar e fazer
Autárquica e Fundacional, indicadas neste Título e publicar as leis, bem como expedir decretos e regula-
constante do Anexo I, parte integrante desta Lei”. mentos para sua fiel execução”.

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rídico de base republicana e democrática, o A função administrativa compreende a
princípio da separação funcional do poder. expedição de normas complementares à lei,
No art. 2o, da Constituição Estadual, temos expedidas por quem esteja numa posição
o seguinte enunciado: de autoridade e supremacia e sujeitas ao
“Art. 2 o São Poderes do Estado, controle jurisdicional, com a finalidade de
independentes e harmônicos entre concretizar o interesse público. A ativida-
si, o Legislativo, o Executivo e o de administrativa, como toda a atividade
Judiciário”. estatal, encontra-se subordinada ao orde-
Nos dias atuais, não há rigor na expres- namento jurídico como um todo. Daí a
são “separação dos poderes”, haja vista a existência de acertada opinião doutrinária
divisão de trabalho que os ordenamentos que prefere denominar juridicidade ad-
jurídicos modernos adotam para as fun- ministrativa essa necessária sujeição entre
ções jurídicas do Estado, identificando no a Administração e o direito positivo (Cf.
povo a legitimidade do poder do Estado4. FRANÇA, 2000, p. 52-68).
É evidente que, consoante a dogmática Outra característica própria da função
jurídica, o perfil do princípio da separação administrativa é o princípio da hierarquia,
funcional do poder será delineado pelo inexistente nas demais funções do Estado.
direito positivo. Todavia, conforme o perfil constitu-
Tal delineamento é identificado me- cional da legalidade no direito positivo
diante a compreensão do regime jurídico brasileiro, a atividade administrativa é
que orienta a estática e a dinâmica de cada uma atividade infralegal, que se encontra
função estatal. As funções do Estado, no especialmente subordinada à lei. Lei, aqui e
direito positivo brasileiro, são essencial- no texto constitucional, deve ser entendida
mente três: a função legislativa, a função como o veículo introdutor empregado pelo
administrativa e a função jurisdicional. Poder Legislativo para a exercer sua função
A função legislativa corresponde à ativi- típica, qual seja: a função legislativa.
dade de expedição de normas jurídicas que Sobre o assunto, calha transcrever o
inovam originariamente o direito positivo, seguinte ensinamento de Celso Antônio
uma vez que goza de fundamento direto Bandeira de Mello (2002, p. 311, grifo do
na Constituição. Esses preceitos jurídicos autor):
devem-se subordinar às normas constitu- “(...) é livre de qualquer dúvida ou
cionais e somente podem ser validamente entredúvida que, entre nós, por
expedidos segundo os imperativos regentes força dos arts. 5o, II, 84, IV, e 37 da
do processo legislativo. Constituição, só por lei se regula liber-
No art. 5o, inciso II, da Constituição dade e propriedade; só por lei se impõem
Federal, enuncia-se que ninguém será obrigações de fazer ou não fazer. Vale
obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma dizer: restrição alguma à liberdade ou à
coisa senão em virtude de lei. E, nos termos propriedade pode ser imposta se não es-
do art. 37, caput, da Constituição Federal, e tiver previamente delineada, configurada
do art. 26, caput, da Constituição Estadual5, e estabelecida em alguma lei, e só para
a Administração se encontra subordinada cumprir dispositivos legais é que o
ao princípio da legalidade. Executivo pode expedir decretos e
regulamentos.
4
Ver art. 1o, parágrafo único, da Constituição Este último traço é que faz do regu-
Federal. lamento, além de regra de menor
5
“Art. 26. A administração pública direta, indireta
e fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado e
força jurídica que a lei, norma de-
dos Municípios, obedecerá aos princípios da legalida- pendente dela, pois forçosamente a
de, impessoalidade, moralidade e publicidade (...)”. pressupõe, sem o quê nada poderia

