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, III, 2, 42-60
o seu estatuto real. Havemos de ultrapassar essa barreira e nela buscar um passo
importante na construção de um lugar subjetivo que o homem enfrenta como condição
essencial para sua hominização.
Aliada à premissa de que a fome sofre uma torção desde o princípio do mito
da Criação, aparece um outro apoio oriundo da noção de construção de saber e que
e m e r g e n a d a m e n o s c o m o a possibilidade de o h o m e m contextualizar-se n u m
movimento de sexuação. Dessa forma, fome, saber e sexualidade aparecem como
três dimensões desencadeantes da possibilidade de hominização viável, inexistente
em qualquer projeto anterior a esse momento.
D o p o n t o de v i s t a d i e t é t i c o , p o d e m o s p e r g u n t a r : q u a l foi o p r i m e i r o
c o n h e c i m e n t o que se deu depois da ingestão do fruto proibido? Essa resposta
podemos encontrar no Génesis 3,7, momento em que Adão e Eva abriram os olhos
e perceberam que estavam nus. Essa parece ser a constatação da sexualidade. U m a
primeira referência ao homem e à mulher; uma primeira caracterização do homem e
da mulher; enfim, da ocupação do lugar do masculino e do feminino. Ε o momento
em que os corpos, já atravessados por um sentido de masculinidade e feminilidade,
começam a exibir uma espécie de sensualidade. U m franco convite à presença do
desejo. É o momento em que, pela primeira vez no mito da criação do homem,
declara-se a presença do erotismo.
Curiosamente, essa capacidade de perceber aquilo que antes era imperceptível,
aparece na narrativa como a "Tentação de Eva". Traz como figura geradora da ação
e n i g m á t i c a a p r e s e n ç a da serpente, u m a p e r s o n a g e m que tenta o nosso casal
primogénito, simbolizando uma condição de acesso ao saber, isto é, uma promessa
de discernimento que acenaria, incontestavelmente, com uma mudança significativa
na p e r c e p ç ã o das coisas, pois a n t e r i o r m e n t e não p o s s u í a n e n h u m sentido de
diferenciação.
Encontramos, ainda, na persecução de uma referência entre a sexualidade e o
Paraíso, o dado de que a sexualidade passa necessariamente pela exigência de
construção de um saber. Antes existiam dois seres aos quais o Criador chamou de
macho e fêmea, porém, totalmente descaracterizados de um erotismo. Nesse sentido,
o erotismo, além de aparecer depois da desobediência de uma Lei, reflete também
uma consequência que advém do jogo entre os membros da dupla primogénita. U m
jogo que envolve a ação de comer o fruto da árvore proibida, que antes havia sido
apresentada pelo Senhor como um limite à incomensurável possessão paradisíaca; e
a figura da serpente, representando o quarto personagem que irrompe simbolicamente
na trama, para proporcionar a ação carregada de erotismo, dentro desse Paraíso
dessexualizado que era o Eden.
A lei, o bem, o mal, o saber, o jogo e o erotismo aparecem como os principais
elementos que extraímos do livro do Génesis para a construção do conceito de
sexualidade no processo de sexuação dos corpos diferenciados de Adão e Eva.
Da análise realizada até então, podemos deduzir que, antes da sexuação dos
corpos de nossa dupla primogénita, existiam a lei e a referência ao bem e ao mal.
Em contrapartida, o erotismo fundou-se somente a partir do instante em que se supera
a primeira fase e, sobretudo, quando essa aparece vinculada a um saber que a
serpente, metaforicamente, comparou com a promessa da sapiência divina.
C o m isso, p o d e m o s articular a seguinte pergunta: que espécie de Paraíso
caracterizava a existência das espécies no Éden, antes da sexuação dos nossos
primogénitos?
A resposta emerge da constatação óbvia de que o Éden, ao mesmo tempo que
possuía seus encantos, poderia ser definido como o lugar onde reinava uma espécie
de relaxamento das tarefas árduas a que o homem foi submetido após sua queda
nos confins da terra. Pelo direito de desfrutar de tudo que o rodeava - inclusive da
mulher gerada a partir da sua existência - menos dos frutos da árvore do bem e do
mal, o homem detecta uma faceta tremendamente enfadonha, motivo pelo qual fez
com que se desenrolasse a trama, isto é, o segundo ato da história do Paraíso.
