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Sociologia

1. Primeiras
Teorias Sociais
1. Primórdios da Sociologia

A sociologia é uma ciência que nasceu em meio a inúmeras


modificações geopolíticas, históricas e científicas. Na Europa,
duas grandes modificações foram responsáveis pelo nascimento
de uma curiosidade sociológica. Primeiramente, a revolução
industrial trouxe uma série de modificações quando ao modo de
viver. Trabalhadores passavam agora a trabalhar conforme o
ritmo de fábricas, distantes da luz do dia, cumprindo uma jornada
de trabalho calculada em horas e recebiam salário em troca.
Estes trabalhadores enfrentaram grandes modificações em suas
condições de vida, pois passaram a viver em grandes
aglomerados urbanos, privados de boas condições de higiene
pública e em más condições de trabalho. Crime, expectativa de
vida, doenças e uma série de flagelos do capitalismo industrial
foram as engrenagens necessárias para criar o movimento
sindical inglês. Este movimento foi o primeiro movimento social
de trabalhadores na era capitalista e sua força permitiu a
conquista de uma série de direitos que melhoravam as
condições de trabalho dos operários ingleses.

O segundo grande movimento que despertou cientistas para


uma busca por compreensão científica da sociedade foi a
revolução francesa. A revolução francesa depôs o absolutismo
mais poderoso da Europa e instaurou um regime democrático
fundado nos valores da liberdade, da fraternidade e da
igualdade. Ao longo do processo de radicalização da revolução,
Napoleão Bonaparte venceu e invadiu as monarquias europeias
instaurando novas formas de governo apoiadas pelas
burguesias nacionais.

Com a modernização da França, a unificação alemã e italiana


ao longo do século XIX, estes países passam a observar a
Inglaterra muito à frente em termos de industrialização. Essa
nova condição leva a um novo fenômeno que ficou conhecido
como imperialismo ou neocolonialismo.
O neocolonialismo consiste em missões que partem de países
industrializados em direção a territórios da África e da Ásia em
busca da introdução de novos mercados consumidores. O
problema deste empreendimento é que os produtos europeus
nem sempre faziam o gosto dessas pessoas e o que deveria ser
uma missão cultural acabou tornando-se uma missão de

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colonização militar e cultural. Inúmeros conflitos irrompem em
territórios da Índia, da China, da África do Sul, da Libéria e
Eritréia em função da chegada dos europeus. Os invasores
destroem modos de produção milenares e equilibrados,
corrompem hábitos ligados à religiosidade, modificam estruturas
sociais fundadas em tradições.

Diante disso um esforço compreensivo passou a ser feito. Afinal,


o contato com o estranho levou a intelectualidade europeia a ter
de elaborar a sua própria identidade por contraste com aqueles
que viviam de modos tão diferentes. Inicialmente, a
compreensão do outro se deu por um esforço teórico que ficou
conhecido como o Evolucionismo Social.

2. Evolucionismo Social

O pensamento dito evolucionista social nasceu antes mesmo da


famosa teoria da evolução das espécies de Darwin. Conceitos
de evolução já existiam com diferentes acepções na ciência
europeia e, nesse caso, alimentaram a nascente antropologia. O
que permite que reunamos essas teorias embaixo do mesmo
guarda-chuva é a sua ideia de que a cultura humana evolui e
passa por diferentes etapas.

2.1. Lewis Morgan

O primeiro pensador que iremos abordar de modo rápido é Lewis


Morgan (1818 – 1881). Morgan foi um antropólogo americano
que fez sua pesquisa de campo em meio aos Iroqueses. Ele
escreveu um livro chamado A Sociedade Antiga que ficou
famoso por sua concepção de evolução em etapas. Nesse livro,
Morgan defende que as formas de parentesco evoluem de
acordo com o progresso tecnológico das organizações
humanas.

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As primeiras tribos são de caçadores-coletores na idade da
selvageria. Nesse período as tribos teriam um comportamento
sexual promíscuo. Logo em seguida, com o advento da
agricultura as tribos humanas passariam à barbárie. Aqui a
sexualidade passaria a ser monogâmica dado que a noção de
bens materiais e terras passariam a interessar ao núcleo familiar.
Por último, as sociedades passariam à forma civilizada onde elas
chegariam ao progresso máximo em uma organização urbana.

Essa teoria é ultrapassada, porém ela serviu enormemente a


outros teóricos que se interessaram por entender as relações
entre vida material e formações de família e parentalidade.

Pode-se afirmar agora, com base em convincente evidência, que


a selvageria precedeu a barbárie em todas as tribos da
humanidade, assim como se sabe que a barbárie precedeu a
civilizaçao
̃ . A história da raça humana é uma só - na fonte, na
experiência, no progresso. – Morgan, L. A Sociedade Antiga

2.2. Edward Tylor

Edward Tylor (1832 – 1917) foi um antropólogo britânico que


viajou para o México para estudar as tribos indígenas de lá.
Apesar de nunca ter cursado a universidade, foi condecorado
doutor em Oxford após a escrita de seu famoso livro Cultura
Primitiva.

Tylor irá argumentar que as culturas ao longo da terra tendem a


uma convergência por estarem fundadas em princípios da ação
e do pensamento. Por isso mesmo, cultura será para ele todo o

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complexo que inclui conhecimento, crenças, arte, moral, lei,
costumes, e qualquer outras capacidades e hábitos adquiridos
pelo homem enquanto membro de uma sociedade.

Com essa definição Tylor colocava as tribos das Américas,


África e Ásia dentro de um conceito unificado de humanidade;
pois, se todos os grupos têm cultura, então é necessário admitir
que há uma unidade psicológica básica a todos os humanos.

Será Tylor que irá identificar o fenômeno do animismo. Para ele,


tribos que iniciavam seu desenvolvimento histórico tendem a
construir formas de religião em que há a crença que entidades
naturais são deuses. O termo animismo vem do latim “anima”
que significa “alma”. Assim, é como se toda a natureza estivesse
possuída por almas que manifestam estados de ânimo.

2.3. Auguste Comte

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Auguste Comte (1798 – 1857) foi um filósofo e sociólogo francês
criador da teoria positivista. O positivismo é uma teoria de cunho
liberal que incorpora inúmeros anseios da burguesia francesa do
século XIX. Inspirada em um profundo racionalismo e
cientificismo, o Positivismo nasce de um entendimento do
paradigma científico: a ciência se faz por meio da descrição de
leis.

Comte irá então organizar um sistema de unidade da ciência


onde a matemática é a ciência base. A física é a ciência que em
primeira instância depende do desenvolvimento da matemática.
Por sua vez, a química é a ciência que depende de conceitos e
da compreensão de fenômenos físicos. Por fim, a biologia seria
a ciência que depende do entendimento da química. E a
sociologia seria a última ciência a receber uma axiomatização.

Para Comte a sociologia era uma espécie de física social que


deveria ter leis de descrição da evolução e do progresso social.
Nesse sentido, era necessário entender quais as leis sociais a
partir da identificação de suas forças motoras. A partir do método
comparativo, Comte chega à conclusão de que o progresso
humano se dá em função do avanço da ciência. Sendo assim,
as sociedades mais atrasadas na história são aquelas que não
elaboraram mecanismos e conceitos para a descoberta
científica, já as mais evoluídas seriam aquelas que se encontram
em pleno desenvolvimento científico.

Comte classifica de estado teológico o primeiro degrau da


escada de evolução social. Nesse estado os homens creditam a
forças divinas os fenômenos da natureza. É um período de
profunda fragilidade e, portanto, de crenças mitológicas e
religiosas. A forma de governo que mais se conforma a esse
período da mentalidade humana é aquela em que homens são
vistos como deuses e governam por meio de teocracias
militaristas. Para superar esse estado é necessário que ocorra a
transição de formas de pensamento mítico para formas de
pensamento racional.

O segundo estado é o metafísico. Neste momento os homens


passam a ter uma compreensão racional da natureza, mas ainda
pré-científica. A grande busca desse período é por essências ou
princípios que guiem o entendimento do mundo natural e do
próprio homem. É nesse período que os homens passam a
especular acerca de princípios morais e éticos que nos ajudem
a forjar leis para governar. Assim, a forma de governo mais
comum aos que atingem esse estado é aquele que dá
centralidade aos juristas e legisladores.

Por fim, o terceiro estado é chamado de positivo. Nesse


momento da história humana a ciência afasta dos homens todas

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as formas de pensamento supersticioso e resolve todas as
disputas de valor subjetivo. A ciência passa a ser a principal
ferramenta dos homens no governo tecnocrático e na busca da
paz.

O positivismo tem como pressupostos o progresso, a evolução


e a ciência. Contudo, ao longo do desenvolvimento da teoria
positivista, Comte cada vez mais foi entendendo que sua filosofia
e pensamento social precisavam de um lugar para ser cultuado.
Assim, igrejas positivistas passaram a surgir na França e até
mesmo no Brasil. Aqui, o positivismo foi absorvido por membros
do exército que adotaram o lema positivista “Amor, Ordem e
Progresso” como sendo a chave de suas decisões políticas.

2.4. Herbert Spencer

Spencer (1820 – 1903) era amigo de Charles Darwin. Sua


contribuição fundamental para o pensamento sociológico está
na teoria do Darwinismo Social. Para ele, tal como a vida
microscópica se organizou por meio de funções que estruturam
os organismos, a vida social deve também ter estruturas
funcionais básicas.

Spencer acreditava que a teoria da sobrevivência do mais


adaptado poderia ser a base de compreensão das sociedades
também. Sendo assim, ele pensou em dois modelos funcionais
de sociedade. Há as sociedades hierárquicas militaristas onde o
sistema é preponderantemente vertical, com pouca
diferenciação e baseado na obediência. E há sociedades

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industriais com alta complexidade, diferenciação, voluntarismo e
contratos sociais tácitos.

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2. Karl Marx
1. Contexto

Karl Marx nasceu em 1818 e viveu até 1883. Sua vida é marcada
por uma profunda contribuição filosófica, sociológica e
econômica; mas também por um ativismo político e por
perseguições à sua pessoa. Formado em direito na universidade
de Bonn e doutor pela universidade de Berlin, Marx não se
firmou jamais como um acadêmico. Seus estudos iniciaram pelo
entendimento da filosofia pré-socrática de Demócrito, passou
pelo contato com a filosofia de Hegel e mergulhou nos escritos
de socialistas utópicos como Proudhon e Fourier. Já maduro,
Marx leu Saint-Simon e foi auxiliado pelo seu amigo de sempre
Friedrich Engels. Após sair perseguido de Paris, Marx foi viver
em Londres onde passou a estudar economia e ajudou a
constituir o Partido Comunista Inglês, cujo manifesto tornou-se
uma das obras mais lidas da humanidade.

2. A Crítica ao Idealismo

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Marx pertenceu a um grupo de estudiosos do idealismo de Hegel
e esse grupo será fundamental para que ele elabore sua primeira
Superestrutura
crítica filosófica. A teoria hegeliana afirmava que a razão era a
Direito
base do entendimento da natureza, dado que seria por meio dela
Ideologia Religião
que as ideias do que é natural formam o entendimento do mundo
real. Hegel acreditava que a razão humana elaborava
dialeticamente uma imagem da natureza, mas que
inescapavelmente terminava por elaborar uma imagem da
própria humanidade. Esse processo culminaria em uma
libertação paulatina do homem de todas as suas ilusões das
Infraestrutura quais ele é cativo. Assim, a evolução dialética do Espírito seria
Relações
Economia
Sociais o que liberta os homens.

Marx irá inverter essa lógica. Para ele, a materialidade da


Superestrutura natureza é o que elabora a razão humana, pois a vida humana
Falsa é fundada no trabalho. Sem trabalho as sociedades humanas
Consciência
não alcançam o sustento e somente quando elas conseguem
organizar essas formas mais básicas de produção é que elas
conseguem constituir formas jurídicas, formas de credo religioso
e formas morais. Nesse sentido, Marx critica uma certa visão de
progresso histórico presente no idealismo, contrapondo o
materialismo histórico a ele.
Infraestrutura

Consciência “A primeira premissa de toda história humana é, evidentemente,


de classe a existência de indivíduos humanos. Por isso, o primeiro fato a
se determinar é a organização corporal desses indivíduos, e em
Esquema dialético de Marx seguida sua relação com o resto da natureza. É claro que não
podemos investigar aqui nem a própria natureza física do
homem, nem as condições naturais em que ele se encontra —
geológicas, oro-hidrográficas, climáticas e assim por diante. A
historiografia deve sempre partir dessas bases naturais e sua
modificação, no decorrer da história, pela ação do homem.

É possível distinguir os homens dos animais pela consciência,


pela religião, ou pelo que quer que seja. Mas eles mesmos
começam a se distinguir dos animais logo que principiam a
produzir seus meios de subsistência, um passo que é
condicionado por sua organização corporal. Produzindo seus
meios de subsistência, os homens estão produzindo,
indiretamente, sua própria vida material.” – Marx, K. A Ideologia
Alemã

Marx irá contrapor-se à compreensão da dialética do espírito de


Hegel. Ao invés de localizar o progresso da história como
resultado da síntese entre uma tese e uma antítese da razão, o
pensador socialista irá afirmar que tese e antítese são na
verdade forças sociais que resultam da organização produtiva.
É o embate social que liberta o homem, pois dele resultam
sempre melhorias nas formas das relações de trabalho.

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Em seus primeiros escritos, como por exemplo no Manifesto
Comunista, Marx afirma que o progresso histórico feito até hoje
se dá em função da luta de classes – o motor da história. Nesse
livro observamos a tese de que a humanidade progrediu após
sucessivos processos que revolucionaram os modos de
produção. Marx parte do escravismo romano ao feudalismo, e
posteriormente, do feudalismo ao capitalismo, criando formas de
relação de trabalho cada vez mais livres em função dos
constantes embates de classe. No entanto, ao passo que ocorria
uma libertação em termos de relações produtivas, a
possibilidade de exploração aumentava, pois o capitalismo teria
se tornado o modo de produção mais eficaz nessa tarefa.

Em seu livro Teses Contra Feuerbach, Marx enuncia uma tese


que se tornou famosa. A tese 11 denota seu caráter de filósofo
crítico, pois lá ele dirá “Os filósofos se limitaram a interpretar o
mundo de diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo”

3. Crítica à Ideologia Dominante

O sistema filosófico de Marx está profundamente interligado ao


seu entendimento da sociedade. Para ele, dado que o trabalho
é a atividade fundamental que organiza as sociedades, todos os
demais fenômenos sociais devem ser compreendidos à luz das
atividades laborais. Sendo assim, relações de poder, formação
de classes sociais, instituições, crenças religiosas, princípios
morais, etc. são todas derivadas da organização econômica.

“Minha pesquisa me levou à conclusão de que as relações legais


e as formas políticas não poderiam ser explicadas, seja por si
mesmas seja como proveniente do assim chamado
desenvolvimento geral da mente humana, mas que, ao contrário,
elas se originam das condições materiais da vida ou da
totalidade que Hegel, segundo o exemplo dos pensadores (…)
do séc. XVIII, engloba no termo “sociedade civil””. Marx, K.
Contribuição à crítica da economia política

É nesse contexto que Marx irá cunhar um sentido crítico para o


termo ideologia. Como o trabalho é organizador do sistema de
classes e dentro do capitalismo há um sistema de classes que
distribui poder de modo antagônico, Marx irá se interessar pelo
modo como a dominação de classe é exercida no capitalismo.
Marx e Engels definem ideologia como o mascaramento da
realidade através do qual um grupo exerce domínio sobre o
outro. A ideologia busca colocar o oprimido em uma situação na
qual ele aceita a sua opressão por meio de uma justificativa que
o leva a ter crenças falsas. Marx dirá que a ideologia habita
sempre uma falsa consciência.

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A ideologia dominante é a produção de uma classe dominante
que controla o setor da superestrutura social. Essa
superestrutura é um conjunto de atividades administrativas e
intelectuais como por exemplo o direito, a religião e a moral.
Essa superestrutura social é resultado do modo como a
infraestrutura organiza a sustentação material da vida de uma
determinada sociedade.

“(…) em toda ideologia, os homens e suas relações aparecem


invertidos como numa câmara escura; tal fenômeno decorre de
seu processo histórico de vida, do mesmo modo que a inversão
dos objetos na retina decorre de seu processo de vida
diretamente físico. [...] Não é a consciência que determina a vida,
mas a vida que determina a consciência.

As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias


dominantes, isto é, a classe que é a força material dominante da
sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante.
A classe que tem à sua disposição os meios de produção
material dispõe, ao mesmo tempo, dos meios de produção
espiritual, o que faz com que a ela sejam submetidas (…) as
ideias daqueles aos quais faltam os meios de produção
espiritual. As ideias dominantes nada mais são do que a
expressão ideal das relações materiais dominantes concebidas
como ideias; portanto, a expressão das relações que tornam
uma classe a classe dominante; portanto, as ideias de sua
dominação.” – Marx, K. A Ideologia Alemã

4. Crítica ao Estado Burguês e ao Capitalismo

Marx reconhece que o sistema mais bem sucedido em produzir


bens de consumo é o capitalismo, contudo isso se opera às
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custas de uma exploração que foi desenhando historicamente.
Marx mostra que ao contrário do que as teorias idealistas diziam,
o Estado Moderno não era o resultado do progresso histórico da
razão, mas sim o resultado de uma longa mudança nas formas
jurídicas que teriam formado a classe trabalhadora.

Marx inicia por uma crítica publicada no jornal Gazeta Renana.


No artigo ele critica a lei punitiva ao roubo de lenha de 1842.
Para ele, essa lei tinha como finalidade impossibilitar a
comodidade térmica nos lares dos moradores do campo inglês
que viviam em terras comunais. Tal lei era a última de uma série
de leis que obedeciam à lógica dos cercamentos de
propriedades que passam a ocorrer a partir de 1723, com a Lei
Negra. Com essas leis a vida no campo tornar-se-ia cada vez
mais difícil e isso forçaria um êxodo rural. Esse movimento de
trabalhadores era fundamental para os interesses da burguesia
industrial, pois as fábricas precisavam de um contingente
populacional ocioso para que a mão de obra tivesse um preço
acessível. Desse modo, Marx entenderá que as leis do Estado
inglês cada vez mais atendiam aos interesses da classe
burguesa e isso era contraditório com a tese de Hegel.

Marx perceberá que o Estado não é uma formação do progresso


livre da razão, mas, sim, é uma instituição que serve como
mecanismo de dominação de classe. No capitalismo, a ideia de
Estado Nação surge com a promessa de unir um povo com uma
identidade cultural a uma instituição jurídico-legal que respeite
aos anseios daquele povo. Contudo, tudo isso se revela
inoperante. Por esse motivo, a filosofia da história de Marx
afirmava que o capitalismo terminaria por uma revolução
socialista que instauraria uma nova forma de governo, novas
relações de poder e, fundamentalmente, novas formas
econômicas. Assim, as instituições do mundo capitalista geram
uma contradição que só pode ser superada por uma processo
de revolução.

Minha investigaçao ̃ chegou ao resultado de que tanto as


relaçoe
̃ s jurídicas como as formas de Estado não podem ser
compreendidas por si mesmas, nem pela chamada evoluçao ̃
geral do es- pírito humano, mas sim assentam, pelo contrário,
nas condiçoe ̃ s materiais de vida cujo conjunto Hegel resume,
seguindo o precedente dos ingleses e franceses do século X VIII,
sob o nome de “sociedade civil”, e que a anatomia da sociedade
civil deve ser buscada na Economia Política.” – Marx, K. Para a
Crítica da Economia Política.

A partir disso, Marx irá cada vez mais se interessar por entender
como o capitalismo surgiu historicamente e como ele modificou
as relações de produção. Esse interesse levou Marx a estudar
os economistas que o precederam como por exemplo, os
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mercantilistas, os fisiocratas e os liberais. De todos, Adam Smith
foi o mais genial economista que permitiu a Marx compreender
as grandes transformações que eram observadas na transição
da economia mercantilista para a capitalista.

Smith contradiz o diagnóstico dos antigos fisiocratas que


afirmavam que a riqueza de uma nação é a posse de bens
naturais como terras, minas e demais recursos naturais. Smith
irá dizer que a principal riqueza que uma nação tem é sua classe
trabalhadora, pois ela é quem transforma recursos em
mercadorias. Obviamente, Smith já percebera que a sociedade
capitalista é uma sociedade de mercado e, nesse sentido,
aquele que dominar os mercados vence no mundo capitalista.

Contudo, Smith tinha uma imagem um tanto idealizada do


capitalismo. Para ele, a melhor forma de produzir riqueza era
permitindo que cada um buscasse o bem individual. Ele
acreditava que na medida que todos buscassem o bem
individual, todos somariam algo para o montante. A riqueza
naturalmente, pela mão livre do mercado, fluiria para todos os
setores da sociedade.

Marx notou que o capitalismo não é um sistema tão cooperativo.


Ele percebe que a natureza do capitalismo é a maximização do
lucro para poder competir, mas isso nem sempre é coerente com
a ideia do ganho de todos. No sistema capitalista a classe
trabalhadora passa a vender sua força de trabalho no mercado
de trabalho. Ela ganha em função das horas trabalhadas um
salário que serve para que ela adquira mercadorias para seu
consumo. Acontece que, se um burguês precisa tornar o preço
da sua mercadoria competitivo no mercado, ele precisa reduzir
custos de produção e dentre todos os custos, o trabalho dos
operários é um dos que pode ser reduzido se houver uma grande
oferta de trabalhadores. Nesse sentido, quanto maior a
exploração do trabalho, mais a mercadoria da fábrica torna-se
barata e mais o próprio trabalhador poderia ter acesso a ela. No
entanto, se o trabalhador está recebendo muito pouco por ela e
desgastando demasiadamente sua vida e força de trabalho, o
próprio sistema torna-se contraditório.

Marx irá notar também que a transformação do trabalhador em


mercadoria opera sobre ele uma objetificação que desafia
qualquer ética que tenha o ser humano com algo com valor em
si. O capitalismo transforma o homem em recurso e objetifica
seu comportamento direcionando-o para um sistema em que ele
não domina mais o que produz. Marx chamou a esse processo
de alienação do trabalho, pois nesse sistema uma pessoa
produz não mais para si, mas para o mercado. O trabalho não
gera um bem com valor de uso, mas somente um bem com valor
de mercado.

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O trabalho não produz somente mercadorias; ele produz a si
mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e isto na medida
em que produz, de fato, mercadorias em geral. [...] Quanto mais
o trabalho desgasta trabalhando, tanto mais poderoso se torna
o mundo objetivo, alheio que ele cria diante de si, tanto mais
pobre se torna ele mesmo, seu mundo interior, tanto menos o
trabalhador pertence a si próprio.” Marx, K. Manuscritos
Econômico-Filosóficos

Outro importante fator da análise econômica de Marx é a


explicação de como o lucro é possível. O lucro era uma espécie
de mistério para os economistas da época e foi muito importante
Marx mostrar os mecanismos ocultos da economia capitalista.

Marx irá mostrar que o lucro nasce da mais-valia. A mais-valia é


todo o valor extraído do trabalho de um operário que não é
necessário para completar o valor do seu salário. Podemos
pensar, por exemplo, que um trabalhador deveria produzir cinco
casacos de lã para pagar o seu salário. Contudo, no regime de
contrato por horas de trabalho, ele não produz somente cinco
casacos. Ele produz tantos casacos quanto o ritmo da fábrica
ditar. Por isso mesmo, todos os casacos que ele produz além do
quinto serão casacos que potencialmente irão compor o lucro do
dono da fábrica ou meio de produção.

O Trabalhador não precisa necessariamente ganhar com o


ganho capitalista, mas necessariamente perde quando ele
perde. Assim, o trabalhador não ganha quando o capitalista
mantém o preço de mercado acimado preço natural através de
segredos de comércio ou indústrias. [...] Além disso: o preço do
trabalho é muito mais constante que os preço dos meios de vida.
(Marx, K. Manuscritos Econômico-Filosóficos.

5. Marxistas

As obras de Marx foram um divisor de águas na história do


Ocidente. A fecundidade da sua obra influenciou movimentos
políticos, artísticos e sociais. Irei rapidamente tratar de algumas
dessas influências.

5.1. Lênin e a Revolução Russa

Lênin foi o líder da revolução russa de 1917. Um marco


importante do pensamento leninista é o entendimento da
situação do capitalismo no início do século XX. Para ele,
contrariamente ao que acreditavam Marx e Engels, a revolução
socialista não ocorreria primeiramente em países avançados do
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capitalismo, pois nesses países a classe trabalhadora
conseguiria jogar para a periferia as necessidades exploradoras
do capitalismo.

Será em países sem industrialização e agrários que as tensões


do capitalismo seriam radicalizadas, na visão de Lenin. Esses
países, em nome da recusa da modernidade, teriam de explorar
suas classes camponesas e urbanas a fim de seguir
competitivos nos mercados internacionais. Isso naturalmente
deflagraria a situação revolucionária.

5.2. Escola de Frankfurt

Uma série de intelectuais alemães passou a se reunir no Instituto


Figure 1: Lenin foi o líder da
revolução russa de 1917 de Pesquisas Sociais da fundado em Frankfurt em 1924.
Inicialmente liderados por Max Horkheimer e Theodor Adorno,
esses pensadores inspiraram-se em Marx para compreender a
sociedade capitalista contemporânea. Com a ascensão do
nazismo boa parte deles se refugiou nos EUA e conseguiu
retornar por volta da década de 1950. No retorno, Marcuse foi
um dos nomes principais da escola.

A escola de Frankfurt buscou desenvolver uma teoria crítica do


conhecimento. Para eles, a racionalidade técnica e instrumental
dominou a sociedade a partir da revolução industrial. Uma das
consequências dessa forma de racionalidade é a objetificação
de aspectos da cultura que tornam a arte algo massificado e
industrial. Para eles, a transformação da arte em algo
massificado é para que ela seja de fácil consumo. Contudo,
assim, a arte perde sua função fundamental que é a elevação do
espírito humano. Desse modo, era necessário criticar a razão
instrumental e buscar elaborar formas de razão emancipatória.

Figure 2: Horkheimer e Adorno

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Além disso, os frankfurtianos uniram teorias marxistas a teorias
freudianas. Marx, em um de seus escritos mais psicológicos, fala
da capacidade de fetichização das mercadorias. Mercadorias
funcionam como ganchos para o desejo humano de
autoconhecimento. Assim, o capitalismo se vale disso e
transforma o trabalho um meio de acesso para que a classe
trabalhadora desenvolva desejos de consumo que atendam a
necessidades identitárias. Por vezes, a classe média proletária
entende que o acesso dela ao consumo é aquilo que a diferencia
dos estratos mais baixos do proletariado e nesse ponto ela
passa a ser cooptada pela burguesia.

5.3. Lukács e Gramsci

Lukács (1885 – 1971) foi um pensador húngaro que criou uma


das mais importantes distinções no seio do Marxismo. Ele
mostrou que origem de classe e consciência de classe são dois
conceitos diferentes. No capitalismo, as formas de consciência
de classe nem sempre obedecem a condição real do individuo.
Pessoas podem identificar-se de acordo com diferentes estratos
sociais justamente porque existe uma variedade de
possibilidades de fetiche.

Gramsci foi um pensador italiano que formulou conceitos


importantes no campo da política. Ele entende que um processo
político revolucionário depende de dois fatores fundamentais.
Primeiramente, a existência de intelectuais orgânicos, ou seja,
pessoas que tenham a capacidade de participar de movimentos
políticos na condição de líderes intelectuais. Em segundo lugar,
ele pensou, inspirado em Bakhtin, na necessidade da existência
de uma cultura popular, por contraposição a uma cultura de elite.
A cultura de elite tende a buscar uma hegemonia. Assim, é
necessário forjar uma cultura popular para combater a cultura
hegemônica.

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3. Émile Durkheim
1. Contexto

Émile Durkheim (1858 – 1917) foi um dos criadores da sociologia


enquanto disciplina acadêmica. Formado em filosofia, Durkheim
fez pesquisas no campo da sociologia do trabalho, da religião e
foi um dos maiores pensadores de questões metodológicas da
sociologia.