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dispor. No Direito pátrio, sem a lei do que está incluído nas matérias de
não haveria espaço jurídico para o reserva de lei, há de ser colhida no
regulamento”. texto constitucional; quanto a tais
A Constituição Estadual, em seu art. 64, matérias não cabem regulamentos.
inciso VII, confere ao Chefe do Poder Exe- Inconcebível a admissão de que o
cutivo a competência para expedir normas texto constitucional tivesse disposi-
gerais para disciplinar a organização e o ção despicienda – verba cum effectu
funcionamento da Administração Estadual, sunt accipienda”.
na forma da lei6. Entretanto, Geraldo Ataliba (1998)
Diante do enunciado do art. 5o, inciso II, apresenta um temperamento que deve ser
da Lei Maior, há duas situações que devem observado na questão. Os regulamentos
ser levadas em consideração: a vinculação existem justamente para dar concreção
da Administração às definições da lei; e a às leis administrativas, ou seja, àqueles
vinculação da Administração às definições diplomas legais que demandam a ação ad-
fixadas em virtude da lei (GRAU, 1996, ministrativa para a materialização de suas
p. 183). No primeiro caso, esclarece Eros finalidades. Cabe ao regulamento estabele-
Roberto Grau (1996, p. 183), está-se diante cer que órgãos, em que condições e quais
da reserva da lei; no segundo, da reserva os instrumentos que deverão ser utilizados
da “norma”, entendida esta como preceito pela Administração na concretização da lei
abstrato e geral. (ATALIBA, 1998, p. 139).
Não há necessariamente ofensa ao prin- Explica ainda Geraldo Ataliba (1998, p.
cípio da legalidade quando a lei confere 140) que a responsabilidade última pela fiel
ao Poder Executivo a competência para observância das leis administrativas é do
expedir normas gerais, como bem esclarece Chefe do Poder Executivo e, portanto, as
Eros Roberto Grau (1996, p. 184): responsabilidades dos servidores públicos
“Voltando ao art. 5o, II, do texto cons- a ele subordinados se coordenam com a
titucional, verificamos que, nele, o responsabilidade daquele.
princípio da legalidade é tomado em Tal consideração encontra eco no siste-
termos relativos, o que induz a con- ma constitucional em vigor. Afinal, cabe
clusão de que o devido acatamento lhe ao Governador do Estado “exercer, com
estará sendo conferido quando – ma- auxílio dos Secretários de Estado, a dire-
nifesta, explícita ou implicitamente, ção superior da administração estadual”7,
atribuição para tanto – ato normativo devendo responder pelos crimes de res-
não legislativo, porém regulamentar ponsabilidade que praticar na forma da
(ou regimental), definir obrigação de legislação pertinente8.
fazer ou de não fazer alguma coisa Como bem assevera Geraldo Ataliba
imposta a seus destinatários”. (1998, p. 140):
Lembra ainda Eros Roberto Grau (1996, “(...) o regulamento pode ser inova-
p. 184) que: dor; pode criar deveres e obrigações
“(...) se há um princípio de reserva da para os subordinados ao editor (fun-
lei – ou seja, se há matérias que só po- cionários, servidores, agentes públi-
dem ser tratadas pela lei –, evidente cos) ou para os órgãos sujeitos à sua
que as excluídas podem ser tratadas
em regulamentos; quanto à definição 7
Vide art. 64, inciso III, da Constituição Esta-
dual.
6
“Art. 64. Compete privativamente ao Governa- 8
Vide o art. 65, caput, da Constituição Estadual:
dor do Estado: (...) VII – dispor sobre a organização e “Art. 65. São crimes de responsabilidade do Governa-
funcionamento da administração estadual, na forma dor os definidos em lei federal, que estabelece normas
da lei”. de processo e julgamento”.

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tutela (autarquias, fundações, socie- plinarem diretamente a liberdade e a pro-
dades de economia mista, empresas priedade dos mesmos. Impõe o princípio
públicas e até concessionárias), desde da legalidade que toda e qualquer restrição
que esses deveres e obrigações sejam à liberdade e à propriedade do cidadão
instrumentos do fiel cumprimento somente tem legitimidade se instituída e
das leis. regulada por lei.
(...) o administrado investido num di- Celso Antônio Bandeira de Mello (2002,
reito por uma lei, ao dirigir-se a uma p. 317) explica que o regulamento não pode
repartição, somente poderá tratar, inserir, no sistema do direito positivo,
no horário fixado por regulamento, qualquer direito ou dever desprovido de
com o órgão também nele previsto, previsão em lei:
na pessoa dos servidores escalados, “Há inovação proibida sempre que
usando os formulários regularmente seja impossível afirmar-se que aquele
prescritos. Na medida em que os específico direito, dever, obrigação,
agentes públicos – pela subordinação limitação ou restrição já estavam
hierárquica –são constrangidos por estatuídos e identificados na lei re-
essas regras o terceiro que com eles gulamentada. Ou reversamente: há
trate a elas se deve conformar”. inovação proibida quando se possa
Diante dos preceitos constitucionais afirmar que aquele específico direito,
expostos, visualizam-se três espécies de dever, obrigação, limitação ou res-
regulamento no direito positivo pátrio: os trição incidentes sobre alguém não
(i) regulamentos de execução, os (ii) regula- estavam já estatuídos e identificados
mentos autorizados e os (iii) regulamentos na lei regulamentada. A identificação
autônomos. O regulamento de execução e não necessita ser absoluta, mas deve
o regulamento autorizado se apresentam ser suficiente para que se reconheçam
sob a forma de decreto regulamentar; os as condições básicas de sua existência
regulamentos autônomos, sob a forma de em vista de seus pressupostos, esta-
decreto autônomo. belecidos na lei e nas finalidades que
Os regulamentos de execução são aque- ela protege”.
les que se limitam a viabilizar a aplicação O ensinamento de Celso Antônio Ban-
de normas veiculadas pela lei, que exigem deira de Mello tem plena aplicabilidade,
a atuação da Administração. Procuram desde que se trate de relação de supremacia
conferir uma melhor densidade à aplicação geral da Administração. Realmente, have-
da lei no âmbito administrativo. ria uma delegação legislativa disfarçada
Mediante os regulamentos de execução se a lei autorizasse ao Chefe do Poder
há: (i) o estabelecimento de aspectos proce- Executivo a expedição de regulamentos
dimentais relevantes para a implementação instituidores de restrições ou benefícios à
dos mandamentos legais; (ii) a disciplina do liberdade e à propriedade do administrado.
exercício das competências discricionárias Sem sombra de dúvida, uma séria violação
que a lei reconhece à Administração; e (iii) à juridicidade.
a outorga de uma maior densidade aos Entretanto, tal postura não se pode
termos jurídicos fluidos empregados no estender a todas as relações jurídicas man-
texto legal. tidas pela Administração.
Essa espécie de regulamentos destina- Os regulamentos autorizados decorrem
se à regulação das relações de supremacia da atribuição legal expressa ou implícita de
geral da Administração. São vínculos competência para expedir normas gerais
jurídico-administrativos que envolvem a que envolvam relações de supremacia es-
generalidade dos administrados, por disci- pecial da Administração.