É como se nessa extrema bondade ofertada pelo Criador e que praticamente
aboliu a lei do esforço para a sobrevivência do homem dentro do Paraíso, se fundasse
paralelamente um Paraíso do tédio, à medida que, na sua generosa oferta, a mulher,
em forma de m a t é r i a bruta, a p r e s e n t a d a a A d ã o c o m o sua c o m p a n h e i r a , era
semelhante a tudo o que por lá existia; inclusive igual ao próprio Adão. Ele não a
percebia desnuda. Com isso aparece o tédio ou até mesmo a apatia caracterizada
como a ausência de alteridade.
Podemos então assinalar esse primeiro momento da vida do homem e da mulher
como o ápice da apatia gerada pela referência da mesmidade que o Éden imprimia
aos primogénitos, que haviam sido colocados no Jardim para dominar todas as
espécies. Porém, como viabilizar esse domínio? Parece que nesse ponto faltavam-
lhes recursos para que pudessem desenvolver tais aptidões.
É dentro desse universo da mesmidade que o Criador pôs à disposição de Adão
e Eva elementos para que o projeto de hominização fosse levado a cabo, sempre
que rompessem com essa perfeição insuportável, fundando, consequentemente, o
estatuto da alteridade. Os elementos que sobressaem aqui são: a lei, uma referência
dicotômica (o bem e o mal) e, finalmente, o indício de um saber que o Criador sugere
ao casal primogénito, equiparável ao seu.
A importância da diferenciação entre a mesmidade e a alteridade aparece como
o ponto de inflexão mais importante, mais significativo, para o entendimento da
eclosão da sexualidade, em forma de percepção erótica e sensual, experimentada por
Adão e Eva depois de uma atitude carregada de um movimento dietético.
O ato dietético, plasmado na ingestão do fruto proibido, traz consigo uma série
de traços característicos dos vícios humanos: a vergonha, a inveja, a gula, aquilo
que entre tantas denominações se aproxima dos sete pecados capitais.
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e
2 Movimento
1
"... e no começo era o verbo '
fi
Com isso, podemos retomar o l movimento da dietética no Livro do Génesis
e mostrar que ele, desde a premissa da eliminação do harmónico insuportável e a
Ü
fundação das brechas dicotômicas, reflete-se no 2 movimento, o do processo de
criação da escritura, por meio das opções para as construções de sentido que o homem
encontra diante das penúrias da condição humana. Significa dizer que, a partir daí,
o homem há de trabalhar arduamente, uma vez que foi ejetado nos confins de uma
outra terra que, extrapolando os limites do físico, traz à tona outros limites, ou seja,
o da própria existência.
Emergem, então, inúmeras possibilidades combinatórias. Esse é o novo preço
que a dietética, em sua outra versão, impõe mediante a escritura; adietar-se de signos,
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com vistas a que este alcance um certo ideal perdido. A saúde aparece como uma
grande meta que move o homem em direção ao Paraíso perdido, porém, o que a faz
aparecer nas preocupações da medicina é exatamente seu contraponto conhecido
como a enfermidade. O Phármakon prescrito pode muito bem alcançar, dentro da
variância dos objetivos do homem, o sentido da cura ou do envenenamento.
Da dieta da escritura, sob a forma de prescrição, à dieta da ingestão, o passo
estabelecido é deveras estreito. O sentido da ingestão pode ser mortífero. Aniquila,
restabelece, estimula, entristece. A droga como promessa de felicidade, traduzida
na trivialidade da concretude rotineira, extrapola também o próprio ato da ingestão
e conclama o harmónico do real do corpo, mediante o reencontro com a fala do Pai.
Um Pai que sempre exercita sua memória, sem precisar rememorar como o filho,
prestando-se, por isso, como índice de algo perdido.
Ε nesse sentido que a dietética é tida, no movimento de fundação da medicina,
como aquela que, extrapolando os valores diretos da prescrição da droga, alcança
os limites da arte de viver. Com isso, deflagra todo um movimento ético que indica,
sobretudo, uma referência ao regime como "... uma categoria fundamental através
da qual pode-se pensar a conduta humana; ela caracteriza a maneira pela qual se
conduz a própria existência e permite fixar um conjunto de regras para a conduta.
(...) O regime é toda uma arte de viver". (Foucault, 1984; pp. 92-93)
Como algo inerente à arte de viver, que filtra os costumes e a própria conduta
humana, o que apareceu dentro desse segundo movimento abre espaço para o que,
j á em voga nesse instante, exige uma análise num outro mito que, partindo do
percurso realizado entre a fome e o verbo, dê conta, sobretudo, daquilo que j á foi
descortinado nos limites do Paraíso mediante a criação do erotismo como jogo.