2. As Regras do Método Sociológico

Inicialmente, Durkheim busca no positivismo uma inspiração


para firmar a sociologia como ciência. Para ele, o modelo de
ciência no qual a sociologia deveria se inspirar é as ciências da
natureza. Essa ciência deveria observar dados empíricos,
fundar-se na prática da coleta de dados e buscar avançar no
campo quantitativo e qualitativo.

A sociologia ainda não ultrapassou a era das construções e das


sínteses filosóficas. Em vez de assumir a tarefa de lançar luz
sobre uma parcela restrita do campo social, ela prefere buscar
as brilhantes generalidades em que todas as questões são
levantadas sem que nenhuma seja expressamente tratada. Não
é com exames sumários e por meio de intuições rápidas que se
pode chegar a descobrir as leis de uma realidade tão complexa.
Sobretudo, generalizações as vezes tão amplas e tão

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apressadas não são suscetíveis de nenhum tipo de prova. –
Durkheim, E. O suicídio: estudo de sociologia.

No entanto, para que tal ciência possa fundamentar-se


Durkheim percebe que era necessário cunhar a noções básicas
que guiem a prática sociológica. Nesse sentido a primeira noção
foi de fato social.

Um fato social é a unidade básica de investigação sociológica.


A física lida com fatos físicos, a química com fatos químicos,
portanto é natural que queiramos delinear o que seria um fato
social. Em sua definição, fatos sociais devem ser tratados com
objetividade. Ele diz

“O fato social consiste em maneiras de agir, pensar e sentir que


são externas ao indivíduo e que são investidas de poder coercivo
em funçaõ da qual tais fatos podem exercer controle sobre ele.”
- Durkheim, E. As Regras do Método Sociológico

Um fato social distingue-se de fatos psicológicos porque não tem


causas no indivíduo unicamente. Podemos dizer que quando
alguém toma a decisão de não ter filhos porque prefere ter uma
vida de solteiro, isso é diferente da decisão de não ter filhos
porque não tem dinheiro para sustentar a vida de uma criança.
Além disso, fatos sociais são diferentes de fatos biológicos,
podemos dizer que comer é uma necessidade humana que
garante a sobrevivência do corpo, contudo comer ao meio-dia
utilizando talheres já não é um hábito revestido unicamente de
necessidades biológicas.

Durkheim irá mostrar que para identificar um fato social é


necessário pensar em critérios, pois com esses critérios
poderemos distinguir fatos da sociologia daqueles presentes em
outras ciências humanas. Assim, os critérios deveriam mostrar
que há causalidade social sobre os indivíduos. Eis que ele chega
a três critérios: coercitividade, exterioridade e generalidade.

Fatos sociais têm caráter coercivo porque levam indivíduos a se


comportarem de acordo com o grupo. De modo geral, quando os
indivíduos não fazem assim, eles são reprovados pelo grupo ou
tem de justificar sua conduta. Um exemplo disso poderia ser o
modo como nos trajamos para ir ao trabalho ou ir a festas. Existe
um código de conduta para o modo como advogados devem
vestir-se no trabalho. Esse modo é diferente do modo como eles
devem apresentar-se em festas. Se ele troca as roupas,
provavelmente receberá uma advertência de alguém.

“Antes de buscar o método que convém ao estudo dos fatos


sociais, é importante saber que fatos são esses assim
denominados.

18
A questão é tanto mais urgente na medida em que tal atributo é
adotado sem muita precisão, sendo empregado, no uso
corriqueiro, para designar praticamente todos os fenômenos que
se dão no âmbito da sociedade, ainda que estes não ofereçam,
além de certa generalidade, qualquer interesse social. Desse
ponto de vista, contudo, não há, por assim dizer, acontecimentos
humanos passíveis de ser considerados sociais. Todo indivíduo
bebe, dorme, come e raciocina, e a sociedade tem todo interesse
em que essas funções sejam normalmente exercidas. Se,
portanto, estes fossem fatos sociais, a sociologia não teria objeto
que lhe fosse específico e seu domínio se confundiria com o da
biologia e da psicologia.

Na realidade, porém, em toda sociedade há um grupo


determinado de fenômenos cujas características se distinguem
nitidamente daqueles estudados pelas outras ciências da
natureza.

Quando desempenho meu papel de irmão, esposo ou cidadão,


ou assumo os compromissos que firmei, cumpro deveres
definidos, fora de mim e de meus atos, no direito e nos
costumes. “Mesmo quando estes coincidem com meus
sentimentos e sinto intimamente sua realidade, esta não deixa
de ser objetiva; pois não fui eu quem os estipulei, tendo-os
recebido por intermédio da educação. Quantas vezes, aliás,
acontece de ignorarmos os detalhes das obrigações que nos
incumbem e, para conhecê-los, precisarmos consultar o Código
e os intérpretes autorizados! Da mesma forma, o fiel já encontra
as crenças e práticas de sua vida religiosa todas elas prontas ao
nascer; se existiam antes dele, é porque existem fora dele.” –
Durkheim, E. As Regras do Método Sociológico

Além de coercivos, os fatos sociais são exteriores ao individuo.


Ou seja, uma pessoa que não participa de modos de agir pensar
e sentir da sua sociedade sente que está fora do grupo. A
pressão para que ela se comporte de um determinado modo
será sentida como vindo do exterior à sua vontade. De modo
geral, a família é a primeira forma de exterioridade que nós
enfrentamos.

Por fim, fatos sociais são gerais. Isso significa que eles sempre
ocorrem a grupos e universos de pessoas. Há fatos sociais que
são mais gerais, como por exemplo, no Brasil o horário de
almoço é por volta do meio-dia. Esse fato social faz com que por
volta desse horário as pessoas cessem em seus trabalhos ou
estudos e busquem uma refeição. Há fatos sociais menos gerais
como por exemplo a prática de ir aos estádios de futebol. De
modo geral, as pessoas precisam identificar-se como torcedoras
para sentirem a vontade de ir assistir partidas do seu time.

3. Definindo o que é sociedade


19
Perceba que dados os critérios que identificam um fato social,
resta agora o que é a sociedade na visão de Durkheim. Para ele
a sociedade é uma realidade sui generis, isto é, uma realidade
objetiva, própria e independente. A sociedade não é redutível a
indivíduos agindo, mas é o fenômeno que nasce da coordenação
das ações desses indivíduos. É assim que a surge o elemento
da consciência coletiva.

“A sociedade é o mais poderoso feixe de forças físicas e morais


cujo resultado a natureza nos oferece. Em nenhuma parte,
encontra-se tal riqueza de materiais diversos levado a tal grau
de concentração. Não é surpreendente, pois, que uma vida mais
alta se desprenda dela e que, reagindo sobre os elementos dos
quais resulta, eleve-os a uma forma superior de existência e os
transforme.”

De acordo com Durkheim, as sociedades elaboram formas de


consciência coletiva que exercem efeito causal sobre seus
indivíduos. É por meio do compartilhamento dessa consciência
que o indivíduo se torna membro da sociedade. Contudo, é
natural que nos perguntemos qual o mecanismo que transmite
essa consciência na prática cotidiana. Segundo Durkheim eis o
papel das instituições.

Instituições são criações materiais ou imateriais humanas


capazes de transmitir modos de agir, pensar e sentir. Elas
conectam seres humanos ao longo do tempo e do espaço e por
isso mesmo que elas são capazes de manter a coerência de
uma sociedade em termos de formas de consciência coletiva.
Alguns exemplos de instituições são encontrados em quase
todas as civilizações: a família, a religião, o estado.

A família tem diferentes formas de apresentar-se. Há famílias


que são nucleares, pois tem pais e filhos somente. Há outras
famílias em que se reconhece somente mães e tios. Há outras
ainda que mãe, pais e avós são reconhecidos como o núcleo. O
que é curioso aqui é que o conceito de família não é um conceito
biológico, pois na sociologia ele reflete a capacidade de
estabelecer laços de parentalidade.

Outra instituição importante para Durkheim é a religião. Para ele,


a religião é um sistema de crenças e práticas relativas a coisas
sagradas, isto é, coisas pertencentes a outra ordem e proibidas.
A religião é um modo de unificar moralmente uma comunidade
e de estabelecer uma ordem social.

“O sistema de concepções não é puramente imaginário e


alucinado, pois a força moral que essas coisas despertam em
nós é real – tão real quanto as ideias que as palavras relembram
em nós após terem servido para formar essas ideias. [...] Dado
que a força religiosa não é nada mais que a força coletiva e
20
anônima do clã, e dado que isso pode ser representado na
mente na forma de um totem, o totemismo é como o corpo visível
de Deus.” – Durkheim, E. As formas elementares da vida
religiosa.

4. As funções das instituições

Durkheim foi pouco a pouco tornando-se um pensador


funcionalista. Ao longo da sua obra ele vai percebendo que
fenômenos sociais existem enquanto cumprem um papel ou
uma função na existência daquela sociedade. As instituições são
um exemplo disso. Elas transmitem formas de consciência
coletiva porque são capazes de reunir pessoas. Essa reunião de
pessoas ocorre porque há solidariedade entre elas. Nesse
sentido, Durkheim percebe que há dois modos fundamentais
dessa reunião ocorrer: a primeira é a solidariedade mecânica e
a segunda é a orgânica.

A solidariedade mecânica é aquela que ocorre em função das


semelhanças entre indivíduos de um grupo. Ela nasce da
identidade e do compartilhamento de tarefas em um grupo. Ela
é comum em sociedade mais primitivas onde todos os homens
têm funções semelhantes. Já a solidariedade orgânica é
diferente. Ela é comum em sociedades mais complexas, pois é
um modo de solidariedade fundado na diferença e na
dependência mútua. A solidariedade orgânica permite pensar
em funções complementares, onde diferentes homens cumprem
papeis diferentes e por isso mesmo precisam uns dos outros.

Perceba que as instituições podem variar sua forma de


solidariedade ao longo do tempo. A família patriarcal tem uma
solidariedade bastante orgânica, pois o homem cumpre papeis
muito diferentes da mulher. Nas sociedades patriarcais, os
homens trabalham fora do lar, envolvem-se em questões
públicas e tem uma liderança dentro de casa. Já nas novas
sociedades isso se perdeu. Podemos observar mulheres
desempenhando papeis semelhantes aos dos homens,
disputando espaço no mercado de trabalho, deixando os filhos
aos cuidados do companheiro, vivenciando situações sociais
semelhantes. Desse modo, podemos pensar que a família
passou de uma organização orgânica para uma mais mecânica,
pois ambos têm agora as mesmas atribuições nessa instituição.

5. Anomia
21
Durkheim também se interessou por compreender situações em
que uma sociedade perdia a capacidade de transmitir suas
formas de consciência coletiva. Tais estados ocorriam quando
suas instituições entravam no que ele chamou de estado de
anomia.

A anomia é um estado de desregramento social. Nela as


pessoas perdem a conexão com o passado e deixam de ter uma
referência institucional. Esses estados ocorrem durante guerras,
epidemias ou crises econômicas.

É nesse sentido que Durkheim buscou mostrar que o suicídio


pode ser um fenômeno social. Em sociedades onde as
instituições deixam de cumprir sua função social, as pessoas
podem vir a cometer suicídio diante da falta de caminhos e
amparo que a sociedade possa fornecer.

Para Durkheim há quatro tipos de suicídios com causas sociais.


O primeiro tipo é o suicídio egoísta, geralmente causado pela
falta de integração social. Há o suicídio altruísta, onde a pessoa
que tira a própria vida o faz na busca de cumprir com alguma
obrigação com o grupo. Há também o suicídio anômico que já
falamos, onde o indivíduo não encontra regulação social
suficiente para épocas de crise social. E há, por fim, o suicídio
fatalista, em que indivíduos são colocados baixo regras muito
estritas ou expectativas muito altas.

22
4. Max Weber
1. Contexto

Max Weber (1864 – 1920) é o último sociólogo da tríade que


compõe a sociologia clássica. Seus estudos variaram entre a
sociologia da religião, a ciência política e a sociologia da cultura.
Ele deu aula em quatro grandes universidades alemãs, ajudou
nas negociações do Tratado de Versalhes, após a primeira
guerra, e ajudou a redigir a constituição da república de Weimar.

2. A Sociologia Compreensiva

Sua obra junto com Alfred Schutz inaugura o que ficou


conhecido como sociologia compreensiva. Weber e Schutz eram

23
críticos do modelo de Durkheim que buscava nas ciências da
natureza a inspiração para compreender as dinâmicas sociais.
Ademais, não acreditavam que leis sociológicas devessem ser
buscadas, pois elas não eram a forma correta de compreender
fenômenos sociais. Schutz chama a atenção para o fato de que
as ciências sociais têm uma natureza única – nela a importância
da descoberta afeta a vida do cientista e do próprio objeto de
estudo.

“O mundo da natureza, segundo é explorado pelo cientista


natural, nada “significa” para as moléculas, átomos e elétrons aí
existentes. O campo de observação do cientista social, no
entanto, ou mais precisamente a realidade social, tem um
significado específico e uma estrutura de relevâncias para os
seres humanos que vivem, agem e pensam dentro dele. Através
de uma série de construções do senso comum, eles previamente
selecionaram e interpretaram esse mundo que vivenciam como
a realidade de suas vidas diárias. São esses seus objetos de
pensamento que determinam seu comportamento, motivando-
o.” – Schutz, A. Da Unidade das Ciências.

Assim, a sociologia deveria proceder de outro modo. Ela deve


focar-se na ação humana. As ações humanas são as unidades
básicas de sentido, pois sempre é possível buscar compreender
a finalidade de uma ação desde que ela seja voluntária.
Acontece que em um nível individual é possível compreender o
sentido de nossas ações, mas quando falamos de uma
coletividade? É necessário um método que permita buscar a
compreensão do sentido coletivo das ações humanas.

“O fato de que, no pensamento do senso comum, tomamos


como pressuposto o nosso conhecimento real ou potencial do
significado das ações humanas e de seus produtos é, assim
penso eu, precisamente o que os cientistas querem expressar
quando falam de compreensão ou Verstehen como uma técnica
para lidar com as coisas humanas. Verstehen é, pois,
primeiramente, não um método usado pelo cientista social, mas
a forma particular de experiência através da qual o pensamento
do senso comum toma conhecimento do mundo social e
cultural.”

É aqui que o método quantitativo servirá ao sociólogo. Segundo


Weber, o sociólogo parte da realidade social para compreender
como ela foi construída por indivíduos em suas ações concretas.
Por exemplo, se avaliamos uma série de estudantes que são
extremamente dedicados competirem por uma vaga na
universidade, então perceberemos que a dificuldade de
conquistar a vaga se dá pela medida exata do esforço que eles
fazem. Ou seja, uma vaga em uma universidade não tem uma
dificuldade prefixada. A dificuldade surge como efeito das ações
individuais dos candidatos e o perfil de grupo social que eles
24
compõem nasce a partir dessa característica. Analogamente,
Weber deseja compreender fenômenos sociais por meio do
entendimento de movimentos sociais dotados de sentido
coletivo. Compreender o significado das ações é o objetivo do
método compreensivo de Weber.

3. Os Tipos Ideais

Uma consequência que Weber se permite tirar da busca pela


compreensão do sentido das ações é a formação de tipos ideais.
Esse conceito nasce do fato de que as ações de um determinado
grupo, quando tem um sentido comum, faz com que esse grupo
em alguma medida compartilhe trações mais ou menos
homogêneos de caráter, conjunto de valores etc.

“No que se refere à investigação, o conceito do tipo ideal propõe-


se a formar o juízo de atribuição. Não é uma “hipótese”, mas
pretende apontar o caminho para a formação de hipóteses.
Embora não constitua uma exposição da realidade, pretende
conferir a ela meios expressivos unívocos. É, portanto, a “ideia”
da organização moderna e historicamente dada da sociedade
numa economia de mercado, ideia essa que evolui de acordo
com os mesmos princípios lógicos que serviram, por exemplo,
para formar a da “economia urbana” da Idade Média à maneira
de um conceito “genético”. “Não é pelo estabelecimento de uma
média dos princípios econômicos que realmente existiram em
todas as cidades examinadas, mas igualmente pela construção
de um tipo ideal que se forma o conceito de “economia urbana”.

Obtém-se um tipo ideal mediante a acentuação unilateral de


um ou vários pontos de vista e mediante o encadeamento de
grande quantidade de fenômenos isoladamente dados, difusos
e discretos, que se podem dar em maior ou menor número ou
mesmo faltar por completo, e que se ordenam segundo os
pontos de vista unilateralmente acentuados, a fim de se formar
um quadro homogêneo de pensamento.”

Esses tipos ideais são importantes ferramentas sociológicas,


pois permitem compreender um grupo social em termos de visão
de mundo, finalidade e dinâmica interna. Tanto é assim que
Weber viu a possibilidade de tipificar tipos de ação a partir dos
casos estudados por ele em sua obra mestra A Ética Protestante
e o Espírito do Capitalismo.

4. Os tipos de ação e de dominação

Weber irá perceber que as ações sociais podem ser


categorizadas em três tipos. As ações podem ser de estilo
racional, tradicional ou afetivo. Estas formas de ação, por sua
vez, darão origem a três formas de dominação. Weber
acreditava que na medida que ações sociais formatavam grupos
25
culturais diversos, era natural que as formas de poder imitassem
essas formas de ação. Assim, as formas de dominação são as
legais, as tradicionais e as carismáticas.

As ações racionais se caracterizam por buscarem uma


finalidade a partir da maximização da utilidade. Elas podem
buscar os meios mais eficazes para realizam um fim ou podem
ater-se a um valor e buscar os meios coerentes para manter-se
fiel a esse valor. Em qualquer um dos casos ela sempre se
baseia no cálculo e na capacidade preditiva.

“Dominação legal em virtude do estatuto. Seu tipo mais puro é a


dominação burocrática. Sua ideia básica é: qualquer direito pode
ser criado e modificado mediante um estatuto sancionado
corretamente quanto à forma. A associação dominante é eleita
ou nomeada, e ela própria e todas as suas partes são empresas.
Designa-se como “serviço” uma empresa, ou parte dela,
heterônoma e heterocéfala [isto é, cujos regulamentos e órgãos
executivos não são definidos apenas internamente a ela mas
pela sua participação em formas de associação mais amplas,
portanto não autônoma nem autocéfala]. O quadro
administrativo consiste em funcionários nomeados pelo senhor,
e os subordinados são membros da associação (“cidadãos”,
“camaradas”). [...] Obedece-se não à pessoa em virtude de seu
próprio direito, mas à regra estatuída, que estabelece ao mesmo
tempo a quem e em que medida se deve obedecer.” – Weber,
M. Os Três tipos de dominação legítima.

As ações tradicionais são essencialmente imitativas. Elas


geralmente não contêm um componente reflexivo e buscam
manter uma certa visão de mundo intacta, mesmo que essa
forma de ação seja pouco eficaz.

“Dominação tradicional em virtude da crença na santidade das


ordenações e dos poderes senhoriais de há muito existentes.
Seu tipo mais puro é o da dominação patriarcal. A associação
dominante é de caráter comunitário. O tipo daquele que ordena
é o “senhor”, e os que obedecem são “súditos”, enquanto o
quadro administrativo é formado por “servidores”. Obedece-se à
pessoa em virtude de sua dignidade própria, santificada pela
tradição: por fidelidade. ” – Weber, M. Os Três tipos de
dominação legítima.

Ação individual com sentido Ação social com sentido

26
Por fim, temos as ações afetivas. Estas têm um grau de
irracionalidade e tendem a ter como motor afetos, paixões ou
emoções na sua raiz. Elas são encontradas em alto grau de
subjetividade e tendem a não calcular consequências.

“Dominação carismática em virtude de devoção afetiva à pessoa


do senhor e a seus dotes por graça (carisma) e, particularmente:
a faculdades mágicas, revelações ou heroísmo, poder intelectual
ou de oratória. O sempre novo, o extra-cotidiano, o inaudito e o
arrebatamento emotivo que provocam constituem aqui a força
de devoção pessoal. Seus tipos mais puros são a dominação do
profeta, do herói guerreiro e do grande demagogo. A associação
dominante é de caráter comunitário, na comunidade ou no
séquito. O tipo que manda é o líder. O tipo que obedece é o
“apóstolo”. Obedece-se exclusivamente à pessoa do líder por
suas qualidades excepcionais e não em virtude de sua posição
estatuída ou de sua dignidade tradicional; e, portanto, também
somente enquanto essas qualidades lhe são atribuídas, ou seja,
enquanto seu carisma subsiste. Por outro lado, quando é
“abandonado” pelo seu deus ou quando decaem a sua força
heroica ou a fé dos que creem em suas qualidades de líder,
então seu domínio também se torna caduco.” – Weber, M. Os
Três tipos de dominação legítima.

5. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo

O livro A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo é o livro


mais influente na história da sociologia. A obra busca uma
compreensão acerca do surgimento do capitalismo que foge da
visão marxista predominante. Segundo Weber, o capitalismo é o
produto de uma mudança cultural e não da queda do sistema
feudal de produção. De acordo com o método interpretativo, foi
a reforma protestante o motor da modificação que levou à
formação do capitalismo nos países do norte europeu.

Ele inicia seu livro com uma observação estatística.

“Basta uma vista de olhos pelas estatísticas ocupacionais de um


país pluriconfessional para constatar a notável frequência de um
fenômeno por diversas vezes vivamente discutido na imprensa
e na literatura católicas bem como nos congressos católicos da
Alemanha: o caráter predominantemente protestante dos
proprietários do capital e empresários, assim como das camadas
superiores da mão de obra qualificada, notadamente do pessoal
de mais alta quali- ficaçao ̃ técnica ou comercial das empresas
modernas.”– Weber, M. A Ética Protestante e o Espírito do
Capitalismo

Segundo o autor, isso teria se dado porque a Reforma


Protestante instaurou uma série de desafios na mentalidade dos
novos cristãos. Em primeiro lugar, a recusa à tese de que por
27
meio de ações seria possível “conquistar” seu lugar ao céu.
Dado que Martinho Lutera criticava a venda de indulgências, não
havia nada, nenhum esforço terreno que seria suficiente para
conquistar a salvação da alma.

Em segundo lugar, Deus já saberia, em sua eterna sabedoria,


quais as almas que iriam acompanhá-lo no céu. Por isso mesmo,
o calvinismo cunhou a teoria da predestinação – isto é, a ideia
de que as almas que deus almeja salvar estarão sempre já
salvas ou já danadas. Contudo, diante desse cenário, os fieis
desejavam ao menos obter algum sinal em vida sobre a sua
predestinação. Foi assim que nasceu a teoria dos sinais e da
vocação.

A teoria da vocação é a crença de que Deus dá aos seus salvos


um dom que deve ser exercido. A vocação encontrada é um sinal
de graça e deve ser exercitado a ponto de ser possível descobrir
sinais da salvação. Uma pessoa que trabalha de modo dedicado
e racional encontrará no trabalho os sinais de que foi salva e
poderá confirmar se sua alma se encontra entre os
predestinados.

O mundo que nasce a partir da reforma protestante é cada vez


mais um mundo dominado pelo trabalho como forma de
construção da identidade. O esforço, a racionalidade, a
dedicação e o ascetismo tornam-se características dos cristãos
protestantes da Alemanha, enquanto um mundo com traços
medievais e presos às tradições torna-se cada vez mais
esquecido. O mundo torna-se estranho para os parâmetros
católicos.

Se quisermos chamar de “estranhamento do mundo” essa


seriedade e o forte predomínio de interesses religiosos na
conduta de vida, os calvinistas franceses foram então, e são,
28
pelo menos tão estranhos ao mundo quanto, por exemplo, os
católicos do norte da Alemanha, para os quais seu catolicismo é
indubitavelmente um sentimento tão fundo do coraçao ̃ como
para nenhum outro povo na face da terra. E ambos se afastam,
na mesma direçao ̃ , do partido religioso dominante: dos católicos
da França, tão contentes da vida em suas camadas inferiores e
franca- mente hostis à religião das camadas superiores, e dos
protestantes da Alemanha, hoje absorvidos na vida mundana
dos negócios [...] – Weber, M. A Ética Protestante e o Espírito
do Capitalismo

O desencantamento com o mundo é uma situação na qual a


premissa de que o homem poderia dominar toda a natureza pelo
cálculo não necessariamente se reflete em melhoria das
condições de vida.

Diante disso, um tipo ideal surge. Eis o tipo-ideal capitalista


alemão: um homem humilde que não toma a sua riqueza como
algo seu, mas como mera prova da eleição divina.

“O tipo ideal do empresário capitalista tal como representado


entre nós alemães haja vista alguns exemplos eminentes, não
tem nenhum parentesco com esses ricaços de aparência mais
óbvia ou refinada, tanto faz. Ele se esquiva à ostentaçao ̃ e a
despesa inútil, bem como ao gozo consciente do seu poder, e
sente-se antes incomodado com os sinais externos da
deferência social de que desfruta. [...] De sua riqueza “nada tem”
para si mesmo, a não ser a irracional sensaçao ̃ de “cumprimento
do dever” – Weber, M. A Ética Protestante e o Espírito do
Capitalismo

29
5. Gilberto Freyre
1. Contexto

A obra de Gilberto Freyre Casa Grande & Senzala é a obra inicial


da sociologia brasileira. É ela que traça a questão fundamental
que perseguimos inconscientemente desde a independência do
Brasil em 1822: quem somos nós brasileiros?

A escrita de Casa Grande deu-se em um momento em que era


necessário romper com teorias evolucionistas que
sedimentavam uma visão determinista e racista sobre o atraso
brasileiro. Políticos, Intelectuais e Médicos desejavam, ao final
do século XIX, ingressar o Brasil em uma política de
branqueamento, pois após o fim da escravidão a falta de
assistência social dada aos negros tornava suas presenças um
problema social. A negligência do estado brasileiro jogava-os na
miséria e no esquecimento de tal modo que os presídios e casas
de correção passavam pouco a pouco a ser habitadas por
pessoas negras.

Foram personagens como Nina Rodrigues (1862 – 1906) que


incentivaram tais políticas. O médico maranhense irá
desenvolver estudos em criminologia biológica, um ramo da
criminologia desenvolvido por Cezare Lombroso que acreditava
ser possível diagnosticar um delinquente nato, isto é, alguém
que nasce com a propensão ao crime. Obviamente, os estudos
desenvolvidos ao longo de uma população carcerária insipiente
30
no Brasil confirmariam um dado absurdo para os padrões atuais:
negros tendem a cometer crimes por uma propensão biológica
justificada pela sua raça. Na época, acreditava-se que havia um
componente morfopsicomoral do delinquente, evidenciados na
anatomia craniana, na psicologia e na psicopatologia de um
criminoso. Essas características eram buscadas para que fosse
possível emparelhá-las com dados relativos à raça. O médico
defendeu que havia diferentes graus de civilização entre as
raças, como os demais cientistas, mas tentou mostrar que havia
uma anterioridade do branco, do negro e do vermelho. Essas
raças eram chamadas primitivas e se contrapunham às raças
cruzadas. As raças cruzadas seriam os mulatos, mamelucos ou
caboclos, os cafuzos e os pardos.

Tais ideias levavam a conclusão de que para se modernizar o


Brasil deveria modificar a “presença excessiva de pessoas de
pele negras”. Contudo, será justamente contra essa visão que
Gilberto Freyre escreve seu livro.

Ao estudar em Nova Iorque, na universidade de Columbia,


Gilberto Freyre entrou em contato com as ideias de Franz Boas.
Boas era um etnólogo que fundou o culturalismo na
Antropologia. Nesse mesmo sentido, Freyre irá fazer uma
investigação acerca das raízes da cultura brasileira.

2. Casa Grande & Senzala

O livro Casa Grande é um estudo das raízes da cultura brasileira


a partir de evidências coletadas na vida cotidiana da família
patriarcal. Freyre deseja compreender quem somos nós a partir
do entendimento dos hábitos alimentares, formas de convívio,
ocupação dos espaços e até mesmo a partir da sexualidade.

31
A tese central do livro é que o Brasil é uma democracia racial,
isto é, o Brasil é o país do encontro de três raças que se
misturaram cultural e geneticamente. Para demonstrar como
essas três vertentes se cruzam, Freyre dividiu seu livro em três
momentos principais: a descrição dos brancos portugueses, dos
indígenas da américa e dos negros africanos.