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As relações de supremacia especial da Ademais, os regulamentos autorizados
Administração são vínculos específicos en- mantêm uma relação de dependência com
tre o Estado e determinados administrados. a lei e a ela se encontram subordinados. E,
São vínculos que não envolvem a generali- de modo algum, apresentam uma quebra
dade dos administrados, seja porque esco- da juridicidade administrativa.
lheram o regime de sujeição especial, seja Os regulamentos autônomos obtêm fun-
porque se exige uma regulação interna mais damento direto na norma constitucional.
detalhada. Elas demandam prerrogativas Em vez da lei, existem para complementar
especiais para a Administração, tais como a própria Lei Maior. São vias lícitas, in-
a de instituir direitos e deveres para aqueles clusive, para instituir direitos e deveres,
que estejam envolvidos numa relação de quando evidentemente admitidos pelo
sujeição especial. São exemplos clássicos: ordenamento jurídico em vigor.
os servidores públicos; os contratados pela O regulamento autônomo não é da
Administração sob o regime dos contratos tradição do direito positivo pátrio. Porém,
administrativos; os matriculados em insti- a sua inserção no ordenamento jurídico é
tuições públicas de ensino; os internados bastante recente.
em hospitais públicos, entre outros. O direito positivo vigente somente
Como bem afirma Celso Antônio Bandei- admite o regulamento autônomo em uma
ra de Mello (2002, p. 701-702), essas intera- única situação: aquela prevista no art. 84,
ções demandam uma disciplina interna, que inciso VI, “a”, da Lei Maior (com a redação
impõe a necessidade da instituição de res- que lhe conferiu a Emenda Constitucional
trições e benefícios aos administrados para no 32, de 11.9.2001) (DI PIETRO, 2002, p.
viabilizar o bom desenvolvimento das ativi- 89)9. A Administração Federal tem, por
dades delas decorrentes. E adverte ainda que conseguinte, a competência para expedir
é impossível, impróprio e inadequado que a regulamentos sobre a sua organização e
lei seja considerada o único instrumento para funcionamento, desde que não impliquem
regular as relações de sujeição especial, sob aumento de despesa nem a criação ou ex-
pena de se criarem disposições legislativas tinção de órgãos públicos.
excessivamente minuciosas ou de se para- A Constituição Estadual não admitiu
lisar atividades administrativas essenciais os regulamentos autônomos. Eles somente
diante da ausência da norma legal. seriam juridicamente viáveis se houvesse
No que diz respeito ao regulamento emenda constitucional que os instituísse.
incidente sobre as relações de supremacia Depois desse breve panorama sobre a
especial, é imprescindível que haja previsão competência regulamentar, procurar-se-á
expressa de sua admissibilidade na lei. Bem desvendar melhor a questão que se propôs
como de que seja expedido na medida do elucidar no presente ensaio.
que for razoável e proporcional ao interesse
público que justifica a existência do vínculo 3. Criação e extinção de órgãos públicos
de sujeição especial. Também parece claro
Guiando-se pela definição jurídico-posi-
que esse regulamento deverá restringir-
tiva posta no art. 1o, § 2o, da Lei Federal no
se ao âmbito da relação de supremacia
9.784/1999, os órgãos públicos compreen-
especial, sendo vedado ao Chefe do Poder
dem as unidades de atuação que integram
Executivo empregar tal ato para atingir
a liberdade e a propriedade de terceiros. 9
Esclarece ainda Di Pietro (2002, p. 89) que a
E, por fim, é inadmissível que o regula- hipótese prevista no art. 84, inciso VI, alínea “b”,
não compreende regulamento, haja vista se tratar ato
mento autorizado afronte norma legal ou de efeito concreto e individual. Pela persistência da
constitucional, ou que prevaleça diante da vedação aos regulamentos autônomos, ver José dos
superveniência destes comandos. Santos Carvalho Filho (2002, p. 44-46).

