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ANTAR - Poder Popular Antiespecista

UVF - União Vegana Feminista

ANTIESPECISTAS:
o manual do veganismo
popular e revolucionário

TERRASEMAMOS
© Autoras e autores. 2021
© Editora Terra sem Amos. 2021

ANTAR - PODER POPULAR ANTIESPECISTA


UVF - UNIÃO VEGANA FEMINISTA

Ana Larissa S. Lima


Ana Mota
Kauan Willian
Marcus Pavani
Nicoly de Sousa Alves
Renato Libardi Bittencourt

Edição
Alexandre Wellington dos Santos Silva

Revisão gráfica
Francisco Raphael Cruz Maurício

LICENÇA CREATIVE COMMONS (CC BY-NC-SA)


Atribuição-NãoComercial-CompartilhaIgual
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


A627 ANTAR - Poder Popular Antiespecista & UVF - União
Vegana Feminista.
ANTAR & UVF. Antiespecistas: o manual do veganismo
popular e revolucionário. Editora Terra sem Amos: Brasil,
2021.
50p.
ISBN: 978-65-89500-07-0
1. Socialismo. 2. Libertação Animal 3. Ética/moral -
tratamento aos animais. I. ANTAR & UVF. II. Título.
CDD: 320.531
179.3
Índice para catálogo sistemático:
1. Socialismo (320.531)
2. Ética/moral - tratamento aos animais (179.3)
SUMÁRIO
Introdução
A história escondida da libertação animal
Kauan Willian.............................................. 05

Capítulo I
Boicote
Renato Libardi Bittencourt..................... 11

Capítulo II
Ação Direta
Ana Larissa S. Lima................................... 15

Capítulo III
Conscientização
Renato Libardi Bittencourt..................... 21

Capítulo IV
Trabalhadores e Luta de Classes
Ana Mota...................................................... 25

Capítulo V
Antidominações
Kauan Willian.............................................. 31

Capítulo VI
Antirracismo e Antifascismo
Marcus Pavani............................................. 35
Capítulo VII
Feminismo e Dominação de Gênero
Nicoly de Sousa Alves.............................. 43

Capítulo VIII
Inserção Social, Poder Popular e Transformação
Kauan Willian.............................................. 47
O manual do veganismo popular e revolucionário • 5

INTRODUÇÃO

a história escondida da
libertação animal
Kauan Willian1

A queda do chamado “socialismo real” na URSS e do consequente au-


mento da narrativa da história criada pelo liberalismo econômico, fez com
historiadores e intelectuais de esquerda buscassem uma narrativa contada
a partir da visão dos que foram vencidos, uma vez que a História é sempre
contada pelos vencedores – uma narrativa de legitimação dos Estados Na-
cionais e de líderes (inclusive na esquerda), e dessa vez, da suposta vitória do
capitalismo. A “história vista de baixo” do pesquisador Edward Thompson,
rebuscando a “história a contrapelo” de Walter Benjamin ou “dos comuns”
de Piotr Kropotkin é o esforço da construção de uma análise e narrativa
que colocam os oprimidos no centro; trabalhadores, mulheres, subalternos,
LGBTQIA+, escravizados, colonizados, negros e militantes e ativistas das
lutas de classes, sociais, feministas e anticolonais (BENJAMIN, 2020; KRO-
POTKIN, 1913; THOMPSON, 1987).
A História oficial sempre ignorou um dos grupos mais oprimidos da
história desde a sedentarização do homo sapiens, os animais não humanos.

1 Doutorando em História Social (USP), professor da rede municipal de São Paulo, mili-
tante sindical e antiespecista (Antar-Poder Popular Antiespecista)
6 • Antiespecistas

Desde esse período, foram miríades de bilhões de animais sendo usados


como tração, alimentação, proteção, vestimenta, medicina e muitos outros
aspectos, quase intrínseco à formação das sociedades e do próprio capita-
lismo ou do Estado Nacional (SINGER, 2010). Sem poder de fala ou de
defensa, por muito tempo sem direitos éticos ou morais, talvez sejam o grupo
mais subalterno que precisam de uma “história vista de baixo.”
A história oficial do veganismo, corrente que busca uma libertação,
e não apenas regularização das condições degradantes que esses animais
passam, coloca a “Vegan Society” de 1944, na Inglaterra, como o início e
aglutinadora dessa ideia e experiência, passando por ativistas e intelectuais,
centrados na Europa e Estados Unidos, e progenitora de numa narrativa de
moralidade e ética que foca na conscientização de seus ouvintes. Não obstan-
te, a história oculta da luta pela libertação animal tem uma tradição muito
mais complexa, e que foi imbricada com a história de outros oprimidos.
No continente europeu, com a luta sufragista, a libertação animal foi
muito discutida e proposta por feministas. A sufragista e depois socialista
francesa Charlotte Despard, nascida em 1844, já defendia o vegetarianismo
como parte de seu pacifismo diante de guerras nacionais e imperialismo, co-
nectando a dominação animal com a humana. Ou seja, o vegetarianismo não
era apenas um tipo de alimentação e estilo de vida, mas já fazia parte de uma
discussão de análise de mudança estrutural, mesmo que não sistematizada.
Pelo o que tudo indica, a mesma não tinha hábitos de usar nada animal –
mesmo antes do termo vegano. O que fez, para autora Carol Adams, ser o
feminismo a linha de frente do vegetarianismo e do veganismo, já que em sua
análise, e que essa tradição já apontava, a cultura patriarcal foi construída em
relação com o ato de consumir animais diariamente, como também mostram
como nos escritos de Françoise d’Eaubonne, Vandana Shiva, Susan Mann e
outras (ADAMS, 2012).
Um autor importante que alocou a discussão animal, dessa vez com
mais força no movimento operário, foi o francês Éliseé Reclus, ainda no
fim do século XIX. Um dos construtores do socialismo libertário e depois
do anarquismo na Primeira Internacional dos Trabalhadores, Reclus esten-
dia seu internacionalismo aos animais não humanos, já que influenciado
por textos contemporâneos como de Darwin, sabia que todos os animais
eram sencientes e alguns tinham intima relação com a linha evolutiva dos
humanos. Nesse sentido, mostrava a relação do avanço do capitalismo com
a coisificação de animais e a degradação do meio ambiente, ressaltando a
O manual do veganismo popular e revolucionário • 7

importância de resgatar e manter tradições mais próximas com animais e


outros seres vivos como as que tinha visitado na América do Sul citando “a
indígena do Brasil [que] se cerca voluntariamente de toda uma multidão de
animais, e em sua cabana e na clareira circundante há antas, veados, gambás”
(RECLUS, 2010, p.1-2). Reclus também mostrava que as guerras nacionais,
que boa parte dos socialistas se opunham, tinham relação com a dominação
de animais, já que “não é uma digressão mencionar os horrores da guerra em
conexão com o massacre de gado e os banquetes para carnívoros. A dieta cor-
responde bem aos modos dos indivíduos. Sangue chama sangue (RECLUS,
2010, p.8).” Desde aí, anarquistas como a francesa Louise Michel, e os bra-
sileiros Maria Lacerda de Moura e José Oiticica se declararam vegetarianos,
deixando um rastro para essa discussão posteriormente, como no movimen-
to punk e de libertários do Animal Liberation Front que alavancariam um
veganismo radical e de ação direta após a década de 1970.
Na re-organização de esquerda, após a queda do Muro de Berlim, socia-
listas discutiram a questão da libertação animal, muito também pela influên-
cia da confecção do ecossocialismo e da tradição marxista que considerava
a natureza parte fundamental da luta de classes. “A visão de natureza que se
desenvolveu sob o regime da propriedade privada e do dinheiro”, escreveu
Marx em 1843 em A Questão Judaica, “é de verdadeiro desprezo pela degra-
dação prática da natureza…” (MARX, 1843, p.23), numa análise acertada
do que estava acontecendo e do que iria vir. Fato que faz com que marxistas
importantes como Angela Davis considerarem o veganismo parte da relação
de dominação do capital que transforma todos os seres e objetos em mer-
cadoria ou em trabalho, sendo os animais os dois (DOUGLAS in: Portal
Veganismo, 2014).
Fora do Atlântico Norte, as visões e análises anticoloniais e antirras-
cistas também foram essenciais para a construção de uma luta pelos direitos
dos animais que não atropelasse as pessoas racializadas ou fosse usada pelos
racistas ou supremacistas. O movimento antirracista, negro e indígena, e au-
tores como Llaila Afrika, Aph Ko, Syl Ko, Vandana Shiva e outros colocam a
questão da colonização do paladar e da alimentação que, com a colonização e
o imperialismo, impediu socialmente e culturalmente uma dieta balanceada
para os colonizados, impondo uma forma de alimentação eurocêntrica, ba-
seada em restos de animais, industrializados, excrementos, laticínios, açúcar,
farinha e sal. Eles mostram que, apesar de regiões como o continente africa-
no e boa parte do asiático terem consumo de animais, a dieta desses povos
8 • Antiespecistas

era muito mais baseado em vegetais e harmônico com seus ecossistemas.


Portanto, o veganismo é muito mais fácil de ser buscado se tal “alimentação
ancestral” e os conhecimentos naturais desses povos forem valorizados e res-
gatados (KO, 2017; AFRIKA, 2004).
No Brasil, os movimentos contraculturais no período da Ditadura Mi-
litar como o Hippie e o Punk trouxeram debates ambientais influenciados
pelo contexto da Nova Esquerda presente no Maio de 1968 na França e em
várias partes do mundo. Militantes socialistas também trazem na bagagem
tais discussões para reformularem novos movimentos e organizações. Além
disso, as migrações e a volta da liberdade de expressão e mais flexibilida-
de com religiões não cristãs, após o fim do período ditatorial, faz com que
hinduístas, budistas e outros propagam alimentações vegetarianas em vários
espaços. Isso fez com que, no país, o veganismo, mesmo parte minoritário,
estivesse atrelado a movimentos progressistas ou a religiões não oficiais e
minoritárias, sendo anexado a culturas de classe e movimentos sociais e polí-
ticos (MOTA; SANTOS, 2020).
Mas essa não é a história contada, uma porque com o aumento do nú-
mero de veganos e a disputa dessa ideologia pelo mercado fez com que se
formassem diversos “veganos não políticos” ou mesmo pessoas que não en-
xergam o ato de lutar pela libertação animal com a humana, como muitos
de extrema-direita dentro de movimentos animalistas. Ongs financiadas por
grandes empresas que pretendem capitalizar a luta vegana e a transformar em
um nicho de mercado, muito inteligentemente, construíram sua narrativa, a
narrativa dos vencedores.
Esse pequeno livro, portanto, tenta tensionar outra narrativa e, a par-
tir da nossa história escondida, onde se encontram os oprimidos (animais
humanos e não humanos) e, juntamente com a experiência, com erros e
acertos, de grupos veganos, antiespecistas e animalistas atuais, propor um
manual do verdadeiro, ou do nosso veganismo: anticolonial, revolucionário,
popular e antiespecista. Trataremos da história e importância das estratégias
fundadoras desse veganismo: o boicote, a ação direta e a conscientização,
mostrando como foram usados e como podemos transformá-las a partir de
novos debates e diálogos atuais. Após isso explicitaremos conceitos que não
podemos perder de vista para um veganismo revolucionário, assim como
construído com o poder popular: a perspectiva antidominações, o anticapi-
talista e a questão de classe, o imbricamento com o antifascismo e o antirra-
O manual do veganismo popular e revolucionário • 9

cismo, a intersecção com a perspectiva de gênero e feminista e a necessidade


de estratégias de inserção e força social e poder popular.
Cada capítulo é escrito por um dos militantes antiespecistas, dos grupos
Antar – Poder Popular Antiespecista, da União Vegana Feminista e de outros
coletivos, apresentando uma proposta que não está encerrada e se apresenta
como um diálogo fraterno com os grupos populares e outros ativistas e mili-
tantes veganos, antiespecistas e animalistas, onde o horizonte é a libertação e
a igualdade entre animais, humanos e todas as espécies.