A miscigenação que largamente se praticou aqui corrigiu a


distância social que de outro modo se teria conservado enorme
entre a casa-grande e a mata tropical; entre a casa-grande e a
senzala. O que a monocultura latifundiária e escravocrata
realizou no sentido de aristocratização, extremando a sociedade
brasileira em senhores e escravos, com uma rala e insignificante
lambujem de gente livre sanduichada entre os extremos
antagônicos, foi em grande parte contrariado pelos efeitos
sociais da miscigenação. - Freyre, G. Casa-grande & senzala.

3. Os Portugueses

Gilberto Freyre descreve os portugueses como um povo dado


ao contato cultural. Segundo o autor, a cultura portuguesa do
período colonial havia se modificado muito em função dos
constantes contatos com povos árabes e subsaarianos. Ele
lembra que por duzentos anos os portugueses tiveram
entrepostos comerciais na África e o contato com a Índia levara
os portugueses a modificarem suas convicções culturais
enormemente.

“Formou-se na América tropical uma sociedade agrária na


estrutura, escravocrata na técnica de exploraçao ̃ econômica,
híbrida de índio - e mais tarde de negro - na composiçaõ . Socie-
dade que se desenvolveria definida menos pela consciência de
raça, quase nenhuma no português cosmopolita e plástico, do
que pelo exclusivismo religioso desdobrado em sistema de
profilaxia social e política.” - Freyre, G. Casa Grande & Senzala

Para Freyre, o português seria o menos europeu dos povos e


dera cores africanas a inúmeras instituições europeias. Um
historiador da época chamado Audrey Bell, por exemplo,
descreve os portugueses como o povo que personifica o
barroco, pois o passado cristão contrastava com a oleosidade e
maleabilidade da absorção da africanidade.

A singular predisposição do português para a colonização


híbrida e escravocrata dos trópicos, explica-a em grande parte o
seu passado étnico, ou antes, cultural, de povo indefinido entre
a Europa e a África. Nem intransigentemente de uma nem de
outra, mas das duas. A influência africana fervendo sob a
européia e dando um acre requeime à vida sexual, à
alimentação, à religião; o sangue mouro ou negro correndo por
uma grande população brancarana quando não predominando
32
em regiões ainda hoje de gente escura; o ar da África, um ar
quente, oleoso, amolecendo nas instituições e nas formas de
cultura as durezas germânicas; corrompendo a rigidez moral e
doutrinária da Igreja medieval; tirando os ossos ao cristianismo,
ao feudalismo, à arquitetura gótica, à disciplina canônica, ao
direito visigótico, ao latim, ao próprio caráter do povo. A Europa
reinando, mas sem governar; governando antes a África -
Freyre, G. Casa Grande & Senzala

4. Os Indígenas

A utilização do termo indígena já mostra o quanto a pluralidade


cultural encontrada aqui não foi respeitada na análise de Freyre.
Os povos indígenas eram muitos e contribuíram de diferentes
modos nas tradições do Brasil atual, contudo eles são vistos por
Freyre como contribuintes menores para a civilização brasileira.
Para o autor, tratava-se de uma cultura ainda vivenciando sua
infância, o que mostra que ainda havia resquícios de
evolucionismo no seu pensamento.

“De modo que não é o encontro de uma cultura exuberante de


maturidade com outra já adolescente, que aqui se verifica; a
colonizaçao ̃ europeia vem surpreender nesta parte da América
quase que bandos de crianças grandes; uma cultura verde e
incipiente; ainda na primeira dentiçao ̃ ; sem os ossos nem o
desenvolvimento nem a resistência das grandes semi-
civilizaçoe
̃ s americanas.” - Freyre, G. Casa Grande & Senzala.

33
Na cultura alimentar o hábito de comer o caju e a mandioca são
extremamente importantes. Na área de cultura material, o uso
de fibras na confecçao
̃ de cestos, a arte em cerâmica é também
muito importante até hoje. Há inúmeros casos de adaptaçao ̃ da
vida indígena às necessidades de portugueses e negros, mas
muito dessa contribuição ainda está por ser reconhecida. Por
outro lado, no que diz respeito à miscigenaçao ̃ genética, as
mulheres indígenas são reconhecidas como parte integrante da
família brasileira – elas, em suas práticas tradicionais,
experiências e utensílios irão legar para a civilizaçao
̃ tropical
marcas indeléveis.

“Organizou-se uma sociedade cristã na superestrutura, com a


mulher indígena, recém- batizada, por esposa e mãe de família;
e servindo-se em sua economia e vida doméstica de muitas das
tradiçoe
̃ s, experiências e utensílios da gente autóctone.” -
Freyre, G. Casa Grande & Senzala

5. Os africanos

A contribuição Africana para a cultura brasileira é densamente


descrita por Gilberto Freyre. O autor acredita que a partir da
análise do cotidiano das famílias patriarcais era possível
vislumbrar diferenças na escravidão brasileira
comparativamente à escravidão americana.

O menos cruel nas relaçoe ̃ s com os escravos. É verdade que,


em grande parte, pela impossi- bilidade de constituir-se em
aristocracia europeia nos trópicos: escasseava-lhe para tanto o
capital, senão em homens, em mulheres brancas. Mas
independente da falta ou escassez de mulher branca o
português sempre pendeu para o contato voluptuoso com
mulher exótica. Para o cruzamento e miscigenaçao ̃ . Tendência

34
que parece resultar da plasticidade social, maior no português
que em qualquer outro colonizador europeu. – Freyre, G. Casa
Grande & Senzala

Freyre acredita que essa situação de maior tolerância se dava


em função da maior liberdade nas relações sexuais.
Portugueses nunca se restringiram a ter contato sexual somente
com mulheres europeias. Primeiramente porque o concubinato
foi uma das tradições herdadas por portugueses em seu contato
com árabes. Além disso, há casos de missões de povoamento
contato sexual teria criado uma maior paisagem social aqui no
Brasil, pois haveria espaço para formas de jogos de poder mais
diversos nessa sociedade. Ora, de um lado o cristianismo
pressiona para o reconhecimento da paternidade, de outro, a
promiscuidade e o desejo afloram a culpa. Foi desse modo que
inúmeras figuras sociais brotaram nos interstícios da sociedade
colonial.

Esses hábitos, além de horizontalizarem relações de poder,


terminam por criar hierarquias internas à condição de escravo.
Nem todo escravo estará no “eito” trabalhando de sol a sol e
sofrendo violência. Haverá inúmeras posições que podem ser
ocupadas por escravos dentro da chamada Casa Grande.
Haverá espaço para mucamas, sinhamas, molecas e meninos
de brincar.

Todo brasileiro, mesmo o alvo de cabelo louro, traz na alma,


quando não na alma e no corpo - há muita gente de jenipapo ou
mancha mongólica pelo Brasil - a sombra, ou pelo menos a pinta,
do indígena ou do negro. No litoral, do Maranhão ao Rio Grande
do Sul e em Minas Gerais, sente-se a influência direta, ou vaga
e remota, do africano.

35
Na ternura, na mímica excessiva, no catolicismo em que se
deliciam nossos sentidos, na música, no andar, na fala. no canto
de ninar menino pequeno, em tudo que é expressão sincera de
vida. Trazemos quase todos a marca da influência negra. Da
escrava ou sinhama que nos embalou, que nos deu de mamar.
Que nos deu de comer, ela própria amolengando na mão o bolão
de comida. Da negra velha que nos contou as primeiras histórias
de bicho e de mal-assombrado. Da mulata que nos tirou o
primeiro bicho-de-pé de uma coceira tão boa. Da que nos iniciou
no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da cama-de-vento, a
primeira sensaçao
̃ completa de homem. Do moleque que foi o
nosso primeiro companheiro de brinquedo. Freyre, G. Casa
Grande & Senzala

Freyre irá então perceber que o convívio em pontos estratégicos


da Casa Grande terminou por influenciar na alimentação, nos
mitos e lendas, assim como no comportamento sexual do
brasileiro.

Na alimentação há diferenças gigantes no que diz respeito ao


modo como a culinária negra entrou para o cardápio nacional.
Nos EUA, a culinária negra é conhecida como Soul Food. Trata-
se de comida da alma porque é a comida que fornece energia
para o trabalho pesado. Tal comida é reconhecidamente comida
afro-americana e não é tratada como comida nacional. Já no
Brasil, os pratos da comida afro-brasileira foram elevados a
pratos nacionais. É o caso da feijoada, que existe no Brasil como
prato nacional e nos EUA como prato afro-americano. Qual a
diferença? Gilberto Freyre tende a ver isso como um sinal de
integração cultural, mas a crítica recente entende que isso são
estratégias de apagamento.

Do mesmo modo, a presença negra na vida sexual do patriarca


causou uma tendência no comportamento sexual brasileiro que
será futuramente tematizado quando falarmos do feminismo
negro no Brasil. A mulher negra foi durante séculos tratada como
objeto sexual, ser hipersexualizado e sem voz. Isso criou
dicotomias observáveis nos costumes do brasileiro em tratar a
família como um lugar sem realização sexual e a vida com as
amantes como o verdadeiro lugar de realização da
masculinidade. Isso, no entanto, formou o que chamamos de
vilania masculina – o homem é ser dividido, onde o amar é sem
sexo e o sexo é sem amar.

É verdade que as condiçoe ̃ s sociais do desenvolvimento do


menino nos antigos engenhos de açuć ar do Brasil, como nas
plantaçoẽ s ante-bellum da Virgínia e das Carolinas - do menino
sempre rodeado de negra ou mulata fácil - talvez expliquem por
si sós, aquela predileçao
̃ . Conhecem-se casos no Brasil não só

36
de predileçao ̃ , mas de exclusivismo: homens brancos que só
gozam com negra. De rapaz de importante família rural de
Pernambuco conta a tradiçao ̃ que foi impossível aos pais
promoverem-lhe o casamento com primas ou outras moças
brancas de famílias igualmente ilustres. Só queria saber de
molecas. Outro caso, referiu-nos Raoul Dunlop de um jovem de
conhecida família escravocrata do Sul: este para excitar-se
diante da noiva branca precisou, nas primeiras noites de casado,
de levar para a alcova a camisa úmida de suor. impregnada de
budum. da escrava negra sua amante. Casos de exclusivismo
ou fixaçao
̃ . Mórbi- dos, portanto, mas através dos quais se sente
a sombra do escravo negro sobre a vida sexual e de família do
brasileiro. – Freyre, G. Casa Grande & Senzala

6. A Democracia Racial

Freyre acreditava que a democracia racial era um trunfo para o


Figure 3: Ama de leite do menino Eugen futuro. Um país que tivesse pacificadas as relações de raça teria
Keller (1874)
menos dificuldades em um futuro globalizado que já se
desenhava no capitalismo do início do século XX. Tal país, ficou
cunhado nas palavras de Stefan Zweig como o país do futuro –
um lugar para ser feliz e ser aceito. É sobre esse legado ou
projeto de nação que iremos conversar nos próximos capítulos.

37
6. Sérgio Buarque
de Holanda
1. Contexto

Sérgio Buarque de Holanda (1902 – 1982) é autor do livro


Raízes do Brasil. Esta obra é certamente uma das mais potentes
em povoar o imaginário brasileiro ao lado de Casa Grande &
Senzala, de Gilberto Freyre, pois construiu o mito da herança
maldita e o mito da cordialidade brasileira. Raízes do Brasil foi
escrito e publicado no período da ascensão de Getúlio Vargas.
Nesse período, o nazismo e o fascismo traziam uma forte
reflexão sobre quais os limites saudáveis do nacionalismo, ao
passo que o próprio Getúlio Vargas elaborava uma forma de
política em que a aliança com o liberalismo americano era
importante. Raízes do Brasil é, contudo, uma obra muito mais
aguda do que seus mitos fizeram dela e por isso vale a pena
deter-se em seus argumentos principais.

Metodologicamente, Holanda se filiou aos estudos culturais de


Weber. Sua busca será por compreender o Brasil e o brasileiro
a partir dos tipos de ação e dos tipos ideais. Para isso, ele irá
traçar uma genealogia do caráter do brasileiro a partir dos
portugueses.

38
A tentativa de implantaçao ̃ da cultura europeia em extenso
território, dotado de condiçoe ̃ s naturais, se não adversas,
largamente estranhas à sua tradiçao ̃ milenar, é, nas origens da
sociedade brasileira, o fato dominante e mais rico em
consequências. Trazendo de países distantes nossas formas de
convívio, nossas instituiçoẽ s, nossas ideias, e timbrando em
manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e
hostil, somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra. [...] o
certo é que todo o fruto de nosso trabalho ou de nossa preguiça
parece participar de um sistema de evoluçao ̃ próprio de outro
clima e de outra paisagem. - Holanda, S.B. Raízes do Brasil.

2. A tese da modernidade

A primeira tese de Sérgio Buarque de Holanda nasce do


comparativo entre instituições da modernidade europeia e
instituições brasileiras. A modernidade europeia viu nascer por
meio da ação racional, instituições que se caracterizam pela
racionalidade, pelo cálculo, pela previsão e domínio burocrático
do âmbito social e político. Na Europa, o senso republicano de
respeito às leis e de cuidado com a coisa pública promoveu um
ambiente de profunda consideração do coletivo sobre o
individual. Por outro lado, a modernidade brasileira viu não
ocorreu do mesmo modo. A forma principal de ação que teria
varrido a civilização portuguesa dos trópicos foi a afetiva
permeada por altas doses de irracionalidade. As instituições
seriam profundamente marcadas pela falta de objetividade, pela
ausência de planejamento e por relações de domínio
carismático.

Holanda planeja mostrar, por meio do mapeamento da ação de


inúmeros tipos ideais portugueses como o tipo ideal brasileiro
nasceu. Por esse motivo, passamos à análise das ações desses
tipos.

Na verdade, a ideologia impessoal do liberalismo democrático


jamais se naturalizou entre nós. Só assimilamos efetivamente
esses princípios até onde coincidiram com a negação pura e
simples de uma autoridade incomoda, confirmando nosso
instintivo horror às hierarquias e permitindo tratar com
familiaridade os governantes. - Holanda, S.B. Raízes do Brasil.

3. O Fidalgo

Sérgio Buarque de Holanda percebe que o português que


desembarca nas terras brasileiras tem alguns hábitos que
contrastam com a realidade social dos países do norte europeu.
Em primeiro lugar, o senso de individualidade contrasta com a
identidade grupal e o senso de nacionalismo dos alemães e
franceses. O português não se apaga e não se dobra diante de
instituições e quando chega no Brasil, cria um falso
39
pertencimento à nobreza para justificar seus mandos e
demandos. Holanda diz que era comum que o tráfego entre
capitanias hereditárias fosse taxado para aqueles comerciantes
e traficantes que quisessem trafegar dentro dos territórios.
Contudo, quando capitães e outras pessoas de maior
ranqueamento social cruzavam os limites de capitanias era
comum que apresentassem sua filiação, seus relacionamentos
pessoais e passado como um subterfúgio para conquistar
favores. Desse modo, a américa portuguesa apresentou desde
sempre uma forte presença de relações personalistas que
prejudicavam o fortalecimento das instituições e o seu
funcionamento objetivo.

Figure 4: Fidalgo portugues com a medalha da ordem de cristo

Holanda fala-nos de como a ausência do senso de dever e a


presença do senso de obediência cega se criaram neste país. O
senso de dever é aquele que aparece no respeito às instituições,
na compreensão de que as pessoas não têm privilégios diante
do tratamento isonômico. Já o senso de obediência cega brota
neste país justamente porque a busca do privilégio pessoal faz
com que os laços pessoais sejam mais fortes que a frieza da lei
e das instituições.

“Não era fácil aos detentores das posiçoe ̃ s públicas de


responsabilidade, formados por tal ambiente, compreenderem a
distinçaõ fundamental entre os domínios do privado e do público.
[...] Para o funcionário “patrimonial” , a própria gestão política
apresenta-se como assunto de seu interesse particular; as
funçoẽ s, os empregos e os benefícios que deles aufere
relacionam-se a direitos pessoais do funcionário e não a
interesses objetivos, como sucede no verdadeiro Estado
burocrático, em que preva- lecem a especializaçao ̃ das funçoẽ s
40
e o esforço para se assegurarem garantias jurídicas aos
cidadãos. A escolha dos homens que irão exercer funçoe ̃ s
públicas faz-se de acordo com a confiança pessoal que
mereçam os candidatos, e muito menos de acordo com as suas
capacidades próprias. Falta a tudo a ordenaçao ̃ impessoal que
caracteriza a vida no Estado burocrático.” - Holanda, S.B. Raízes
do Brasil.

4. O Aventureiro

O aventureiro é um tipo ideal que nasce do espírito que as


navegações incutiram no português. As navegações criaram
uma geração de homens destemidos e com anseios de
enriquecimento. Lançar-se ao mar e abandonar a família era
algo comum na Lisboa dos anos 1500. Foi assim que nasceu um
homem com anseios de enriquecimento rápido e empreendedor.

O homem europeu do norte estava habituado a criar sua fortuna


por meio do trabalho e do encontro com a vocação. Weber fala-
nos da busca pela vocação como uma missão religiosa. O
trabalho é o ponto central de uma identidade e de uma visão de
mundo onde o mérito passa a ser o valor fundamental.

Uma consequência interessante desse espírito aventureiro foi a


aversão ao trabalho. Dado que portugueses desde o início
utilizaram trabalho escravo, seja indígena ou africano, a imagem
do trabalho como um esforço lucrativo não esteve associada ao
espírito brasileiro tal como esteve no europeu. O trabalho é coisa
“que não vai pra frente” na visão do aventureiro.

Figure 5: suposto desembarque de Pedro Álvares Cabral

Um fato que não se pode deixar de tomar em consideraçao


̃ no
exame da psicologia desses povos é a invencível repulsa que
41
sempre lhes inspirou toda moral fundada no culto ao trabalho.
[...] Uma digna ociosidade sempre pareceu mais excelente, e até
mais nobilitante, a um bom português, ou a um espanhol, do que
a luta insana pelo pão de cada dia. - Holanda, S.B. Raízes do
Brasil.

5. A Herança Rural

Um dos traços fundamentais do caráter do brasileiro foi


produzido pela herança rural. Inúmeros portugueses vindos para
cá trouxeram consigo um estilo de vida forjado no campo
português. O mundo colonial brasileiro será agrário dedicado ao
plantio de cana e, posteriormente, dedicado ao café. Holanda
acredita que o perfil agrário brasileiro contrasta com o perfil
urbano europeu. No mundo camponês é possível perceber uma
tendencia maior ao conservadorismo – mundo cíclico, ligado à
estabilidade do campo e do contato com a natureza.

Além disso, o mundo urbano brasileiro, ainda incipiente na


década de 30 em que o livro foi escrito, demonstrava ser
enormemente dependente do campo. A elite urbana brasileira
tinha o campo como seu apêndice ineliminável, pois
profissionais liberais aqui tinham uma visão de mundo
conservadora. Desse modo, o mundo agrário brasileiro foi
determinante para o fracasso da modernidade na civilização dos
trópicos portugueses.

Figure 6: Engenho de Açucar do Nordeste, 1816

6. O Semeador

42
Por fim, uma das características que o autor elenca como sendo
também efeito dos tipos ideais que aqui aportaram é observável
na ocupação do espaço. Segundo Holanda, o espaço brasileiro
não foi ocupado de modo racional e planejado. Não houve aqui
uma burocracia capaz de sistematizar e organizar atividades
econômicas, militares e de povoamento. A profunda liberdade,
organicidade e naturalidade são as marcas da ocupação do
espaço. Jogos de alianças com tribos nativas, atividades
econômicas que brotavam ao acaso, movimentos migratórios
sazonais que cruzavam o continente traficando gado e escravos.
Além disso, missões jesuíticas penetravam os territórios além do
Tratado de Tordesilhas. Tudo isso foi a marca de um espaço que
se ocupou aos moldes de uma semeadura – alguns lugares
brotando em vida, outros permanecendo virgens.

Em nosso próprio continente a colonizaçao ̃ espanhola


caracterizou-se largamente pelo que faltou à portuguesa: por
uma aplicaçaõ insistente em assegurar o predomínio militar,
econômico e político da metrópole sobre as terras conquistadas,
mediante a criaçaõ de grandes núcleos de povoaçao ̃ estáveis e
bem ordenados. Um zelo minucioso e previdente dirigiu a
fundaçao
̃ das cidades espanholas na América. - Holanda, S.B.
Raízes do Brasil.

Figure 7: Planta Baixa da Ocupação da Cidade de Salvador

7. O Homem Cordial

Assim, podemos finalmente nos questionar quem é o tipo-ideal


brasileiro. A resposta de Sérgio Buarque é que somos homens
cordiais. Contudo, engana-se quem pensa que essa
característica descreve um ser somente amável e dócil. A
cordialidade é uma característica derivada da irracionalidade, da
afetividade, do personalismo, do conservadorismo, da
naturalidade. Portanto, reflete também o lado irascível e violento
do brasileiro.

“no “homem cordial”, a vida em sociedade é, de certo modo, uma


verdadeira libertaçao
̃ do pavor que ele sente em viver consigo
mesmo, em apoiar-se sobre si próprio em todas as
43
circunstâncias da existência. Sua maneira de expansão para
com os outros reduz o indivíduo, cada vez mais, à parcela social,
periférica, que no brasileiro — como bom americano — tende a
ser a que mais importa. Ela é antes um viver nos outros. [...] Já
se disse, numa expressão feliz, que a contribuiçao ̃ brasileira
para a civilizaçao
̃ será de cordialidade — daremos ao mundo o
“homem cordial”. A lhaneza no trato, a hospitalidade, a
generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos
visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter
brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e
fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano,
informados no meio rural e patriarcal. Seria engano supor que
essas virtudes possam significar “boas maneiras” , civilidade.
São antes de tudo expressões legítimas de um fundo emotivo
extremamente rico e transbordante. - Holanda, S.B. Raízes do
Brasil.

44
7. Raymundo Faoro
1. Contexto

Raymundo Faoro (1925 – 2003) foi um jurista, historiador e


sociólogo brasileiro que se tornou notável por suas contribuições
sociológicas de influência cruzada entre o weberianismo e o
marxismo. Sua obra mais importante chama-se Os Donos do
Poder e nela temos um diagnóstico de como os jogos de poder
foram jogados desde os tempos coloniais até o final do primeiro
mandato de Getúlio Vargas.

2. A Tese do Estamento Patrimonial

O conceito central da análise de Faoro é a existência de um


estamento. O estamento é um grupo diferente de uma elite
burguesa porque ela consiste em uma miscelânea de agentes
sociais. O estamento é um grupo que compreende uma nobreza,

45
burocratas e militares que se utilizam de suas funções e do
poder de estado para manter a sua influência política e para o
controle de bens e riquezas. Desse modo, Faoro também
atribuiu ao Brasil um projeto moderno fracassado, mas com uma
análise um tanto diferenciada das formas de poder.

Segundo Faoro, o estamento patrimonial é um grupo que


funciona como um centro de gravidade que puxa pessoas para
buscarem algum tipo de filiação. O personalismo identificado por
Holanda segue sendo reconhecido como uma característica
brasileira, mas agora há um grupo que orienta a formação da
rede de laços pessoais. Além disso, Faoro agrega à dominação
carismática as formas de dominação tradicionais, pois a nobreza
e os militares são grupos cuja força se perpetua a partir de
instituições pré-modernas.

“O domínio tradicional se configura no patrimonialismo, quando


aparece o estado-maior de comando do chefe, junto à casa real,
que se estende sobre o largo território, subordinando muitas
unidades políticas. Sem o quadro administrativo, a chefia
dispersa assume caráter patriarcal, identificável no mando do
fazendeiro, do senhor de engenho e nos coronéis. Num estágio
inicial, o domínio patrimonial, desta forma constituído pelo
estamento, apropria as oportunidades econômicas de desfrute
dos bens, das concessões, dos cargos, numa confusão entre o
setor público e o privado, que, com o aperfeiçoamento da
estrutura, se extrema em competências fixas, com divisão de
poderes, sepa- rando-se o setor fiscal do setor pessoal.”– Faoro,
R. Os Donos do Poder

Uma das consequências desta formação social brasileira é o


relativo distanciamento entre povo e estado. Se supõe que o
estado nacional é uma formação político-jurídica que espelha a
identidade nacional. Contudo, quando um grupo absorve as
instituições políticas e as controle ao seu favor, esse
espelhamento entre povo e estado passa a refletir uma imagem
borrada e irreconhecível. Por esse motivo, Faoro seguidamente
diz que o brasileiro é um povo sem estado.

Esse distanciamento permite que mais problemas sejam


criados. O uso privatista dos poderes do estado cria a situação
de nepotismo. O nepotismo é a prática de atribuição de cargos
políticos, técnicos e da burocracia em geral a familiares. O poder
é todo distribuído entre pessoas que tem confiança uma nas
outras. Deflagra-se a impossibilidade de trabalhar com pessoas
diferentes, mas com quem se concorda em atingir o bem
comum.

“O patrimonialismo – com a sua criatura, o estamento


burocrático – continha, no próprio seio, o germe do suicídio
econômico. Desenvolvera uma concepção de vida avessa ao
46
trabalho produtivo e à rotina, comprazendo-se, exclusivamente,
no amor aos postos e empregos públicos.” – Faoro, R. Os Donos
do Poder

3. O Capitalismo Politicamente Orientado

Faoro critica a formação do estamento patrimonial brasileiro


porque uma das consequências nefastas de sua constituição é
a distorção da formação do capitalismo brasileiro. Segundo o
sociólogo, o capitalismo brasileiro tem uma orientação política e
não livre. Não houve ambiente para a livre iniciativa florescer no
brasil em função de que os donos do poder se colocam como
contendores ou viabilizadores de qualquer empreitada
econômica em território nacional.

Segundo Faoro desde o período colonial as formas de


relacionamento entre a coroa e a população foi profundamente
paternalista.

O capitalismo cresce à sombra da casa real, faz-se apêndice do


Estado. A economia racional, entregue às próprias leis, com a
calculabilidade das operaçoe ̃ s, é frustrada no nascedouro. Esse
pecado original da formaçao ̃ portuguesa ainda atua em suas in-
fluências, vivas e fortes, no Brasil do século XX. O capitalismo,
tolhido em sua manifestaçao ̃ plena, desvirtua-se, vinculando-se
à política. É o capitalismo político, que vai encontrar campo de
expansão nos monopólios reais, nos arrendamentos de tributos,
na venda de cargos, nos fornecimentos públicos, nos privilégios.
O comércio e a indústria reduzem-se a alimentar as
necessidades do Estado.

O capitalismo politicamente orientado — o capitalismo político,


ou o pré-capitalismo —, centro da aventura, da conquista e da
colonizaçaõ moldou a realidade estatal, sobrevivendo, e
incorporando na sobrevivência o capitalismo moderno, de índole
industrial, racional na técnica e fundado na liberdade do
indivíduo — liberdade de negociar, de contratar, de gerir a
propriedade sob a garantia das instituiçoe ̃ s. A comunidade
política conduz, comanda, supervisiona os negócios, como
negócios privados seus, na origem, como negócios públicos
depois, em linhas que se demarcam gradualmente. O súdito, a
sociedade, se compreendem no âmbito de um aparelhamento a
explorar, a manipular, a tosquiar nos casos extremos. Dessa
realidade se projeta, em florescimento natural, a forma de poder,
institucionalizada num tipo de domínio: o patrimonialismo, cuja
legitimidade assenta no tradicionalismo — assim é porque
sempre foi.

O estado patrimonial é também profundamente patrimonialista,


pois ele garante que as empreitadas econômicas tenham a
segurança necessária para enfrentar instabilidades de mercado.
47
O mercado não é livre ele é profundamente marcado pelas
relações daqueles que são íntimos das estruturas de governo e
por meio dessas relações o poder se perpetua nas mãos
daqueles que tradicionalmente estiveram na posição de cima da
hierarquia social brasileira.

Um outro fenômeno importante que será tratado por Raymundo


Faoro e que ganhará notoriedade é o coronelismo.