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a estrutura da Administração Direta e da dependentes; (ii) órgãos autônomos; (iii)
estrutura da Administração Indireta. São órgãos superiores; e, (iv) órgãos subalternos
compostos de atribuições do Estado que (Cf. MEIRELLES, 2001, p. 65-9).
devem ser exercidas pelos agentes que o Os órgãos independentes são aqueles
integram, dentro de uma pessoa jurídica. previstos diretamente pela Constituição
Os órgãos públicos são desprovidos de e que representam os três Poderes do
personalidade jurídica (Cf. MELLO, 2002, Estado. Não se submetem à subordinação
p. 122; DI PIETRO, 2002, p. 426). Na verda- hierárquica ou funcional e têm como titu-
de, são simples repartições de competências lares os agentes políticos. A Assembléia
na intimidade da pessoa jurídica estatal. Legislativa é um bom exemplo de órgão
Consoante a precisa lição de Celso Antônio independente.
Bandeira de Mello (2002, p. 122): Os órgãos autônomos localizam-se
“Então, para que tais atribuições se na cúpula da Administração, estando
concretizem e ingressem no mundo diretamente subordinados aos órgãos
natural é necessário o concurso de independentes. Esses órgãos dispõem de
seres físicos, prepostos à condição autonomias administrativa, financeira e
de agentes. O querer e o agir des- técnica e participam das decisões de Go-
tes sujeitos é que são, pelo Direito, verno. As Secretarias de Estado são órgãos
diretamente imputados ao Estado autônomos.
(manifestando-se por seus órgãos), de Os órgãos superiores são órgãos de
tal sorte que, enquanto atuam nesta direção, controle e comando, mas que se
qualidade de agentes, seu querer e encontram subordinados e sob o controle
seu agir são recebidos como o querer de uma chefia, carecendo de autonomia
e o agir dos órgãos componentes do administrativa e financeira. Como exemplo,
Estado; logo, do próprio Estado. Em o Gabinete do Secretário de Estado.
suma, a vontade e ação do Estado E, por fim, os órgãos subalternos estão
(manifestada por seus órgãos, repita- subordinados aos órgãos superiores e se li-
se) são constituídas na e pela vontade mitam a funções de execução. As unidades
e ação dos agentes; ou seja: o Estado e instrumentais de planejamento e finanças
órgãos que o compõem se exprimem são exemplos precisos desses entes.
através dos agentes, na medida em O art. 46, §1o, inciso II, alínea “c”, da
que ditas pessoas físicas atuam nesta Constituição Estadual, estabelece que é de
posição como veículos da expressão iniciativa do Governador do Estado a lei
do Estado”. que disponha sobre a criação, estruturação
E como bem leciona Maria Sylvia Za- e atribuições das Secretarias, Polícia Militar,
nella Di Pietro (2002, p. 427): Polícia Civil e órgãos da administração
“A existência de órgãos públicos, com pública10.
estrutura e atribuições definidas em No art. 37, inciso XV, da Constituição
lei, corresponde a uma necessidade Estadual, prescreve-se que cabe à Assem-
de se distribuir racionalmente as inú-
meras e complexas atribuições que 10
“Art. 46. A iniciativa das leis complementares
e ordinárias cabe a qualquer Deputado ou Comissão
incumbem ao Estado nos dias de hoje. da Assembléia Legislativa, ao Governador do Estado,
A existência de uma organização e de ao Tribunal de Justiça e de Contas, ao Procurador
uma distribuição de competências Geral de Justiça e aos cidadãos, na forma e nos casos
são atualmente inseparáveis da idéia previstos nesta Constituição. § 1o São de iniciativa do
Governador do Estado as leis que: (...) II – disponham
de pessoas jurídicas estatais”. sobre: (...) c) criação, estruturação e atribuições das
Quanto à posição no Estado, os órgãos Secretarias, Polícia Militar, Polícia Civil e órgãos da
públicos se classificam em: (i) órgãos in- administração pública”.

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bléia Legislativa, com a sanção do Chefe que orientam a ação dos órgãos e agentes
do Poder Executivo, dispor sobre a criação, públicos. O agente hierarquicamente su-
estruturação e atribuições das Secretarias perior encontra-se investido dos seguintes
de Estado, Procuradorias Gerais, Defenso- poderes: (i) o poder de comando, que lhe
ria Pública, Polícia Militar, Polícia Civil e autoriza expedir normas gerais ou indivi-
órgãos da administração pública11. duais para os subalternos no interesse da
Em seu art. 48, parágrafo único, inciso I, ação administrativa; (ii) o poder de fisca-
a Constituição Estadual impõe que depen- lização das atividades dos subordinados;
de de lei complementar a organização do (iii) o poder de revisão, abrangendo as
Poder Executivo12. competências de invalidação e de revoga-
No art. 67 da Constituição Estadual, ção; (iv) o poder disciplinar sobre a conduta
determina-se peremptoriamente que a lei dos subordinados; (v) o poder de resolver
deve dispor sobre a criação, estruturação e conflitos de competência entre os subordi-
atribuições das Secretarias13. nados; (vi) o poder de delegar ou avocar
E, no art. 64, inciso VII, a Constituição competências nos termos da lei.
Estadual confere ao Governador do Estado A palavra “órgãos”, nos dispositivos
dispor sobre a organização e funcionamen- constitucionais citados, abrange apenas os
to da administração estadual, na forma da órgãos autônomos da Administração que
lei, como já foi visto. gozam, ao lado dos órgãos independentes,
Numa interpretação literal, o direito de individualidade própria (Cf. DI PIETRO,
positivo pátrio aparentemente colocaria, 2002, p. 195)14. Em outras palavras, a criação
sob a reserva da lei, a criação e extinção de e a extinção desses órgãos públicos é maté-
todo e qualquer órgão da administração ria subordinada à reserva da lei.
estadual. Todavia, tal posicionamento Inclusive, somente a lei complementar
fere os princípios que regem a atividade é veículo legítimo para criar e conferir
administrativa. atribuições aos órgãos autônomos da Ad-
Entre as técnicas jurídico-administra- ministração direta, nos termos do art. 48,
tivas previstas no ordenamento jurídico parágrafo único, inciso I, e do art. 67 da
brasileiro, há a desconcentração. Mediante Constituição Estadual15. As autonomias
a desconcentração, as pessoas jurídicas es- administrativa, financeira e técnica de que
tatais fazem uma redistribuição de compe- gozam precisam ser predeterminadas pela
tências administrativas em sua intimidade, lei, até por exigência da responsabilidade
estando relacionada à hierarquia (MELLO, fiscal.
2002, p. 132; DI PIETRO, 2002, p. 349). Todavia, esses órgãos administrativos
A hierarquia constitui um complexo de podem sofrer, sem maiores riscos para a
relações de coordenação e subordinação liberdade e a propriedade do administra-
do, um processo de desconcentração, se
11
“Art. 37. Cabe à Assembléia Legislativa, com a lei complementar assim autorizar. Em
a sanção do Governador do Estado, não exigida esta outras palavras, a lei complementar — a
para o especificado no art. 35, dispor sobre todas as
que se faz referência no art. 48, parágrafo
matérias de competência do Estado, especialmente
sobre: (...) XV – criação, estruturação e atribuições das único, inciso I, e no art. 67 da Constituição
Secretarias de Estado, Procuradorias Gerais, Defenso- Estadual — pode remeter para regulamento
ria Pública, Polícia Militar, Polícia Civil e órgãos da
Administração Pública;” 14
O que não significa reconhecer-lhes personali-
12
“Art. 48. (...) Parágrafo único: Além daquelas dade jurídica, alerte-se.
previstas na Constituição Federal e nesta Constituição, 15
Como também para a sua extinção, por questão
dependem de lei complementar as seguintes matérias: de simetria. Se há exigência de lei complementar para
(...) I – organização do Poder Executivo”. criar o órgão, e não havendo qualquer dispositivo
13
“Art. 67. A lei dispõe sobre a criação, estrutura- constitucional expresso em contrário, deve-se presu-
ção e atribuições das secretarias”. mir que a mesma via é exigida para a sua extinção.