Referências
ADAMS, Carol. A política sexual da carne: a relação entre carnivorismo e
a dominância masculina. Tradução de Cristina Cupertino. São Paulo:
Alaúde, 2012.
AFRIKA, Llaila. African Holistic Health, The neglected revolution. Edito-
ra A & B Book Distributors Inc, 2004.
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de História. São Paulo: Alameda Edi-
torial, 2020.
DOUGLAS, Camaleão. “Angela Davis, ex-Pantera Negra, fala sobre Direi-
tos Animais e Sociedade.” In: PortalVeganismo, 2014. Disponível em:
https://tinyurl.com/sxcbnwvn. Acesso em 31 de janeiro de 2020.
KO, Aph; KO, Syl. Aphro-ism: Essays on Pop Culture, Feminism, and
Black Veganism from Two Sisters. New York: Lantern Books, 2017.
KROPOTKIN, Piotr. A Grande Revolução (1789-1793). São Paulo: Gui-
marães Editoriais, 1913.
MARX, Karl. A Questão Judaica. São Paulo: Moraes, 2018.
MOTA, Ana; SANTOS, Kauan Willian dos. Libertação Animal: Liber-
tação Humana: veganismo, política e conexões no Brasil. Juiz de Fora:
Editora Garcia, 2020.
RECLUS, Eliseé. A Anarquia e os animais. São Paulo. Piracicaba: Ateneu
Diego Giménez, 2010.
SINGER, Peter. Libertação Animal. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
THOMPSON, Edward. A formação da classe operária inglesa. Rio de Ja-
neiro: Paz e Terra.
O manual do veganismo popular e revolucionário • 11

CAPÍTULO I

BOICOTE
Renato Libardi Bittencourt1

Na história secreta do movimento pela libertação animal, a estratégia do


boicote constituiu e ainda constitui um dos pilares do veganismo. Diferente
das ONGs liberais e bem estaristas que defendem a “estratégia” dietética
de consumo e concessões com grandes holdings que exploram animais não
humanos e trabalhadores assalariados, o princípio basilar do verdadeiro ve-
ganismo é “os fins são os meios”. Por trás disso está a ideia do “compromisso
performático”, isto é, do princípio de que, para atingir nossos objetivos mais
fundamentais, devemos agir de maneira coerente desde o início da cada pas-
so estratégico. Assim como o termo “vegan” foi cunhado em 1944 pela “Ve-
gan Society” para se desvincular da completa desvirtuação do vegetarianismo
(MOTA; SANTOS, 2020), é preocupante perceber que o velho problema da
desvirtuação ainda continua a nos assombrar.
O boicote se mostra como algo que poderíamos chamar de “básico”
para qualquer vegano minimamente consciente dos princípios mais caros ao
veganismo e para a luta antiespecista. Boicotar significa, entre muitas possi-
bilidades, negar-se, recusar-se a colaborar com agentes e forças que em nada

1 Mestre em Filosofia pela UFPE, professor e pesquisador do Instituto Federal de Ala-


goas – IFAL, Militante anarquista e Antiespecista e coordenador do núcleo da Antar em
Pernambuco.
12 • Antiespecistas

tem a oferecer positivamente aos nossos fins. Lutar por “mais opções plant-
-based” não pode de maneira alguma ser considerada como luta antiespecista.
A contaminação liberal no movimento vegano se constitui como uma das
maiores formas de desvirtuação do próprio movimento que, em sua história
conta com a tradição da Animal Liberation Front (Frente de Libertação Ani-
mal). Nesse sentido, configura-se como algo profundamente contraditório
financiar o poder sádico de grandes empresas que enxergam no veganismo
apenas um nicho lucrativo de mercado enquanto perpetuam a exploração de
animais e da classe trabalhadora.
No fundo não apenas militantes sociais quanto a própria sociedade em
geral entendem e simpatizam com a ideia do boicote. Um caso exemplar
aqui no Brasil é o da rede de supermercados Carrefour que, em não tão raras
ocasiões, vem protagonizando episódios lamentáveis de racismo em algu-
mas de suas unidades ao passo que a revolta contra tais ocorridos desperta
sazonalmente movimentos de boicote à empresa. Nessa perspectiva dos di-
lemas envolvendo as estratégias (incluindo o boicote), movimentos sociais
bem organizados ou mesmo coletivos menores costumam enfrentar o que o
sociólogo James Jasper denomina de “O dilema das mãos sujas”:

Num mundo perfeito, meios e fins sempre se ajustariam, de modo


que seríamos sempre capazes de usar meios que nos fossem moral-
mente confortáveis. Mas às vezes existem objetivos que não podemos
alcançar com os meios de nossa preferência. Podemos ter necessidade
de usar, por exemplo, a falsidade ou a espionagem. Para alguns gru-
pos, usar dinheiro é sempre suspeito, e eles prefeririam operar com
base exclusivamente em voluntários (JASPER, 2016, p.45).

O dilema tratado por Jasper nos faz lembrar que a militância antiespe-
cista ou o veganismo popular não são nem de longe as únicas peças nesse
jogo de xadrez. Assim como fazemos nossos movimentos e tentamos aplicar
cada recurso os quais dispomos, do outro lado, as grandes empresas e seus
aliados (que vão dos lobistas até políticos e juízes) também possuem suas
armas e estratégias. A forma mais astuta que pecuaristas e grandes holdings
encontraram para perpetuarem o seu poder diante da luta vegana foi a da
cooptação do amplo e fragmentado movimento pelos direitos dos animais.
Nem todos são politizados, nem todos compreendem as bases do veganismo,
muitos ignoram questões estratégicas fundamentais, mas o problema não
O manual do veganismo popular e revolucionário • 13

para por aí: existem aqueles dispostos a receber dinheiro dos próprios inimi-
gos em nome de um suposto “pragmatismo”.
Em agosto de 2017, o portal Vista-se publicou uma informação mais
detalhada sobre o financiamento de campanhas ambíguas de ONGs liberais
(CHAVES, 2017). Publicado originalmente no site Elcoyote.org e posterior-
mente adaptado como capítulo do livro Libertação Animal, Libertação Hu-
mana: Veganismo, Política e Conexões no Brasil, o texto intitulado “A farsa
da ‘Revolução Verde’ de mercado: o desafio do veganismo político diante
das ongs e ativistas liberais e neoliberais no movimento animalista no Bra-
sil”, explora essa polêmica e aponta algumas contradições desses grupos que
rejeitam a ideia do boicote (a partir do exemplo das campanhas ambíguas
dos ovos de galinhas confinadas e, mais especificamente, a estratégia adotada
pela Sociedade Vegetariana Brasileira em rotular selos veganos em produtos
da Unilever, empresa que, segundo os autores do texto supracitado, possui
laboratório próprio para testes em animais):

Não temos informações sobre ONGs que recebem valores e dona-


tivos da Unilever, mas devemos nos perguntar qual o interesse de
uma multinacional em fazer rótulos “veganos” em alguns de seus
produtos – menos de 0,1% - enquanto torturam, matam e contro-
lam milhões de animais. A estratégia de ocupar essa empresa é bem
ingênua, já que apenas 14% da população brasileira é vegetariana,
incluindo aí ovolactovegetarianos, que não estão interessados, pelo
menos no momento, com a libertação animal. Demoraria muito para
mudá-la, enquanto podemos apoiar empresas e produtos verdadei-
ramente veganos, e disputar pequenos proprietários, aí sim, muito
mais influenciados pelos atos de consumo do que grandes empresas
multinacionais (MOTA; SANTOS, 2020, p.67).

Como foi dito anteriormente, o boicote é um dos princípios básicos


sem o qual o veganismo se desvirtua. Liberalismo (e neoliberalismo) e ve-
ganismo são essencialmente opostos e se baseiam em visões de ecologia pro-
fundamente distintas e antagônicas. Enquanto o Capitalismo tem como pre-
missa a exploração ad infinitum da natureza, dos animais e das pessoas (vale
lembrar: todos nós somos tanto animais quanto parte da natureza, todos
bestas de carga), O Veganismo popular, abolicionista, interseccional e an-
tiespecista, por sua vez, se baseia no equilíbrio ambiental, na não exploração
e no biocentrismo (antítese do antropocentrismo). A própria pandemia do
14 • Antiespecistas

COVID-19 é um exemplo sintomático do modus operandi do Capitalismo


e o seu profundo desrespeito em relação às pautas ecológicas tão caras ao
veganismo (QUAMMEN, 2020, p.14).
Apesar dos dilemas e paradoxos que envolvem a luta pela libertação ani-
mal e humana, é importante que a “ética” e a “estratégia política” estejam em
sintonia. Não vender nossos princípios em detrimento de um pragmatismo
(falso e equivocado) desesperado e vazio é mais que obrigatório. No lugar de
atrair a simpatia dessas grandes empresas, deveríamos buscar a inserção do
antiespecismo nos movimentos sociais e fortalecero protagonismo daqueles
que fazem frente ao capitalismo e sua lógica de dominação. Ou estamos
lutando para aumentar apenas os privilégios de consumo da burguesia e de
seus vassalos, ou estamos realmente engajados na luta contra uma estrutura,
não há meio termo nesse quesito (por isso que o boicote é um princípio di-
visor de águas dentro do movimento animalista).

Referências
CHAVES, Fábio. “ONGs receberam R$ 11 milhões para promover o fim
das gaiolas na produção de ovos de galinha”. Portal Vista-se. Disponível
em: <https://tinyurl.com/adtkan4s> Acesso em 03 de fevereiro de 2021.
JASPER, James M. Protesto: uma introdução aos movimentos sociais. Rio
de Janeiro: Zahar, 2016.
MOTA, Ana Gabriela; SANTOS, Kauan Willian dos (Orgs.). Libertação
animal, libertação humana: veganismo, política e conexões no Brasil.
Juiz de Fora, MG: Editora Garcia, 2020.
QUAMMEN, David. Contágio: infecções de origem animal e a evolução
das pandemias. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
O manual do veganismo popular e revolucionário • 15

CAPÍTULO II

AÇÃO DIRETA
Ana Larissa S. Lima1

No interior da Primeira Internacional dos Trabalhadores, na segun-


da metade do século XIX, mutualistas, coletivistas (anarquistas) e alguns
comunistas já defendiam a autonomia de decisões tomadas na base, sem
chefes, dirigentes ou organização que não seja a de classe, como meio para
emancipação do proletariado e revolução social. Nesse contexto, apoiava-se a
não-delegação da vontade operária a representantes políticos, construindo-se
a noção de ação direta (COLOMBO, 2010). O teórico italiano e militante
anarquista Errico Malatesta, acerca disso, afirmava:

Para nós, não é muito importante que os trabalhadores queiram mais


ou menos: o importante é que aqueles que queiram, procurem con-
quistar, com sua força, sua ação direta, em oposição aos capitalistas e
ao governo (MALATESTA, 1989, p.104).