Û
3 Movimento
ele restringe, limita e deixa nas entrelinhas da digestão uma interdição. O homem
há de interdizer o que comeu.
Q
O 3 movimento é sábio porque indica que a lei se articula com algo da ordem
do amor. A interdição produz fantasmas, tendo em vista que o filho há de produzir
saídas para o gozo limitado com a devoração do pai. As saídas que o filho encontra
para potencializar sua existência são todas retiradas desse m o v i m e n t o . E, na
articulação fantasmática construída a posteriori, reaparece algo do jogo erótico, típico
û
do l m o v i m e n t o , em que o h o m e m , condenado a trabalhar para justificar sua
sobrevivência, mescla jogo e trabalho, inclusive para suportar o trabalho do ato. Não
poderia haver ato sem a articulação fantasmática. Ao mesmo tempo, não haveria
articulação possível se o amor não fomentasse essa promessa de felicidade.
Û
É aqui onde o 3 movimento dietético é rico em referência aos demais mitos.
Se é no amor que a promessa de felicidade mais se anuncia na existência do homem,
o terreno do mal-estar vai trazer à tona o essencial do construto freudiano estruturante
do mito do pai poderoso, como pedra fundamental da articulação com o mal-estar
na civilização. O amor move o mundo em busca da felicidade. Por intermédio dele
se mata, se aniquila. Porém, o que ele deflagra, em contrapartida, é o terreno em
que o sujeito se encontra. Em definitivo, ele revela que a cada encontro a interdição,
como essência do mal-estar, se faz mais presente. Ε nem por isso ele deixa de tentar.
Por que?
Essencialmente porque existe um mandato, um imperativo de gozo que também
nasce desse movimento dietético e que après-coup pode ser lançado como análise
Ü
sobre os outros dois movimentos. Desse 3 movimento, fica claro que o homem
interditado do gozo pleno lança-se em sua procura, encontrando a cada tentativa o
limite imposto pela instauração daquilo que a degustação do pai inscreveu. N u m a
articulação mais profunda, significa dizer que a dieta que o pai impôs aos filhos,
por meio de seus próprios movimentos, indica que, junto à lei, existe a presença
inexorável de um mandato em direção à transgressão. Ε para que transgredir? A
resposta seria mais óbvia: para sentir o sabor imposto pela interdição. Ε por isso
que se diz desse imperativo que ele ordena que o sujeito goze. Dito com outras
palavras: todo imperativo de busca de felicidade passaria, obrigatoriamente, por essa
possibilidade do filho reencontrar-se em um dado momento com a condição exibida
pelo pai pleno.
Ε dessa forma que podemos retornar o mito do Génesis, não mais para situar o
desencadeamento da ação dietética, já assinalada por nós, senão para mostrar o desejo
que se instala no h o m e m de reencontrá-lo outra vez. E m cada ato do h o m e m
interditado, uma reedição dietética se faz presente. Para entendermos isso, se faz
necessário aplicar o passo da metamorfose entre a comida totêmica e aquilo que se
instaura no homem. Depois veremos a aplicabilidade de tudo isso no cotidiano.
O que se constata com a fundação da lei, instituída pelo mito da horda primitiva,
é que o interdito de gozo que emerge é, em si, índice estruturante para o homem
nas suas demais investidas desenvolvidas pela vida. Isso implica admitir que a lógica
que aqui se aplica encontra em Freud toda uma estética, diferente, por exemplo, da
estética da existência promulgada pelos gregos.