"O coronel, antes de ser um líder político, é um líder econômico,


não necessariamente, como se diz sempre, o fazendeiro que
manda nos seus agregados, empregados ou dependentes. O
vínculo não obedece a linhas tão simples, que se traduziriam no
mero prolongamento do poder privado na ordem pública.
Segundo esse esquema, o homem rico - o rico por excelência,
na sociedade agrária, o fazendeiro, dono da terra - exerce poder
político, num mecanismo em que o governo será o reflexo do
patrimônio pessoal." Faoro, Raymundo. Os Donos do Poder

4. Coronelismo e Personalismo

Vale agregar a este capítulo mais um dos estudiosos da sina


personalista brasileira. O advogado Victor Nunes será outro
grande estudioso das formas de dominaçao ̃ que travestem
interesses privados em açoe ̃ s do poder público. O caso em
questão é a análise do fenômeno tipicamente brasileiro do
coronelismo. Este é definido como “o resultado da superposiçao
̃
de formas desenvolvidas do regime representativo a uma
estrutura econômica e social inadequada”. Ou seja, o
coronelismo é um sistema de barganha entre um poder público
muito fortalecido e um poder privado decadente em que o poder
privado migra para a estruturas públicas para seguir fazendo
seus jogos.

“Ali o binômio ainda é geralmente representado pelo senhor da


terra e seus dependentes. Completamente analfabeto, ou
48
quase, sem assistência médica, não lendo jornais nem revistas,
nas quais se limita a ver as figuras, o trabalhador rural, a não ser
em casos esporádicos, tem o patrão na conta de benfeitor. E é
dele, na verdade, que recebe os únicos favores que sua obscura
existência conhece. Em sua situaçao ̃ , seria ilusório preten- der
que esse novo pária tivesse consciência do seu direito a uma
vida melhor e lutasse por ele com independência cívica. O lógico
é o que presenciamos: no plano político, ele luta com o “coronel”
e pelo “coronel”. Aí estão os votos de cabresto, que resultam em
grande parte, da nossa organizaçao ̃ econômica rural.” – Nunes,
V. Coronelismo, Enxada e Voto

Victor Nunes coloca o coronelismo como um fenômeno nascido


do grande latifúndio e que autorizava, na base do poder
econômico, um poder privado que se expressava através do
crescente poder público. O termo “coronel” é derivado da
existência da antiga Guarda Nacional que autorizava homens a
manterem seus exércitos particulares na ausência de um
exército nacional. A diferença, nesse caso, é que, agora, tais
coronéis usam capangas e milicianos para intimidaçaõ dos mais
pobres e para agir nos interstícios da lei.

Nesse sentido, Nunes aponta ainda um paradoxo. Ele mostra


que o poder publico alimenta o privatismo, no caso do
coronelismo. Isso era possível porque o sistema eleitoral dos
anos iniciais da república era coordenado com uma mentalidade
privatista, agressiva e controladora por parte dos barões
brasileiros e porque o mundo brasileiro, nos anos iniciais da
república, ainda não poderia prescindir da vida rural.

“Qualquer que seja, entretanto, o chefe municipal, o elemento


primário desse tipo de liderança é o “coronel” que comanda
discricionariamente um lote considerável de votos de cabresto.
A força eleitoral empresta-lhe prestígio político, natural coroa-
mento da sua privilegiada situaçao ̃ econômica e social de dono
de terras. Dentro da esfera própria de influência, o “coronel”
como que resume em sua pessoa, sem substitui-las, importantes
instituiçoe
̃ s sociais. Exerce, por exemplo, uma ampla jurisdiçao ̃
sobre seus dependentes, compondo rixas e desavenças e
proferindo, às vezes, verdadeiros arbitra- mentos, que os
interessados respeitam. Também se enfeixam em suas mãos,
com ou sem caráter oficial, extensas funçoe ̃ s policiais, de que
frequentemente se desincumba com a sua pura ascendência
social, mas que eventualmente pode tornar efetivas com o
auxílio de empregados, agregados e capangas.” .” – Nunes, V.
Coronelismo, Enxada e Voto

Se por um lado o mundo rural era ainda a base econômica e


social do país até os anos 50, por outro lado o mundo urbano ia
pouco a pouco crescendo. Pode-se dizer que, nesses anos, o
mundo urbano ainda depende do mundo rural. Advogados,
49
médicos e toda classe de profissionais liberais ainda é atrelada
ao campo, seja porque seus pais lá se encontram, seja porque
os exercícios dessas ativi- dades têm como cliente a família
patriarcal do interior do Brasil. Assim, o sistema chamado de
coronelismo é mais do que a mera presença do coronel e seus
capangas, mas é toda a gama de pessoas ligadas a ele seja por
laços de sangue, por compartilhar um status de privilégio, por,
na cidade, depender ainda do mundo rural, ou por ser um
miserável trabalhador do campo.

50
8. Caio Prado
Júnior
1. Contexto

Caio Prado Júnior (1907 – 1990) foi um advogado paulista que


dedicou sua obra ao entendimento da sociedade brasileira. Suas
obras foram as primeiras a adaptar o pensamento marxista no
Brasil e espalham-se pela história, geografia, sociologia e
filosofia. Além de pensador, Caio Prado atuou como membro do
Partido Comunista Brasileiro e foi deputado estadual em São
Paulo e foi vítima dos expurgos da ditadura militar. Sua obra
prima é Formação do Brasil Contemporâneo, um conjunto de
três volumes que visa dar um diagnóstico do sentido de ser
brasileiro a partir do entendimento da colonização.

2. Formação do Brasil Contemporâneo

“Qual o sentido do Brasil?” eis a pergunta que guia a


investigação de Caio Prado ao longo de sua obra. Para ele
entender o sentido do Brasil iniciava pela compreensão do
processo que forma a nação e o estado brasileiro. Acontece que
para dar uma resposta a essa pergunta, Caio Prado demonstra
que é necessário aprofundar-se em uma compreensão de

51
estruturas temporais de longo alcance e por isso ele retorna ao
entendimento do Brasil Colônia.

Para Caio Prado, a chave da compreensão do Brasil atual


passava pelo entendimento do papel do Brasil Colônia na
estruturação do capitalismo moderno. O Brasil entra na
economia capitalista ocupando uma posição de país exportador
que deveria fornecer tabaco, açúcar, algumas drogas do sertão
e que, mais tarde, passou a fornecer ouro e diamante, para por
fim, fornecer café para o comércio europeu.

“O Brasil contemporâneo se define assim: passado colonial que


se balanceia e encerra no século XVIII, mais as transformaçoe
̃ s
que se sucederam no decorrer do centênio anterior a este e no
atual. Naquele passado se constituíram os fundamentos da
nacionalidade: povoou-se um território semideserto, organizou-
se nele uma vida humana que diverge tanto daquela que havia
aqui, dos indígenas e suas naçoẽ s, como também embora em
menor escala, da dos portugueses que empreenderam a
ocupaçao
̃ do território. Criou-se no plano das realizaçoe ̃ s
humanas, algo novo.” – Prado Júnior, C. Formação do Brasil
Contemporâneo

A agroexportação brasileira colocou o país em uma condição de


atraso histórico com relação às demais economias capitalistas.
Caio Prado acreditava que parte do entendimento do que é o
Brasil passa por compreender as razões do atraso brasileiro.
Nesse sentido, o autor acreditava que o imperialismo e o
colonialismo eram chaves fundamentais para responder a essa
pergunta. Só em função da agroexportação uma estrutura social
foi delineada: a escravidão foi o modo de produção utilizado no
Brasil e isso trouxe um atraso na adoção da mão de obra
assalariada e um consequente atraso na formação de uma
classe operária brasileira. Ademais, a estrutura agrária produziu
uma elite patriarcal ligada aos valores do campo, que deixou a
sociedade brasileira sem uma burguesia ansiosa por
modernização.

Dessa formação social brasileira surge uma crítica importante ao


pensamento marxista universalista. O marxismo universalista
propunha que para encontrar um caminho seguro para a
revolução socialista era necessário que as diferentes nações
formassem um proletariado consciente de si como classe e que
promovesse uma revolução contra as estruturas de poder. Caio
Prado acredita que a história brasileira difere de europeia. O
Brasil não passara por um regime feudal, pois não tinha um
regime de servidão, mas tampouco não tinha uma escravidão
aos moldes da escravidão antiga. Por isso sua formação de
classe não corresponderia ao que era esperado pela ortodoxia
marxista.

52
Outra consequência importante advinda da compreensão do
papel do Brasil na economia colonial é o entendimento dos ciclos
econômicos. A economia brasileira jamais foi planificada, pois
ela sempre foi elaborada a partir de demandas externas. Os
ciclos econômicos que se sucederam no Brasil foram:

a. Ciclo Pau-Brasil: um ciclo de extração de madeira.


b. Ciclo da Cana-de-açúcar: ciclo que plantava cana para
produção de açúcar.
c. Ciclo do Café: ciclo que plantava e torrava café para
abastecer trabalhadores industriais.

Em nenhum dos casos o Brasil produziu um produto que tivesse


concorrência com os países centrais da Europa. Justamente aí
que Caio Prado parecia entender que haveria um passo histórico
a ser vivido. O autor defenderá uma espécie de nacional
capitalismo que seria necessária para completar a transição da
economia colonial para uma economia nacional. O
desenvolvimento de uma burguesia nacional parece uma
necessidade do desenvolvimento nacional.

Figure 8: Um engenho de açúcar em Pernambuco colonial, pelo pintor holandês Frans Post
(século XVII).

A consequência positiva do desenvolvimento de um


industrialismo brasileiro seria o desenvolvimento de um mercado
interno. Ao desenvolver um mercado interno, o Brasil seria então
capaz de superar as suas deficiências de povoamento – Caio
Prado mostra que somos um povo atrelado ao litoral justamente
por olhar sempre para fora e nunca para dentro do país.

3. Comparações e Analogias

53
Caio Prado compara a formação histórica brasileira com a
americana. Ele percebe que uma diferença fundamental entre
ambas é o fato de que nos EUA houve o que ele chamou de
colonização de povoamento. Para a américa do norte, houve
inúmeras famílias que cruzaram o atlântico porque eram
perseguidos religiosos. Não havia o projeto de retornar para a
Europa enriquecido ou a ideia de tornar-se um fidalgo agente da
exploração. Já para o Brasil, as pessoas vindas faziam parte da
empresa colonial portuguesa em que a colonização serve para
o único propósito de enriquecer a metrópole. O Brasil tornou-se
uma colônia de exploração. Desse modo, ao sul do equador,
todo projeto nacional que diverge da posição subalterna no
capitalismo encontra uma forte resistência para se desenvolver
– algo que o norte dos EUA não encontrou por um longo período.

Figure 9: O Lavrador de Café, obra de Candido Portinari (1939)

Caio Prado irá traçar um perfil da ocupação do espaço brasileiro.


Para ele, a ocupação é divida em orgânica e inorgânica. Ser
orgânico significa participar e estar conforme ao projeto de
54
explorar ao Brasil. Nessa categoria encaixam-se latifundiários e
extrativistas. Já na posição de inorgânico, encontram-se
jesuítas, pequenos proprietários e mercadores do comércio
interno. A organicidade é a capacidade de estar conectado ao
comercio mundial e de participar da formação do capitalismo. Já
a inorganicidade é o avesso disso, portanto, significa a empresa
que fica alheia aos projetos de exploração.

55
9. Florestan
Fernandes
1. Contexto

Florestan Fernandes (1920 – 1995) é o sociólogo marxista mais


influente do século XX. Suas investigações penetram no terreno
do entendimento da desigualdade brasileira e criticam o
imaginário de democracia racial presente na sociedade. Para
compreender por que a sociedade brasileira apresenta uma
mobilidade social restrita e uma estrutura condizente com o
mundo colonial, Florestan elabora um entendimento do
capitalismo brasileiro e o conecta com a situação racial dentro
do Brasil.

Figure 10: O sociólogo e escritor brasileiro Florestan Fernandes

2. Brasil: um país capitalismo dependente.

Florestan parte de ideias que já eram discutidas pela tradição


marxista do Brasil. Questões como o atraso brasileiro no
capitalismo, a desigualdade social e a herança econômica e
social sempre foram problemas que tiveram importância na
academia como na política brasileira. Florestan irá inovar
discordando da tese de que o Brasil é um país subdesenvolvido
pela ausência de uma burguesia urbana.

A tese da ausência de uma burguesia urbana fora defendida pela


ortodoxia marxista durante os anos 20 e 30, mas cada vez mais
56
ela perdia força. Florestan irá mostrar que o crescimento urbano
brasileiro a partir dos anos 40 já dava condições para o
desenvolvimento de um proletariado urbano e uma nascente
burguesia industrial. Em meados dos anos 50 e 60 já havia uma
burguesia brasileira consciente de si e poderosa. Era necessário
compreender qual era a postura da burguesia brasileira.

Florestan Fernandes irá lançar a tese da hegemonia de


burguesias. Tal tese credita ao comportamento da burguesia
nacional brasileira uma relação de cumplicidade com a ordem
global capitalista. Tal como diz a professora Miriam Limoeiro-
Cardoso, especialista na obra de Florestan:

Por um lado, “o problema não é que existam duas ‘burguesias’,


mas uma hegemonia burguesa duplamente composta, graças à
qual interesses burgueses internos e externos se fundem,
funcionando estrutural e dinamicamente de forma
interdependente e articulada. Esta associaçao ̃ cria a
inviabilidade da América Latina sob o capitalismo, porque é ela
que origina, preserva e legitima um padrão de mudança social
que continuamente reorganiza a dependência, a expoliaçao ̃ ,a
miséria e as iniqüidades sociais, que tornam a revoluçao ̃
nacional uma improbabilidade histórica” – Limoeiro-Cardoso, M.
Capitalismo Dependente, Autocracia Burguesa e Revoluçao ̃
Social em Florestan Fernandes.

Assim, as revoluções, ciclos econômicos e mudanças políticas


do Brasil tem um comportamento que busca preservar a
estrutura social brasileira de modo a retroalimentar a situação de
dependência. A sustentação de processos democráticos é
constantemente ameaçada em função de que, na medida que a
classe trabalhadora inicia processos revolucionários ou até
mesmo de reforma social, as burguesias hegemônicas articulam
golpes ou promovem políticos que lhes servem de interesse.
Florestan caracteriza essa situação político-econômica brasileira
de capitalismo dependente. Esta seria uma

“forma periférica e dependente do capitalismo monopolista (o


que associa inexorável e inextrincavelmente as formas
‘nacionais’ e ‘estrangeiras’ do capital financeiro)” – Fernandes,
F. Capitalismo Dependente e Classes Sociais na América Latina

A manutenção dessa situação lega ao proletariado brasileiro


uma situação crítica, pois sobre ele aplica-se não somente a
mais valia natural no capitalismo nas relações de classe, mas o
que ele chama de uma sobreexpropriação e uma
sobrealienação, pois ela é duplamente exercida.

“De fato, a econo- mia capitalista dependente está sujeita, como


um todo, a uma depleçao ̃ permanente de suas riquezas
(existentes ou potencialmente acumuláveis), o que exclui a
57
monopolizaçao ̃ do excedente econômico por seus agentes
privilegiados. Na realidade, porém, a depleçao
̃ de riquezas se
processa à custa dos setores assalariados e destituídos da
populaçaõ , submetidos a mecanismos permanentes de
sobreapropriaçaõ e sobreexpropriação capitalistas” –
Fernandes, F. Capitalismo Dependente e Classes Sociais na
América Latina

A situação do proletariado brasileiro na ordem capitalista afeta


naturalmente a questão racial. Florestan identifica na formação
da classe trabalhadora duas vertentes: uma herdeira da
escravidão e outra vinda da imigração. Florestan irá mostrar que
o imigrante ainda que tenha tido dificuldades em se firmar no
Brasil, não enfrentou o problema da cor. O proletário negro teve,
e ainda tem, de enfrentar o estigma social do passado
escravocrata.

Figure 11: Imagem de Dalrymple do Tio Sam ensinando aos países do caribe

Para abordar tal questão, Florestan ataca o mito da democracia


racial. Tal mito fora construído a partir da obra Casa Grande e
Senzala de Gilberto Freyre, mas também já estava tão
disseminada que era repercutida em documentos oficiais das
nações unidas sem qualquer base empírica. Florestan então irá
propor que a sociologia passa a investigação da situação do
negro no mundo branco brasileiro.

“Na verdade, a hipótese sustentada pelo dr. Donald Pierson, de


que o Brasil constitui um caso neutro na manifestação do
“preconceito racial”, teve de ser revista, mau grado o empenho
da Unesco pela confirmação da hipótese. Ao que parece, essa
instituição alimentava o propósito de usar o “caso brasileiro”
como material de propaganda. Se os brancos, negros e mestiços
58
podem conviver de “forma democrática” no Brasil, por que o
mesmo processo seria impossível em outras regiões? Não
obstante, o que é uma democracia racial? A ausência de tensões
abertas e de conflitos permanentes é, em si mesma, índice de
“boa” organização das relações raciais? Doutro lado, o que é
mais importante para o “negro” e o “mestiço”: uma consideração
ambígua e disfarçada ou uma condição real de ser humano
econômica, social e culturalmente igual aos brancos?”
Fernandes, F. O Negro no Mundo dos Brancos.

Primeiramente, Florestan propõe um conceito radical de


democracia. Democracia é o sistema no qual existe equidade
nas relações entre os diferentes grupos econômicos, políticos e
raciais. Assim, enquanto não houver políticas que promovam
justiça social e uma compensação histórica, não podemos
admitir que o Brasil seja uma democracia em qualquer sentido
da palavra.

“não é só a democracia racial que está por constituir-se no Brasil.


É toda a democracia na esfera econômica, na esfera social, na
esfera jurídica e na esfera política. Para que ela também se
concretize no domínio das relações raciais, é mister que
saibamos clara, honesta e convictamente o que tem banido e
continuará a banir a equidade nas relações de “brancos”,
“negros” e “mestiços” entre si.” Fernandes, F. O Negro no Mundo
dos Brancos.

Porém de onde brota a constrangedora ideia de que o Brasil é


uma democracia racial? Florestan irá notar que o brasileiro tem
dificuldade em considerar-se preconceituoso. O passado
católico obriga o brasileiro a ter no coração um espírito
universalista e de aceitação do outro. São os preceitos do amor
cristão que conduzem o brasileiro a não querer admitir que
discrimina. Contudo, como sabemos, ele termina por discriminar
porque, a despeito do seu cristianismo, as estruturas coloniais
escravistas e senhoriais predominavam sobre os costumes
cristãos.

“O que há de mais evidente nas atitudes dos brasileiros diante


do “preconceito de cor” é a tendência a considerá-lo algo
ultrajante (para quem o sofre) e degradante (para quem o
pratique). Essa polarização de atitudes parece ser uma
consequência do ethos católico, e o fato dela se manifestar com
maior intensidade no presente se prende à desagregação da
ordem tradicionalista, vinculada à escravidão e à dominação
senhorial. No passado, escravidão e dominação senhorial eram
os dois fatores que minavam a plena vigência dos mores
cristãos, compelindo os católicos a proclamar uma visão do
mundo e da posição do homem dentro dele, e a seguir uma
orientação prática totalmente adversa às obrigações ideais do
católico.” Fernandes, F. O Negro no Mundo dos Brancos.
59
Assim, há no diagnostico de Florestan Fernandes uma
contradição fundamental no plano do discurso e da ação do
brasileiro. O discurso obedece à lógica das idealizações de si
mesmo, enquanto as ações repercutem a herança colonial
senhorial e racista.

“Os valores vinculados à ordem social tradicionalista são antes


condenados no plano ideal que repelidos no plano da ação
concreta e direta. Daí uma confusa combinação de atitudes e
verbalizações ideais que nada têm a ver com as disposições
efetivas de atuação social. Tudo se passa como se o “branco”
assumisse maior consciência parcial de sua responsabilidade na
degradação do “negro” e do “mulato” como pessoa, mas, ao
mesmo tempo, encontrasse sérias dificuldades em vencer-se a
si próprio e não recebesse nenhum incentivo bastante forte para
obrigar-se a converter em realidade o ideal de fraternidade
cristão-católico.” Fernandes, F. O Negro no Mundo dos Brancos.

Para não modificar suas atitudes, a elite branca recrimina a


discriminação como mecanismo de manutenção e
acobertamento de suas atitudes. Essa elite nem sempre é uma
elite econômica, mas é uma elite em termos de prestígio e paz
social, pois não é acossada constantemente pela vigilância e
repressão do estado.

“O “preconceito de cor” é condenado sem reservas, como se


constituísse um mal em si mesmo, mais degradante para quem
o pratique do que para quem seja sua vítima. A liberdade de
preservar os antigos ajustamentos discriminatórios e
preconceituosos, porém, é tida como intocável, desde que se
mantenha o decoro e suas manifestações possam ser
encobertas ou dissimuladas (mantendo-se como algo “íntimo”;
que subsiste no “recesso do lar”; ou se associa a “imposições”
decorrentes do modo de ser dos agentes ou do seu estilo de
vida, pelos quais eles “têm o dever de zelar”).” Fernandes, F. O
Negro no Mundo dos Brancos.

60
10. Sociologia do
Brasil Atual
1. Contexto

No período que coincide com a abertura lenta e gradual ao final


da ditadura, passando pelos anos 80, 90 e 2000, a sociologia
brasileira intensificou sua produção e gerou novas questões.
Entre os filósofos que merecem destaque nessa nova geração
estão Roberto DaMatta e Jessé Souza.

Figure 12: DaMatta durante palestra para a Escola de Governo do Estado de São Paulo

2. Roberto Da Matta

Roberto DaMatta é um sociólogo que tenta não se prender às


tradições marxistas ou weberianas. Sua busca é por entender
aspectos atemporais do brasileiro na tentativa de mais uma vez
responder o que faz do Brasil, Brasil. Assim, para fugir de uma
análise da herança cultural ou de um passado colonial, DaMatta
elabora o método comparativo. O autor compara aspectos
culturais e sociais do Brasil com a sociedade americana e a
indiana.
61
A busca pela especificidade do Brasil é uma das tarefas mais
difíceis do ponto de vista histórico, pois inúmeros países tiveram
uma mistura de raças semelhante, inúmeros países tiveram uma
inserçao
̃ no capitalismo semelhante à brasileira e inúmeros
países tem uma formaçao ̃ geográfica variada como a nossa.
Portanto, é difícil rastrear nossa especificidade somente através
de fatores históricos externos. Há algo que criamos e foi, em
certa medida, acidental e interno. Algo que diz respeito somente
a nós enquanto naçao ̃ . - DaMatta, R. Carnavais, malandros e
heróis

De início, DaMatta compara o Brasil aos EUA no que diz respeito


à coexistência racial. Ele percebe que os modos de segregação
do Brasil são diferentes daqueles adotados entre os norte-
americanos.

“Ver o Brasil em sua especificidade é também procurar


interpretá-lo pelo eixo dos seus modelos de ação, paradigmas
pelos quais podemos pautar nosso comportamento e marcar
nossa identidade como brasileiros. É buscar entender nossas
irmandades e associações populares, sempre voltadas para o
alto e para fora do sistema, onde, com certeza, encontram seu
lugar ao sol. É, enfim descobrir que, ao contrário dos EUA, nunca
dizemos “iguais, mas separados”, porém “diferentes, mas
juntos”, regra de ouro de um universo hierarquizante como o
nosso.” - DaMatta, R. Carnavais, malandros e heróis

Os brasileiros têm uma segregação menos territorializada que


os americanos, pois não dividem o espaço racialmente em
bairros de moradia branca, latina ou negra. Nos EUA a igualdade
jurídica é suficiente para poder afirmar o direito ao não-convívio.
Já no Brasil, as favelas cariocas mostram que a moradia é um
quesito de integração. Não há igualdade jurídica, pois a justiça
não é cega. Contudo convivemos intensamente a despeito de
nossas diferenças sociais. Muitas vezes só percebemos tais
diferenças porque adotamos códigos e simbologias para
demarcar essa segregação no convívio.

Para entender o Brasil é necessário penetrar na análise dos


súbitos contrastes, das mudanças bruscas e das dicotomias. O
Brasil é o país onde há o convívio do improvável, do passado
formando um paradoxo com o presente, da revolta com a
subserviência, do prazer e da culpa. Trata-se de uma país onde
estranhas hierarquias ainda sobrevivem porque encontraram
sua forma de subsistir em um sistema de compensações que
contém a revolta do trabalhador por meio de mecanismos que
suspendem a verticalidade das relações para logo em seguida
restabelecê-las.

“Não se trata de discutir uma história de três raças, seis regiões


ou duas classes sociais que se digladiam pelo poder, mas de
62
entrar nas razões sociais do dilema que coloca uma sociedade
às voltas consigo mesma. Porque, como veremos em detalhe
mais adiante, temos no Brasil carnavais e hierarquias,
igualdades e aristocracias, com a cordialidade do encontro cheio
de sorrisos cedendo lugar, no momento seguinte, à terrível
violência dos antipáticos “sabe com quem está falando?” e
também temos samba, cachaça, praia e futebol, mas de permeio
com a democracia relativa e “capitalismo à brasileira”, um
sistema onde só os trabalhadores correm riscos, embora, como
se sabe, não tenham lucro algum. - DaMatta, R. Carnavais,
malandros e heróis

2.1. Os mundos indiano, americano e brasileiro

Um dos conceitos interessantes de DaMatta é o conceito de


mundo. O mundo é a ordem social vigente em cada país e o
modo como ela é justificada para os seus atores. A hierarquia
indiana por exemplo é amparada por um mundo que tem um
sistema de castas permite uma compreensão espiritualizada das
diferenças entre grupos. Não há um questionamento ostensivo
dessa estrutura porque esta é a única interpretação possível das
diferenças. O sistema é unitário.

Na Índia, isso talvez não ocorre porque o sistema é unitário, com


uma autonomia que se inscreve na história daquela civilização.

Já o mundo americano é diferente. É um mundo totalizador,


inescapável e devorador dos seus antagonistas.

[…] como é o renunciador do universo nos Estados Unidos?


Aqui, a pergunta se torna uma espécie de falsa questão. Pois
será mesmo possível escapar do sistema americano? Tudo
indica que não. Lá, um único movimento parece possível:
marchar sempre na direçao ̃ do sistema, procurando, nele e
através dele, cravar a direçao
̃ do sistema, ou a inovaçaõ que,
anteriormente, sugeria a renúncia e/ou a mudança social radical.
É assim que todo o chamado movimento hippie já pertence ao
estabelecimento, na dialética sistemática e perene de
canibalizaçao
̃ de todas as vanguardas que caracteriza o
American Way of Life - DaMatta, R. Carnavais, malandros e
heróis

Diferente de todos, o mundo brasileiro é um mundo dual. Nele


há o espaço para o reconhecimento da pessoa dotada de
história e pertencente às relações de compadrio e parceria. Mas
há também o mundo frio da lei, da modernidade liberal, que
desconsidera a identidade, a peculiaridade e a história. É nesse
mundo brasileiro que surge a dicotomia central: ou você é
malandro ou é otário.

63
Mas no Brasil, a comparação por contrastes revela uma dupla
possibilidade. E mostra que o sistema é dual: de um lado, existe
o conjunto de relaçoe ̃ s pessoais estruturais, sem as quais
ninguém pode existir como ser humano completo; de outro, há
um sistema legal, moderno, individualista (ou melhor: fundado
no indivíduo), modelado e inspirado na ideologia liberal e
burguesa. [...] Em comparaçao ̃ com o mundo indiano e
americano, o mundo brasileiro é possível de ser abandonado,
mas esse abandono tem um custo. Dado que entrar para o
mundo brasileiro significa passar a pertencer a um sistema de
relaçoẽ s intersubjetivas onde posiçoẽ s demarcadas tem de
obedecer e mandar, aos que desejam não pertencer a esse
mundo um outro sistema lhes aguarda. Esse mundo é o mundo
frio e calculado da lei. Como diz o ditado “Aos inimigos a lei; aos
amigos, tudo!” - DaMatta, R. Carnavais, malandros e heróis

2.2. Pessoas e Indivíduos

O sistema de apadrinhamento e relações interpessoais é o


mundo que deve ser aceito no Brasil para que a pessoa possa
iniciar sua escalada educacional e profissional. Contudo, cabe
perguntar sobre uma possibilidade que acima mencionamos: o
que acontece com aquele que rejeita os ritos brasileiros, suas
hierarquias, seus jogos implícitos e seus silêncios?