De forma abrangente, a ação direta pode ser definida como a recusa


a tomada de decisões e ações por intermédio de representantes, sejam eles
lideranças ou associados a partidos políticos. Desta forma, se contrapõe às re-

1 Técnica em Comunicação Visual (ETEC Carlos de Campos - SP), pesquisadora indepen-


dente e militante antiespecista (Antar-Poder Popular Antiespecista)
16 • Antiespecistas

gras formais de uma democracia liberal, desaprovando a atuação apenas por


meio da legalidade burguesa, pois esses são caminhos impostos pela política
dominante e, se considerados, se faz impossível a transformação radical da
sociedade. Por isso, considera-se necessário construir as ações no agir autô-
nomo dos indivíduos e grupos.
Como estratégia política de luta, ação direta pode se manifestar de diver-
sas maneiras: como boicote na produção, no consumo, como greve parcial,
geral, ou ainda, como sabotagem na produção, na distribuição, ou também
significar a ocupação de propriedade, como fazem as pessoas do movimento
dos sem-terra (GUIMARÃES, 2009).
Considerando o uso da ação direta para fortalecer a luta antiespecista,
algumas práticas podem ser aplicadas:
1) Boicote: o “boicote vegano” é uma forma de desestimular economi-
camente a venda de insumos de origem animal, combater os testes em ani-
mais e pressionar as empresas a substituírem o uso de cobaias por métodos
substitutivos. Geralmente exercido de forma cotidiana, busca abster-se de
comprar e usar produtos, divulgar ou interagir de forma positiva com empre-
sas de qualquer ramo que tenham relação com a exploração animal.
2) Protestos e greves: manifestações em vias públicas ou propriedades
privadas podem ser uma forma de dar voz - no caso dos animais não-hu-
manos - e expressar solidariedade ao grupo explorado, além de gerar a “pro-
paganda pelo ato” (BAKUNIN, 1870), podendo ser usado como estratégia
para alcançar um número maior de pessoas interessadas na causa.
3) Sabotagem: pode ser exercida de diferentes maneiras de acordo com
a situação, mas busca impedir o pleno funcionamento de quaisquer meca-
nismos, institucionais ou não, que colaborem para a dominação. Tem como
objetivo libertar da condição de vulnerabilidade animais não-humanos, sa-
botar e causar danos às propriedades privadas reconhecidas como centros ou
instrumentos dessa vulneração.
4) Resgate: popularmente difundido por meio das organizações não go-
vernamentais (ONGs), essa é uma prática que pode ser realizada em grupos ou
individualmente. Consiste na retirada de animais em situações de risco - em
espaços públicos ou privados -, e acolhimento em locais que proporcionem
saúde, bem-estar, segurança e proteção necessários. Na esfera da ação anties-
pecista, devem ser incluídos não apenas os animais considerados como “pets”
O manual do veganismo popular e revolucionário • 17

(cachorros e gatos), mas outras espécies que passaram pelo processo de domes-
ticação, como vacas, porcos e aves e/ou animais silvestres quando preciso.
É importante frisar que ações que se propõem a gerar danos, devem ser
direcionadas a grupos, indústrias, empresas ou eventos que visam a obtenção
de lucro e que tenham relação com a exploração humana, animal e ambien-
tal. Sejam eles: laboratórios que realizam testes em animais, empresas que
possuem produtos testados, marcas que patrocinam eventos de “entreteni-
mento” especista - como rodeios, vaquejadas, corrida com animais, dentre
outros. Além disso, há os grupos que ultilizam da tortura de animais como
forma de “esporte” e divertimento, como ocorre com a caça de animais sil-
vestres em algumas regiões.
Um dos grupos mais notórios na prática da ação direta antiespecista, e
ativo desde a década de 1970, é o ALF - Animal Liberation Front (Frente
de Libertação Animal). Originalmente formado por um pequeno grupo de
ativistas do Reino Unido, o ALF cresceu e se tornou uma rede mundial de
indivíduos ativos e comprometidos com a proteção dos direitos e com o fim
do abuso e exploração animal. Espalhada por diversos países, inclusive no
Brasil, a ALF é uma entidade de livre associação formada por células - anô-
nimas, autônomas e horizontais - de pessoas vegetarianas ou, preferencial-
mente, veganas.
Sua configuração organizacional reflete a natureza clandestina de suas
táticas: não há hierarquia ou líder, e seguem o que chamam de “resistência
à liderança”. No entanto, suas ações devem seguir de acordo com algumas
diretrizes básicas. São elas:
1) Libertar animais de locais de abuso; ou seja, laboratórios, fazendas
de abate, fazendas de peles, etc. e colocá-los em bons lares onde eles possam
viver suas vidas naturais, livres de sofrimento. 2) Infligir danos econômicos
àqueles que lucram com a miséria e exploração dos animais. 3) Revelar os
horrores e atrocidades cometidas contra animais atrás de portas fechadas,
pela realização de ações diretas não-violentas e libertações. 4) Tomar todas as
precauções necessárias para não prejudicar qualquer animal, humano e não-
-humano. 5) Analisar as ramificações de toda ação proposta, e nunca aplicar
generalizações quando informações específicas estão disponíveis” (NOCEL-
LA, 2004, p.45).
18 • Antiespecistas

Um dos atos de grande repercussão envolvendo a participação do ALF,


ocorreu em outubro de 2013 na cidade de São Roque, em São Paulo. O
caso da invasão ao Instituto Royal foi intensamente divulgado pela grande
imprensa, um dos veículos colocava que:

“Dezenas de ativistas derrubaram um portão e invadiram, por volta


das 2h desta sexta-feira. Eles levaram em carros próprios 178 cães da
raça beagle, sete coelhos e mais de uma centena de camundongos que
estavam no complexo, motivados pelas suspeitas de que os bichos so-
friam maus-tratos no local, e registraram boletim de ocorrência. Um
segundo boletim, por furto qualificado, foi feito contra os ativistas,
com base no relato dos policiais que acompanharam a manifestação e
a invasão no instituto” (G1, 2013).

Os ativistas que invadiram o local alegavam que fizeram denúncias de


maus tratos contra os animais, mas os investigadores representantes de órgãos
responsáveis por testes em animais alegaram que “nenhuma irregularidade
foi encontrada”, já que “eram de empresas de cosméticos, [...] a dissecação de
animais vivos para estudos – é autorizada” (G1, 2013).
Após um acordo firmado entre a Polícia Civil e a Comissão de Proteção
aos Animais da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), os cães encontrados
e devolvidos foram levados a três ONGs na cidade de Sorocaba (SP) e após
tratamento adequado foram direcionados a novos lares. O Instituto Royal
encerrou suas atividades 19 dias depois do ocorrido; a informação foi divul-
gada em comunicado enviado pela assessoria de imprensa do laboratório:

“Em assembleia geral extraordinária realizada entre seus associados,


o Instituto Royal, por meio de seu Conselho Diretor, vem a público
informar a decisão de interromper definitivamente as atividades de
pesquisa em animais, realizadas em seu laboratório de São Roque”,
diz a nota (G1, 2013).

Há aqueles que declaram que tais ações são ilegítimas por não serem
amparadas na legalidade, afirmando serem atos violentos e “terroristas”. Nes-
se contexto, vale lembrar que a “ética da sabotagem” se constitui como ética
prática, cuja finalidade é a libertação de pacientes morais em situações de
vulnerabilidade, através do combate aos agentes exploradores.
O manual do veganismo popular e revolucionário • 19

Diversos movimentos durante a história se utilizaram dessa ética para


justificar suas ações: o movimento antinazista que libertava prisioneiros de
guerra e destruía equipamentos utilizados para tortura e morte; o movimen-
to de escravos em quilombos no Brasil que atacavam fazendas para liber-
tar outros escravos e fomentavam, dessa maneira, o fim da escravidão (AS-
SUMPÇÃO; SCHRAMM, 2008, p.205).
A degradação do meio ambiente e a exploração dos animais humanos e
não-humanos possuem as mesmas raízes e continuam a ser mantidas pelo sis-
tema hegemônico. As táticas aqui apresentadas podem - e devem - ser levadas
também a outras esferas e lutas político-sociais a fim de destruir os sistemas
de dominações e conquistar o poder popular.
O filósofo e anarquista John Zerzan, ao refletir sobre o processo civili-
zatório declarou que “ao domesticar animais e plantas, o homem necessaria-
mente domestica-se” (Zerzan, 1943). Assim como Mikhail Bakunin apon-
tava que nós só seremos “verdadeiramente livres quando todos os que [nos]
cercam [...], forem livres” (BAKUNIN, 2002, p.47). Seguindo esse mesmo
pressuposto, acredito que seja legítimo afirmar que ao demonstrar solidarie-
dade e libertar os animais de suas dominações, estamos libertando também
a nós mesmos.

Referências
“Após denúncia de maus-tratos, grupo invade laboratório e leva cães beagle”.
São Paulo, 2013. In: G1.GLOBO.COM, 2013. Disponível em: <ht-
tps://tinyurl.com/52bfbmjz>. Acesso em: 18 de fevereiro de 2021.
ASSUMPÇÃO, Erick; SCHRAMM, Fermin. “A ética da sabotagem da animal
liberation front”. In: Revista Brasileira de Bioética, Rio de Janeiro, 2008.
BAKUNIN, Mikhail. “O Império Cnuto-Germânico”. In: GUÉRIN, Da-
niel (Org.) Textos Anarquistas. Porto Alegre: LP&M, 2002.
BESTAS DE CARGA - Panfleto Vegano-socialista. Traduzido e editado
por Victória Monteiro e Vinicius Siqueira. São Paulo: Colunas Tortas,
2015, p. 14.
COLOMBO, Eduardo. Refráctions, núm. 25, 2010.
GUIMARÃES, Adonile. Anarquismo e ação direta como estratégia ético-
-política (persuasão e violência na modernidade). Dissertação (Mestre
em História Social). Universidade Federal de Uberlândia, 2009.
20 • Antiespecistas

MALATESTA, Errico. Escritos Revolucionários. São Paulo: Imaginário,


1989.
NOCELLA, Anthony. Anarchist and Animal Liberation: Essays on Com-
plementary Elements of Total Liberation, 2004.
“Propaganda pelo ato, ação ou feito”, 2013. In: ANARQUISTA.NET,
2019. Disponível em: <https://tinyurl.com/3nwk63a4>. Acesso em: 10
de fevereiro de 2021.
O manual do veganismo popular e revolucionário • 21

CAPÍTULO III

CONSCIENTIZAÇÃO
Renato Libardi Bittencourt1

Dilemas estratégicos são uma constante não apenas nos movimentos so-
ciais, mas também em pequenos coletivos e agrupamentos de tendência que
a cada instante estão lutando para maximizar o alcance da conscientização
social (JASPER, 2016). Praticamente impossível não pensar na “propaganda
pela ação” (propagande par le fait) na Paris de 1968 cujas ideias iriam influen-
ciar o desenvolvimento das lutas da classe trabalhadora e também pela liber-
tação animal (como é possível notar pelas táticas de ação direta da Animal
Liberation Front). As ações sempre falam mais alto mesmo quando geram
diversas interpretações. Nesse sentido, movimentos e grupos que trabalham
no front da conscientização tem se esforçado para serem os mais inteligíveis e
claros na sua forma de se comunicar com o povo e até entre si mesmos como
ilustra um relato da situação da capital francesa em 68:

A pirâmide hierárquica tinha derretido como um sorvete ao sol da


primavera. As pessoas se falavam, se entendiam com meias palavras.
Não havia mais nem intelectuais nem operários, mas revolucionários

1 Mestre em Filosofia pela UFPE, professor e pesquisador do Instituto Federal de Ala-


goas – IFAL, Militante anarquista e antiespecista e coordenador do núcleo da Antar em
Pernambuco.
22 • Antiespecistas

dialogando por toda parte, generalizando uma comunicação da qual


só os intelectuais operaístas e outros candidatos a dirigentes se sen-
tiam excluídos. (...) As ruas pertenciam aos que lhes arrancavam as
pedras (CORRÊA; MHEREB, 2018, p.89).