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a estruturação das Secretarias sem haver ser observado que, apesar da sua criação
quebra à juridicidade administrativa. Veja- e extinção estar subordinada à reserva da
se ensinamento de Maria Sylvia Zanella Di lei17, a sua organização e funcionamento
Pietro (2002, p. 196), ao se referir aos órgãos podem ser realizados mediante decreto
que detêm individualidade própria, após regulamentar. Explica Hely Lopes Meirelles
comentar os enunciados do art. 61, §1o, (2001, p. 327, grifo do autor):
inciso II, e do art. 84, inciso VI, ambos da “(...) a instituição das autarquias, ou
Constituição Federal: seja, sua criação, faz-se por lei espe-
“Embora a competência do Poder cífica (art. 37, XIX), mas a organização
Executivo tenha sido reduzida a se opera por decreto, que aprova o
quase nada, em decorrência dos já regulamento ou estatuto da entidade,
citados dispositivos constitucionais, e daí por diante sua implantação se
isso não impede que se faça, interna- completa por atos da diretoria, na
mente, subdivisão dos órgãos criados forma regulamentar ou estatutária,
e estruturados por lei, como também independentemente de quaisquer
não impede a criação de órgãos como registros públicos” (Cf. GASPARINI,
comissões, conselhos e grupos de 2002, p. 283-284).
trabalho”. E, para corroborar, merece transcrição
O regulamento expedido para realizar mais um ensinamento de Celso Antônio
tal desconcentração tem natureza autoriza- Bandeira de Mello (1979, p. 66-67):
da. Afinal, permite-se que o Governador do “Só por lei se criam autarquias.
Estado possa dispor sobre a organização e Com efeito, por se tratar de um
funcionamento da Administração estadual, desdobramento do próprio Estado,
desde que na forma da lei. E, sem dúvida, de uma fragmentação de seu corpo
essa matéria se insere dentro da supremacia administrativo e, simultaneamente,
especial da Administração. da ereção de um novo sujeito de ‘di-
E, se a desconcentração sob análise é reitos e deveres públicos’, nenhum
viável, por simetria, a concentração de ato inferior poderia instaurá-la. Uma
atribuições na intimidade dos órgãos au- vez que a organização do Estado é
tônomos também o será. decidida em nível constitucional ou
O regulamento autorizado, contudo, não legal, não seria admissível que ato
pode validamente inserir, no ordenamento menor pudesse alterar um esquema
jurídico, dispositivo que vá de encontro aos formulado no plano legal.
preceitos constitucionais e legais. Se a lei Ocorre que, freqüentemente, para dar
define as competências do órgão autônomo, cumprimento ao mandamento da lei,
o regulamento, ainda que autorizado, tem o Executivo expede decreto instituin-
que se limitar a desdobrar tais atribuições do a autarquia. No caso, tal ato não
e respeitar aquelas que foram conferidas a significa criação, mas determinação
outros órgãos. Embora esse regulamento administrativa de afetar os meios
tenha fundamento direto na lei, esta deve necessários ao efetivo funcionamento
naturalmente prevalecer. de um ser que juridicamente ganhou
No caso das pessoas administrativas — existência com a lei criadora.
autarquias e fundações públicas16 —, deve Assim, como só por lei se criam,
só por lei se extinguem entidades
16
As fundações públicas se encontram subordi-
nadas ao mesmo regime jurídico das autarquias, com 17
Vide o art. 26, inciso XIX, da Constituição Es-
algumas peculiaridades (art. 5o, inciso II, e § 3o, do tadual: “Art. 26. (...) XIX – somente por lei específica
Decreto-lei no 200, de 25.2.1967) (Cf. MELLO, 2002, pode ser criada empresa pública, sociedade de econo-
p. 160-164). mia mista, autarquia e fundação pública”.