Se ela aceita o jogo e busca sucesso nesse mundo, então ela


poderá ser uma pessoa: alguém com biografia, história e vida.
No caso, ele é tratado de modo próximo, com uma hierarquia
definida e de modo pessoal. A pessoa é o personagem social
pertencente ao sistema de laços. É reconhecido.

Se ela não aceita esse jogo, ela torna-se um indivíduo. Alguém


tratado de maneira anônima. É alguém que é tratado de acordo

64
com os ditames da lei. Um indivíduo não é alguém para outro
alguém, é meramente alguém perante a lei.

Naturalmente, esse mundo é cheio de hierarquias que devem


ser reconhecidas. Elas não são necessariamente hierarquias
econômicas, pois o pertencimento ao grupo não
necessariamente se reflete em ganhos em dinheiro. São
hierarquias de prestígio, trânsito social, que autorizam pequenas
ilicitudes e uma certa sensação de reconhecimento. Elas se
espalham por um tecido complexo onde a conexão social é o
que realmente importa.

De fato, existem medalhões em todos os domínios da vida social


brasileira: na favela e no Congresso; na arte e na política; na
universidade e no futebol; entre policiais e ladrões. São as
pessoas que podem ser chamadas de "homens", "cobras",
"figuras", "personagens" etc. [.] Medalhões são frequentemente
figuras nacionais. [...] Ser o filho do Presidente, do Delegado, do
Diretor conta como cartão de visitas. - DaMatta, R. Carnavais,
malandros e heróis

2.4. Hierarquia e Linguagem

DaMatta não hesita em mostrar que algumas práticas sociais


estão fundadas nos jogos de reconhecimento. Uma delas é a
intimidação por meio da ameaça de pertencer a um círculo
social. A intimidação se dá por meio de falas que visam trazer à
tona um imaginário de dominação e poder.

O "Você sabe com quem está falando?" não parece ser uma
expressão nova, mas velha, tradicional, entre nós. Na medida
em que as marcas de posição e hierarquização tradicional, como
a bengala, as roupas de linho branco, o anel de grau e a caneta-
tinteiro no bolso de fora do paletó se dissolvem, incrementa-se
imediatamente o uso da expressão separadora de posições
sociais para que o igualitarismo formal e legal, mas cambaleante
na prática social, possa ficar submetido a outras formas de
hierarquização social. - DaMatta, R. Carnavais, malandros e
heróis

2.5. O Carnaval

Como antídoto a esse mundo hierarquizado e multifacetado, um


rito se sobressai como uma espécie de alívio e cancelamento.
Eis a função do carnaval na sociedade brasileira.

Penso, pois, que o Carnaval põe o Brasil de ponta-cabeça. Num


país onde a liberdade é privilégio de uns poucos e é sempre lida
por seu lado legal e cívico, a festa abre nossa vida a uma
liberdade sensual, nisso que o mundo burguês chama de
libertinagem. Dando livre passagem ao corpo, o Carnaval
65
destitui posicionamentos sociais fixos e rígidos, permitindo a
"fantasia", que inventa novas identidades e dá uma enorme
elasticidade a todos os papéis sociais reguladores. DaMatta, R.
O que o Carnaval diz do Brasil.

O carnaval mobiliza o povo. É a festa do povo para o povo. Nela


a sensualidade reprimida, a totalidade de gestos proibidos e o
anonimato do cotidiano são superados dando espaço para
aqueles que são esquecidos pelas instituições. É o momento em
que a suspensão da realidade aterradora favorece, por meio de
uma catarse, a possibilidade de continuidade do Brasil como um
país.

Figure 13: Na parte de cima vemos o entrudo (celebração com água nas ruas) que tem
origem popular

3. Jessé Souza

Jessé Souza é um sociólogo crítico da tradição de intérpretes do


Brasil. Em sua opinião, a tradição iniciada por Gilberto Freyre,
continuada e perpetuada por Sérgio Buarque de Holanda e por
Faoro ao invés de interpretar o Brasil, deu às elites as
ferramentas da dominação ideológica.

66
Em sua visão o Brasil é composto por uma elite do Atraso, uma
classe média moralista e uma ralé. Essas três categorias são
muito importantes de serem assim chamadas porque elas
nascem de formulações de linguagem próprias. A Elite do atraso
é assim chamada justamente porque ela, além de conservadora,
promove o atraso de modo voluntário. Jessé acredita que a
herança cultural não é uma razão suficiente para promover o
atraso brasileiro. Além deles há uma classe média que vive no
tensionamento entre a cultura da elite e as condições de trabalho
da ralé.

A classe média é parte importante da história do país, pois ela


se enxerga como tendo os mesmos direitos da elite e vindo das
mesmas tradições. Assim, ela espera ser servida e ter um
padrão de vida que só pode ser construído com base na
produção de uma classe baixa que tem um passado herdado da
escravidão e que não consegue se enxergar em outra posição.

"No passado, quando se falava em redistribuição de renda,


sempre se argumentava que os pobres, com o crescimento de
sua renda, tenderiam a consumir mais e, portanto, a taxa de
poupança cairia. Hoje, o paradoxo é que os ricos brasileiros é
que têm uma altíssima propensão a consumir. A renda não se
concentra para aumentar a taxa de poupança, e sim para
aumentar o consumo dos mais ricos. E escandalosa a distância,
no Brasil, entre o consumidor popular e o consumidor médio e
rico. Sem lugar a dúvida, essa defasagem é das maiores do
mundo. Na índia, os 20% mais ricos têm em média uma renda
quatro vezes maior que a dos 20% mais pobres; no Brasil essa
relação é de um para trinta e três vezes. Por outro lado, o abuso
do consumo contamina as classes mais pobres, que gastam em
produtos nem sempre necessários." - Furtado, C. Em Busca de
Novo Modelo - reflexões sobre a crise contemporânea.

Justamente essa classe absolutamente baixa e que corre risco


de vida é a ralé. Jessé não a chama assim para ofendê-la, mas
porque é o modo irônico pelo qual ela é chamada. A ralé
brasileira não pode ter acesso às coisas mesmo que tivesse
dinheiro, pois há coisas que o brasileiro da elite e da classe
média não autoriza e não permite que ela tenha. Essa classe
vive à margem dos holofotes do país e sobre ela pesa o
preconceito. Tal discriminação se dá no gosto, no simples fato
de que um padrão de consumo seja inacessível ao outro.
Ademais, a elite do atraso padroniza a beleza e define o que ela
é de acordo com suas experiências desconectadas do resto da
população.

“Como houve continuidade sem quebra temporal entre a


escravidão, que destrói a alma por dentro e humilha e rebaixa o
sujeito, tomando-o cúmplice da própria dominação, e a produção
de uma ralé de inadaptados ao mundo moderno, nossos
67
excluídos herdaram, sem solução de continuidade, todo o ódio e
o desprezo covarde pelos mais frágeis e com menos capacidade
de se defender.” – Souza, J. A elite do atraso.

Souza (2018) fez um profundo estudo sobre a "ralé brasileira",


expressão popular pejorativa no Brasil para se referir às classes
pobres e miseráveis. Segundo ele, há no Brasil um "preconceito
estético" contra as classes populares que legitima, por exemplo,
os privilégios das classes mais abastadas. Os de "cima", as
classes dominantes, na estrutura social da sociedade brasileira,
por possuirem a capacidade econômica de poder comprar uma
garrafa de vinho de 15 mil reais ou possuirem carros de luxo,
tomam a posse de tais bens para si como uma distinção. O poder
de consumo, assim, gera uma sensação de "superioridade inata"
atrelada à ideia de "bom gosto". Tal consumo distinto afasta as
classes abastadas de todos aqueles das classes mais baixas
que gostam de cerveja ou cachaça baratas e carros populares.
- SOUZA, Jessé. A rale brasileira: quem é e como vive.

68
69
11. Questões de
Gênero
1. Contexto

A sexualidade, o desejo, a identidade e o corpo não são


questões meramente pessoais. Do momento em que há
relações de poder incidindo sobre essas práticas e aspectos da
nossa vida, então é correto dizer que a sociologia tem portas
abertas para estudá-las. Desse modo, estudaremos neste
capítulo dois grandes movimentos sociais e intelectuais que
dizem respeito a estes temas. Estudaremos primeiro o
feminismo e depois estudaremos o movimento LGBTQIA+
(LGBT+)

2. Feminismo

A história do pensamento feminino é muito antiga. Desde a


Grécia Antiga, pensadoras como Temistocleia (600 a.C)
expressaram seus pontos de vista teóricos e produziram
cientificamente. Também Deusas femininas na cultura indiana
apontavam para uma valorização da mulher. Contudo, um
pensamento que não fosse somente feminino, mas também
feminista surge somente mais recentemente. Uma pensadora
que expresse de modo escrito a sua busca por justiça e
igualdade aparece somente mais tarde na história. Simone de
Beauvoir nota que a primeira obra de uma defensora das
mulheres em uma sociedade data do renascimento com
Christine de Pizan (1364 – 1430). Ela escreveu uma obra
chamada O Livro da Cidade das Senhoras.

Será, contudo, no século XVIII, conhecido como o século das


luzes, que o feminismo irá florescer com mais força. Duas figuras
muito importantes aparecem. A primeira é Olimpia de Gauges,
ela escreveu a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã
onde ela afirma “o sexo que é superior em beleza assim como
em sua coragem durante as dores do parto reconhece e declara,
na prese e sob os auspícios do Supremo Ser, os seguintes
direitos da mulher e da cidadã”. E em tudo que se segue, sua
declaração é tão avançada que somente cinquenta anos depois
algumas conquistas seriam alcançadas. Direitos como o divórcio
e a comunhão de bens estavam lá na carta apontando para o
futuro.

Além de Olímpia, Mary Wollstonecraft publica importante obra


chamada Uma Reivindicação dos Direitos das Mulheres. Nela,
Wollstonecraft argumenta que se as mulheres são vistas como
70
débeis, irracionais e incapazes, então é porque elas são
educadas para terem essas reações. A filosofa reivindica que as
mulheres passem a ser educada dentro de todas as demandas
que a cidadania impõe.

Ao longo do século XIX é possível observar o crescimento


vertiginoso nos direitos das mulheres. Na primeira metade,
Frances Cobbe e Florence Nightingale chamam a atenção para
a educação das mulheres, para os direitos matrimoniais e para
a violência doméstica. Era comum homens que estavam
infelizes em seus casamentos internarem mulheres em hospitais
psiquiátricos alegando que elas teriam se tornado violentas ou
histéricas. Com a internação viam-se livres da mulher e
passavam a viver uma vida de privilégios patriarcais enquanto a
mulher era reclusa e sofria na solidão. A própria medicina do
período, dominada por homens, tendia a não reconhecer
doenças mentais nas mulheres como sendo ocasionadas pela
violência a que estavam submetidas.

71
Por fim, na segunda metade do século XIX as coisas começam
a mudar. Foi nesse período que o Queens College, em Londres,
passou a oferecer educação para as mulheres. Pouco a pouco,
milhares de escolas na Inglaterra e nos EUA passaram a
oferecer educação para as mulheres. Era a fagulha necessária
para o início da primeira onda.

2.1. A Primeira Onda

A primeira onda feminista foi um movimento social que reuniu


tanto operárias que vinham sofrendo injustiças trabalhistas
desde os primeiros anos da revolução industrial quanto
mulheres de classe média que reclamavam da vida junto aos
maridos. As industriais sofriam com os pagamentos reduzidos, a
exploração continuada e a ausência de direitos. Já as mulheres
da classe média reclamavam dos maus tratos, da privação
educacional e da impossibilidade de votar. Ainda temos uma
visão bastante eurocêntrica dessa primeira onda, mas sabemos
que na Pérsia, a poetisa e revolucionária Táhirih desafiou
inúmeros costumes. Ela foi contra a proibição de mulheres
dirigirem-se a homens e contra a proibição de não clericais
falarem sobre religião. Ela foi condenada à forca após aparecer
sem lenço em público e dirigir-se a uma plateia. Antes morrer ela
teria dito “Podem me matar o quão rápido quiserem, mas não
evitarão a emancipação das mulheres”

O movimento sufragista varreu a Europa e os EUA. Na


Inglaterra, as senhoras de Langham Place organizaram um
comitê que contava com a ajuda de John Stuart Mill, famoso
liberal inglês comprometido com a causa. Nos EUA, Sejourner
Truth uniu a luta antiescravista ao feminismo. O fim do
movimento da primeira onda é estabelecido quando, nos
Estados Unidos, a promulgação da emenda dezenove que
fixava o voto feminino.

72
Podemos dizer que a primeira onda do feminismo entendia que
a luta contra o patriarcado seria uma luta contra um sistema
jurídico-legal e a esperança que as movia era de que a entrada
nas instituições de governo seria suficiente para mudar as
relações de poder.

2.2. A Segunda Onda

O prelúdio da segunda onda ocorre durante a segunda guerra


mundial. Foi nela que mulheres inglesas, russas e alemã foram
alistadas seja para ajudar em tarefas de guerra, seja em
combate propriamente dito. Após a guerra, essas mulheres não
estarão mais em condições de retornar às suas funções
habituais. As mulheres passam a perceber que o mundo ainda
era masculino, que a guerra era causada por um mundo ainda
patriarcal, as obrigações familiares da mulher em nada haviam
sido atenuadas e as representatividade da mulher em
parlamentos havia sido cooptada. Foi entre os anos 1960 e 1980
que nasce a segunda onda feminista chamando-se assim
porque reconhecera suas predecessoras.

Entre as grandes propulsoras da segunda onda está Simone de


Beauvoir. Seu livro de 1949 O Segundo Sexo, faz uma análise
da condição da mulher em uma sociedade patriarcal. Simone
dirá que “uma mulher não nasce mulher, mas torna-se uma”
justamente porque ela passa por uma experiência de negação
do masculino. A mulher forma-se a partir da condição de ser o
outro do “primeiro sexo” que seria o masculino. Contudo, diante
desse diagnóstico, Beauvoir encontra no existencialismo a saída
para a liberação. Se a existência precede a essência, como
dizem os existencialistas, então o segundo sexo não tem uma
identidade necessária. A mulher é livre para encontrar novas
formas de criar o feminino, para novas experiências do ser
mulher.

73
A partir dessa leitura, o patriarcado passou a ser entendido com
um poder estruturado e um sistema de dominação. A crítica a
ser feita à primeira geração era sua ilusão de que a mera
penetração no sistema político seria suficiente para rui-lo. Agora,
os novos desafios vinham a partir do novo diagnóstico. Um
sistema de dominação só pode ser combatido com uma
verdadeira revolução feminista.

Nesse período é possível observar um aumento da procura de


mulheres por uma educação universitária. Elas deixam de
buscar unicamente a medicina, mas passam a ocupar assentos
em cursos de história, sociologia, filosofia etc. Uma cachoeira de
escritos feministas passa a abordar diferentes temas da
sociedade. Um dos temas mais relevantes do período é a
pornografia. Esse tema ganha destaque porque uma atriz
chamada Linda Boreman aparece na corte do Canadá afirmando
que teria sido forçada a fazer filmes pornográficos com o seu
marido. Ela ganha apoio de feministas como MacKinnon e
Dworkin para mostrar que a vida cotidiana das mulheres ainda
era permeada de violências de todo tipo. Aqui ficava claro que
educação sexual dos homens objetifica as mulheres e torna-as
reféns de uma violência sexual que não reconhece o desejo da
mulher.

Durante a última década as mulheres conquistaram posições


importantes na sociedade, tanto em termos legais como
profissionais. Paralelamente a essa escalada de poder, porém,
aumentaram os distúrbios ligados à alimentação, as cirurgias
plásticas, a pornografia e a necessidade artificialmente
provocada de corresponder a um modelo idealizado de mulher,
em que a velhice e a obesidade, mais do que pecados, são
motivos para a estigmatização. Em O mito da beleza Naomi Wolf
enfrenta o que ela acredita ser a única trincheira ainda por
derrubar para que a mulher possa obter sua igualdade em todos
os campos. Para mostrar como a indústria da beleza e o culto à
bela fêmea manipulam imagens que minam a resistência
psicológica e material femininas, reduzindo as conquistas de 20
anos de lutas a meras ilusões, Naomi escreveu um livro forte,
com dados estatísticos contundentes e fúria temperada aqui e
ali por humor e lirismo. - Wolf, Naomi. O Mito da Beleza. Como
as imagens de beleza são usadas contra as mulheres.

No mesmo período, a invenção da pílula anticoncepcional foi


vista como uma libertação para as mulheres, pois elas poderiam
planejar a gravidez ou até mesmo não ter de lidar com as
terríveis consequências de estupros ou mesmo proteger-se de
relações ocasionais. Naturalmente, isso acirrou na sociedade o
direito ao aborto, que para muitos passou a ser um direito
injustificado dado que havia como prevenir a gravidez. Foi por
esse motivo que nos anos 70 esse debate torna-se mais
controverso ainda, pois nas fileiras do movimento feminista
74
havia aquelas que chamavam a atenção para sua condição de
negra ou latina. Nesse cenário a religiosidade, as condições
econômicas e sociais criavam novos desafios à unidade da luta
feminista.

“o controle de natalidade - escolha individual, métodos


contraceptivos seguros, bem como abortos, quando necessário
- é um pré-requisito fundamental para a emancipação das
mulheres. [...] E se a campanha pelo direito ao aborto do inicio
dos anos 1970 precisava ser lembrada de que mulheres de
minorias étnicas queriam desesperadamente escapar dos
charlatões de fundo de quintal, também deveria ter percebido
que essas mesmas mulheres não estavam dispostas a
expressar sentimentos pro-aborto. Elas eram a favor do direito
ao aborto, o que não significava que fossem defensoras do
aborto. Quando números tão grandes de mulheres negras e
latinas recorrem a abortos, as histórias que relatam não são
tanto sobre o desejo de ficar livres da gravidez, mas sobre as
condições sociais miseráveis que as levam a desistir de trazer
novas vidas ao mundo". – Davis, Angela. Mulheres, raça e
classe.
Figure 14: Angela Davis, 1974

2.3. A Terceira Onda

A terceira onda nasce por volta dos anos 90 e tem uma crítica
pontual à segunda onda. O movimento feminista se definiu
excessivamente em torno de uma noção de mulher branca,
europeia e de classe média alta. Era necessário romper e
fragmentar o feminismo dentro de suas diversidades.

Neste movimento encontramos autoras fundamentais como


Judith Butler e bell hooks. Butler analisa as relações de poder
utilizando ferramentas da sociologia de Michel Foucault.
Segundo Foucault, a modernidade é marcada por relações de
poder micropolíticas em que forças emergem no cotidiano
lutando por territórios e formas de expressão. Butler acredita que
um entendimento do patriarcado passa por um entendimento
das suas formas micropolíticas.

Desse modo, o patriarcado passa a ser visto como um sistema


de silenciamentos e homogeneizações de identidades. O
patriarcado molda, corta, suspende, isola e trata de negar a
existência a tudo que não está conforme ao seu conjunto de
valores. Assim, Butler acreditava que era necessário proliferar
formas de identidade e afirmá-las. Butler recupera a teoria de
Austin acerca dos atos de fala e busca mostrar que por meio da
fala não somente comunicamos fatos, mas também fazemos
coisas. Por exemplo, forjamos identidades, entendemos melhor

75
que somos, nomeamos experiências. Tudo isso era fundamental
para dar um novo combate ao patriarcado.

A teoria dos atos de fala é uma das peças fundamentais da


terceira onda. Afirmar a identidade de diferentes formas do
feminino era necessário. As mulheres latinas, as mulheres
lésbicas, as mulheres islâmicas, as mulheres refugiadas: todas
tem narrativas, histórias de opressão e todas precisam
compreender suas experiências. Falar é preciso e na mesma
medida é preciso escutar.
Figure 15: bell hooks
bell hooks, por outro lado, chamou a atenção para tópicos gerais
do movimento feminista sem perder de vista o fato de que ela é
negra e como tal reconhece a divisão no seio do feminismo.

Nenhum grupo de mulheres brancas conheceu melhor a


diferença entre seu próprio status e o status das mulheres
negras do que o grupo de mulheres brancas politicamente
conscientes e ativistas na luta pelos direitos civis. Ainda assim,
várias dessas mulheres deslocaram-se das lutas pelos direitos
civis para as lutas pela libertação da mulher e lideraram um
movimento feminista em que suprimiram e negaram a
consciência sobre as diferenças que viram e ouviram. Elas
entraram para o movimento feminista apagando e negando a
diferença, sem pensar em raça e gênero juntos, mas eliminando
raça do cenário. – hooks, b. O feminismo é para todo mundo:
políticas arrebatadoras.

hooks argumenta que o feminismo não é um movimento que


liberta somente mulheres, mas liberta também homens. O
Figure 16: Judith Butler
diagnóstico que ela faz do patriarcado mostra que o patriarcado
é um sistema que oprime homens também. Tudo parte da
colocação de um critério elevado de realização da
masculinidade. Os homens cobram uns dos outros um
comportamento condizente com a masculinidade vigente, porém
isso gera sofrimento e frustração. O resultado dessa frustração
é a violência que aparece em diferentes escalas e formas.

2.4. A Quarta Onda

Algumas feministas afirmam que desde 2008 vivemos uma


quarta onda. Naturalmente, algumas sociedades ainda se veem
às voltas com questões da primeira, da segunda e da terceira
onda, mas em sociedades mais progressista há já o espaço para
a quarta onda. Nesse movimento é possível observar a
reivindicação da espiritualidade da mulher, aceitação de
diferentes formas de corpo e a incorporação de mulheres
transgênero à comunidade feminina.

Essa onda milita fundamentalmente em redes sociais, televisão


e mídia. Ela busca um aprofundamento da aceitação e da
76
visibilidade da multiplicidade de mulheres em espaços como o
cinema, música, tecnologia e ambientes profissionais diversos.

3. LGBTQIA+

A libertação gay começa em 1969 com os protestos de Stonewall


Inn, uma discoteca de Nova Iorque. A comunidade gay vivia em
uma região Greenwich Village em Nova Iorque, onde bares e
clubes eram comumente controlados pela Máfia. A polícia tinha
o hábito de fazer ataques surpresas nessas regiões, mas
naqueles anos com efervescência cultural e política, o exagero
de violência foi uma faísca que explodiu um barril de pólvora.
Protestos duraram semanas pedindo pelo fim da humilhação de
homens gays e pela consideração das formas livres de amor
entre pessoas de todos os sexos.

Naturalmente, como o movimento incluía homens brancos, ele


foi aceito com muito mais fluidez que as reivindicações das
feministas daquele período. Contudo, pode-se dizer que de lá
para cá alguns conceitos e ideias vem sendo cada vez mais
fundamentais para compreender a diversidade de práticas e
identidades sexuais. Há três conceitos fundamentais: sexo,
identidade e orientação.

O sexo é definido em um espectro que vai do macho à fêmea


passando por inúmeras combinações possíveis. O sexo é
definido por um conjunto de fatores que podem variar
naturalmente ou por intervenção de técnicas humanas. Os
fatores são cromossomos, genitália, hormônios e gônadas. Hoje
sabemos que cirurgias plásticas podem remodelar totalmente as
genitálias e sabemos também que os tratamentos hormonais
podem configurar corpos com características não-binárias.
Podemos dizer que a pessoa que jamais modificou aspectos do
seu sexo é alguém cis, enquanto alguém que modificou por meio
de intervenção médica é alguém transsexual.

Por outro lado, o corpo e os hormônios são a base para aspectos


psicológicos como a identidade. Dentre as identidades de
gênero temos pessoas que são masculinas, femininas, queer,
trans, não-binário. A identidade define modos de
comportamento, vestimentas, crenças e outros aspectos que
dizem respeito à vida psicológica.

Por fim, a orientação sexual é a definição do desejo. Muitas


pessoas têm preferências sexuais mais restritas, outras tem
preferências mais abertas. Heterossexuais são aqueles que
mantém interesse em relacionar-se com pessoas do gênero
oposto. É comum pensar que heterossexuais tem interesse
somente no sexo oposto, contudo muitas vezes heterossexuais
não percebem que se sentem atraídos por membros do outro

77
sexo mesmo que esta pessoa seja transsexual. Homossexuais
tem interesse por pessoas do mesmo gênero. Pansexuais são
pessoas que tem interesse em certas configurações
psicológicas e afirmam gostar de “pessoas” e desconsideram o
corpo como sendo fundamental para suas preferências.

Por fim, dados os três critérios que permitem que


compreendamos as diferentes possibilidades, é importante estar
atento a um último debate importante da comunidade LGBT+.
Há ainda uma infinidade de direitos que essa comunidade busca
constituir. Em muitos países, gays, lésbicas e transsexuais não
tem direitos relativos a discriminação em ambiente de trabalho,
a tratamentos médicos com visitas de seus companheiros, a
visitas intimas em presídios, a casar e constituir família, a
documentos que demonstrem a sua transição de sexo e muitas
outras necessidades que pouco a pouco vão sendo
identificadas.

Para que um país cresça em termos de aceitação dessa


comunidade é necessário que a população busque desenvolver
formas de sensibilidade democrática que permitam a expressão
e o acolhimento dessas demandas. O conceito que descreve as
possíveis limitações que instituições tem com relação a essa
comunidade é injustiça epistêmica. Ou seja, em inúmeros casos
o relato dessas pessoas não é considerado como tendo
autoridade suficiente para exibir uma demanda válida. Isso
porque do ponto de vista de quem está conforme os poderes
patriarcais, tais demandas parecem muitas vezes destituídas de
sentido. No entanto, a falta de sentido dessas demandas tem
origem na injustiça epistêmica que está na raiz da incapacidade
de aceitar o outro como diferente.

“Sensibilidades democráticas consistem em atitudes cognitivas


e afetivas que facilitam e promovem a capacidade de se
relacionar, escutar, sentir-se implicado e cuidar dos interesses e
aspirações dos outros.”

“Em todas as sociedades – nas democráticas e não


democráticas – as pessoas vivem rodeadas de injustiças
epistêmicas que pedem por resistência. Mas a diferença é que
em sociedades democráticas, dado seus compromissos com a
livre e igual participação epistêmica, há um interesse e obrigação
de detectar e corrigir disparidades sistemáticas de agência que
diferentes membros da sociedade podem gozar e
desigualdades associadas a ela. [...] Modelos democráticos são
pensados independentemente do fato de votantes serem
epistemicamente homogêneos ou diversos” […] “Democracia
não é só sobre votar, mas também sobre falar. [...] Para que as
práticas democráticas de tomada de decisão sejam efetivas e
propriamente sintonizadas com a vida da comunidade, a

78
comunicação também precisa ser continuada após votar,
criticamente revisitando as consequências dos acordos
adotados.” – Medina, J. Injustiça Epistêmica

Figure 17: As bandeiras das formas de orgulho LGBT+

79
12. A Questão
Racial
1. Contexto

Segundo Toni Morrison, a questão racial começa a se desenhar


a partir do fim da escravidão. O final da escravidão no mundo
ocidental colocou inúmeros estados nação diante do problema
de incluir pessoas livres ex-escravas dentro dos critérios da
cidadania. Isso não foi aceito com facilidade, prova disso está no
direito da época que tanto no Brasil como nos EUA buscou
inúmeros subterfúgios para que negros não pudessem participar
politicamente. Foi no século XIX que o evolucionismo social
passou então a elaborar as noções pseudocientíficas por meio
das quais se passaria a entender quem é o negro. O negro é
aquele que pertence a uma outra raça. O termo, usado para
distinguir tipos internos a uma espécie, passaria a criar uma
subcategoria de acordo com características fenotípicas e a cor
da pele será o marco divisor dessa questão fundamental até os
dias de hoje.

Figure 18: Toni Morrison (1970)

2. Raça e Etnia

80
Em 2016, pesquisadores do mundo inteiro reuniram-se para
investigar a questão racial do ponto de vista genético. A pergunta
que eles desejavam responder era se há marcadores
genotípicos suficientemente claros para afirmar que há raças
entre seres humanos. A resposta foi que não. Não há evidências
suficientes para mostrar que há raças entre humanos. Diante
disso, a comunidade científica pensou que seria um avanço para
o fim das discriminações em função de cor de pele determinar o
fim do uso do termo e de todo vocabulário associado a ele.
Contudo, percebeu-se que talvez isso não fosse positivo.

