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Sequência Rápida de Intubação na Emergência: Uso do Fentanil

Caio Goncalves Nogueira - Médico Emergencista (RQE 50857)

Muita polêmica e resistência sobre o uso racional de Fentanil na intubação em sequência rápida
encontrado pelos residentes de Medicina de Emergência nos estágios com seus preceptores de
outras especialidades não emergencistas.

A polêmica: É enraizado culturalmente que o Fentanil é etapa obrigatória na intubação de


emergência, segundo comentário relatado por um residente, ˜Sem fentanil não é Sequência Rápida
de Intubação˜.
A discussão: Intubar dói?
A dor da intubação se compara a uma laparotomia num paciente acordado (comentário relatado, de
acordo com o título de comparação é possível imaginar a especialidade do autor?)
- Existe inervação sensitiva somática na hipofaringe/laringe/valécula/aritenóides/pregas vocais?
- As alterações fisiológicas secundárias a laringoscopia e intubação são prejudiciais?
- Bloquear tais alterações fisiológicas têm benefício em relação a provocar ou piorar hipotensão no
paciente crítico?
- Fentanil faz necessariamente parte da técnica ˜Intubação em Sequência Rápida˜?

As respostas (uma humilde tentativa de elucidação)

Começando do começo: a origem do termo Intubação em Sequência Rápida, que na verdade é uma
técnica, que nasceu com outro nome: ˜Indução rápida˜, técnica descrita pelo anestesista William J.
Stept em 1970, composta por 13 passos para intubação orotraqueal de pacientes com estômago
presumivelmente cheio para prevenir regurgitação e aspiração. Não há qualquer menção ao Fentanil
no trabalho original, os ˜protagonistas˜ da técnica são os bloqueadores neuromusculares.
Especificamente em relação às drogas a primeira utilizada é um bloqueador neuromuscular não
despolarizante, a D-tubocurarina, seguido da infusão de Tiopental e por último infusão de
Succinilcolina [referência 1].
A técnica ˜Indução Rápida˜ nasce então no departamento de anestesia, sendo amplamente
difundido para intubação de pacientes no centro cirúrgico com estômago cheio. É descrito que a
indução anestésica deve ser com droga de ação rápida, no caso indica o Tiopental, que atualmente
não é usado rotineiramente quando se fala de SRI.
Na década de 80 o termo ˜Sequência Rápida de Indução˜ se transforma em Sequência Rápida de
Intubação, termo cunhado no departamento de Medicina de Emergência [referência 2]. Apesar de
semelhantes, o autor descreve que a anestesiologia usa a sequência rápida de indução como parte
do processo de anestesia para procedimentos, diferente da técnica Sequência Rápida de Intubação
que faz parte da estabilização do paciente crítico.
-> Ponto chave: A Medicina de Emergência transformou a técnica em uma das partes da
estabilização do paciente grave, diferente do objetivo original que é prevenir aspiração enquanto se
realiza a anestesia geral.
-> Intubar então é uma das etapas de estabilização, sendo que não é nem de longe procedimento
inócuo, o próprio procedimento pode piorar a situação do paciente se não for individualizado, não
existe receita de bolo nas drogas, a técnica original implica somente o conceito de drogas de ação
rápida.

Origem do Fentanil na história:


Pois bem, ainda na década de 80, surgiram vários relatos sobre a associação entre SRI e
taquicardia, hipertensão e arritmias surgindo a preocupação com pacientes coronariopatas, em que
tais manifestações podem ser especialmente deletérias aumentando o risco de IAM. Eis que o
anestesista Randall com colaboradores publica um trabalho sobre o uso de fentanil antes da
realização do ˜protocolo˜de indução em sequência rápida [referência 3].
É onde surge o termo "Pré Tratamento", se referindo a preparar o paciente coronariopata com uma
dose de opióide com o objetivo de atenuar os sintomas simpaticomiméticos (taquicardia e
hipertensão). Neste artigo é importante salientar que o autor hora nenhuma se refere ao termo "dor"
ou "analgesia", ele inclusive usa o termo "Resposta hemodinâmica a laringoscopia e intubação" para
se referir a taquicardia e hipertensão. Ele ressalta ainda que nenhum dos participantes se recorda da
laringoscopia e intubação. Importante também frisar a seleção dos participantes do estudo, todos
foram pacientes eletivos, sem comorbidades (ASA 1) e hemodinamicamente estáveis.
*Nenhum sinal de isquemia eletrocardiográfica foi observado no grupo sem fentanil
*** As diferenças de PA e FC foram muito pequenas entre os grupos com e sem fentanil ***
*O autor não descreve se houve hipotensão no grupo Fentanil