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autárquicas. A razão é óbvia: o que Assim, caso uma Secretaria de Estado
no plano legal foi construído só no tenha sido criada por lei complementar
mesmo nível pode ser destruído. Se o sem que esta lhe confira qualquer poder,
Executivo, por decreto, as extinguis- fica vedada a expedição de decreto regula-
se – ou lhes modificasse a natureza mentar para fazê-lo a fim de convalidá-la.
– estaria simplesmente violando a A lei complementar, por sua vez, será o
lei em que se originaram. O decreto instrumento hábil para regularizá-la.
é ato subalterno à lei e da alçada de
um Poder cuja missão é cumprir a lei,
obedecer aos mandamentos do Poder 4. A criação e a extinção de cargo público
Legislativo”. Os cargos públicos, nas palavras de
Há um último aspecto a ser enfrentado. Celso Antônio Bandeira de Mello (2002, p.
O art. 51 da Constituição Estadual, que 226-227, grifo do autor),
dispõe sobre as leis delegadas, prescreve “(...) são as mais simples e indivisíveis
em seu § 1o que não pode ser objeto de unidades de competência a serem
“delegação” matéria reservada à lei com- expressadas por um agente, previstas
plementar18. Como já se viu, a Constituição em número certo, com denominação
Estadual — art. 48, parágrafo único, inciso I própria, retribuídas por pessoas jurí-
— coloca sob a reserva da lei complementar dicas de Direito Público e criadas por
a organização do Poder Executivo. lei, salvo quando concernentes aos
O que se veda é a previsão legal de regu- serviços auxiliares do Legislativo,
lamento que crie, modifique ou extinga um caso em que se criam por resolução,
órgão autônomo, bem como que estabeleça da Câmara ou do Senado, conforme
ou amplie o respectivo rol de atribuições. se trate de serviços de uma ou de
A desconcentração realizada na intimidade outra destas Casas”.
dessa espécie de órgão, desde que obedeci- No art. 2o, inciso II e § 1o, da Lei Com-
dos os pertinentes limites constitucionais e plementar Estadual no 122, de 30.6.1994,
legais, não atenta contra a liberdade e pro- têm-se os seguintes enunciados:
priedade do cidadão nem atinge o disposto “Art. 2o Para os fins desta Lei:
no art. 51, § 1o, da Constituição Estadual. (...)
Entretanto, isso não significa conferir II – cargo público é o conjunto de
uma prerrogativa arbitrária para o Chefe do atribuições e responsabilidades, sob
Poder Executivo. Os decretos regulamenta- denominação própria, previstas na
res não podem ser validamente emprega- estrutura organizacional e a serem
dos para suprir, direta ou indiretamente, exercidas por um servidor.
lacunas indevidamente deixadas na lei. (...)
Noutro giro: os decretos regulamentares § 1o Os cargos públicos, criados por
não convalidam situações jurídicas ilegais Lei e acessíveis a todos os brasileiros,
em virtude da omissão legislativa. Ou, caso são retribuídos mediante vencimen-
se prefira: somente a lei complementar tem to, pago pelos cofres públicos, e se
o condão de sanear um órgão inválido, em classificam em:
prol do princípio da obrigatoriedade do (...)
desempenho da atividade administrativa c) de provimento efetivo, quando
e da continuidade do serviço público. comportam a aquisição de estabilida-
de pelos respectivos titulares;
18
“Art. 51. (...) § 1o Não podem ser objeto de dele-
d) de provimento em comissão,
gação os atos de competência exclusiva da Assembléia
Legislativa, matéria reservada a lei complementar quando declarados em lei de livre
(...)”. nomeação e exoneração, respeitadas

26 Revista de Informação Legislativa


as limitações da Constituição nos carreiras, no âmbito da administração
casos que especifica”. direta, autárquica e fundacional, sem
E, no art. 3o do mesmo diploma legal, prévia e hábil dotação orçamentária e sem
encontra-se: autorização específica na lei de diretrizes
“Art. 3o. São vedados: orçamentárias.
I – a prestação de serviço gratuito, Diante da doutrina e legislação citadas,
salvo quando declarado relevante e identificam-se os seguintes elementos
nos casos previstos em lei; para a criação de cargo público: (i) uma
II – o desvio do servidor para o denominação própria; (ii) a estipulação de
exercício de atribuições diversas das um rol de competências; (iii) previsão de
inerentes ao seu cargo efetivo, sob sua quantidade; (iv) o estabelecimento de
pena de nulidade do ato e respon- remuneração para o seu eventual titular; e,
sabilidade administrativa e civil da (v) a fixação do modo de seu provimento
autoridade que o autorizar”. (Cf. GASPARINI, 2002, p. 235). Portanto,
Ao se voltar para o texto constitucional, emanda-se lei para a sua válida criação no
no art. 46, §1o, inciso II, “a”, vê-se a inicia- campo da Administração.
tiva privativa do Governador do Estado Para enfrentar a questão proposta, é
para as leis que disponham sobre a criação preciso antes delinear duas situações jurí-
de cargos, funções ou empregos públicos dicas: (i) a que envolve os cargos públicos
na Administração Direta e Autárquica ou de provimento efetivo; e, (ii) a que abran-
aumento de sua remuneração19. ge os cargos públicos de provimento em
O seu art. 37, inciso VI, determina que comissão.
cabe à Assembléia Legislativa, com a san- Os cargos públicos de provimento efeti-
ção do Governador do Estado, dispor sobre vo demandam concurso público para o seu
a criação e extinção de cargos, empregos e preenchimento e ensejam, para o seu titular,
funções públicas e a fixação dos respectivos o direito à estabilidade, após três anos de
vencimentos, salários e vantagens20. efetivo exercício e aprovação em processo
E, no art. 48, parágrafo único, inciso I, de avaliação especial de desempenho, como
exige-se lei complementar para se definir determinam o art. 37, inciso II, e o art. 41,
originariamente as competências a serem caput e §4o, ambos da Constituição Federal.
exercidas pelo Poder Executivo. Estável o seu titular, este somente poderá
No art. 169, § 1o, da Constituição Fede- ser desligado do serviço público nas hipó-
ral, proíbe-se a criação de cargo, emprego teses que compõem o rol do art. 41, §1o, da
ou função, bem como a estruturação de Lei Maior.
A criação de cargo público de provi-
19
“Art. 46. A iniciativa das leis complementares
e ordinárias cabe a qualquer Deputado ou Comissão mento efetivo, diante dessas exigências
da Assembléia Legislativa, ao Governador do Estado, constitucionais, fica submetida à reserva
ao Tribunal de Justiça e de Contas, ao Procurador da lei complementar, por força do art. 48,
Geral de Justiça e aos cidadãos, na forma e nos casos
previstos nesta Constituição. § 1o São de iniciativa do
parágrafo único, inciso I, da Constituição
Governador do Estado as leis que: (...) II – disponham Estadual. Como a criação de cargo público
sobre: a) criação de cargos, funções ou empregos implica a definição de competências para
públicos na administração direta e autárquica, ou o seu eventual titular, há clara pertinência
aumentem a sua remuneração”.
20
“Art. 37. Cabe à Assembléia Legislativa, com entre essa matéria e a organização do Poder
a sanção do Governador do Estado, não exigida esta Executivo. Recorde-se que o cargo público,
para o especificado no art. 35, dispor sobre todas as ao lado do órgão público, representa uma
matérias de competência do Estado, especialmente
unidade de competência.
sobre: (...) VI – criação, transformação e extinção de
cargos, empregos e funções públicas e fixação dos Portanto, a lei complementar deve
respectivos vencimentos, salários e vantagens”. integralmente fixar todos os elementos es-