O termo raça, ainda que não seja apropriado do ponto de vista


biológico, passou a ganhar uma conotação política e histórica.
Ou seja, ser alguém da raça negra é algo que identifica pessoas
com um passado que foi apagado a partir da captura e migração
forçada nos anos de colonialismo. Essas pessoas tiveram de
sobreviver a séculos de escravidão, a destruição de suas
tradições e a violência institucionalizada. Assim, ser negro não é
meramente um termo com conotação fenotípica, mas passou a
ser um termo que identifica um grupo que vive anseios políticos
semelhantes e que compartilha de uma mesma história.

No Brasil, negros conseguiram resistir criando uma cultura que


mescla e condensa suas raízes africanas. Inúmeras práticas
dessa cultura foram recriminadas durante os primeiros anos da
república e até hoje sofrem ataques sistemáticos sendo
acusadas de bruxaria e de provocar o mal. Contudo, um olhar
aprofundado nos mostra exatamente o contrário: a cultura afro-
brasileira é inclusiva e promove a busca da cura da alma.

O candomblé é uma religião que nasceu na Bahia por volta da


metade do século XIX. Nela os fiéis devem alimentar aos deuses
por meio de sacrifícios. Para alimentá-los, os praticantes dessas
religiões devem incorporar os deuses e promover as “festas”
onde os banquetes são realizados. A presença dos deuses
satisfeitos permite que aqueles que precisam deles sintam-se
seguros, confiantes e curem as mazelas de suas almas. A saúde
mental de praticantes de candomblé é geralmente melhorada e
a formação de uma comunidade enfraquece o sentimento de
solidão.

A umbanda é outra religião afro-brasileira que nasceu no Rio de


Janeiro por volta da década de 1920. Ela mistura o candomblé
ao cristianismo e ao espiritismo kardecista. Nesse caso, não são
deuses que vem ao encontro dos humanos, mas os espíritos de
pessoas comuns. As sessões têm aconselhamentos, conversas
sobre sexualidade, projetos de vida e temas ligados à vida e à
morte.

81
Ambas as religiões sobreviveram porque buscaram o
sincretismo religioso. O candomblé parte de deidades
encontradas na África, como é o caso de Osun, o rio que corta o
território da Nigéria. Essa deidade é trazida ao Brasil e adaptada
como sendo Oxum, a deusa das águas doces. Contudo, para
que seu culto não fosse percebido, os praticantes do candomblé
e da umbanda figuraram a deusa na imagem de Nossa Senhora
dos Navegantes.

Outras práticas que foram perseguidas em diferentes momentos


da história brasileira foram a capoeira e o samba. A capoeira é
uma mistura de dança, música e arte marcial que nasceu para
combater capitães do mato que buscavam escravos. A tradição
oral diz que a mistura com a dança foi outra técnica de
camuflagem dessa prática cultural. Por outro lado, o samba
nasce dessas mesmas celebrações que tinham tambores e
danças de diferentes cantos da África, mas que se mesclou com
ritmos dos salões musicais brancos. Há ainda muitos aspectos
culturais advindos da África por serem descobertos, pois muito
dessa cultura ficou viva nos chamados Quilombos.

Quilombos são comunidades agrícolas de ex-escravos que


fugiram ou foram alforriados. Muitas dessas comunidades foram
engolidas pelas grandes cidades e tornaram-se quilombos
urbanos. Essas comunidades são reconhecidas como
comunidades tradicionais porque elas têm outros mecanismos
de socialização, outras instituições e vivem ao abrigo do estado
brasileiro. Embora o estado lhes deva proteção, os quilombos
são frequentemente ameaçados pela expansão territorial da
agricultura em grande escala.

Assim, note que nem tudo que veio da África segue sendo
praticado pelas pessoas de ascendência africana. Por esse
82
motivo é necessário criar um termo para falar de um grupo
cultural. O termo que designa um grupo cultural é etnia e a
importância de ter um termo independente está em que ele
permite um entendimento independente. Por exemplo, por um
lado, há pessoas de pele preta que não pertencem à etnia afro-
brasileira; por outro lado, há pessoas brancas que participam de
algumas práticas da etnia afro-brasileira. Assim, percebemos
que o termo raça termina por designar um fenótipo, mas não um
pertencimento cultural; enquanto o termo etnia, designa um
grupo cultural.

Assim, do momento em temos palavras diferentes para tratar de


fenômenos diferentes é importante retornar ao entendimento do
que é racismo e o que é xenofobia.

3. Racismo

O racismo brasileiro é um fenômeno tradicionalmente


dissimulado, mas que recentemente vem aparecendo
publicamente. A tradicional dissimulação foi tratada por
Florestan Fernandes como a vergonha de ter preconceito. Essa
vergonha não permite ao racista reconhecer que é racista.
Contudo, ele faz com que o racismo permaneça latente em
outras formas de práticas sociais. É aqui que encontramos o
auxílio de Silvio de Almeida e de Djamila Ribeiro.

Figure 19: Silvio Almeida em conferência sobre direito e racismo

Almeida retrata o que seria o racismo estrutural. Em uma análise


do modo como as instituições brasileiras operam é possível
perceber que há uma série de ações que atrasam e prejudicam
a vida do negro. Um exemplo disso é a ação policial. A polícia é
uma instituição que deve zelar pela paz social, pela segurança e

83
o bem-estar da população. Contudo, para realizar essa tarefa ela
acaba por assimilar um olhar sobre a sociedade que reflete uma
estrutura social problemática. Em uma sociedade onde a
pobreza se concentra em uma linha de raça, a polícia termina
por assimilar um papel de vigília de um grupo racial. As revistas,
as ações, as desconfianças recaem sobretudo na população
negra. Em função disso inúmeras histórias acabam se
acumulando onde injustiças e erros da ação policial acabam se
multiplicando somente em um grupo social.

As feridas da discriminação racial se exibem ao mais superficial


olhar sobre a realidade social do país. Até 1950, a feridas da
discriminação racial se exibem ao mais superficial olhar sobre a
realidade social do país. Até 1950, a discriminação em empregos
era uma prática corrente, sancionada pelas práticas sociais do
país. Em geral, os anúncios de vagas de trabalho eram
publicados com a explícita advertência: "não se aceitam pessoas
de cor." Mesmo após a Lei Afonso Arinos, de 1951, proibindo
categoricamente a discriminação racial, tudo continuou na
mesma. Depois da lei, os anúncios se tornaram mais
sofisticados que antes, e passaram a requerer: "pessoas de boa
aparência". Basta substituir "pessoas de boa aparência" por
"branco" para se obter a verdadeira significação do eufemismo.
- Adaptado de Abdias do Nascimento, O genocídio do negro
brasileiro: processo de um racismo mascarado.

Outro exemplo importante diz respeito às políticas públicas.


Educação e saúde são serviços que a constituição cidadã de
1988 tratam como universais. Ou seja, o estado tem de garantir
acesso a esses serviços. Contudo, sabemos que no mapa social
do Brasil, inúmeras pessoas não dependem desses serviços.
Por isso, há aqueles que mais precisam do acesso via política
de estado e aqueles que conseguem por via privada.
Naturalmente, o grupo de pessoas pobres, que coincide com o
grupo de pessoas majoritariamente negras, depende do acesso
público. Contudo, quando o governo decide cortar seus
investimentos nesses setores, quem mais sofre é quem mais
precisa. Desse modo, a vida das pessoas brancas de classe
média é menos afetada diante do fracasso do estado brasileiro.

O racismo estrutural se observa nesse ponto, pois é aqui que


vemos como os próprios poderes de estado, com suas
instituições, terminam por determinar a vida do negro. É neste
ponto que surge um debate fundamental para a promoção da
vida do negro na sociedade brasileira: a possibilidade de ações
afirmativas.

4. As Ações Afirmativas

As ações afirmativas nascem nos EUA na busca por promover a


equidade racial. Uma das premissas da sociedade liberal é que
84
uma pessoa só pode ocupar uma posição social se ela se
esforçou por merecê-la. A posição ocupada deve ter como único
critério o mérito pessoal e fatores como cor de pele, passado,
riqueza da família etc. são fatores que não podem ser
considerados. Contudo, sabemos que em uma disputa livre,
aquelas pessoas que recebem maior apoio tendem a chegar
antes e com mais facilidade aos melhor cargos e posições dentro
de uma sociedade. Foi por isso que se criou o sistema de ações
afirmativas.

A intenção é fazer com que pessoas tenham acesso a


ferramentas para ocupar melhores posições sociais. A política
de cotas no Brasil é um exemplo disso. Uma pessoa negra não
concorre pelas mesmas vagas em uma universidade com
pessoas brancas justamente porque ela tem inúmeros fatores
que a colocam atrás da pessoa branca em uma disputa. O
simples fato de ter um passado de avós escravos, o simples fato
de não saber suas origens, de não ter pessoas que tiveram
oportunidade de cursar a universidade ou o ensino médio exerce
uma influência gigantesca na autoestima da pessoa. É difícil
projetar um futuro e confiar nessa projeção se não vemos
alguém em quem nos espelhar. Justamente por isso, as cotas
são ações que afirmam e discriminam positivamente a
população negra.

As ações afirmativas diferem de políticas públicas porque estas


são universais e não visam um grupo específico da população.
Políticas públicas são pensadas para serem universais e
representam um mecanismo mais básico de promoção da
equidade.

5. O Feminismo Negro

Um dos movimentos sociais e intelectuais mais prolíficos das


últimas décadas é o feminismo negro. De início, é fundamental
reconhecer que a luta principal das mulheres negras está em
algo tão fundamental que pode parecer surreal. Mulheres
negras, diz Djamila Ribeiro, lutam pela notabilidade de sua
dignidade. Desde a infância a mulher negra tem sua confiança,
inteligência e beleza menosprezada e desacreditada pela
sociedade. Compreender a situação da mulher negra envolve
compreender uma situação que se coloca além do horizonte da
maioria das minorias representativas. Para compreender a
transcendência da voz da mulher negra é preciso chamar ao
palco as ideias de Kimberlee Crenshaw.

Crenshaw é uma advogada negra que irá criar um conceito para


defender sua cliente. Ela deve defender uma mulher que figura
como bode expiatório de um problema em uma empresa. A
empresa defende-se afirmando que não é racista porque há
funcionários negros na equipe e não é sexista porque há
85
mulheres na equipe. Crenshaw irá habilidosamente mostrar que
a situação da mulher negra não pode ser compreendida
analisando suas diversas identidades separadamente. É
necessário pensar a mulher negra a partir da
interseccionalidade da raça e do gênero para entender sua
posição. Ela figura como alguém em relações de poder com
homens brancos e negros, assim como com mulheres brancas.
Assim, não é possível dissociar as formas de preconceito que
ela sofre.

Djamila irá mostrar que cada pessoa vive suas experiências


sociais a partir de um lugar social. O lugar social é o lugar a partir
do qual nossas identidades elaboram seus cruzamentos.
Alguém pode ser negro, heterossexual, rico, americano. Outra
pessoa pode ser mulher, branca, asiática e lésbica. Essas
identidades sociais vão dando a nós lugares a partir dos quais
observamos o mundo. Desses lugares sociais brotam lugares de
fala. O lugar de fala não é uma autorização a falar – como
erradamente se utiliza esse conceito na internet. O lugar de fala
é o ponto de vista a partir do qual vivenciamos os fenômenos
sociais. Como uma mulher branca de classe média vivencia o
racismo? Ora, na posição de opressora ou de privilegiada, às
vezes consciente, às vezes inconscientemente. Ela pode falar
de racismo contra negros? Djamila diz que sim, e provavelmente
irá falar coisas que são verdade sobre o que ela experimenta
como privilegiada, outras coisas que ela fala irão fazer menos
sentido porque penetram em campos que ela não tem
experiência ou que ela refletiu pouco a respeito.

Figure 20: Djamila enquanto era secretária adjunta de direitos humanos em São Paulo.

Por fim, Djamila afirma que se o racismo tem alguma solução ou


forma de atenuação, então não lhe parece que seria por meio do
silêncio. É necessário falar e criar uma cultura de ouvir, pois sem
isso o entendimento mútuo parece mais distante ainda.

86
87
13. A Questão
Indígena e
Ambiental
1. Contexto

O Brasil é o país onde o maior conflito futuro da humanidade terá


palco. A floresta amazônica com suas potencialidades e
riquezas é a casa de inúmeras nações ameríndias que vivem
adaptadas ao ecossistema da região. Elas são quem garante
ainda a sobrevivência da mata virgem e preservada. Contudo,
esses grupos representam um obstáculo a outro grupo: todos
aqueles que enxergam as matas brasileiras como um armazém
quase infinito de recursos para explorar. É em função desse
conflito que temos hoje uma questão indígena totalmente
atrelada a uma questão ambiental.

2. Uma Breve História da Relação do Homem com a Natureza

Desde a antiguidade, a natureza sempre foi encarada mais como


um presente a ser amado pelos homens do que uma fonte de
enriquecimento. A natureza era vista como um conjunto de
forças indomáveis e pouco controláveis durante toda a
antiguidade até o fim da idade média. Foi nesse período, no
início da modernidade, que a ciência moderna e o cartesianismo
mudaram o modo como o homem se relacionava com a
natureza. Cada vez mais ela passou a ser compreendida para o
fim de controlá-la. Suas marvilhas passaram a ser vistas como
riquezas e toda riqueza passa a ser vista como fonte de
comodidade para o homem; o desafio que ela representava
passou a ser sobrepujado. Essa mentalidade é mentalidade que
acompanha portugueses e por isso é importante compreender a
ocupação do espaço brasileiro como uma extensão dessa
grande empreitada de domínio do mundo natural.

A natureza brasileira foi desbravada. A mata-atlântica brasileira,


por exemplo, é a região onde vive 70% da população do Brasil e
dela só restam 15% de seu tamanho original. Outros biomas
foram quase totalmente modificados como é o caso da pampa,
no sul. Há, contudo, uma fronteira de bioma que até a década
de 30 era pouco ocupada. Estamos falando do centro-oeste e as
regiões do cerrado e do pantanal. Foi lá que a história do
ambientalismo brasileiro começou.

88
O Ambientalismo Brasileiro deu seus primeiros passos por meio
da vontade dos irmãos Vilas-Boas. Os três irmãos Orlando,
Claudio e Leonardo percebiam, já nos anos 40 do século
passado que as tribos indígenas do interior do Brasil estavam
adoecidas, em péssimas condições de sobrevivência e
abandonadas. Amantes das ideias de Marechal Rondon, que
acreditava no contato pacífico com as tribos indígenas como um
meio de garantir a integridade territorial brasileira, os irmãos
Vilas-Boas propuseram a criação de um parque nacional do
Xingu. Os jovens expedicionários percebiam que essas tribos
eram seminômades o que fazia com que transitassem
constantemente pelo território. Desse modo, o conhecimento
que tinham da floresta seria uma forma de assegurar sua
ocupação constante de modo equilibrado.

Figure 21: Orlando Vilas-Boas e um índio Txicão

Acontece que o parque foi criado nos anos 60, mas não se
tornou uma política de estado constante. As fronteiras agrícolas
avançaram enormemente durante os anos 40 até os anos 80 e
sem a criação de diversos parques seria difícil garantir que
fazendeiros respeitassem essas áreas como áreas de proteção
florestal. Foi precisamente diante do avanço dessas atividades
que outro importante ambientalista surgiu. Nos anos 80 foi a vez
de Chico Mendes denunciar a entrada do garimpo ilegal na
Amazônia. É sabido que há inúmeros metais preciosos em rios
da Amazônia, contudo, para poder retirá-los é necessário
praticar o garimpo. O problema dessa prática é que ela pode se
tornar extremamente danosa ao meio ambiente quando feita de
modo descontrolado e irregular. Chico Mendes era seringueiro e
tornou-se um combatente dessas práticas. No mesmo ano que

89
ousou denunciá-las internacionalmente na ONU foi assassinado.
Tais histórias seguem ocorrendo até os dias atuais, basta
lembrar do caso do funcionário governamental Bruno e o
jornalista Dom Philips, ambos assassinados no ano de 2022 por
estarem envolvidos em registro e combate de atividade
mineradora ilegal. Justamente por isso, é importante entender
que as questões relativas à exploração da Amazônia envolvem
interesses de pessoas poderosas que agem de modo ilegal e
que estão dispostas a fazer uso de violência para garantir seus
ganhos.

Figure 22: Cerimônia do Kuarup

3. Breve História do Campo Brasileiro

É natural que nos perguntemos qual a origem dos conflitos no


interior do Brasil. Afinal, se hoje a floresta amazônica e o
pantanal são ameaçados de sua extinção em função da
mineração e da agricultura, então como foi que chagamos a esse
ponto?

A ocupação do campo brasileiro sempre foi livre desde o início


da colonização portuguesa. Não havia leis que regulassem
terras e, por isso, nunca foi possível traçar um perfil da ocupação
do campo antes das primeiras estatísticas serem coletadas. As
coisas começam a mudar de figura quando se cria a primeira lei
de terras de 1850. Tal lei fixava o acesso a terra por meio da
compra junto ao governo. Desse modo, a lei tornava o acesso a
terra a ex-escravos negros, a imigrantes e pessoas pobres algo
improvável. Essa lei gera a primeira concentração de terras do
país. Naturalmente, essa concentração foi lenta, tanto que seus
problemas são observáveis somente na década de 1950. Nesse

90
período as primeiras ligas camponesas passam a reivindicar
espaço no campo brasileiro.

Tais ligas foram organizadas pelo partido comunista brasileiro


(PCB) e pela igreja católica. Ambos tinham uma presença forte
no campo, pois as revoluções russa e chinesa serviam de
modelo para os partidos comunistas ao redor do globo. Além
disso, a igreja reunia pessoas em torno da teologia da libertação.
Essas ligas defrontaram-se com a Sociedade Rural Brasileira
(SRB) que se colocava contra a reforma agrária no Brasil.

Foi em 1964 que as possibilidades de reforma agrária com um


caráter social tornaram-se ainda mais remotas. Nesse ano, o
Estatuto da Terra foi aprovado. Nele o INCRA (Instituto Nacional
de Colonização e Reforma Agrária) teria a incumbência de
promover uma série de reformas no campo brasileiro. Tais
reformas eram delineadas apontando para a modernização do
campo brasileiro implementando pesticidas, tratores e melhorias
em sementes que permitiam que a agricultura fosse praticada
em grande escala. Desse modo, a paisagem do campo brasileiro
começaria pouco a pouco a se modificar tornando-se
preponderantemente uma zona de grandes latifúndios. O
desmatamento se tornou cada vez mais agudo, pois as fronteiras
agrícolas avançaram na direção do Araguaia-Tocantins e na
direção do Baixo Amazonas. É nesse período que vemos o
surgimento da Comissão Pastoral da Terra (CPT) com o intuito
de arrebanhar os raros e desconectados trabalhadores que
vinham perdendo suas terras. Eis que surge o Movimento dos
Trabalhadores Sem-Terra.

Nesse período um contingente de 30 milhões de brasileiros irá


perder lugar no campo, segundo George Martine. Boa parte
dessas pessoas irá procurar nas cidades trabalho e, em função
disso, a situação das cidades começa a se modificar
brutalmente. Uma primeira consequência que se observou foi o
aumento da violência urbana ao longo dos anos 80, 90 e até os
dias atuais. A falta de assistência social a essas pessoas e as
péssimas condições de vida e moradia geraram facções que
vivem de atividades criminosas. Além disso, O MST tornou-se o
maior movimento campesino da terra precisamente porque a lei
brasileira descreve a terra como tendo função social – ou seja,
toda terra que fique ociosa por um determinado tempo torna-se
reformável, pois ela deve ter uma serventia à população.
Contudo a morosidade da justiça levou o movimento à prática de
ocupar terras para forçar mais rapidamente o seu processo de
desocupação. É importante ressaltar que o MST não é um grupo
socialista. A melhor evidência disso é que hoje em dia há
inúmeras cooperativas criadas por esses trabalhadores que
disputam fatias do mercado consumidor.

91
É comum que se pense que a tecnologia foi a grande
responsável pelos problemas do campo brasileiro. Contudo, isso
é uma visão parcial das questões. A tecnologia trazida pela
revolução verde tornou o Brasil um dos países mais importantes
na produção de alimentos no mundo. Isso certamente é um fato
relevante. A questão que a sociologia entende como
problemática é o modo como essas transformações se deram. A
tecnologia não pode ser culpada quando o homem não planeja
sua implementação. Hoje em dia, cada vez mais há uma
consciência grande de que a tecnologia deve ser pensada para
os propósitos do homem. Ela deve ser conjugada a medidas
ecológicas, que protejam o meio ambiente. Além disso, ela pode
ajudar a preservar os saberes locais que estão preservados em
grupo indígenas e comunidades tradicionais. Casas
sustentáveis, agroflorestas, bioinseticidas são alguns dos
exemplos de formas sustentáveis de convívio do homem com a
natureza.

A implementação dessas técnicas e até mesmo a possibilidade


de criar Zonas de Exclusão Total são algumas das formas de
seguir avançando na necessidade constante de gerar riqueza e
ao mesmo tempo manter a integridade territorial e o prestígio
geopolítico brasileiro. Países da União Europeia, por exemplo,
aprovaram recentemente medidas contra a compra de produtos
advindos do desmatamento. Outros países debatem até que
ponto o Brasil pode ser o único dono de florestas tão valiosas.
Tudo isso assinala para a necessidade de preservar a Amazônia
e toda a vida adaptada a viver nela.

Figure 23: Foto de assentamento agroecológico

4. A vida humana nas florestas

92
A forma de vida humana mais bem adaptada a realidade das
florestas é a vida indígena. Estes povos viveram durante séculos
em uma lógica seminômade em que os recursos eram
esgotados somente até o ponto de haver suficiente para que
outras espécies pudessem sobreviver. Os tupinambás, de
acordo com os estudos de Florestan Fernandes, pensavam sua
presença na floresta como um elemento que precisava respeitar
os ciclos da vida e que, portanto, não poderia exaurir recursos.
Foi o contato com o homem branco que iniciou a modificação
dessa forma equilibrada de convívio.

Ainda que tenham sido dizimados desde o início da invasão


portuguesa, no senso de 2010, 817 mil pessoas se declararam
indígenas. Hoje em dia, há povos que assumiram uma
identidade indígena mesmo vivendo em ambientes com forte
cultura branca. É o caso dos Cariris, de Charruas e tantos outros
que não puderam mais resistir às pressões do desenvolvimento
urbano. Há também aqueles grupos que conseguem preservar
uma certa autonomia, mas quanto a estes grupos o velho dilema
antropológico se coloca: ajudar interferindo ou isolar correndo
riscos? Há grupos que preferem o contato com o homem branco,
pois enxergam nesse contato uma chance de sobreviver. É
ocaso do que fez o cacique Aniceto, que em 1993 passou a
batizar os recém-nascidos de sua tribo como uma forma de
socializá-los no mundo branco.

Além dessa medida de aculturação, ocorreu há alguns anos a


entrada dos povos indígenas nas redes sociais. Para divulgar
sua cultura passaram a ter canais na internet e divulgaram
questões políticas graves. Os guaranis-kaiwoás são uma tribo
do Mato Grosso do Sul que vem há décadas tendo conflitos com
fazendeiros em função da expansão das fronteiras agrícolas
sobre as terras da tribo. A tribo que já sofre com altos índices de
assassinatos e suicídios passou a adotar uma hashtag com os
dizeres #somostodosguaraniskaiowas para conscientizar as
pessoas sobre violência a que eles são submetidos e sobre a
negligência das autoridades brasileiras. O tema chegou a ser
debatido na ONU e mostrou que a empatia digital é um
fenômeno crescente no mundo todo.

Sabemos, no entanto, que esse contato cultural é uma ameaça


às tradições orais, ao papel do artesanato, da pintura, da música
e da dança nessas vidas. Na medida que a vida de uma tribo é
tocada pela cultura massiva e uniformizante do ocidente, a
riqueza cultural dessas tribos torna-se um patrimônio em risco
de extinção. Há, contudo, uma voz que resiste bravamente no
meio indígena e que consegue ser ouvida pela intelectualidade
branca. O nome desse filósofo da mata é Ailton Krenak

Krenak nos apresenta um modo diferente de pensar as relações


do homem com a natureza. Seu modo de pensar, na verdade,
93
tem como pano de fundo uma metafísica diferente daquela que
o ocidente constituiu ao longo dos séculos de capitalismo. Para
ele, todos os seres têm uma perspectiva sobre a existência,
todos os seres são igualmente relevantes na realidade. Desse
modo, nada autoriza um mais que outros a romper com os
equilíbrios fundamentais da natureza. O perspectivismo
indígena é uma ideia que muitos até compreendem como
folclórica ou pré-filosófica, contudo, quando entendemos o seu
real significado descortina-se uma ideia de profundo respeito
pela vida.

“A ideia de nós, os humanos, nos descolarmos da terra, vivendo


numa abstraçao ̃ civilizatória, é absurda. Ela suprime a
diversidade, nega a pluralidade das formas de vida, de
existência e de hábitos. Oferece o mesmo cardápio, o mesmo
figurino e, se possível, a mesma língua para todo mundo.” -
Krenak, A. Ideias para adiar o fim do mundo.

O homem afastou-se da natureza desde a modernidade


acreditando que a tratar como um recurso objetificado não
afetaria sua própria existência. Mais do que isso, o homem
moderno acredita que o modo de viver pode ser uniformizado
não importando onde se viva. A crítica de Krenak é justamente
para olhemos para as cores locais de onde vivemos, pois viver
é sempre contextualizado. Ele deseja mostrar que o mundo pode
ser um lugar vivo e com alma, mas mais do que isso: não é
preciso ser um indígena para entender isso.

Figure 24: Ailton Krenak em 2010

Todos nós sabemos o que significa retornar de um tempo


distante da casa dos pais ou dos avós. A experiência é que os
objetos contam histórias, eles não são meramente objetos. Tudo
94
na casa de uma vó tem vida no sentido de que comunica e
compõe uma atmosfera. Para os povos indígenas algo muito
semelhante se dá: a natureza é viva porque ela guarda séculos
de relações passadas entre netos, pais e filhos.

No perspectivismo indígena, uma montanha, uma árvore ou um


rio pode ser uma pessoa. Para os Krenak, o Rio Doce era seu
avô chamado de Watu. Ver o rio como uma pessoa significa que
é lá que se pode encontrar conforto emocional, acolhimento e
até mesmo o alimento necessário à vida. O rio não é um recurso
a ser exaurido, ele é alguém. Por isso, o desastre de Mariana
não meramente poluiu o Rio Doce, mas matou a alma do avô
dos Krenak.

“Quando despersonalizamos o rio, a montanha, quando tiramos


deles os seus sentidos, considerando que isso é atributo
exclusivo dos humanos, nós liberamos esses lugares para que
se tornem resíduos da atividade industrial e extrativista. Do
nosso divórcio das integraçoe
̃ s e interaçoe
̃ s com a nossa mãe,
a Terra, resulta que ela está nos deixando órfãos, não só aos
que em diferente graduaçaõ são chamados de índios, indígenas
ou povos indígenas, mas a todos.” - Krenak, A. Ideias para adiar
o fim do mundo.

É comum pensar que o pensamento indígena é mítico e que


ainda não compreendeu a verdadeira natureza da realidade.
Contudo, Krenak chama a atenção para o fato de que o homem
branco ainda vive um mito também. O mito da onipotência da
ciência e da solução de todos os problemas. O mito de que a
terra é uma mãe infinita e provedora que não precisa de
cuidados. Os indígenas entendem que a natureza não é
separada de nós. Somos parte dela e ela parte de nós.

Por que é difícil enxergar esse mundo? Talvez a resposta esteja


muito mais no etnocentrismo do mundo ocidental que na
falsidade da visão indígena. A visão etnocêntrica toma as
próprias categorias da ontologia do homem branco como base
única para julgar todas as demais e sem perceber além de julga-
las as engole, pois são antropofágicas e tendem a eliminar o que
ela encontra pelo caminho.