-> Ponto chave: O fentanil foi incorporado a SRI para atenuar resposta simpática especificamente em
paciente com alto risco de infarto agudo do miocárdio
- A idéia é excelente, imagine um paciente coronariopata grave, já hipertenso antes mesmo da
intubação, ele de fato tem alto risco de malefício com aumento rápido da frequência cardíaca e
hipertensão, mas dizer que todos os outros pacientes coronariopatas terão este benefício, já não é
possível afirmar e é pouco provável. Agora imagine um paciente em curso clínico desfavorável de um
choque séptico, hipotensão pré intubação, será se ele terá malefício num aumento discreto e
transitório da frequência e PA? Será que a hipotensão causada pela perda do tônus muscular
cardiovascular não é pior?
- Esse é o ponto, nenhum Emergencista é contra analgesia, somos contra medidas sem benefícios
com malefícios evidentes.
- Em se tratando de intubação de emergências hipertensivas, como IAM, AVC, etc, o uso racional e
individualizado do Fentanil como pré-tratamento é bem indicado, pois aumentos transitórios (mesmo
que discretos) na FC e PA podem piorar o quadro.

De onde eu tirei que o Fentanil pode fazer mal:

Breaking news: Qualquer combinação de medicações usadas para intubação de emergência sao
potencialmente hipotensores.
Explico: Um dos objetivos da indução para intubação é suprimir reflexos da via aérea superior (tosse
e vômito), além de inconsciência e amnésia. Com a supressão de tais mecanismos, também se
perde/reduz o tônus adrenérgico cardiovascular, em diferentes níveis mas considerado discreto.
Entretanto, considerando o paciente da sala de emergência, que já se encontra com
comprometimento hemodinâmico significativo, tal perda de tônus pode ser significativa. Por isso o
Emergencista sempre individualiza cada caso usando drogas mais estáveis hemodinamicamente
possíveis (não é o caso do Fentanil) e sempre faz o possível para melhorar o hemodinâmico antes de
intubar.

Ponto chave: "Ressuscitar antes de intubar", essa é talvez a primeira lição ensinada aos residentes
de Medicina de Emergência: sempre fazer o possível para estabilizar o possível os doentes críticos
antes de submetê-los a intubação.
É muito bem documentado com evidências robustas que os pacientes submetidos a intubação que
estão com Hipotensão, hipoxemia e/ou acidose estão em altíssimo risco de morrerem durante ou
imediatamente após o procedimento. Entretanto, não faz parte das descrições originais da técnica
SRI tratar tais condições antes de intubar, reforçando que a técnica foi descrita para pacientes
estáveis e o objetivo era evitar regurgitação e aspiração. Fica claro aqui que atualmente usamos a
Sequência rápida de intubação como uma das partes de estabilização do paciente grave, e fazer um
medicamento potencialmente danoso sem critério (Emergências hipertensivas) é errado.
Fentanil pode causar dano?

Começo por uma referência robusta de Jin Takahashi e colaboradores, 2017, que especificamente
testar a associação do uso de Fentanil com hipotensão pós intubação. Entre 2012 e 2016, em 14
departamentos de emergência no Japão, reunindo 1263 pacientes, resultando em risco de
hipotensão no grupo com Fentanil (17% vs. 6%).[referência 8] Detalhe: somente pacientes com
PA>90mmhg, imagine se fossem incluídos os já hipotensos?

Referencia 9: Rapid sequence intubation in emergency: is there any place for fentanyl?
Interessante artigo francês de 2002, país com cultura totalmente diferente em relação ao fentanil e
Sequência Rápida de Intubação, e, como este artigo, diversos outros põem em cheque se de fato há
lugar para o uso do fentanil como pré tratamento antes de SRI, questionam até mesmo se há
benefício em bloquear o estímulo simpático da laringoscopia em qualquer situação que seja (o que
de fato não há evidência robusta, mesmo em emergências hipertensivas).

Intubar dói?
Resumo da anatomia da via aérea:
Faringe - Nervo Glosofaríngeo (Sistema Nervoso Autónomo) inerva a valécula, epiglote e faringe
posterior. Responsável pelo reflexo do vômito
Laringe - O ramo laríngeo do nervo Vago (SNA) inerva sensitivo a parte inferior da epiglote, toda
laringe até pregas vocais, recessos piriformes. É a estrutura sensorial mais intensamente inervada no
corpo, sua estimulação direta causa reflexo de fechamento da glote e ativação simpática reflexa
(descarga catecolaminérgica) causando aumento na frequência cardíaca, pressão arterial e pressão
intracraniana.
-> Laringoscopia - Além dos reflexos de tosse e vômitos induzido pelo estímulo direto a
hipofaringe/laringe há também o Reflexo Simpático em Resposta a Laringoscopia(RSRL), este que
cursa com a liberação de catecolaminas endógenas com aumento da frequência cardíaca e pressão
arterial, semelhante a resposta de luta ou fuga.
Portanto não há inervação sensitiva somática.
Ressalto a diferenciação de "dor" e nocicepção, em que a nocicepção é produzida por outros
mecanismos diferentes da dor somática, podendo ser interpretada como um incômodo de graus
variados como por exemplo ao se tentar induzir vômitos com os dedos. Porém a dor, propriamente
dita, é apenas somática.
[Fonte: Walls, Manejo da via aérea na Emergência, 5 ed.].
Ressalto ainda que nesta última edição foi substituído o termo "Pré-tratamento"p para "Otimização
pré-intubação" como o terceiro "P"na SRI:

"Devido a uma reavaliação crítica das evidências disponíveis sobre os agentes de pré-tratamento
que não identificou estudos de alta qualidade ou benefícios claros para o paciente, exceto quando
esses agentes são usados para a otimização do estado fisiológico para que tolerem melhor os
medicamentos, a intubação e a ventilação por pressão positiva. De outro modo, a adição de
fármacos desnecessários contribui para ineficiências procedurais e introduz o potencial para reações
farmacológicas e erros de dose." Página 236 Capítulo Sequência Rápida de Intubação.

Fato é que o Fentanil não está sozinho no potencial efeito hipotensor:


A combinação de doença aguda, hemorragia, desidratação, sepse e efeitos vasodilatadores dos
agentes de indução fazem ser comum a hipotensão peri-intubação. Uma revisão retrospectiva de 336
intubações na emergência mostrou hipotensão em 23% dos casos com mortalidade
significativamente maior.
Um outro estudo mostrou que usando a estratégia de pré-carga efetiva, fármacos cardio estáveis e
uso precoce de vasopressores resultava em taxas significativamente menores de PCR, choque
refratário e hipoxemia crítica.
Em resumo:
- Sequência Rápida de Indução é uma técnica descrita para pacientes estáveis no centro cirúrgico
com intuito de se evitar regurgitação e aspiração
- O Paciente do centro cirúrgico para qual a Sequencia Rápida de Indução foi criada é
completamente diferente do paciente crítico em que o objetivo é acima de tudo mantê-lo vivo, sendo
que a intubação é apenas UM dos passos
- O Fentanil não faz parte necessariamente da técnica SRI, aliás nenhuma medicação em específica,
desde que haja um indutor anestésico e um bloqueador neuromuscular
- O termo "Pré-tratamento" que faz alusão ao uso de Fentanil foi finalmente substituído por
Otimização Pré-intubação pela Medicina de Emergência, que faz muito mais sentido no paciente
crítico, em que necessariamente se deve Ressuscitar antes de intubar (tratar hipotensão, hipoxemia
e acidose antes de intubar)
- Todos os medicamentos usados para intubação causam algum grau de comprometimento
hemodinâmico, uns mais outros menos
- Algum grau de comprometimento hemodinâmico pode ser muito fácil de ser tratado num paciente
estável, eletivo, em que se conhece todo seu histórico, MAS num paciente que já estava hipotenso
isso pode ser muito mais complexo e difícil
- Experimentar algum grau de resposta simpática transitória tem menor potencial de letalidade do que
uma descompensação hemodinâmica e choque refratário.
- Ninguém é contra atenuar dor, desconforto ou qualquer angústia, mas manter o paciente vivo é
prioridade. Intubou: comece sedo-analgesia o quanto antes.

E-mail para encaminhar evidências de benefícios em se usar Fentanil na intubação de pacientes


críticos salvo algumas emergências hipertensivas: caiognogueira@hotmail.com
Referencias:

[1] file:///Users/clarisse/Desktop/RS%20induction%20nascimento%20(1).pdf
[2] https://sci-hub.se/10.1111/j.1553-2712.1999.tb00084.x
[3] file:///Users/clarisse/Desktop/Fentanyl_Preloading_for_Rapid_Sequence_Induction.12.pdf
[4] file:///Users/clarisse/Desktop/dose%20fentanil.pdf
[5] Heffner AC et al. Incidence and Factors Associated with Cardiac Arrest Complicating Emergency
Airway Management. Resuscitation 2013. PMID: 23911630
[6] Kim WY et al. Factors Associated with the Occurrence of Cariac Arrest After emergency Tracheal
Intubation in the Emergency Department. PLoS One 2014. PMID: 25402500
[7] Salim Rezaie, "Dosing Sedatives Low and Paralytics High in Shock Patients Requiring RSI",
REBEL EM blog, May 6, 2018
[8] https://sci-hub.se/10.1016/j.ajem.2018.03.026
[9] [Rapid sequence intubation in emergency: is there any place for fentanyl?]. Ann Fr Anesth
Reanim. 2002 Dec;21(10):760-6. French. doi: 10.1016/s0750-7658(02)00795-5. PMID: 12534118.
[10] Neil S. Norton, Ph.D. and Frank H. Netter, MD: Netter’s Head and Neck Anatomy for Dentistry,
2nd Edition, Elsevier Saunders, Chapter 16 The Larynx. Página 420 to 435.
[11] Frank H. Netter: Atlas der Anatomie, 5th Edition (Bilingual Edition: English and German),
Saunders, Kapitel 1, Tafel. Página 77 to 80.
[12] Walls, Manejo da via aérea na Emergência, 5 ed

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