O exemplo da ação tem o efeito educativo de gerar reflexão e, em lon-


go prazo, consciência. “A consciência histórica é a condição sine qua non da
revolução social”, disse Erick Corrêa, mas, para tanto, é necessário eleger as
melhores e mais legítimas estratégias. O veganismo popular, político, abo-
licionista e interseccional vem denunciando certas limitações e armadilhas
comuns na luta pela libertação animal e humana e, em geral, vem diagnosti-
cando alguns pontos: a) a cooptação do movimento vegano pela visão liberal
de mercado (despolitizando o antiespecismo e focando numa narrativa de
ênfase dietética); b) a insuficiência do ativismo performático (preterindo a
inserção nos movimentos sociais em nome do foco em performances teatrais
no estilo europeu de ativismo animalista) e c) a falta de consciência política e
estratégica de muitos dos militantes da causa. Nesse sentido, acreditamos que:

(...) o primeiro passo para o veganismo não se perder é se findar nova-


mente às suas bases e alicerces. Devemos disputar e inserir demandas
ecológicas, animalistas e veganas nos movimentos sociais sensíveis a
essa causa e que façam intersecções, como no movimento feminista,
que sempre foi apto a isso (MOTA; SANTOS, 2020, p.68).

A partir desse raciocínio, torna-se urgente uma reflexão acerca das es-
tratégias de conscientização, seja decorrente das ações diretas, seja no modo
como militantes e ativistas vem se organizando ou mesmo na linguagem e
conteúdos empregados nas redes sociais cujo espaço na contemporaneida-
de não pode ser subestimado ou negligenciado (mesmo em suas evidentes
limitações). “O poder, a opressão e a dominação se transformaram sob as
novas condições tecnológicas” (TIBURI, 2019, p.3), nos diz a filósofa Mar-
cia Tiburi. Não seria nada inteligente ignorar que as redes sociais, a mídia
e, em geral, a indústria cultural possuem um papel escandalosamente mais
influente que a educação formal, por exemplo.
Talvez os doze trabalhos de Hércules nos pareçam mais fáceis e rea-
lizáveis que os objetivos da militância vegana revolucionária. Entretanto,
estamos falando de minar e destruir uma estrutura, não sobre a Hidra de
O manual do veganismo popular e revolucionário • 23

Lerna ou do Leão de Neméia. Mesmo com seus méritos próprios, o ativismo


pontual é pouco eficiente quando se trata da derrubada de sistemas tão bem
consolidados como o Capitalismo e o Especismo. Se a nossa pretensão é
alcançar e transformar a consciência das massas (as únicas capazes de trans-
formar substancialmente a história), precisamos lutar para ocupar, criar ou
subverter os espaços estruturais como a educação, a cultura (de modo amplo)
e mesmo a política institucional (nenhum espaço deve ser negligenciado,
todos podem ser subvertidos).
Um exemplo histórico emblemático da estratégia de conscientização
através da ocupação das estruturas políticas, educacionais, culturais e sociais
é o movimento feminista. Enquanto movimento, o veganismo deveria se
espelhar na luta histórica das mulheres. Já em 1792, a filósofa vegetariana
Mary Wollstonecraft (considerada uma das pioneiras do movimento femi-
nista global) escrevia o seguinte acerca da necessidade de derrubar o patriar-
cado a partir da educação revolucionária de mulheres:

Fortaleça a mente feminina expandindo-a, e será o fim da obediência


cega é almejada pelo poder, tiranos e sensualistas estão certos em querer
manter as mulheres no escuro, porque os primeiros só querem escravos,
e os últimos, brinquedos (WOLLSTONECRAFT, 2015, p.51).

Será muito difícil, para não dizer “impossível” promover uma ampla
e profunda consciência social acerca dos direitos dos animais e sua liberta-
ção sem ocuparmos as escolas, a educação pública. Nesse árduo processo de
conscientização podemos evocar a brilhante análise feita por Judith Butler
em sua obra “A vida psíquica do poder: teorias da sujeição”. Utilizando os
conceitos de Foucault, a filósofa destaca que, para o intelectual francês, a
função da política moderna não seria mais libertar o sujeito, mas sim inter-
rogar os mecanismos reguladores pelos quais os “sujeitos” são produzidos e
mantidos2. Isso significa que, sem questionar, ressignificar ou subverter as
estruturas que produzem nossa subjetividade, nossa consciência, estaremos
fadados, enquanto sociedade, a repetir os mesmos padrões e hábitos violen-
tos, arbitrários e injustos.

2 BUTLER, Judith. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Belo Horizonte: Autên-
tica Editora, 2017, p.40.
24 • Antiespecistas

Sem inserção nos movimentos sociais e na educação pública, o vega-


nismo estará fadado (para o sucesso do capitalismo) a conscientizar apenas
uma parte ínfima da classe média e das elites com seus apelos emocionalistas
e moralistas. No lugar da matemática ecológica e das profundas discussões
no campo da bioética, da soberania alimentar e da luta política, estaremos
condenados a ser vistos como um movimento “espiritualista” ou identitário
(isso no melhor dos piores cenários possíveis). Os fins devem ser os meios e
é necessário não nos esquecermos dessa máxima. Ou estamos lutando para
derrubar uma estrutura ou estamos apenas expurgando nossos próprios de-
mônios, socializando num clubinho ou ampliando os privilégios das elites e
de seus vassalos com “mais opções plant-based” no mercado (físico e moral).
Ao mesmo tempo em que estamos lutando pela conscientização das massas
acerca do especismo, precisamos nos lembrar diariamente de nos conscienti-
zarmos, buscar informação, ler, estudar e refletir acerca dos rumos e estraté-
gias da nossa própria militância.

Referências
BUTLER, Judith. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2017.
CORRÊA, Erick, Org.; MHEREB, Maria Teresa, Org. 68: como in-
cendiar um país. São Paulo: Veneta, 2018.
JASPER, James M. Protesto: uma introdução aos movimentos sociais.
Rio de Janeiro: Zahar, 2016.
MOTA, Ana Gabriela; SANTOS, Kauan Willian dos (Orgs.). Li-
bertação animal, libertação humana: veganismo, política e conexões no Bra-
sil. Juiz de Fora, MG: Editora Garcia, 2020.
TIBURI, Marcia. Delírio do poder: psicopoder e loucura coletiva na
era da desinformação. Rio de Janeiro: Record, 2019.
WOLLSTONECRAFT, Mary. Reivindicação dos direitos das mulhe-
res. São Paulo: EDIPRO, 2015.
O manual do veganismo popular e revolucionário • 25

CAPÍTULO IV

TRABALHADORES E
LUTA DE CLASSES
Ana Mota1

Diferente de uma dieta vegetariana, o veganismo não trata apenas sobre


a questão alimentar e muitos menos se limita aos animais. A questão do boi-
cote de produtos testados em animais, de empresas que patrocinam rodeios,
mantém mão de obra análoga à escravidão e têm assuntos trabalhistas pen-
dentes também está presente nos debates, pois em seus princípios básicos, o
veganismo de matriz abolicionista, defende que todos os seres sencientes têm
direito à igualdade e liberdade e que não há justificativa para que este direito
básico seja desrespeitado em razão de certa espécie, assim como classe, etnia
e gênero não são razões para que direitos sejam negados. O veganismo, que
defendemos aqui, traz a crítica ao capitalismo e prega a organização para a
tomada dos meios de produção, reconhece que a exploração animal foi po-
tencializada com a consolidação do capitalismo, não só pelo modo como ani-
mais foram aprisionados e deslocados de seus habibats naturais, mas também

1 Militante da Unidade Popular pelo Socialismo (UP), do Movimento de Luta nos Bairros,
Vilas e Favelas (MLB) e Antar – Poder Popular Antiespecista
26 • Antiespecistas

pela forma como suas capacidades reprodutivas passaram a ser exploradas de


forma cruel e exaustiva em nome do lucro.
Tal veganismo também reconhece que sem a classe trabalhadora não
há como libertar animais. Afinal, quem fica responsável pela criação, trans-
porte e abate, são os trabalhadores. A realidade é que humanos têm muito
em comum com os animais não humanos. Como observa Friedrich Engels
em “A Dialética da Natureza”, “entre nossos animais domésticos, mais de-
senvolvidos em virtude de suas relações com o homem, pode-se observar,
a cada passo, manifestações de astúcia que podem ser colocadas no mesmo
nível das reveladas pelas nossas crianças” (ENGELS,1882). Esta semelhança
se aprofunda ainda mais quando falamos da classe trabalhadora, não só pela
capacidade de sentir emoções, mas porque somos todos explorados e trans-
formados em máquinas e mercadorias. Animais como mercadorias, pois são
tratados como produtos, da mesma forma, com duplo valor: de troca e de
uso. Humanos, como máquinas, principalmente quando falamos no setor
frigorífico, onde trabalhadores são forçados a trabalhar por horas sob condi-
ções desumanas: no frio e muitas vezes sem direito ao banheiro.
Mesmo que a exploração dos animais não seja contemporânea e que
tenha sua origem na própria domesticação e sedentarização, é possível di-
zer que o sistema capitalista moldou nossa relação com os animais: o que
era pontual, pequeno e familiar; se tornou recorrente, grande e industrial,
chegando ao número alarmante de 70 bilhões de animais mortos por ano.
Já não é possível dizer que a questão animal é irrelevante, pois o mesmo
sistema desigual que favorece alguns, também faz o mesmo com os animais:
Os divide por raças, tamanhos e qualidades. Isto faz com que estes seres
sejam vistos como desprovidos de sentimentos e passíveis de dominação.
Com isto, também desconsideramos toda a cadeia produtiva da indústria
animal, que não só abate animais, mas que também insemina artificialmente,
sufoca filhotes vivos e tortura por anos seres que sentem tanto quanto nós,
fisicamente e mentalmente. Assim, trocamos nomes e formatos, transfor-
mamos um pedaço de vaca em bife e um pedaço de porco em bisteca ou
linguiça. Afinal, o objetivo é ocultar a origem do produto final e fazer com
que as pessoas acreditem na necessidade da proteína animal que enriquece as
grandes corporações. A ocultação da origem dos derivados de animais foi tão
certeira, que mesmo quem se alimenta de animais, se espanta com culturas
que consomem cachorros ou espécies que criamos como melhores amigos e
membros de nossas famílias.
O manual do veganismo popular e revolucionário • 27

Em “Bestas de Carga – O panfleto vegano socialista” é colocado que

O fetichismo da mercadoria é o processo por meio do qual as mer-


cadorias são imbuídas de uma vida própria, com suas origens como
o produto do trabalho oculto. É particularmente bem desenvolvido
em relação a produtos de origem animal, cujas origens são sistemati-
camente negadas pelas embalagens de supermercado e pelo distancia-
mento linguístico. (BESTAS DE CARGA, 2015, p.44)

Os animais domesticados foram a primeira forma de propriedade priva-


da, passando a principal forma de troca, Karl Marx analisa em O Capital que
os animais muitas vezes também eram utilizados como dinheiro, “a forma
de dinheiro vem para ser anexada (...) ao objeto de utilidade que constitui
o principal elemento da riqueza indígena alienável, como, por exemplo, o
gado” (MARX, 1867).Com o desenvolvimento do capitalismo e da burgue-
sia, os animais também se tornaram símbolos de riqueza. Os animais presen-
tes no pasto declaravam a fortuna de um homem, assim como a mesa farta
de animais cozidos declarava o poder de uma família. Como bem demons-
trou Vladimir Lênin em “O Desenvolvimento Do Capitalismo Na Rússia”, a
burguesia que tomava o espaço dos camponeses tinha cada vez mais animais,
terras e ferramentas, enquanto os camponeses, com poucos animais, eram
esmagados. Para ele,

se classificamos os camponeses de acordo com os lotes comunitários


concedidos, confundimos o pobre que cede a terra com o rico, que
aluga ou compra; o pobre, que abandona sua terra, com o rico, que a
“recolhe”; o pobre, que explora precariamente sua terra com a ajuda
de um número ínfimo de animais de tração, com o rico, com muitos
animais, adubo, máquinas etc (LÊNIN, 1982, p.27).