95
14. Sociologia do
Trabalho
1. O que é o trabalho?

O trabalho é definido como a transformação de riquezas naturais


em algo que tenha valor. Tal como vimos no capítulo sobre Karl
Marx, a noção de valor varia, pois tínhamos em um período pré-
capitalista a noção de valor de uso, mas com o surgimento do
capitalismo todas as mercadorias tornam-se produtos com valor
de mercado. Em meio a isso, o trabalho humano tornou-se uma
mercadoria e naturalmente ela passou a trazer inúmeras
questões sociológicas para esse ser que reluta em ser tratado
como um produto.

2. Trabalho e Tecnologia

Uma das grandes alterações provocadas no mundo do trabalho


foi a transição do trabalho com ferramentas para o trabalho com
máquinas. As máquinas passaram não só a aumentar a
produtividade (produtos/tempo), mas passaram a modificar a
oferta de produtos, a organização do tempo e até mesmo o
entendimento do que é o ser humano. As máquinas passam a
ditar o tempo de trabalho do homem, elas têm um ritmo próprio
e o homem deve adequar-se a elas. O número de movimentos
por minuto eleva a consciência do homem no tempo, o tempo
passa a ser marcado pelo trabalho e pela ação. Com 30
parafusos apertados por minuto e isso marca que a cada dois
segundos algo deveria ser feito.

Figure 25: O personagem de Chaplin enlouquece com os movimento repetidos

96
Contudo, as máquinas não foram implementadas somente para
facilitar esforços humanos. Elas foram também substituintes do
profissões inteiras. Nesse caso, quando ela substituem uma
profissão elas causam desemprego estrutural, pois uma
atividade humana não compõe mais a estrutura produtiva.

O avanço tecnológico não seria possível se não houvesse


engenheiros e projetistas desenvolvendo máquinas. Assim, é
natural que se pense que alguns empregos foram extintos e
outros criados. Contudo, a capacidade de repor do capitalismo é
menor do que a destrutiva. Muitos empregos criados têm um
grau de especialização ainda mais baixo do que aquele
destruído. Já outros desses novos empregos são altamente
especializados e demandam uma enorme capacidade inventiva
e treinamento. Engenharia, computação e ciências
administrativas são áreas profundamente dinâmicas e que, tal
como Harry Braverman imaginou, termina por criar uma
clivagem no meio da classe trabalhadora entre trabalhadores
bem treinados e aqueles sem treinamento fazendo pequenos
serviços.

Outra característica importante desse mundo do trabalho que


depende de tecnologia diz respeito ao tamanho desse mercado
de trabalho. Com a era globalizada, as oportunidades de
emprego não são mais disputadas meramente em uma
comunidade pequena, mas muitas vezes em nível internacional.
Por esse motivo, uma das características desse mercado de
trabalho é o movimento imigratório de trabalhadores. Isso
naturalmente mexe com inúmeras questões, pois quando um
trabalhador chega em um novo país ele abandona seu passado,
seus laços e suas amizades e família. Isso causa transtornos
emocionais no imigrante. Por outro lado, para a comunidade que
recebe o novo trabalhador há um potencial sentimento de
rejeição, pois essa pessoa é um estranho e é visto como alguém
que está retirando oportunidades daqueles que já estavam ali.
Sentimentos de xenofobia aparecem nesse mundo globalizado.

Além disso, ainda falando do tema da tecnologia, é importante


reconhecer que nos novos padrões de trabalho há pessoas que
trabalham de modo remoto. Estes trabalhadores tem
flexibilidade de horários porque estão conectados aos seus
chefes por meio da internet e ficam ociosos esperando tarefas.
Isso pode parecer cômodo, mas tem se revelado um motivo de
infelicidade, pois cada vez menos a casa torna-se um ambiente
de descanso e fica associada ao trabalho. Além disso, a ideia de
estar constantemente disponível torna a pessoa controlada por
forças invisíveis: e-mails e mensagens passam a carregar o sinal
que dispara a interrupção da paz pessoal

Por fim, o fenômeno mais perturbador do mundo do trabalho


associado à tecnologia são a uberização. A uberização nasce
97
com o aplicativo de caronas que acabou por transformar e
substituir o taxi em muitas cidades. De modo geral, pessoas que
trabalham com uber foram seduzidas por uma proposta de não
serem mais empregadas e poderem empreender tendo seu
carro. Contudo, o que se percebe é que por meio de promoções,
ofertas e controle a Uber coloca os motoristas em uma corrida
desenfreada para ganhar bônus e premiações enquanto lucra
mais ainda com o trabalho dos seus “parceiros”. Além disso, ela
mostra a dependência do trabalhador com seus telefones.
Aqueles que fazem o aplicativo funcionar são os programadores,
aqueles que dominam a técnica de comunicação. Enquanto o
motorista é aquele que executa um trabalho com menor
especialização.

Figure 26: Grupo de texistas protesta contra a chegada do Uber

3. Trabalho e Raça

No Brasil, o trabalho ainda é visto como algo frequentemente


desprestigiado. Aqui ele se conecta à história do país, às formas
de identidade nacional, racial e de gênero. Por esse motivo, há
muitos trabalhos que nascem da herança escravista. Há
serviços que nascem do mero hábito de ser servido: frentistas
de posto de gasolina, faxineiras domésticas são alguns
exemplos de formas de emprego que não existem no primeiro
mundo, mas que existem aqui porque há espaço no mercado de
trabalho para que uma classe média se sinta distanciada de
certas obrigações.

Além disso, no Brasil há diferenças claras no mundo do trabalho.


Primeiramente a linha racial paga diferentemente, mas também
a linha de gênero modifica o modo como homens e mulheres são
pagos. De modo geral, homens negros podem receber até 40%
menos que homens brancos em por hora trabalhada, segundo o

98
IBGE. Tal situação vem sendo registrada por 10 anos e pouco
se modificou entre 2012 e 2022. Mulheres recebem
aproximadamente 20% a menos que homens em atividades a
fins (IBGE, 2021) e ainda, em muitos casos, tem jornada dupla
na qual tem de trabalhar em casa. Isso, além de reproduzir
padrões de relacionamento patriarcais encontrados no ambiente
de trabalho, afeta o tempo de qualidade com filhos e marido,
elevando os níveis de frustração e insatisfação com o trabalho.

Dentre as camadas mais baixas das faixas salariais, é possível


observar que há uma constante precarização das relações
trabalhistas. Isso ocorre por meio de ataques a direitos
constituídos durante décadas de movimentos sindicais no Brasil
Recentemente, as terceirizações – o direito de contratar uma
empresa para a realização de uma atividade que não é fim –
permitiu o surgimento de uma série de empresas que contratam
funcionários conforme a demanda. Desse modo, essas
empresas reúnem um conjunto de profissionais que não tem
vínculo com a empresa onde trabalham, pois há na verdade são
funcionários ocasionais de uma outra empresa intermediando o
contato entre ambas as partes. Assim, essas pessoas são com
frequência mal pagas, tem empregos inseguros, desprotegidos
e mal conseguem pagar por moradia.

4. Daniel Bell e o otimismo quanto ao trabalho

Daniel Bell é um sociólogo que mostra como a tecnologia no


mundo pós anos 60 e 70 transforma as relaçoe ̃ s entre
trabalhadores e capitalistas. Em seu livro O advento da
sociedade pós-industrial (1973), Bell argumenta que as
transformaçoẽ s que o capitalismo enfrentou tornaram o
conhecimento o recurso fundamental em todas as sociedades
de modo que agora vivemos uma sociedade pós-industrial. O
conhecimento científico e teórico, assim como a capacidade
técnica de implementaçao
̃ desse conhecimento são os principais
fatores da evoluçao
̃ recente de capitalismo.

Bell não discorda de Marx quando o sociólogo alemão afirma


que a tecnologia destruiu relaçoe
̃ s de trabalho durante o século
XIX. Contudo, Bell afirma é que ao longo do século XX a nova
classe trabalhadora deve compor sua participaçao ̃ no mercado
a partir do seu conhecimento e do aperfeiçoamento da técnica.
Figure 27: Daniel Bell
Desse modo o que compreendemos por trabalho nos anos 1800
e o que consideramos trabalho nos anos 2000 muda
consideravelmente. O trabalho sempre esteve associado à
transformaçaõ da realidade e à produçaõ de riqueza. Agora, o
trabalho está um grau acima: está presente na invençao ̃ das
técnicas de produçao
̃ de riqueza.

O sociólogo afirma que a sociedade industrial difere em três


aspectos da sociedade pós-industrial. Primeiramente, a
99
sociedade de produçaõ de bens de consumo é ultrapassada pelo
crescimento e pelo progresso do conhecimento teórico. Essa
passagem é marcada por uma substituiçao ̃ de tecnologia
mecânica, que usa máquinas, para uma tecnologia elétrica, que
usa comunicaçaõ por cabeamento ou sem cabo. A comuni-
caçao
̃ passa a ser a programaçaõ , a linguística e o algoritmo.

Em segundo lugar, Bell crê que o desenvolvimento de ciência e


tecnologia ficam cada vez mais ligados, pois a entrada de capital
no sistema universitário determina uma utilidade para os
investimentos em educaçao ̃ . O tipo de investimento se dá
sobretudo em pesquisa básica, isto é, em pesquisa que
elaboram os limites de aplicaçao ̃ técnica. Por exemplo, as
pesquisas em ondulatória são definidoras do campo da
comunicaçao ̃ . Assim, indústria e universidade formam laços
cada vez mais próximos.

Por fim, segundo Bell, o número de trabalhadores capacitados


só cresce na medida que a populaçao ̃ trabalha no, cada vez
maior, setor de serviços. Os serviços seriam, para ele, as
atividades humanas voltadas para gestão, aplicaçao ̃ e
direcionamento de informaçaõ e conhecimento.

A tese de Bell parece fazer sentido quando analisada dentro dos


parâmetros otimistas dos anos 70, quando trabalhadores
pareciam ter seu treinamento e emprego em linha de
continuidade. Contudo, os anos 90 e 2000 marcam o início de
uma era de trabalhadores super treinados que não conseguem
encontrar emprego facilmente e acabam investindo anos de
formaçao ̃ e treinamento sem ter o retorno desejado, ficando com
dívidas de crédito educativo intermináveis. Essa é a situaçao
̃ de
boa parte da populaçao ̃ americana que soma aproximadamente
3 trilhões de dívidas em educaçaõ e não vê saída próxima para
solucionar essa questão.

Em certo sentido, Bell pensa aos moldes do positivismo


Comtiano, pois ele acreditava que em uma sociedade moderna
necessariamente se veria a emergência e ascensão de
tecnocratas. Contudo, Bell sabe que a sociedade tem diferentes
eixos de funcionamento que nem sempre estão em
comunicaçaõ . Ele diz

“Nas sociedades modernas ocidentais o princípio axial da


estrutura social é economizar – um modo de alocar recursos de
acordo com princípios de menor custo, substituiçao ̃ , otimizaçao
̃
e maximizaçaõ , e assim por diante. O princípio axial da política
moderna é a participaçao
̃ , às vezes mobilizada ou controlada, as
vezes demanda a partir de baixo. O princípio axial da cultura é o
desejo por realizaçao ̃ pessoal e aperfeiçoamento do self. No
passado, essas três áreas estavam conectadas em um sistema

100
comum de valores (e na sociedade burguesa por uma estrutura
de caráter comum).

5. Harry Braverman e a destruiçao


̃ das relaçoe
̃ s produtivas

O livro III do Capital de Marx apresenta uma teoria da expansão


do capitalismo diferente daquela vista no livro I. No livro I, Marx
previa a expansão capitalista e a consequente radicalizaçao ̃ das
suas contradiçoe ̃ s. Já no livro III, Marx diz que uma possibilidade
para o capitalismo seria que o proprietário dos meios de
produçao ̃ deixaria o controle das empresas, pois torna-se melhor
para ele promover um grupo seleto de administradores. Além
disso, ele acredita que novos modos de disponibilidade de
capital estariam acessiveis através do crescimento do sistema
bancário. Marx aparentemente acertou na segunda tentativa.

Braverman acredita que o ritmo da industrializaçao


̃ americana
ao longo dos anos 50 teve como consequência um aumento da
alienaçao
̃ , pois as máquinas foram colocadas no lugar
precisamente dos homens mais qualificados para o trabalho
industrial e manual. O ritmo alucinante de modificaçoe
̃ s não
permitiu a reabsorçao
̃ e treinamento de pessoas qualificadas
para que desempenhassem outras funções elaboradas em
outras áreas. O nome dado a esse fenômeno é o desemprego
estrutural.

O sociólogo em questão discorda de Daniel Bell, pois afirma que


é mitológica a afirmativa de que a qualificaçao
̃ tecnológica do
trabalho tenha levado os trabalhadores a terem mais controle
sobre processos produtivos e sociais. Ele crê que o simples fato
de que trabalhadores agora sejam capazes de operar máquinas
não é suficiente para provar que os trabalhadores atuais sejam
mais qualificados. Na verdade, Um bom exemplo é a máquina
de xerox, que demanda pouquíssimo treinamento especializado
e que não pode ser compa- rado com o trabalho de um
carpinteiro que demora anos para dominar a lida da madeira.

Um subproduto dessa sociedade tecnológica é a criaçaõ de um


grupo de tra- balhadores semiqualificados incapazes de
posicionar-se diante das demandas altas da ciência e da técnica.
Esses trabalhadores são pessoas cujo treinamento leva poucos
dias ou semanas e que não tem a educaçao ̃ necessária para
tornar-se competitivo no setor de serviços. Braverman chegará
a afirmar que a qualificaçao
̃ excessiva chega a ser vista como
algo negativo no mercado de trabalho em certos casos, pois, ao
longo de sua pesquisa, era comum entrevistar trabalhadores
desmotivados e frustrados com a atividade que desem-
penhavam por contraste com a educaçao ̃ que tiveram.

101
Braverman, contrariamente ao que se pode pensar, não era um
insurgente contra a tecnologia. Ele desejava na verdade usar de
modo racional esses avanços para que não causasse problemas
sociais. Para ele é fundamental distinguir entre automaçao
̃ e
tecnologia de substituiçao
̃ .

Automaçao
̃ é o processo de dar ao trabalhador um
desenvolvimento positivo e melhor de execuçaõ de suas tarefas.
Neste modelo as relaçoe ̃ s sociais de produçao
̃ são mantidas
sem destruir empregos, saberes e identidades. Assim, o modo
como o processo de trabalho é organizado, gerenciado e
manipulado não é afetado.

Tecnologia de substituiçao ̃ é um processo que tem uma


influência negativa. A implementaçao ̃ da tecnologia é realizada
de modo a reorganizar as relaçoe ̃ s sociais de produçao
̃ – ocorre
a substituiçao
̃ de trabalhadores por máquinas. Ocorre uma de-
gradaçao ̃ do trabalho. A força de trabalho é reorganizada de
modo que o trabalhador não precisa de elaboraçao ̃ intelectual e
deve obedecer a um pequeno número de gerentes.

Diante de tal cenário ocorre a ascensão da gerência.


Influenciado pela obra de Frederick Taylor, o sociólogo irá
mostrar como novas teorias da gestão aparecem no capitalismo
mecanizado e junto a essas teorias, três novos
desenvolvimentos acentuaram a desqualificaçao
̃ do trabalho.

1º. Gerentes controlam a informaçao ̃ : Somente gerentes


conhecem todas as etapas do processo produ- tivo. Essa é uma
das formas mais clássicas de alienaçao
̃ do trabalho.

2º. O trabalho é dividido: Uma consequência da existência de um


gerente é que cada trabalhador deve participar de uma parte da
produçaõ . Ele deve saber somente o que lhe cabe. Assim, eles
desconhecem o impacto das tarefas que cumprem e do papel
que desempenham.

3º. Controle de Produçao ̃ : Os gerentes são os únicos que


conhecem a produçao ̃ , portanto são também aqueles que
podem intervir sempre que se percebe que a produtividade caiu,
ou sempre que um trabalhador rende menos que o esperado.

Com a qualificaçao
̃ dos trabalhadores deteriorada, eles passam
a valer cada vez menos, assim, essas pessoas são cada vez
mais substituíveis e descartáveis. Por oposiçao ̃ a elas, uma
classe de dirigentes passa a ter importância, contudo seu
trabalho torna-se mais e mais burocrático. Aqui vemos uma
espécie de interpenetraçao
̃ das teses de Marx e Weber, pois
Braverman mostra que a as relaçoe ̃ s de trabalho capitalistas não
dominam somente pela alienaçao ̃ , mas que a alienaçao ̃ anda de

102
mãos dadas com a criaçao
̃ de relaçoe
̃ s de trabalho que também
mantém um alto teor controle burocrático.

Robert Blauner, em Alienaçao ̃ e Liberdade: o trabalhador de


fábrica e sua indústria (1964) critica o conceito de alienaçao ̃
apresentado por Braverman ao afirmar que a alienaçao ̃ só existe
quando os trabalhadores são incapazes de controlar seus
processos de trabalho imediatos. Os que melhor controlam são
menos alienados, já os que tem pouco controle da sua etapa
produtiva são mais alienados. Por isso, ele crê que o
conhecimento dos processos de automaçao ̃ reduz a alienaçaõ .
Seu exemplo é o de trabalhadores da indústria de design
industrial. Esses trabalhadores dominam máquinas
extremamente difíceis de operar – computadores, programas
especiais, ideias de estilo e mercado. Na medida que controlam
essas máquinas, esses trabalhadores tornam-se absolutamente
importantes em uma empresa e tendem a diminuir suas chances
de demissão.

103
15. Pierre Bourdieu
1. Contexto

Pierre Bourdieu (1930 – 2002) nasceu em uma província


campesina do interior da França. Filho de um funcionário dos
correios, ele estudou filosofia e acabou por se destacar no
campo da sociologia. Sua carreira inicia com uma série de
trabalhos de campo acerca da situação da Argélia durante a
guerra de descolonização, mas posteriormente ele dedicou-as a
compreender as relações de poder ao longo da história e no
presente.

Figure 28: Pierre Bourdieu (1996)

2. Nem Marx, nem Weber

Bourdieu foi profundamente influenciado por um retorno a


Durkheim. Sua análise das relações de poder eram críticas da
noção de capital cunhada por Marx, onde capital é
compreendido essencialmente como capital material e produtor
de mercadorias. Além disso, ele é crítico de Weber no ponto em
que este analisa as formas de dominação como sendo
basicamente de três tipos: burocrática, tradicional e carismática.
Bourdieu irá mostrar por meio de um trabalho intitulado Condição
de Classe e Posição de Classe que a burguesia e a nobreza

104
disputaram poder em determinado momento da história, mas
que para compreender a dinâmica desse processo é necessário
reformar as noções de capital e de dominação.

O primeiro fato é que, ao longo do tempo, burguesia e nobreza


elaboraram formas de distinção. A nobreza alimentou a ideia de
que tradição, o sangue azul, o absenteísmo, a terra e a
ociosidade eram traços de prestígio. A burguesia, por outro lado,
promoveu a ideia de inovação, trabalho, envolvimento político e
vida urbana. Até mesmo a moda, valores estéticos e formas de
pronunciar palavras entram no complexo menu de formas de
distinção entre as classes. Por meio desses símbolos e valores
os grupos construíram uma identidade que combateu
dialeticamente com outros grupos e classes. Justamente aqui,
Bourdieu precisa reformar a noção de capital, pois segundo sua
análise, há um momento em que nobreza e burguesia são
igualmente classes dotadas de riquezas econômicas e capital
material. Será, portanto, o capital simbólico que será disputado
por estas classes.

Capital simbólico é tudo que pode ser trocado em um nível


cognitivo e que pode ser acumulado a fim de angariar poder. Por
exemplo, podemos dizer que existe o capital social, que consiste
em conjuntos de relacionamentos que permitem penetrar em
certos círculos de convívio. Círculos de convívio tem enorme
potencial para trazer capitais materiais. Além dele, há o capital
cultural. Este capital também é fundamental para a organização
das sociedades modernas, pois consiste em conhecimento seja
diretamente aplicável ao trabalho, seja conhecimento que pode
ser utilizado para se relacionar com um grupo e dar a esse grupo
coesão interna. Por exemplo, podemos dizer que o
conhecimento de vinhos, queijos e pães é um capital cultural
poderoso em países como a França. Já o conhecimento de
futebol, jogadores e história do esporte pode ser extremamente
útil em um ambiente de trabalho brasileiro. Esses
conhecimentos entram em trocas e organizam o convívio de
pessoas em determinados grupos sociais.

Bourdieu acredita que não somente a burguesia do período


moderno e a nobreza decadente travaram lutas simbólicas, mas
na verdade essa é uma característica de qualquer sociedade em
que haja disputas de poder. Para tanto é necessário
compreender como cada sociedade monta seus espaços e
modos de operar trocas simbólicas. Na busca por explicar isso,
Bourdieu nos fala do habitus.

A definição de habitus se assemelha muito ao termo utilizado por


Durkheim para delimitar o fato social, contudo, ele revela menos
o caráter de determinação do grupo sobre o individuo e mais a
ideia de uma agência social. O habitus é um conjunto de
disposições sociais internalizadas individualmente que molda
105
percepções, sentimentos e as ações das pessoas. Desse modo,
pessoas que participam de um mesmo habitus são pessoas que
tendem a prestar atenção aos mesmos eventos, compartilhar
lugares, formas de se divertir, gostos musicais, paladares,
gestos e visões políticas. Ele define grupos sociais e pode ter
membros que flutuam entre diferentes formas de habitus.

Justamente por poderem arregimentar diferentes grupos e


pessoas, Bourdieu irá perceber que as lutas de classe
identificadas por Marx, não são somente lutar pelo controle do
capital material, mas também pelo controle do capital simbólico.
Precisamente para controlá-lo é necessário que as instituições
entre em disputa quanto a qual habitus irá regê-la. Assim, nasce
o conceito lutas simbólicas de Bourdieu, onde naturalmente
haverá violência simbólica entre os grupos em disputa.

Na medida que um habitus penetra um determinado grupo


social, esse grupo estabelece regras próprias para que ocorram
trocas simbólicas. Acadêmicos fazem trocas por meio de
revistas e congressos. Políticos fazem trocas em congressos e
senados. Famílias fazem trocas no ambiente doméstrico. Cada
ambiente com seus códigos e regras de conduta. É desse modo
que nasce o campo.

Cada habitus se desenvolve em um campo.

“A noção de campo político tem muitas vantagens: ela permite


construir de maneira rigorosa essa realidade que é a política ou
o jogo político. Ela permite, em seguida, comparar essa
realidade construída com outras realidades como o campo
religioso, o campo artístico… e, como todos sabem, nas ciências
sociais, a comparação é um dos instrumentos mais eficazes, ao
mesmo tempo de construção e de análise.

[...] um campo é um microcosmo autônomo no interior do


macrocosmo social. Autônomo, segundo a etimologia, significa
que tem sua própria lei, seu próprio nomos, que tem em si
próprio o princípio e a regra de seu funcionamento. É um
universo no qual operam critérios de avaliação que lhe são
próprios e que não teriam validade no microcosmo vizinho. Um
universo que obedece a suas próprias leis, que são diferentes
das leis do mundo social ordinário. Quem quer que entre para a
política, assim como alguém que ingresse em uma religião, deve
operar uma transformação, uma conversão. Mesmo que esta
não lhe apareça como tal, mesmo que não tenha consciência
disso, ela lhe é tacitamente imposta, e a sanção em caso de
transgressão é o fracasso ou a exclusão. Trata-se, portanto, de
uma lei específica e que constitui um princípio de avaliação e
eventualmente de exclusão. Um índice, o escândalo: quem entra
para a política se compromete tacitamente a eximir-se de certos
atos incompatíveis com sua dignidade, sob pena de escândalo.”
106
“Um campo é um campo de forças, e um campo de lutas para
transformar as relações de forças. Em um campo como o campo
político ou o campo religioso, ou qualquer outro campo, as
condutas dos agentes são determinadas por sua posição na
estrutura da relação de forças característica desse campo no
momento considerado.” Bourdieu, P. O Campo Político

Na sua pesquisa de campo, Bourdieu notou que com respeito ao


ingresso nas carreiras de maior prestigio na França, a
quantidade de pessoas vindas de classes populares era baixa.
A faculdade de medicina tinha presença de 15% de classes
populares, 35% de classe média e 50% de classes superiores.
Os cursos de ciências da Escola Normal Superior, da Escola
Nacional de Administraçao ̃ (que recruta somente altos
funcionários) e da Politécnica de Paris tinham porcentagens
ainda mais discrepantes. Já as escolas de nível secundário
técnico apresentavam até 70% de pessoas advindas das
classes populares. As razões para tais porcentagens não
estavam associadas ao esforço pessoal, mas, sim, ao tipo de
capital cultural que era herdado a partir de campos em que a
maior pobreza intelectual, o horizonte de expectativas e os
valores acabavam por ser determinantes do futuro das pessoas.

Estrutura de diferentes publicos


escolares segundo a profissão do pai
100%
10 10
90%
30 35 35
80% 20 40
35 50
70% 60 65 70 70
60%
50% 40
40 40
40% 40
70
30% 55 40
20% 32 25 20 25
30 25 25
10% 20
10 8 10 10 5
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as

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Cl
Cl

Es

Classe Popular Classe Média Classe Superior

Além da tendência a escolha de carreira de acordo com a


profissão do pai, Bourdieu fez pesquisas onde o tipo de leitura
era cruzado com o grau de instrução da pessoa. Naturalmente,
Bourdieu descobriu tendências e gostos pessoas definidos em
termos de campo e de habitus.

107
Tipo de Leitura segundo o grau de instrução
Universidade Grande Secundário Técnico Primário
Escola
Romance 28 27 27 32 34
Policial
Romance 17 14 22 27 17
de
Aventura
Livro de 25 24 22 18 10
Arte
Romance 65 54 62 60 35
Filosofia 18 13 15 11 7
Ensaio 16 14 6 6 3
Político
Economia 12 19 5 3 4
Ciências 18 27 11 10 6
A tendência mais forte aparece em negrito

Fonte: ‘Reprodução Cultural e Reprodução Social’

108
16. Norbert Elias
1. Contexto

Norbert Elias é um sociólogo alemão nascido em Breslávia, em


1897. Elias estudou medicina e filosofia, mas foi na sociologia e
na história que sua produção acadêmica adquiriu relevo. Em
1933 Elias fugiu da Alemanha por ser judeu e encontrou em
Paris e Londres o ambiente para escrever a sua obra
monumental chamada O Processo Civilizador. Tal obra conta
como a noção de civilização foi cunhada no ocidente e tornou-
se uma espécie de ideal que passou a regular a vida tal como
ela é vivida cotidianamente.

Figure 29: Norbert Elias em 1987

2. A Obra de Erasmo

109
Segundo Elias, foi na obra de Erasmo de Roterdã De Civilitate
Morum Puerilium que uma série de observações
comportamentais foram feitas e que marcaram a história do
ocidente. O livro teve 30 edições com Erasmo ainda vivo e até o
século XVII mais de 150 edições tinham sido realizadas. O livro
visa instruir o filho de um príncipe, mas a precisão com que ele
descreve as atitudes corporais acabou tornando-se de
fundamental valia para as pessoas corrigirem suas posturas
cotidianas.

Sobre o olhar, Erasmo diz

“o olhar esbugalhado é sinal de estupidez; o olhar fixo, sinal de


inércia; o olhar dos que têm inclinação para a ira é cortante
demais; é vivo e eloquente o dos impudicos; se seu olhar
demonstra uma mente plácida e afabilidade respeitosa, isto é o
melhor. Não é por acaso que os antigos dizem: os olhos são o
espelho da alma.” Roterdã, E. De Civilitate Morum Puerilium

Justamente essas observações não somente acerca do olhar,


mas também sobre vestuário, gestos, e expressões faciais irão
compor a imagem interna da alma, no discurso de Erasmo. Elias
faz notar que Erasmo valoriza toda a distinção que deve haver
com relação ao povo sem educação.