A estética da existência que aparece no campo freudiano remete nada menos
fí
que à economia que aqui podemos retomar do 2 movimento, na medida em que
põe em j o g o toda a dimensão da significação que a relação significante-significado
traz ao homem. Lacan, no Seminário VII, lembra que a estética freudiana "deve ser
colocada no ponto de partida do problema, para tratar de articular suas consequências,
em particular o papel da idealização". (1959-60; p. 195)
Trabalhar com a dimensão de economia, partindo do significante, seria o mesmo
que aplicar sobre a invenção da escritura uma outra ordem que já não mais se contenta
com o argumento de que há hominização pela diferenciação da escritura em relação
à fala do pai. Seria basicamente trabalhar com o pressuposto de que a escritura que
trabalhamos aqui foge à necessidade inclusive de invenção do hieróglifo, uma vez
que a maior das invenções relacionada ao ato da escritura fica fundada com o advento
da interdição. Se há uma interdição, uma proibição, é porque ao mesmo tempo passa
a funcionar algo que, partindo de uma escritura, se inscreve naquele que aspirava a
igualar-se não mais à memória da sapiência paterna, senão ao nível da potência
exibida pela brutal capacidade que ele tinha de aceder a todas as mulheres. Esse pai
gozador, potente, supostamente o pai das ereções, é aquele que inscreve mediante a
instância de uma letra que, por sua vez, também ultrapassa as marcas hieroglíficas.
A escritura é importante, porém não mais como uma condição de fazer-se
humano. A prova é tal que, quem tenta fazê-lo por ela, sem as marcas da instância
Q
da letra, que por si j á traz toda uma referência distinta ao ponto fundamental do 2
movimento, ou seja, o esquecimento, falha no emaranhado sugerido pelo significado
em que o hieróglifo aporta.
Nesse ponto, se retomamos a estética como uma idealização que aparece em
toda criação hominizada, podemos chegar à lógica de que toda tentativa estética que
o homem articula está fadada, pelo próprio caráter que a define, como um lugar de
falência. Como lugar de falência, situamos outra vez nossa problemática no seio da
discussão do mal-estar.
Há um movimento do homem em direção à concreção da felicidade que, com
base em uma idealização que podemos situar no lado da formação do eu, aparece
como sendo algo da promessa de uma unificação. O eu, tipicamente formado numa
dimensão estética, leva consigo toda uma carga especular, em que o que se deixa
transparecer mostra, sobretudo, que a matriz é ortopédica e q u e os ideais são
propulsores ao encontro estético dessa mesma unificação. Entretanto, a matriz em
si é que descompleta. Tocamos outra vez a condição do desejo de sermos felizes. E,
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Referências bibliográficas
Resumos
posibilita una referenda epistemológica constante para el entendimiento del lugar que
el hombre ocupa subjetivamente en una determinada época; y, sobre todo, se presenta,
como una perspectiva de trabajo psicoanalítico prometedora, cuando ratifica el sujeto
como un producto del paso realizado de la natureza a la cultura.
Palabras llave: Dietética y psicoanálisis, mitos y estructuración del sujeto, diatética y
subjetivación
Curieusement, les mythes que nous connaissons pour donner une signification à
Vexistence humaine touchent, sans aucun doute, la présence de la diethétique en tant
que condition inherent à Vhominization de Vétre vivent. Cela peut être observée dans
les mythes de la Genesis, de Theuth et du Père de la horde primitive, à travers le texte
Totem et Tabou. Cette constatation rendra actuel Γ aphorisme de Schiller, mettant en
évidence que la faim et l'amour apparaîntrent comme le ressort de l'univers.
Tout d'abord, cette question donne lieu a une reflection sur l'importance du trait
de la diethétique entant que une marque dans laquelle l'homme construit à travers cette
action un sens à l'existence. Par conséquence, travaillons avec l'hipothèse que la
diethétique rend possible une référence epistémique constante pour l'entendement de la
place que l'homme subjective dans une époque donnée; et sortout, cette hipothèse se
présente comme une ligne prometteuse de travail psychanalytique, quand elle ratifie le
sujet en tant qu'un produit du passage de la nature à la culture.
Mots clé: Diethétique e psychoanalisis, mythes e structuration du sujet, diète e
subjectivation
Curiously, the myths that we know to give meaning to human existence touch upon,
undoubtedly, the presence of dietetic as an inherent condition to the construction of the
lived one. This can be found in the myths of Genesis, of Theuth and the Father of Primitive
Horde through the Totem and Taboo text. This observation makes Schiller's aphorism
updated, emphasizing that hunger and love stand out as the universe spring.
At frist, this theme invites a reflection on the importance of the characteristic of
the dietetic as a mark where man constructs through this action, a meaning to his
existence. Therefore, we work with the hypothesis that the dietetic creates a constant
epistemological reference to the understanding of the place that man occupies subjectively
in a given time, and especially, it emerges as a promissing psychoanalitical work line
when it ratifies the subject as product of the passage from nature to culture.
Key words: Dietetic and psychoanalysis, myths and structuring of the subject,
diets and subjectivation