O sistema capitalista é dependente da exploração animal, assim como


é dependente da exploração dos trabalhadores assalariados e é importante
destacar que a nossa condição material é muito especifica, o alicerce da eco-
nomia brasileira é a indústria agropecuária, que em 2019 chegou a faturar
cerca de R$ 630 bilhões com a exportação de milho, soja e carne. O Brasil
também apresenta o segundo maior rebanho bovino do mundo, são 220
milhões de cabeças de gado, das quais mais de 30 milhões estão em Mato
Grosso, que ironicamente é o segundo estado brasileiro que mais desmata a
floresta amazônica. Entre agosto de 2019 e julho de 2020, foram cerca de
28 • Antiespecistas

1.880 km² de áreas na região, um aumento de 31% em relação ao mesmo


período entre 2018 e 2019.
As mesmas pessoas responsáveis pela manutenção do capitalismo, ou
seja, burgueses e latifundiários, são também as mesmas pessoas responsá-
veis pelo crescente número de assassinatos dos nossos povos originários, que
perdem suas vidas protegendo nossas terras. Os estados que mais matam
indígenas são justamente os estados com mais animais explorados e maior
índice de desmatamento: Roraima, Mato Grosso do Sul, Paraná e Amazonas.
Desta forma, é fica nítida a relação que a exploração animal tem com a nossa
exploração e de como não há luta pelo meio ambiente sem falar nos animais
explorados pela burguesia.
Como não falar sobre os animais e a questão alimentar, enquanto os
grandes veículos de comunicação espalham aos quatro cantos o pensamento
errôneo de que o Agro é “pop”, enquanto tudo o que consumimos é contro-
lado pela bancada do boi, bala e Bíblia, que está ligada diretamente com o
avanço do fascismo e fundamentalismo religioso no Brasil? Dizer que a carne
tem uma ligação íntima com este sistema desigual é óbvio e fica ainda mais
evidente quando buscamos dados como os do IBGE, que mostram que o
trabalhador já não escolhe o que comer, mesmo tendo um falso sentimento
de escolha (FOLHA, 2004). Aqui, quem se alimenta dos melhores cortes de
carne e melhores laticínios é a burguesia, que toma seis vezes mais leite do
que os trabalhadores. Mesma burguesia que cria pratos cruéis e exorbitantes
como o Foie Gras, além de ter como esporte a caça aos animais.
Um dos argumentos em vários ambientes progressistas e revolucionários
é que a questão dos animais deve vir posteriormente a um processo industrial
ou um desenvolvimento das forças produtivas. Porém, não devemos esquecer
que práxis está ligada com uma teoria e que as células revolucionárias que serão
o embrião do futuro começam hoje. Assim como sabemos que a dominação
de gênero não acabaria nessa organização social e econômica, não há razão para
não incluí-la numa práxis revolucionária, construindo, assim, de forma dialéti-
ca, um processo de crítica da realidade, com os objetivos futuros.

Referências
Bestas de Carga - panfleto vegano-socialista. São Paulo: Colunas Tortas, 2015.
ENGELS, Friedrich. A Dialética da Natureza. In: marxists.org. Disponível
em: https://tinyurl.com/jzp56zwa. Acesso: 20 de março de 2021.
O manual do veganismo popular e revolucionário • 29

LÊNIN, Vladmir. O desenvolvimento do capitalismo na Rússia. São Paulo:


Abril Cultural, 1982.
MARX, Karl. O Capital (Volume I). In: marxists.org. Disponível em: ht-
tps://tinyurl.com/28nswfya. Acesso: 20 de março de 2021.
FOLHA DE SÃO PAULO. “Ricos tomam 6 vezes mais leite que pobres”. Dis-
ponível em: https://tinyurl.com/psa8fewb. Acesso em 05 de março de 2021.
O manual do veganismo popular e revolucionário • 31

CAPÍTULO V

ANTIDOMINAÇÕES
Kauan Willian1

A partir de um debate na esfera jurídica, Gary Francione argumenta


que, ao invés de leis regulatórias, a perspectiva que o direito deveria ter é
de que todos os seres sencientes não devem “ser tratados como propriedade
alheia” pois “é uma precondição para a posse de interesses moralmente sig-
nificativos” (FRANCIONE, 2013, p.122). Mas o que significa, na prática,
não ser considerado como propriedade alheia? Além da questão de qualquer
ser senciente não poder ter direito de posse diante de outro, Anna Charlton
e Gary Francione, chegam a conclusão que

assim como rejeitamos o racismo, o sexismo, homofobia, ou qual-


quer tipo de preconceito, rejeitamos o especismo. A espécie de um
ser senciente não é razão para que a proteção a esse direito básico seja
negada, assim como raça, sexo, classe ou orientação sexual não são ra-
zões para que a inclusão na comunidade moral humana seja negada a
outros seres humanos (CHARLTON; FRANCIONE, 2015, p.115).

1 Doutorando em História Social (USP), professor da rede municipal de São Paulo, mili-
tante sindical e antiespecista (Antar-Poder Popular Antiespecista)
32 • Antiespecistas

É interessante que um debate sob uma perspectiva jurídica do veganis-


mo chegou em conclusões parecidas com que foi construída pelo veganismo
de ação direta e revolucionário nas margens. Esse último vêm de uma tra-
dição de um debate animalista em setores radicais da sociedade. Quando o
anarquista Éliseé Reclus escreve seus textos onde relaciona o consumo de
carne com o desenvolvimento industrial, e sua conexão com as guerras na-
cionais, ele está conectando tal análise com sua perspectiva de um socialismo
que foi sendo gestado pensando em vários tipos de dominações interligadas.
Nas palavras do autor José Maria Ferreira, Reclus considerava que

o progresso civilizatório da espécie humana implica um equilíbrio


ecossistêmico com todas as espécies animais e vegetais. Esse equilí-
brio passa pela domesticação e a aprendizagem com todas as espécies
animais e vegetais, não as olhando nem as entendendo como espécies
externas à espécie humana, mas internas aos desígnios de emancipa-
ção social. (FERREIRA, 2006, p.113).

Reclus, nesse sentido, elaborou uma geografia que considerava “a coope-


ração, a solidariedade, a liberdade e o amor, a ser desenvolvido pelos indiví-
duos e os povos em escala universal” (FERREIRA, 2006, p.113) e que o Esta-
do, o capital e a dominação religiosa ou de classes, o colonialismo, assim como
a divisão de fronteiras artificiais seria um entrave a esse desenvolvimento.
Essa discussão teve uma retomada do período de expansão de ideias eco-
logistas e ambientalistas, em 1970, quando o feminismo (dessa vez sob o eco-
feminismo) tomou frente para uma análise que relacionava a dominação de
espécie e de gênero, aprofundando esse debate. Em 1990, Carol Adams sis-
tematizou tal discussão com a obra “A Política Sexual da Carne” onde vemos
a íntima relação do patriarcado com a dominação de gênero (patriarcado).
Adams mostra como a sociedade contemporânea patriarcal foi construin-
do uma noção do consumo de proteína animal como viril e masculinizada,
do sangue e vitória, fazendo com que, em contrapartida, a proteína vegetal
fosse considerada algo feminina e feminilizante. Além disso, mostra como a
invisibilização do sofrimento de animais e a exposição de corpos destes teve
relação histórica intrínseca com a invisibilidade do sofrimento de mulheres
e da objetificação de seus corpos, em níveis diferentes é claro, mas com uma
relação de dominação que favorecia uma espécie, e especialmente um gêne-
ro da espécie humana (ADAMS, 2012). É por isso que a autora defende a
O manual do veganismo popular e revolucionário • 33

intersecção, a inter-relação das lutas antiespecista e feminista, assim como


ecológico, ambientalista e feminista. Além da conexão com a luta feminista,
Carol Adams coloca que

o consumo de carne é para os animais o que o racismo dos brancos é


para os negros; o que o antissemitismo é para o povo judeu; o que a
homofobia é para os gays e lésbicas e a misoginia é para as mulheres.
Todos estão oprimidos por uma cultura que não quer assimilá-los ple-
namente em seus termos e com seus direitos (ADAMS, 2012, p.115).

Adams não está comparando ou colocando o especismo como igual ao


racismo ou outra opressão, está revelando que existe uma estrutura de domi-
nação, que assim como é a misoginia para as mulheres, ou o antissemitismo
para os judeus, existe o especismo. Mas essas opressões não estão desconec-
tadas. Assim como é impossível lutar por igualdade de gênero não levando
em consideração as nuances de raça, de classe, de corpos dentro do gênero,
é impossível lutar por direitos dos animais sem pensar estruturas que ali-
mentam o especismo, como o capitalismo que usa seu modelo de produção
para potencializar a exploração animal, o machismo, usando a maneira de
controle de reprodução sexual, etc.
Mas, para isso, é evidente que temos que levar a sério esses movimentos
e introjetar suas demandas no veganismo e vice-versa, respeitando suas retóri-
cas e estratégias. Nesse sentido, para Aph Ko e Syl Ko, a constante compara-
ção entre a escravidão e a exploração dos “animais” é comum no veganismo,
mas longe de ser uma análise correta, indica sua total falta de comprometi-
mento com o antirracismo, já que naturaliza a ideia de que pessoas negras são
animais, retórica que foi usada pela escravidão. Para elas, um caminho melhor
é demonstrar que a origem do especismo tem conexão com o colonialismo,
o imperialismo, o patriarcado e o capitalismo, ideologias e modos sociais e
econômicos brancos e europeus e que é essa estrutura que deve ser derrubada
e enfrentada, o projeto antopocêntrico eurocêntrico (KO, 2017).
Portanto, pensemos num antiespecismo que seja uma busca constante
para a liberdade e igualdade de todos os seres sencientes, a partir de suas de-
mandas próprias, mas também elaborando projetos comuns para a derruba-
da de dominações que se sustentam. Pensando nisso, ao invés de incentivar
uma lei que impede sacrifício de animais em religiões minoritárias, que além
de elitista criminalizaria mais pessoas racializadas, inclusive colocando-as em
34 • Antiespecistas

prisões (quando já são a maioria no país), pensemos em como levar a luta


abolicionista atual (fim das prisões e encarceramento de pobres e raciali-
zados) com o fim das jaulas, já que é a classe dominante responsável pela
construção das duas.
Friederich Engels disse em “A dialética da natureza”, em 1883, que “nós
somos lembrados a cada passo que, de forma alguma, dominamos a nature-
za como um conquistador domina um povo estrangeiro, como alguém que
se encontra fora da natureza.” Para ele, “nós dependemos dela com carne,
sangue e cérebro, estamos situados dentro dela” (ENGELS, 1973, p.453).
Ou seja, temos que tentar impulsionar os projetos humanos para olharem
além de si próprios (antropocentrismo), buscando uma harmonia com nos-
sos ecossistemas e com os seres que nos rodeiam. Como fazer isso na prática?
É preciso alocar um debate antiespecista e vegano não isolado, mas debatido
e construído com os movimentos sociais antiopressões, feministas, anticapi-
talistas, antirracistas, pela democratização de terra, de moradia, etc.