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senciais para a sua criação. Se a lei comple- exercer atribuições que sejam estranhas ao
mentar silencia sobre qualquer um desses rol de competências que a lei lhe atribuiu.
elementos, fica prejudicada tal instituição. Se omissa a lei nesse aspecto, repita-se, o
Raciocínio contrário ensejaria a admissão cargo efetivo não existe de modo válido.
de uma previsão implícita de regulamento Os cargos públicos de provimento em
delegado em matéria sujeita à reserva da lei comissão estão submetidos às mesmas
complementar. regras.
E, se a criação de cargo público de provi- A lei não deve remeter, expressa ou
mento efetivo demanda lei complementar, implicitamente, para a competência re-
por simetria é exigido o mesmo instrumen- gulamentar da Administração, a fixação
to para a sua transformação ou extinção. das atribuições do cargo comissionado,
O que significa dizer, também, que ape- ainda que de livre nomeação e exoneração
nas regulamentos de execução são válidos da autoridade competente. O titular de
para a disciplina da matéria. A expedição cargo de provimento em comissão pode
de regulamentos que instituam, modifi- ser validamente designado para dirigir
quem ou extingam o elenco de atribuições órgãos superiores e subalternos que forem
do cargo público de provimento efetivo estruturados mediante regulamentos au-
representa um abuso de poder. torizados, se a lei (única e exclusivamente)
Há um vínculo entre o concurso público assim determinar.
e o cargo ao qual se destina. Prescreve a Lei Sobre o assunto, leciona Diógenes Gas-
Maior, em seu art. 37, inciso II, que aquele parini (2006, p. 268-269):
deve ser realizado segundo a natureza e a “(...) Os cargos de provimento em
complexidade deste. comissão são próprios para direção,
Na lição de Cármen Lúcia Antunes comando ou chefia de certos órgãos,
Rocha (1999, p. 233): para os quais se necessita de um
“Com o início do exercício nascem agente que, sobre ser de confiança da
para o servidor todos os direitos que autoridade nomeante, se disponha a
a lei lhe assegura nessa condição, seguir a sua orientação, ajudando-a a
inclusive o de desempenhar as fun- promover a direção superior da Ad-
ções inerentes ao cargo para o qual ministração. Também destinam-se ao
foi nomeado, cumprindo-se o quanto assessoramento (art. 37, V, da CF)”.
posto legalmente. Nomeado para É certo que os cargos de provimento
determinado cargo e nele investido, em comissão abrangem funções de dire-
há de exercer o servidor, a partir de ção, chefia e assessoramento. Todavia, a
então, as funções a ele inerentes e a lei deve expressamente delinear, ainda
nenhum outro”. que em termos genéricos, as atribuições
O poder hierárquico não afasta a reserva a serem exercidas pelo titular do cargo
da lei complementar na criação de cargo comissionado.
público de provimento efetivo, devendo Ainda que os titulares de cargo comissio-
ser exercido dentro dos limites constitucio- nado tenham um maior compromisso com
nais e legais. Entendimento contrário seria as diretrizes políticas e governamentais de
admitir um desvio de função, quebrando o quem tem a competência para nomeá-los,
princípio do concurso público e a própria isso não serve para justificar regulamentos
legalidade estrita. Ilícito que, aliás, encon- que determinem as respectivas atribuições
tra-se bem definido no art. 3o, inciso II, da nas omissões da lei.
Lei Complementar Estadual no 122/1994. É evidente que esses regulamentos
Em outras palavras, não é válida a de- devem observar as normas constitucio-
signação de titular de cargo efetivo para nais e legais que fixam as atribuições e