Referências
ADAMS, Carol. A política sexual da carne: a relação entre carnivorismo e
a dominância masculina. Tradução de Cristina Cupertino. São Paulo:
Alaúde, 2012.
CHARLTON, Anna; FRANCIONE, Gary. Animal Rights: The Abolitio-
nist Approach. 2015.
ENGELS, Friedrich. Dialektik der Natur. Berlin: Dietz Verlag, 1973.
FERREIRA, José Maria Carvalho (2006). Élisée reclus: vida e obra de
um apaixonado da natureza e da anarquia. Verve, ISSN 1676-9090, São
Paulo, p.109-134.
FRANCIONE, Gary. Introdução aos direitos animais. Campinas: Editora
Unicamp, 2013.
KO, Aph; KO, Syl. Aphro-ism: Essays on Pop Culture, Feminism, and
Black Veganism from Two Sisters. New York: Lantern Books, 2017.
O manual do veganismo popular e revolucionário • 35

CAPÍTULO VI

ANTIRRACISMO E
ANTIFASCISMO
Marcus Pavani1

A construção de um veganismo verdadeiramente popular e antiespecis-


ta passa necessariamente pela luta contra toda e qualquer forma de opressão
e dominação, sejam elas direcionadas a animais humanos ou não humanos,
como já explicitado anteriormente. Para melhor entendimento de alguns
exemplos que seguirão neste texto, vale retratarmos, brevemente, o contexto
histórico que vivemos no momento, neste território denominado Brasil.

O grau de devastação social (desemprego galopante, crescimento da


miséria, crises nos serviços públicos, etc.) e a impopularidade das me-
didas de austeridade do governo de Temer, associados à repercussão
de denúncias de corrupção contra ele, entretanto, não deixaram es-
paço para que os partidos políticos tradicionais da classe dominante
conseguissem criar uma alternativa eleitoral forte para o pleito de

1 Engenheiro Mecatrônico (USP), mestre em Engenharia Mecânica (TUM) e militante da


Antar - Poder Popular Antiespecista
36 • Antiespecistas

2018. [...] Para afastar a possibilidade de uma vitória eleitoral petis-


ta, foi acelerado um segundo ato do golpe, capitaneado pelo mesmo
operativo judiciário da Operação Lava Jato, com a condenação em
tempo recorde em segunda instância e prisão de Lula por uma acu-
sação de corrupção com provas, para dizer pouco, muito frágeis. [...]
Bolsonaro avançou no vácuo criado pela crise de legitimidade aberta
desde 2016 (MATTOS, 2020, p. 162-163).

No Brasil, estamos presenciando o desmonte do Sistema Único de Saú-


de em plena pandemia de COVID-19, milhões de brasileiros voltando para
baixo da linha da miséria e o país retornando ao mapa da fome da ONU,
e, enquanto isso, latifundiários, grileiros, e mineradoras aproveitam a “dis-
tração” da imprensa para “passar a boiada” com todo o apoio do aparato
legislativo intermediado pela bancada ruralista. A luta organizada se faz cada
vez mais urgente.
Para entendermos melhor como isso se relaciona com o movimento
vegano, precisamos elucidar melhor as origens do especismo, e para isso,
investigaremos os grandes impactos da domesticação de animais, a partir de
3000 a.C., com o desenvolvimento da agricultura intensiva. Jacques Camat-
te argumenta que o impacto social da domesticação foi enorme, impulsio-
nando tanto o crescimento da noção de propriedade privada e valor de troca
quanto a ascensão do patriarcado (BESTAS DE CARGA, 2015, p.17). Keith
Thomas explicita como a domesticação animal também deu origem a uma
concepção intervencionista e manipuladora da vida política:

A domesticação tornou-se, assim, o padrão arquetípico para outros


tipos de subordinação social. O modelo foi o paternal, com o gover-
nante sendo um bom pastor, como o bispo com sua equipe pastoral.
Animais dóceis e leais obedecendo a um mestre atencioso eram um
exemplo para todos os funcionários (THOMAS, 2010, p.17).

Sem a domesticação, a hierarquia dicotômica humano e não humano


dificilmente teria se configurado, como sugere Maria Lugones (2014).
Para a autora existe uma dicotomia central da modernidade colonial, que se
reproduz até os dias atuais com jargões tão presentes como “estamos no topo
da cadeia alimentar” e “me tratou de maneira desumana”, que, quase a nível
inconsciente, reforçam a ideia de que animais humanos seriam naturalmente
superiores e que animais não humanos não merecessem ser tratados da mes-
O manual do veganismo popular e revolucionário • 37

ma forma. No entanto, essa dicotomia não é a única central para a sociedade


colonial moderna, pois

ela veio acompanhada por outras distinções hierárquicas dicotômicas,


incluindo aquela entre homens e mulheres. Essa distinção tornou-
-se a marca do humano e a marca da civilização. Só os civilizados
são homens ou mulheres. Os povos indígenas das Américas e os/as
africanos/as escravizados/as eram classificados/as como espécies não
humanas - como animais, incontrolavelmente sexuais e selvagens
(LUGONES, 2014, p.19).

Conforme o pensamento de Martina Davidson (2020), as atrocidades e


violências cometidas contra os povos colonizados e escravizados só era justi-
ficada pela razão branca européia a partir da ausência de humanidade a eles
delegada, isto pois esta “os bestializava, os animalizava” (DAVIDSON, 2020,
p.112). Dado esse panorama, é fácil perceber a conexão entre o especismo e o
racismo promovido contra esses povos: ferramentas estruturais e estruturan-
tes de dominação e opressão sobre os quais o sistema capitalista foi alicerçado
e potencializado, se tornando base para a luta de classes, e das quais ainda
se utiliza cotidianamente, de maneira ainda mais descontrolada quando sob
lideranças fascistas, para garantir a manutenção das taxas de lucro da classe
dominante mesmo em períodos de crises generalizadas, como a que estamos
passando no momento, promovendo, assim, a manutenção do status quo e a
continuidade deste sistema.
A Funai estima que a população indígena no ano de 1500 era de 3
milhões de habitantes. O genocídio promovido pela colonização, e, poste-
riormente, pelo sistema capitalista extrativista e seus latifundiários e mine-
radores, reduziu a população indígena para apenas 70 mil indivíduos em
1957, totalizando apenas 0,1% da população brasileira. Da década de 50
para cá, a população indígena vem crescendo, e (re)conquistando alguns di-
reitos, em grande parte devido à inclusão do direito à pluralidade étnica na
Constituição Federal de 1988, que também estabeleceu prazos para a demar-
cação de suas terras, graças aos esforços de grandes lideranças como Ailton
Krenak, para a união e organização da luta indígena a nível nacional. No
entanto, nenhum direito é permanente, principalmente quando confronta-
do com uma agenda neoliberal. A população indígena sofre constantemente
com a invasão de suas terras pelo agronegócio, em busca da expansão de
suas fronteiras agrícolas, e de mineradoras em busca de ouro, ferro, petróleo
38 • Antiespecistas

e gás natural. A morosidade nos processos de demarcação de suas terras, só


facilita essas invasões, que, além de resultarem em confrontos muitas vezes
sangrentos para essas populações, também as expõem a doenças, como vem
acontecendo com o Covid-19. E assim o epistemicídio se perpetua: dos mais
de dois mil povos e mil línguas diferentes que viviam por aqui, restam cerca
de 305 povos e 274 línguas. De qualquer maneira, essas populações ain-
da são uma fonte inestimável de saberes: desde técnicas de bioconstrução,
plantio e conhecimentos sobre plantas alimentícias “não convencionais” e
medicinais, mas, principalmente, são exemplos de sociedades pautadas na
vida em comunidade e na relação harmoniosa com a natureza. Sociedades
que reconhecem que, quando fazemos mal à natureza, estamos fazendo mal a
nós mesmos, uma vez que nós seres humanos somos parte dela. Esta cosmo-
visão é compartilhada por muitos povos originários que habitam toda Abya
Yala (território hoje conhecido como América). A filosofia do Bem Viver,
ou sumak kawsay, na língua kíchwa, baseia-se em uma multiplicidade de
experiências de populações andinas e amazônicas, e questiona fortemente o
conceito eurocêntrico de bem-estar. Segundo Alberto Acosta:

Aqueles que falam sobre a necessidade de políticas para ‘viver me-


lhor’ ignoram a - ou, simplesmente, não se interessam pela - gigan-
tesca frustração produzida pela difusão de padrões de consumo no
imaginário de centenas de milhões de pessoas que não possuem nem
jamais possuirão condições de acessá-los, aprisionando-as ao desejo
permanente de alcançá-los e aprofundando os conflitos sociais. Os
meios de comunicação promovem o consumismo e o individualismo,
e até mesmo decidem os valores e a cultura que devem ou não ser
difundidos. É uma incongruência falar em ‘viver melhor’ quando os
seres humanos nos tornamos meras ferramentas para as máquinas, ou
quando a produção e o consumo capitalistas criam círculos viciosos
que apenas nos mantêm dentro de uma grande roda de interminável
infelicidade e exploração (ACOSTA, 2020, p.16-17).

O reconhecimento do potencial destrutivo deste sistema de acumula-


ção infinita, e a resistência necessária para continuar construindo sociedades
alternativas não são, no entanto, exclusividades de povos andinos e amazô-
nicos. As ideias do Bem Viver são pluriversais e se fazem presentes em todos
os fazeres solidários do povo.
O manual do veganismo popular e revolucionário • 39

Está entre nós, no Brasil, com o teko porã dos guaranis. Também
está na ética e na filosofia africana do ubuntu - “eu sou porque nós
somos”. Está no ecossocialismo [...]. Está no fazer solidário do povo,
nos mutirões em vilas, favelas ou comunidades rurais e na minga ou
mika andina. Está presente na roda de samba, na roda de capoeira, no
jongo, nas cirandas e no candomblé (ACOSTA, 2020, p.22)

E é por reconhecer essa sincronia entre os povos e entender que não


existe libertação de uns às custas de outros, que o veganismo popular e re-
volucionário não perde de vista seu cunho anticapitalista, antifascista e
antirracista. É de suma importância lembrarmos que o Brasil foi o territó-
rio que mais importou escravos: quase 5 milhões de pessoas foram trazidas
à força do continente africano. O Brasil também foi o último país a abolir
a escravidão: dos 520 anos de Brasil, 358 foram sob o regime escravocrata.
Em 1850, 38 anos antes do fim da escravatura, é aprovada a Lei de Terras,
a partir da qual, não basta ocupar uma terra e plantar para se tornar legal-
mente dono; passa a ser necessário comprá-la do estado. Esta medida é feita
para impedir os futuros ex-escravos de serem proprietários, obrigando-os a
trabalhar por salários miseráveis para seus antigos mestres, além de prever
incentivos do governo à vinda de colonos do exterior para serem contratados
no país, desvalorizando ainda mais o trabalho dos futuros ex-escravos. Em
1888, é assinada a Lei Áurea, que garantiu indenização para os senhores
de escravos e que, ao contrário do que profere a narrativa hegemônica ins-
titucional, não trouxe justiça ao povo negro, uma vez que, sem nenhuma
garantia a direitos básicos como moradia, educação e alimentação digna, e
restando-lhes o refúgio em cortiços ou a fuga da cidade para os morros e peri-
feria, sua “liberdade” não resultou em igualdade, mas sim em exclusão social.
A população negra ainda sofre, e muito, as consequências desse pro-
cesso, compondo a maioria da população empobrecida do país, bem como
a maioria da população carcerária. A cada 23 minutos, um jovem negro é
assassinado no Brasil, e como se não bastasse a falta de acesso a condições
dignas de educação, trabalho, saúde e moradia (lembremos: quase 47% da
população brasileira, ou seja, quase 100 milhões de pessoas, não têm acesso a
saneamento básico), essa parcela da população também lida com um proble-
ma que passa despercebido por muitos: o nutricídio. Sem poder (financeiro)
de escolha, lhes resta comer o que for mais barato. Segundo estudos e esta-
tísticas da Organização das Nações Unidas (ONU), pessoas racializadas têm
os piores indicadores de saúde, e a domesticação do paladar, através dos
40 • Antiespecistas

industrializados ultraprocessados é a principal responsável, que, combinada


com drogas comestíveis, tais como conservantes, aditivos e corantes, resulta,
segundo o Dr. Llaila Afrika, em “controle do comportamento e guerra quí-
mica sobre a saúde” (AFRIKA, 2004, p.105).
Se faz, assim, urgente e necessário um resgate da alimentação do pe-
ríodo pré-colonial dos povos africanos, que era, segundo Márcia Cristina do
Nascimento, baseada majoritariamente em vegetais (NASCIMENTO, 2020,
p.102). Esse resgate, não somente alimentar, mas de tradições, filosofias, es-
piritualidades e saberes ancestrais, traria benefícios enormes para essa popu-
lação, que, em um país majoritariamente cristão, sofre tanto com a intole-
rância religiosa e étnica. Concordamos, portanto, com o posicionamento do
Movimento Afro Vegano (MAV) em seu posicionamento sobre a RE 494601
e o sacrifício de animais (MAV, 2020, p.109-103). O proibicionismo, prin-
cipalmente quando voltado à uma parcela específica e racializada da popula-
ção, não é outra coisa senão uma medida higienista e racista. Acreditamos no
diálogo e na compreensão para fins da desconstrução das estruturas que sus-
tentam este sistema. Segundo e historiadore Natalia Ferreira, a importância de
compreendermos o conceito de interseccionalidade antirracistas

reside no fato de irromper um silêncio e demonstrar que não é pos-


sível separar gênero de raça e classe; adiciono aqui as categorias de
espécie e natureza como partes inseparáveis deste todo, e intenciono
romper as fragmentações ilusórias que provocam o surgimento de
movimentos identitários segmentados, enfraquecendo as lutas sociais
pela conquista de direitos dos povos indígenas, negres, pessoas gêne-
ro-dissidentes (não cisgênero), reforma agrária (ou direito à terra e
moradia), soberania alimentar, e também pelos direitos dos animais e
da natureza (FERREIRA, 2020, p.74).

Se desejamos construir um veganismo verdadeiramente popular, pre-


cisamos debater, entender e criar uma práxis antirracista que, ao invés de
enfraquecer ainda mais as parcelas da população que já são extremamente
oprimidas por estruturas racistas e fascistas tão presentes em nosso cotidiano,
possamos criar, de maneira coletiva, estratégias para derrubar essas estruturas
e construir, em seu lugar, novas sociedades, culturalmente plurais e livres de
opressões, baseadas nas harmonias entre o sujeito e ele mesmo, entre o sujeito
e a sociedade, e entre a sociedade, o planeta e todos os seres que nele habitam.
O manual do veganismo popular e revolucionário • 41

Referências
ACOSTA, Alberto. O Bem Viver: uma oportunidade para imaginar outros
mundos. São Paulo. Autonomia Literária, Elefante, 2016.
AFRIKA, Llaila. African Holistic Health, The neglected revolution. Edito-
ra A & B Book Distributors Inc, 2004.
BESTAS DE CARGA - Panfleto Vegano-socialista. Traduzido e editado por
Victória Monteiro e Vinicius Siqueira. São Paulo: Colunas Tortas, 2015.
FERREIRA, Natalia. “Os desafios do tempo presente e a colonialidade da
natureza: intersecções para pensar novas sociabilidades.” Fronteiras: Re-
vista Catarinense de História. N, 36, 2020.
DAVIDSON, Martina. “Maria Lugones e o pensamento de trincheiras”.
In: DIAS, Maria Clara. Feminismos decoloniais: homenagem a Maria
Lugones. Rio de Janeiro: Ape’Ku, 2020.
LUGONES, Maria. “Rumo a um feminismo descolonial”. In: Revista Estu-
dos Feministas, vol.22, n.3, 2014.
MATTOS, Marcelo Badaró. Governo Bolsonaro: neofascismo e autocra-
cia burguesa no Brasil. São Paulo: Usina Editorial, 2020.
MOVIMENTO AFRO VEGANO. “Posição do Movimento Afro Vegano
sobre a RE 595601 e o Sacrifício de Animais”. In: MOTA, Ana Ga-
briela; SANTOS, Kauan Willian dos. Libertação animal, libertação
humana: veganismo, política e conexões no Brasil. Juiz de Fora, MG:
Editora Garcia, 2020.
THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural: mudanças de atitudes em
relação às plantas e os animais. São Paulo: Companhia de Bolso, 2010.
O manual do veganismo popular e revolucionário • 43

CAPÍTULO VII

FEMINISMO E
DOMINAÇÃO DE GÊNERO
Nicoly de Sousa Alves1

A demanda pelo consumo de animais mudou não somente a economia,


mas também as relações domésticas. Com a queda do feudalismo, o comu-
nismo primitivo deixou de existir para dar lugar a divisão de tarefas com
base no sexo, homens e mulheres que costumavam participar das tarefas de
forma conjunta, segregaram-se, o homem então começou a caçar animais de
pequeno porte para consumo próprio, enquanto a mulher cuidava do lar e
preparava os alimentos de origem vegetal.
Com a intensificação do consumo de carne, a carne foi transformada
na cultura ocidental capitalista em um alimento necessário na dieta mas-
culina, se tornando símbolo da virilidade, ao mesmo tempo que alimentos
origem vegetal assumiram o papel de complemento do prato principal, o
animal morto, tornando os vegetais sinônimo de uma alimentação fraca,

1 Técnica em Adminstração (ETEC Parque da Juventude), graduanda em Ciências Sociais


(UNIFESP), militante do Antar - Poder Popular Antiespecista, da União Vegana Feminista
e da União da Juventude Revolucionária (UJR).
44 • Antiespecistas

feminina (ADAMS, 2018). O debate da “natureza dos sexos”, trouxe o es-


tereótipo da mulher fraca para justificar o controle masculino sobre as mu-
lheres (FREDERICI, 2017, P. 335), que assim foram postas no espectro
da natureza e os homens no do político, o consumo majoritariamente de
vegetais pelas mulheres, foi usado para reforçar esse estereótipo, o que possi-
bilitou a exclusão das mulheres do âmbito político e social, enquanto levou
os homens a ascensão culturalmente, socialmente e politicamente. “Assim
como a cultura controla a natureza, os homens controlam as mulheres (RO-
SENDO, 2016, p.104).
As sufragistas, ao pautarem a carne como símbolo de uma alimenta-
ção patriarcal e machista, impulsionaram o surgimento do veganismo como
movimento político e sua definição, conhecida nos dias atuais. Entretanto,
apesar da clara contribuição do movimento feminista na luta animalista an-
tiespecista, houve diversas tentativas de silenciamento das vegetarianas-fe-
ministas que buscavam denunciar, através de suas obras, a relação entre do-
minação de gênero o consumo de animais, até mesmo de outras feministas
(COLERATO, 2016). O ecofeminismo, que alguns autores localizam pela
primeira vez com a francesa Françoise d`Eaubonn, propôs que a exploração
da natureza, assim como da mulher, teve origem na sociedade patriarcal,
sendo as mulheres as maiores afetadas pela destruição ambiental, levando
a conclusão que uma vez erradicada a opressão machista, a opressão sobre
a natureza igualmente seria erradicada (WARREN, 2000). Dessa forma,
através dos preceitos dessa vertente, as feministas da segunda onda, busca-
ram não somente o controle de seus corpos, mas também a preservação da
natureza, como extensão da luta feminista.
Entretanto, o movimento ecofeminista, ainda em construção, não
aprofundou o debate sobre os animais e o consumo de seus corpos, igno-
rando as opressões que acometem fêmeas não humanas objetificadas e que
tiveram sua exploração intensificada pós Revolução Industrial, onde a meca-
nização das indústrias e do campo fez com que a produtividade dos animais
fosse forçada acompanhar o ritmo de produção da sociedade capitalista. A
maternidade das fêmeas então, através da inseminação artificial, foi usada
compulsivamente para fornecer carne, leite e derivados.
A produção de leite sendo extremamente cruel, é baseada na exploração
continua do sistema reprodutor feminino, ocorrendo através do processo de
inseminação artificial, em curto espaço de tempo. No caso da vaca, logo após
o nascimento do bezerro, ocorre sua separação da mãe, para que não haja
O manual do veganismo popular e revolucionário • 45

amamentação e caso o bezerro seja macho, sua carne pode ser comercializada
como “baby beef ” ou carne de vitela como é conhecido no Brasil, mas se for
fêmea, o seu destino será semelhante ao da sua mãe, ser inseminada diversas
vezes, para que ocorra a reprodução e obtenção de leite, até que a vaca atinja
sua exaustão e seja enviada parao abatedouro.

Vacas, cabras, porcas, ovelhas, galinhas não são “solos férteis” onde
se possam cultivar e de ondese possam colher alimentos. São animais
sencientes, como o são as mulheres, de quem nãose pode tirar o leite
para vender ou oferecer a quem quer que seja sem seu consentimento,
não se pode arrancar o bebê para enviar à indústria de carnes tenras
(carne de vitela), não se pode estuprar com o objetivo de obter a re-
produção emmassa (vacas, cabras, ovelhas etc.) (FELIPE, 2014, 58).

Ao ignorar a relação entre as opressões que mulheres e animais so-


frem na sociedade patriarcal capitalista, foi desconsiderado o fato de que
ambos não são vistos como seres comsuas próprias particularidades, mas sim
referentes ausentes, que precisam ser constantemente assimilados (ADAMS,
2012) para não terem seus corpos violados pelo machismo e especismo.
Torna-se então necessário o resgate da palavra vegetariana-feminista (ou
vegana-feninista) nos movimentos progressistas, combatendo o machismo
e o especismo simultaneamente e considerando todas as fêmeas humanas e
não-humanas, que tem seus corpos e sistemas reprodutores controlados. O
que consequentemente promove a preservação do meio ambiente por meio
da exclusão de alimentos vindos da exploração animal, que são os maiores
responsáveis pelo desmatamento, pela queima de nossas florestas e pela des-
truição da biodiversidade, já que a criação de gado consome imensa quanti-
dade de recursos naturais.