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responsabilidades desses cargos21. Assim, dinâmica do serviço público, e não, o fim de
tal regulamento não tem legitimidade para convalidar situações jurídicas ilegais.
estabelecer os demais elementos (denomi- Como se sabe, o desvio de poder cons-
nação própria, estipêndio, quantidade de titui um ilícito que compreende o uso da
unidades e modo de provimento), pois competência para atingir finalidade diversa
entendemo-los inteiramente afastados da da que justificou a sua outorga para a au-
discricionariedade administrativa: os car- toridade administrativa. A lição clássica de
gos de provimento em comissão devem Caio Tácito (1997, p. 52) é imprescindível
existir de modo excepcional na Administra- para o deslinde da questão:
ção, em respeito ao princípio do concurso “Não basta, porém, que a autoridade
público. Também haverá abuso do poder seja competente, o objeto lícito e os
regulamentar se os titulares de cargos co- motivos adequados. A regra de com-
missionados forem designados para exercer petência não é um cheque em branco
funções legalmente conferidas a servidores concedido ao administrador. A ad-
titulares de cargo efetivo ou empregados. ministração serve, necessariamente,
Portanto, verifica-se que a criação e a ex- interesses públicos caracterizados.
tinção de cargo de provimento em comissão Não é lícito à autoridade servir-se
deve ser igualmente efetivada mediante lei de suas atribuições para satisfazer
complementar. interesses pessoais, sectários ou po-
Tal como na hipótese dos órgãos públi- lítico-partidários, ou mesmo a outro
cos, os decretos regulamentares não podem interesse público estranho à sua com-
ser validamente empregados para sanear petência. A norma de direito atende
cargos públicos irregularmente criados. a fins específicos que estão expressos
Havendo omissão da lei instituidora do ou implícitos em seu enunciado. A
cargo, fica vedada a expedição de infralegal finalidade é, portanto, outra condição
para restaurar a legalidade. obrigatória de legalidade nos atos
É certo que o Chefe do Poder Executi- administrativos”.
vo tem a competência regulamentar para Nesse diapasão, a expedição de decreto
desconcentrar a intimidade dos órgãos pú- que suprisse indevidamente as lacunas dei-
blicos autônomos. Se essa desconcentração xadas pela lei na criação de cargos comis-
for realizada com a finalidade de distribuir sionados configuraria desvio de poder no
competências entre cargos de provimento exercício de sua competência regulamentar,
em comissão, quando a lei silencia quanto à ao ter por meta a convalidação de cargos
fixação dessas atribuições, estar-se-á diante públicos inválidos por via infralegal.
de um desvio de poder. Afinal, a descon- Como dito, somente a lei complementar
centração administrativa tem por escopo estadual pode ser empregada para restau-
assegurar uma prestação mais eficiente e rar a legalidade diante de cargos públicos
inválidos no âmbito da Administração
21
Como o art. 66, parágrafo único da Constituição
Estadual, por exemplo: “Art. 66. (...) Parágrafo único.
Norte-rio-grandense. Aliás, os princípios
Compete ao Secretário de Estado, além de outras da obrigatoriedade do desempenho da ati-
atribuições estabelecidas nesta Constituição e na lei: vidade administrativa e da continuidade do
I – exercer a orientação, coordenação e supervisão dos serviço público demandam urgentemente a
órgãos e entidades da administração estadual e refe-
rendar os atos e decretos assinados pelo Governador regularização de toda a falha estrutura de
do Estado, na área de sua competência; II – expedir cargos públicos que a gestão que assume
instruções para execução das leis, decretos e regula- herda da gestão pretérita.
mentos; III – apresentar ao Governador do Estado
Entendimento contrário, inclusive, não
relatório anual de sua gestão na Secretaria; IV – pra-
ticar os atos pertinentes às atribuições que lhe forem é privilegiar a continuidade e a estabilidade
outorgadas pelo Governador do Estado”. das atividades desempenhadas pela Admi-

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 29


nistração Estadual. Significa, na realidade, ______ . Constituição do Estado do Rio Grande do Norte.
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inválidas e tornar vulneráveis os atos emiti- oestadual.pdf>. Acesso em: 11 set. 2007.
dos pelos titulares de cargos inválidos a uma
______ . Rio Grande do Norte. Lei Complementar no 122,
eficiente contestação judicial, nos termos do
de 30.6.1994: dispõe sobre o regime jurídico único dos
art. 2o, alínea “a”, e parágrafo único, alínea servidores públicos civis do Estado e das autarquias
“a”, da Lei Federal n. 4.717, de 29.6.1965. e fundações públicas estaduais, institui o respectivo
estatuto e dá outras providências. Natal: [s. n.], 1994.
Disponível em: <http://www.al.rn.gov.br/legisla-
5. Conclusão cao/leiscomplementares/anterior1995/lc122.pdf>.
Diante do exposto, chega-se às seguintes Acesso em: 11 set. 2007.
conclusões: ______ . Rio Grande do Norte. Lei Complementar no 163, de
(i) no ordenamento jurídico do Estado 5.3.1999: dispõe sobre a organização do poder executivo
do Estado Rio Grande do Norte e dá outras providên-
do Rio Grande do Norte, são válidos os
cias. Natal: [s. n.], 1999. Disponível em: <http://www.
decretos, autorizados por lei complementar al.rn.gov.br/legislacao/leiscomplementares/1999/
estadual, que regulamentem a estrutura e o lc163.pdf>. Acesso em: 11 set. 2007.
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(ii) são válidos os decretos, se previstos tivo. 14a ed. São Paulo: Malheiros, 2002.
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ou de fundação pública por decreto;
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(iv) a criação e a extinção de cargos pú-
Saraiva, 2006.
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realizadas por lei complementar; GRAU, Eros Roberto. Direito posto e direito pressuposto.
São Paulo: Malheiros, 1996.
(v) constitui desvio de poder o uso da
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órgãos ou cargos ilegalmente criados; Belo Horizonte: Del Rey, 2003.
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al representa um instrumento hábil para a leiro. 26a ed. São Paulo: Malheiros, 2001.
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nais, 2007. Renovar, 1997. 1 v.

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