“Tornar-se consciente do apoio às práticas opressivas associadas à


agricultura animal, lutando por um estilo de vida vegetariano tam-
bém pode ser uma expressão diária de umaética ecofeminista sensível
ao cuidado e não violenta que se vê e (humana e não humana) outros
como moralmente consideráveis.” (MALLORY, 2002, p.7)

De 1985 a 2018, segundo o MapBiomas, o Brasil perdeu 89 milhões


de hectares de áreas naturais, algo como 20 vezes a área do estado do Rio de
Janeiro e a cada 10 hectares desmatados na floresta, 3 abandonadas, 6 viram
46 • Antiespecistas

pasto e 1 é empregado na agricultura. Sendo cerca de uma vaca por hectare


ou mata transformada em pasto, algo do tamanho de um campo de futebol
na Amazônia.
As mulheres além de serem as mais afetadas pela destruição ambiental,
como proposto pelo ecofeminismo, são também a maioria chefiando os lares
e trabalhando em jornada dupla, sendo exploradas duas vezes, uma pela sua
capacidade reprodutiva e outra pelo trabalho social reprodutivo não pago.
Já os animais são exploradas primeiro pelo seu poder reprodutivo e segundo
pelo potencial de sua carne, o que acarreta em uma vida repleta de abusos,
do início ao fim.
Portanto, feministas ao reproduzirem uma dieta que inclui carne, leite
e derivados se alimentam de forma machista e colaboram para a explora-
ção de outras fêmeas, as não-humanas. O veganismo abolicionista é a única
forma com que feministas podem libertar a todos, animais humanos e não
humanos, pois enquanto mulheres consumirem e agirem de forma especista,
o machismo também não será erradicado.

Referências
ADAMS, Carol . A Política sexual da carne. São Paulo: Editora Alaúde, 2018.
COLERATO, Marina. Frankeisten e o Silenciamento das Feministas-Vege-
tarianas. Modefica, 2016.
FELIPE, Sônia. “A perspectivaecoanimalista feminista antiespecista”. In:
STEVENS, Cristina; OLIVEIRA, Susane Rodrigues de; ZANELLO,
Valeska. Estudos feministas e de gênero: articulações e perspectivas. Santa
Catarina: Mulheres, 2014.
FREDERICI, Silva. Calibã e a bruxa, mulheres, corpo e acumação primitiva.
São Paulo: Editora Elefante. 2017.
MALLORY, Jason. “A Journal of Feminist Theory & Culture.” In: Thirdspa-
ce: a journal offeminist theory & culture, 2002.
ROSENDO, Daniela. Filosfia ecofeminista. Repensando o Feminismo a par-
tir da lógica de dominação. In: Revista Diversitas, v. 4, p. 99-123, 2016.
WARREN, Karen. Ecofeminist Philosophy: A Western Perspective on What
It Is and Why ItMatters, New York: Rowman & Littlefield, 2000.
O manual do veganismo popular e revolucionário • 47

CAPÍTULO VIII

INSERÇÃO SOCIAL,
PODER POPULAR E
TRANSFORMAÇÃO
Kauan Willian1

Os movimentos anti-opressões que são cooptados pelo liberalismo se-


guem a lógica da primeira ministra da Inglaterra, Margareth Thatcher, que,
em um dos seus primeiros discursos, afirmou que “a sociedade não existe,
apenas homens e mulheres individuais” (THATCHER in HARVEY, 2005,
p.17) , transformando construções coletivas e transformações de estruturas,
portanto, em culpas individuais.
É assim também em boa parte do veganismo que coloca a culpa da
exploração animal nos seres humanos, nivelando todas as classes sociais pela

1 Doutorando em História Social (USP), professor da rede municipal de São Paulo, mili-
tante sindical e antiespecista (Antar-Poder Popular Antiespecista)
48 • Antiespecistas

mesma culpa do especismo. É por isso que alguns veganos caem no erro de fa-
zer a mesma crítica que fazem aos modelos industriais de dominação animal,
aos grupos indígenas que caçam ou aos rituais de religiões perseguidas e mino-
ritárias. Ao colocar um choque entre grupos sociais, muitos deles oprimidos,
também emperram um modelo de transformação de uma estrutura especista,
que tem uma base econômica e ideológica favorecida pela classe dominante.
No primeiro livro de O Capital, o militante e teórico da Primeira Inter-
nacional Karl Marx já havia analisado que em países como “Estados Unidos
da América do Norte [...], com a grande indústria como fundamento se deu
desenvolvimento” tem “mais rápido o processo de destruição” das duas “fon-
tes de toda a riqueza: a terra e o trabalhador.” (MARX, 1984, p.22). O teóri-
co Murray Bookchin, criador da teoria da Ecologia Social, revela que a domi-
nação da natureza pelo ser humano foi muito anterior ao capitalismo e veio
no período da sedentarização fazendo com que “a mentalidade estruturada
em termos da hierarquia e domínio, na qual a dominação do homem pelo
homem deu origem a concepção de que dominar a natureza fosse o destino
e inclusive a necessidade da humanidade” (BOOKCHIN, 2019, p.5). Não
obstante, também considera o capitalismo a última forma dessa dominação
hierárquica que aproveitou esses sistemas para seu benefício e para garantir a
dominação de determinado grupo social.
Sendo o capitalismo a base da destruição da natureza e, por conseguin-
te, de todos os seres que estão sob ela, não podemos pensar que atitudes
individuais ou culpar grupos minoritários por mortes de animais acabaria
uma estrutura que é mantida pela ideologia do capitalismo. O teórico do
ecossocialismo Michael Löwy pontua:

Qual é então a solução alternativa? Mudar o comportamento indivi-


dual dos consumidores, como também propõem tantos ecologistas?
A crítica cultural do consumismo é necessária, mas perfeitamente
insuficiente. É preciso atacar o próprio modo de produção: se o pro-
blema é sistêmico, a solução tem que ser antissistêmica, isto é, antica-
pitalista (LÖWY, 2014, p.9).

Enquanto falsos ambientalistas, sob a ordem do sistema dominante, ilu-


dem a população tentando os convencerem a diminuírem seus horários de
banhos, a pecuária e o sistema industrial consomem a maior parte dos recur-
sos hídricos do planeta - a base, portanto, não é ameaçada. O mesmo faze-
O manual do veganismo popular e revolucionário • 49

mos quando culpamos, muitas vezes, um oprimido que foi condicionado a


achar que a carne é a única coisa que apresenta sustância no seu prato, sendo
que essa ideologia só existe e é incentivada para dar poder aos produtores des-
sa carne, que são quem destroem a vida animal, humana e toda a natureza.
Revoltas, mesmo coletivas pontuais, de formas antissistêmicas são um
início para uma mudança mas também apresentam limites. O militante rus-
so da Primeira Internacional e da Aliança da Democracia Socialista, Mikhail
Bakunin, acreditava que “o problema não é saber se o povo pode se sublevar,
mas se é capaz de construir uma organização que lhe dê os meios de se che-
gar a um fim vitorioso – não por uma vitória fortuita, mas por um triunfo
prolongado e derradeiro” (BAKUNIN; MAXIMOFF, S.D,70). Grupos que
detém o poder econômico comumente detém o poder político e os meios de
comunicação, ou seja, também o poder ideológico e cultural. Ou seja, estão
muito bem organizados e integrados. O que podemos fazer diante disso? Só
uma força, uma construção coletiva desses oprimidos, que são maioria, e se
caso construírem formas de contrapoder e projetos de substituição do siste-
ma dominante, podem virar esse jogo.
A construção do poder popular, ou seja, “a realização efetiva do princí-
pio que só os trabalhadores podem resolver os problemas dos trabalhadores”
ou seja “estimular e valorizar as iniciativas autônomas, construir formas de
organização coletivas de organização e de decisão coletivas, lutas por nossas
reivindicações e direitos (MTST, 2017).” Contruir movimentos que dão po-
der para lutar por nossos direitos econômicos como sindicatos, movimentos
de moradia, movimentos de luta de terra e indígena, organizações políticas
anticapitalistas, somados aos movimentos anti-opressões com a mesma pers-
pectiva radical; feministas, antirracistas, de direitos LGBTQIA+, ecológicos,
etc, são a resposta, tanto para construir uma força que se contraponha aos ins-
trumentos da classe dominante, e também para a origem de um novo sistema
governado pelos trabalhadores, grupos populares e oprimidos de forma direta.
Veganos liberais costumam dizer que revoluções socialistas não finda-
ram o especismo, e é verdade. Mas a concepção de poder popular atual é que
só uma tomada dos meios de produção e a substituição do poder político não
bastam para transformações de todos os sistemas de dominação. É exatamen-
te essa tomada – ainda essencial já que o capitalismo é o estruturante dessas
dominações – somada ao protagonismo desses movimentos e organismos
antidominações, a chave para uma transformação de toda a realidade.
50 • Antiespecistas

Nesse movimento, a estratégia é inserir o debate antiespecista, portanto,


nessa construção do poder popular. Esse debate deve estar, portanto, acom-
panhado dos movimentos populares, estes últimos que são o único meio de
transformação da realidade para que, nessa nova sociedade, esse debate seja
importante, já que mostramos nesse livro que o especismo acomete todos
os seres sencientes, animais humanos e não humanos. O caminho de cons-
cientização e de construção diária e cotidiana é importante – ou seja, assim
como o machismo, racismo, etc, a atitude vegana deve começar agora- mas
uma posição individual de boicote e não consumo tem seus limites e, como
dissemos, sem outras ações, não transforma a realidade. Lutas como as de
terra, ecológicas, de espaços comuns e moradia, de soberania e autonomia
alimentar, lutas abolicionistas penais e outras são terreno fértil para desen-
volver todos os conceitos e perspectivas antiespecistas que mostramos no
decorrer dessa obra.
Nesse sentido, são mobilizadoras as palavras da ativista e escritora Alice
Walker quando disse que, em uma reunião que estava presente, conversando
“sobre liberdade e justiça para todos algum dia, sentamo-nos para comer um
bife. Estou comendo sofrimento, pensei, ao dar a primeira mordida. E cuspi
a carne.” O senso de justiça e igualdade para com todos, e essa ligação que
está tudo conectado, é o primeiro passo para a construção de uma sociedade
verdadeiramente igualitária.

Referências
MTST. “As linhas políticas do MTST”. In: https://tinyurl.com/z8x3j54a.
Acesso em fevereiro de 2021.
BAKUNIN, Mikhail. Socialismo e Liberdade. São Paulo: Coletivo Edito-
rial Luta Libertária, s.d.
BOOKCHIN, Murray. Por uma ecologia social. Biblioteca anarquista, 2019.
HARVEY, David. Neoliberalismo: História e Implicações. São Paulo: Edi-
ções Loyola, 2005.
MARX, Karl. O Capital: Volume I. São Paulo: Abril Cultural, 1984.
Este livro foi composto em Contrail One (tí-
tulos), Adobe Garamond Pro (texto) e Amiri
(cabeçalho e rodapés), em junho de 2021 nas
oficinas gráficas da Editora Terra sem Amos,
no território ocupado pelo Estado do Piauí.

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