“Não deve haver meleca nas narinas, diz ele mais adiante. O
camponês enxuga o nariz no boné ou no casaco e o fabricante
de salsichas no braço ou no cotovelo. Ninguém demonstra
decoro usando a mão e, em seguida, enxugando-a na roupa. É Figure 30: Erasmo de Roterdã
mais decente pegar o catarro em um pano, preferivelmente se
afastando dos circunstantes. Se, quando o indivíduo se assoa
com dois dedos, alguma coisa cai no chão, ele deve pisá-la
imediatamente com o pé. O mesmo se aplica ao escarro.” –
Elias, N. O Processo Civilizador

“Os dedos ficam engordurados. “Digitos unctos vel ore


praelingere vel ad tunicam extergere incivile est”, diz Erasmo.
Não é polido lambê-los ou enxugá-los no casaco.
Frequentemente se oferece aos outros o copo ou todos bebem
na caneca comum. Mas Erasmo adverte: “Enxugue a boca
antes.” Você talvez queira oferecer a alguém de quem gosta a
carne que está comendo. “Evite isso”, diz Erasmo. “Não é muito
decoroso oferecer a alguém alguma coisa semimastigada.” E
acrescenta: “Mergulhar no molho o pão que mordeu é
comportar-se como um camponês e demonstra pouca elegância
retirar da boca a comida mastigada e recolocá-la na quadra. Se
não consegue engolir o alimento, vire-se discretamente e cuspa-
o em algum lugar.” – Elias, N. O Processo Civilizador

Elias vai mostrando-nos em inúmeras passagens que a nossa


vida atual é permeada por um abandono de hábitos que antes
110
eram praticados sem maior problema. A ideia de civilizado e de
depreciação do bárbaro vão formando o que conhecemos hoje
como sendo o mundo civilizado do ocidente. Nesse mundo, toda
a vida interna do corpo tem de ser escondida ou apagada. O nojo
com relação às funções corporais passa a ser uma marca da
conduta civilizada.

Elias, percebe que o modo como a ideia de civilização passa a


organizar a vida no ocidente é um tanto imanente. Uma nova
ordem começa pouco a pouco se estabelecer não porque um
grupo tenha desejado silenciosa e planejadamente implementar
essa forma de comportar-se. Na verdade, a própria população
vai se autorregulando a ponto de disseminar por meio da
recriminação o comportamento “bárbaro” o comportamento
civilizado.

“A coisa aconteceu, de maneira geral, sem planejamento algum,


mas nem por isso sem um tipo específico de ordem. Mostramos
como o controle efetuado através de terceiros é convertido, sob
vários aspectos, em autocontrole, que as atividades humanas
mais animalescas são progressivamente excluídas do palco da
vida comunal e imbuídas de sentimentos de vergonha, que a
regulaçao
̃ de toda a vida instintiva e afetiva por um firme
autocontrole se torna cada vez mais estável, uniforme e ge-
neralizada. Isso tudo certamente não resulta de uma ideia
central concebida há séculos por pessoas isoladas, e depois
implantada em sucessivas geraçoe ̃ s como a finalidade da açaõ
e do estado desejados, até se concretizar por inteiro nos
“séculos de progresso”. Ainda assim, embora não fosse
planejada e intencional, essa transformaçaõ não constitui uma
mera sequência de mudanças caóticas e não-estruturadas. .” –
Elias, N. O Processo Civilizador

111
17. Michel Foucault
1. Contexto

Michel Foucault (1926 – 1984) foi um pensador transversal.


Misturou filosofia, história, sociologia, literatura em uma forma de
pensamento genial. Foucault se situa na transição entre o
pensamento estruturalista e pós-estruturalista, mas mais
importante que sua metodologia, é sua capacidade inventiva de
pensar sobre novos objetos de estudo. Neste capítulo, iremos
estudar um pouco da sua trajetória intelectual.

A obra de Foucault é primorosa em mostrar como a sociedade


capitalista burguesa criou instituições de controle social que
convergiam com seus interesses enquanto classe. Tal controle
era fruto de técnicas de saber-poder que emergiam do domínio
que a ciência, o direito, a medicina e os poderes instituídos
exerciam. A primeira dessas histórias de controle social foi a das
doenças mentais.

2. A História da Loucura

O livro História da Loucura na Idade Clássica, de Foucault narra


a história do conceito de loucura. A história desse conceito
112
permite compreender a emergência da psiquiatria enquanto
disciplina e compreender como os saberes acerca de um
fenômeno como as doenças mentais é historicamente
contingente. Foucault nos faz notar que ao longo da história a
igreja, a arte, a filosofia, a medicina social e por fim a psiquiatria
foram campos que se sucederam em autoridade para falar desse
fenômeno.

De início, a loucura era cuidada por membros da igreja. Vista


como uma espécie de evidência da existência de Deus em suas
múltiplas formas de castigo, a loucura compartilhava com a lepra
uma aura de divindade. A diferença era que a loucura era
arrebanhada por Naus que vagavam pelos rios da Europa
aportando aqui e ali para receber doações da bondade alheia.
Já os leprosos, vistos como castigados de Deus eram excluídos
do convívio nas pequenas feiras medievais.

Figure 31: A nau dos loucos por Hieronymus Bosch (c. 1510)

113
Se se retiram os leprosos do mundo e da comunidade visível da
Igreja, sua existência, no entanto é sempre uma manifestação
de Deus, uma vez que, no conjunto, ela indica sua cólera e
marca sua bondade. [...] Aquilo que sem dúvida vai permanecer
por muito mais tempo que a lepra, e que se manterá numa época
em que, há anos, os leprosários estavam vazios, são os valores
e as imagens que tinham aderido à personagem do leproso; é o
sentido dessa exclusão, a importância no grupo social dessa
figura insistente e temida que não se põe de lado sem se traças
à sua volta um círculo sagrado. – Foucault, M. A História da
Loucura

O curioso dessa revolução na visão sobre a loucura é que a lepra


será encarcerada e mantida distante da população no momento
que se descobre que ela é uma doença infectocontagiosa. A
partir disso, os leprosários passam a ser construídos e a
erradicação da lepra vai pouco a pouco deixando espaço na
órbita das cidades. Na França, por exemplo, em 1200 havia
19.000 leprosários. Já em 1600, somente 3 leprosários
sobreviviam.

Enquanto isso, lentamente a experiência da loucura ia se


modificando lentamente. As Naus de Loucos deixavam de
percorrer o interior da Europa. As pequenas cidades
refloresciam após o renascimento cultural e comercial. Assim,
nesse contexto, os loucos passam a participar da vida
comunitária e são até mesmo elogiados nas palavras de Erasmo
de Roterdã. A loucura passa a ser pintada com uma certa leveza
e uma imagem de virtude. Ser louco não significa mais ser
punido com a desrazão da alma, mas passa a significar ser
capaz de estar desconectado da vida de negócios que a
nascente burguesia vivenciava.

No renascimento o tema da loucura passa a substituir o tema da


morte, tão presente no imaginário medieval. A efemeridade da
vida é tida como razão para acreditar e dar valor à loucura. Além
disso, o retorno do platonismo como filosofia importante permite
que o jogo de verdade e aparência coloque a loucura como parte
daqueles que tem um contato com o mundo das formas, com
aquilo que transcende. A loucura é vista como sabedoria, virtude
inseparável da razão. É entregar-se à vontade obscura de Deus.

No entanto, o mundo moderno seguiu progredindo e a burguesia


modificou o mundo que conhecíamos. Ela cria o estado
moderno, cria os poderes e instituições necessários aos seus
interesses. É nesse ponto que surge um novo plano de ações. É
necessário cuidar da saúde do estado e do povo. É necessário
racionalizar, como nos mostra Weber, a vida urbana, a saúde
laboral, limpar a cidade do crime, da preguiça, da libertinagem e
de qualquer forma de desvio.

114
A partir da criação do Hospital Geral, da abertura das primeiras
casas de correção e até o fim do século XVIII, a era clássica
interna. Interna os devassos, os pais dissipadores, os filhos
pródigos, os blasfemadores, os homens que procuram se
desfazer, os libertinos. E traça, através dessas aproximações e
dessas estranhas cumplicidades, o perfil de sua experiência
própria do desatino – Foucault, M. A História da Loucura

A loucura entra no pacote de desviante justamente por sua


incapacidade de trabalho. Os diretores gerais de hospitais
passam a constituir um poder médico com a missão de
salvaguardar a saúde do tecido social. Esse tecido não pode ter
furos, queimaduras. Ele deve estar coeso.

Os diretores têm todos os poderes de autoridade, direção,


administração, comércio, polícia, jurisdição, correção sobre os
pobres de Paris, tanto no exterior como no interior do Hospital
Geral. – Foucault, M. A História da Loucura

Diante das estranhas aproximações da loucura com outros tipos


de desvio o social, o olhar médico foi pouco a pouco se
especializando. Foucault mostra que o tempo traz novas
categorias advindas de outras práticas sociais. Cada vez mais,
diante da iminência da revolução francesa, um olhar mais
individualizado e centrado na pessoa começa a ganhar espaço.
Surge o sujeito de direito, alguém que deve reunir a capacidade
política da participação e do uso da liberdade.

A medicina positivista do século XIX herda todo esse esfoço do


iluminismo. Ela admitirá como algo já estabelecido e provado o
fato de que a alienação do sujeito de direito pode e deve coincidir
com a loucura do homem social, na unidade de uma realidade
patológica que é ao mesmo tempo analisável em termos de
115
direito e perceptível às formas mais imediatas da sensibilidade
social. A doença mental que a medicina vai atribuir-se como
objeto, se constituirá lentamente como a unidade mítica do
sujeito juridicamente incapaz e do homem reconhecido como um
perturbador do grupo, e isto sob o efeito do pensamento político
e moral do século XVII. – Foucault, M. A História da Loucura

A saúde mental passará a ser formulada como um campo


possível de investigação a partir da confluência de inúmeras
áreas de interesse. De um lado, a medicina social trouxera
considerações relativas à normalidade. A filosofia trouxera
considerações acerca das perturbações da alma e do
pensamento, assim como a importância da racionalidade. A
filosofia política temas ligados à capacidade de exercício da
cidadania. No conjunto, a saúde mental lidava com uma
complexidade gigante de fatores.

Foi pouco a pouco que o olhar sobre os doentes mentais mudou.


Homens como Esquirol e Pinel foram capazes de lançar um
olhar humanizado para essas questões.

Vi-os nus, cobertos de trapos, tendo apenas um pouco de palha


para abrigarem-se da fria umidade do chão sobre o qual se
estendiam. Vi-os mal alimentados, sem ar para respirar, sem
água para matar a sede e sem as coisas mais necessárias à
vida. Vi-os entregues a verdadeiros carcereiros, abandonados a
sua brutal vigilância. Vi-os em locais estreitos, sujos, infectos,
sem ar, sem luz, fechados em antros onde se hesitaria fechar os
animais ferozes, e que o luxo dos governos mantém com
grandes despesas nas capitais. – Esquirol, in Foucault, M. A
História da Loucura

A psicanálise será a nova disciplina que irá surgir a partir desse


jogo de forças. Ela terá a partir de então o caminho livre para
observar o fenômeno da histeria e compreender a mente como
um objeto de estudo cuja causalidade orgânica poderia ser posta
em questão. Freud irá cunhar a ideia de uma mente inconsciente
que rege nosso comportamento e que explica inúmeros
aspectos irracionais do nosso comportamento.

3. A História da Sexualidade

A sexualidade é outro fenômeno estudado por Foucault. Para ele


era necessário traçar a genealogia das formas de controle
moderno. A genealogia de Foucault é um método que busca
traçar as origens por meio de uma busca não linear, mas que
fosse aproximando campos e olhando em áreas vizinhas como
diferentes poderes geraram saberes capazes de influenciar na
trajetória de uma prática. Foucault dizia que operava como um
arqueólogo que nem sempre cavava verticalmente, mas às
vezes precisava cavar horizontalmente a fim de ver outros
116
fenômenos contemporâneos e perceber trocas mútuas entre
diferentes zonas.

A história da sexualidade é um projeto de busca do


entendimento do comportamento contemporâneo acerca do
prazer, do corpo e do papel social do sexo. Foucault iniciou pela
sexualidade repressora vitoriana e passou depois ao estudo da
sexualidade grega. Irei apresentar aqui na ordem histórica,
contrária a de sua pesquisa.

3.1. O Uso dos Prazeres

A sexualidade grega é uma prática pedagógica. Ela orquestra


práticas domésticas, práticas públicas e práticas privadas. Ela
não é um ambiente de segredos, mas de desenvolvimento e
descoberta de si.

Foucault inicia pelas práticas privadas. A sexualidade era o


desfecho de uma série de preparações do corpo. Antes de
praticar o ato sexual, exercícios físicos, alimentos e bebidas
específicas faziam parte de uma dieta que irá constituir a base
do dispêndio. Os regimes eram baseados na administração do
quente e do frio, de comidas e bebidas que estivessem de
acordo com as estações do ano e resultavam na busca da
Enkrateia, ou seja, do domínio de si. Dominar todos os tipos de
apetite era parte da construção do sujeito que tem um controle
harmonioso do desejo sexual.

Em outro plano, a sexualidade servia à vida doméstica. O


relacionamento de homens e mulheres era em Atenas e Esparta
uma obrigação, pois estava relacionado com gerar a
permanência da vida grega. Os relacionamentos dessa natureza
tinham uma importância fundamental para a vida das cidades-
estados.
Figure 32: As ânforas gregas contam um
pouco da história das relações seuxias
na Grécia Em geral, homens de 30 anos casavam-se com mulheres de 15.
Nesse relacionamento a mulher terminava sua educação com
seu marido e aprendia com ela a ser a organizadora da vida da
casa.

O ato sexual não é, certamente, percebido pelos gregos como


um mal; ele não é para eles, objeto de uma desqualificação ética.
[...] A reflexão médica e filosófica descreve-o como capaz de
ameaçar, por sua violência, o controle e o domínio que convém
exercer sobre si; de minar pelo esgotamento que provoca, a
força que o indivíduo deve conservar e manter; e como marca
da mortalidade do indivíduo ao mesmo que assegura a
sobrevivência da espécie. – Foucault, M. O Uso dos Prazeres.

Por fim, existia também a sexualidade entre os homens. Era


comum homens mais velhos se relacionarem com rapazes mais
117
jovens em uma relação que tinha como fim a troca de prazer por
ensinamentos. Por meio desses contatos, os meninos gregos
geravam a situação de intimidade para que houvesse conversas
acerca de política, ética, arte e história.

A virilidade na Grécia não está associada à violência na guerra,


mas também está associada à capacidade de manter, cuidar e
gerar uma família. A preparação para a vida como cidadão se
dava por meio desses contatos. Nesse âmbito também se
inscreve a sexualidade do senhor com seus escravos. Não é
incomum encontrar nos relatos de patriarcas gregos os
encontros sexuais com escravos para fins pedagógicos.

Diante de uma vida sexual tão aberta é natural perguntar-se


como os gregos entendiam suas relações. Sobre isso Foucault
nos faz ver que as categorias para pensar as práticas sexuais
eram muito diferentes: o que guia o comportamento é o apreço
pela beleza.

De fato, a noção de homossexualidade é bem pouco adequada


para recobrir uma experiência, formas de valorização e um
sistema de recortes tão diferentes do nosso. Os gregos não
opunham, como duas escolhas excludentes, como dois tipos de
comportamento radicalmente diferentes, o amor ao seu próprio
sexo ao amor pelo sexo oposto.

Aos seus olhos, o que faziam com que se pudesse desejar um


homem ou uma mulher era unicamente o apetite que a natureza
tinha implantado no coração do homem para aqueles que são
belos, qualquer que seja seu sexo. – Foucault, M. O Uso dos
Prazeres

3.2. A Vontade de Saber

De um modo totalmente diverso a sexualidade vitoriana se


consolidou. Essa sexualidade nasce no mundo burguês onde
mais uma vez o controle, o cálculo, a cientificidade e a
racionalização irão desempenhar um papel fundamental.

Foucault reconhece essa mudança não somente com relação às


práticas gregas, mas aparentemente com relação ao início da
modernidade. A sexualidade foi mutada, foi proibida e vigiada.
Ela deixa de ser uma arte erótica com técnicas de prazer para
tornar-se uma área de sistematicidade e classificação.

Parece que, por muito tempo, teríamos suportado um regime


vitoriano e a ele nos sujeitaríamos ainda hoje. A pudicícia
imperial figuraria no brasão da nossa sexualidade contida,
muda, hipócrita. [...] Diz-se que no início do século XVII ainda
vigorava uma certa franqueza. As práticas não procuravam o
segredo; as palavras eram ditas sem reticência excessiva e, as
118
coisas, sem demasiado disfarce. – Foucault, M. A Vontade de
Saber

Do controle, passou-se à proliferação. Se por um lado, na


sexualidade vitoriana a crianças são dessexualizadas, o sexo
passa a ter de ser legitimado, o espaço dele fica restrito aos
aposentos do casal e não se fala mais sobre suas práticas, seus
prazeres e desejos em público. Por outro, o sexo passa a estar
presente somente na conversa de boca pequena e nos
segredos. A sexualidade passa a ser critério de divisão nas
escolas. A igreja passa a controlar e descrever cuidadosamente
todas as proibições. O tiro sai pela culatra.

Figure 33: Thomas Rowlandson pintava Se o sexo é reprimido, isto é, fadado à proibição, à inexistência
imagens eróticas sempre permeadas por e ao mutismo, o simples fato de falar dele e de sua repressão
voyeurismo e reprovação do sexo
possui como que um ar de transgressão deliberada. […] Falar
contra os poderes, dizer a verdade e prometer o gozo; vincular
a iluminação, a liberação e a multiplicação das volúpias;
empregar um discurso onde confluem o ardor do saber, a
vontade de mudar a lei e o esperado jardim das delícias – eis o
que, sem dúvida, sustenta em nós a obstinação em falar do sexo
em termos de repressão; eis, também o que explica talvez, o
valor mercantil que se atribui não somente a tudo o que dela se
diz [...]– Foucault, M. A Vontade de Saber

Foucault, dirá que nossa civilização moderna não desenvolveu


uma arte erótica, mas sim uma ciência sexual. Tal ciência veio
para arquitetar a era capitalista e industrial a fim de direcionar o
esforço vital para a construção da nova sociedade.

Nossa civilização, pelo menos à primeira vista, não possui ars


erótica. Em compensação é a única, sem dúvida, a praticar uma
Scientia sexualis. Ou melhor, só a nossa desenvolveu, no
decorrer dos séculos, para dizer a verdade do sexo,
procedimentos que ordenam, quanto ao essencial, em função de
uma forma de poder-saber rigorosamente oposta à arte erótica.
– Foucault, M. A Vontade de Saber

A sexualidade sã é a burguesa, que é usada para fins científicos


como a permanência da espécie. A sexualidade pervertida e
animalesca é a proletária, que precisa de controle e profilaxia.

Se o sexo é reprimido com tanto rigor, é por ser incompatível


com uma colocação no trabalho, geral e intensa; na época em
que se explora sistematicamente a força de trabalho, poder-se-
ia tolerar que ela fosse dissipar-se nos prazeres, salvo naqueles,
reduzidos ao mínimo, que lhe permitem reproduzir-se. [...] É,
sem dúvida, preciso admitir que uma das formas primordiais da
consciência de classe, é a afirmação do corpo; pelo menos, foi
esse o caso da burguesia no decorrer do século XVIII; ela
converteu o sangue azul dos nobres em um organismo são e
119
uma sexualidade sadia. [...] As condições de vida impostas ao
proletariado [...] mostravam que se estava longe de tomar em
consideração o seu corpo e o seu sexo: pouco importava que
essa gente vivesse ou morresse, de qualquer maneira se
reproduziria sozinha – Foucault, M. A Vontade de Saber

4. Vigiar e Punir

De início, comparemos duas formas de sentenciar criminosos


em dois momentos distintos da história.

Sentença 1.

Damiens fora condenado [em 2 de março de 1757] a pedir


perdão publicamente diante da porta principal da igreja de Paris
[onde devia ser] levado e acompanhado numa carroça, nu, de
camisola, carregando uma tocha de cera acesa de duas libras;
[em seguida] na dita carroça, na praça de Grève, e sobre um
patíbulo que aí será erguido, atenazado nos mamilos, braços,
coxas e barriga das pernas, sua mão direita segurando a faca
com que cometeu o dito parricídio, queimada com fogo de
enxofre, e às partes em que será atenazado se aplicarão
chumbo derretido, óleo fervente, piche em fogo, cera e enxofre
derretidos conjuntamente, e a seguir, seu corpo será puxado e
desmembrado por quatro cavalos e seus membros e corpo
consumidos pelo fogo, reduzido a cinzas, e suas cinzas lançadas
ao vento – Foucault, M. Vigiar e Punir

Figure 34: Suplícios de Damiens (1757)

Sentença 2.

Art 17 – O dia dos detentos começará às seis horas da manhã


no inverno, às cinco horas no verão. O trabalho há de durar nove
120
horas por dia em qualquer estação. Duas horas por dia serão
consagradas ao ensino. O trabalho e o dia terminarão às nove
horas do inverno, às oito no verão. Art. 18 – Levantar: Ao
primeiro rufar de tambor, os detentos devem levantar-se e vestir-
se em silêncio, enquanto o vigia abre as portas das celas. –
Foucault, M. Vigiar e Punir

O que aconteceu na Europa na transição do Antigo Regime para


o regime no qual o iluminismo e a revolução francesa surgem é
uma grande modificação nas formas jurídicas. Vemos uma
passagem da lógica de punição onde suplícios eram aplicados
para o perceber o surgimento de instituições como prisões. O
que Foucault nos faz perguntar é: o que aconteceu nessa
sociedade que provocou essa mudança?

Primeiramente, compreendamos os suplícios. Eles repousam na


arte quantitativa do sofrimento. Ele faz parte de um ritual onde
se explora a extensão do sofrimento humano, da crueldade e da
imaginação. Os suplícios são aplicados em um estado
absolutista em que não há espaço para contestação da verdade,
portanto, não há espaço para divisão dos poderes. Não há
julgamentos e a verdade se faz pública pelo ato da punição. Nos
suplícios fura-se a língua do blasfemador, queimam-se os
impuros, corta-se o punho de quem matou, ostenta-se o
instrumento do crime. Ademais, todo crime contra um súdito do
rei é um crime potencialmente que o ataca.

Foucault nos mostra que a mentalidade europeia passa a mudar


ao longo do século XVIII. Protestos contra os suplícios são
encontrados em toda parte na segunda metade do século XVIII:
as críticas surgem entre filósofos e teóricos do direito; entre
juristas e magistrados, parlamentares. É preciso que a justiça
puna ao invés de se vingar. Os próprios tipos de crime mudam:
nota-se uma diminuição dos crimes de sangue; os delitos contra
a propriedade parecem prevalecer sobre os crimes violentos.

Michel Foucault nota que a organização da sociedade sofre um


novo arranjo em que o absolutismo perde força e as forças do
Estado Liberal aparecem.

Uma modificação no jogo das pressões econômicas, de uma


elevação geral no nível de vida, de um forte crescimento
demográfico, de uma multiplicação de riquezas e das
propriedades, e da necessidade de segurança que é uma
consequência disso. – Foucault, M. Vigiar e Punir

Nesse contexto a punição passou a elaborar técnicas de controle


social que mais uma vez vieram fortalecer a sociedade liberal
burguesa. Trata-se das formas de biopoder. O biopoder é o
poder que se exerce sobre o comportamento das pessoas. Ele
aparece em instituições como escolas, quartéis e presídios. De
121
modo geral, ele se exerce pela vigilância, pela coordenação do
tempo, pela docilização do corpo e das emoções.

Nesse modelo, a vigilância passa a cada vez mais uniformizar o


comportamento desses indivíduos a ponto de que a prisão deixa
de ser um lugar para recuperar o criminoso, mas produzi-lo de
um certo modo tal que ele seja facilmente identificado. A prisão
forma o criminoso moderno.

Houve durante a época clássica, uma descoberta do corpo como


objeto de alvo e poder. Encontraríamos facilmente sinais dessa
grande atenção dedicada ao corpo – ao corpo que se manipula,
se modela, se treina, que obedece, responde, se torna hábil ou
cujas forças se multiplicam. O homem-máquina. . – Foucault, M.
Vigiar e Punir

Um dos modelos mais bem acabados dessa técnica foi pensado


pelo filósofo utilitarista Jeremy Bentham. Sua prisão panóptica
permite maximizar o controle com o mínimo de esforço. A
educação do vigiado se dá por meio da mera suposição de estar
sendo vigiado. Desse modo, a melhor forma de controle é aquele
que é introjetada no modo de ser da pessoa.

Figure 35: Panoptico permite ver tudo sem ser visto

122
18. Zygmunt Bauman
1. Contexto

Zygmunt Bauman nasceu na Polônia em 1925 e trabalhou na


Inglaterra desde 1971. Ele é o sociólogo contemporâneo que
melhor traduziu as mudanças de estilo de vida que a
globalização causou às gerações que atravessaram o século XX
e que ingressaram no século XXI.

Figure 36: Zygmunt Bauman em 2013

Bauman chama de modernidade sólida a sociedade na qual as


estruturas sociais eram estáveis e tinham pouca maleabilidade.
Na modernidade sólida, o amor era pensado como uma relação
sólida que deveria construir uma família e que deveria perdurar
diante das dificuldades. Além disso, o amor sólido precisa de um
labor sólido. Os empregos e profissões eram planejados para
que durassem a vida inteira. Para perceber isso, basta lembrar
como nossos avós e bisavós eram profissionais estáveis com
um saber fazer extremamente repetitivo e com o qual se
ganhava uma maestria absoluta. Ademais, além de amor e
trabalho, o lugar onde se vivia era tido como a pátria ou terra
para amar. A conexão dos homens com suas terras e com as
suas origens eram profundas e não autorizava movimentos
migratórios ou mudanças muito grandes. Eis o mundo moderno
em que a solidez era a característica fundamental.

“Numa sociedade líquido-moderna, as realizaçoe ̃ s individuais


não podem solidificar-se em posses permanentes porque, em
um piscar de olhos, os ativos se transformam em passivos, e as
capacidades, em incapacidades. As condiçoe ̃ s de açaõ e as

123
estratégias de reaçao ̃ envelhecem rapidamente e se tornam
obsoletas antes de os atores terem uma chance de aprendê-las
efetivamente.” [...] “Em suma: a vida líquida é uma vida precária,
vivida em condiçoe ̃ s de incerteza constante. As preocupaçoe ̃ s
mais intensas e obstinadas que assombram esse tipo de vida
são os temores de ser pego tirando uma soneca, não conseguir
acompanhar a rapidez dos eventos, ficar para trás, deixar passar
as datas de vencimento, ficar sobrecarregado de bens agora
indesejáveis, perder o momento que pede mudança e mudar de
rumo antes de tomar um caminho sem volta”– Bauman, Z. Amor
Líquido

Bauman faz um diagnóstico do mundo globalizado que ele


chamará de mundo da pós-modernidade liquida. A liquidez é a
metáfora certa para falar de como o mundo mudou. Os amores
não são mais permanentes ou planos de vida toda. Há uma
baixa tolerância às dificuldades nas relações conjugais. O
desejo é volátil e diante do menor ensejo, as relações se
desarmam. Até mesmo o que chamamos de amor – um
sentimento revestido de dedicação, renúncia e camadas de
descoberta – torna-se menos presente.

Com o trabalho ocorre o mesmo. Nos tempos líquidos, trabalhar


não envolve necessariamente um aprofundamento e uma
maestria absolutas em uma habilidade. O trabalho tornou-se
variado e incerto. Cada vez menos ser especialista em uma
única tarefa é valioso, pois o que o mercado de trabalho quer
são pessoa com habilidades e competências diversas. Aliás, o
próprio mercado de trabalho é dinâmico no mundo globalizado,
pois empregos não são transmitidos de pai para filho, ou de
círculos de relacionamentos fechados. Os empregos passaram
a ser disputados em nível internacional. Isso causa mobilidade,
imigração e, naturalmente, os amores tornam-se mais voláteis.
O amor tem o prazo de validade que um emprego tem. Não é
possível garantir que se possa sobreviver sempre no mesmo
local. Aliás, o amor à pátria tem de ser esquecido, a própria
referência de uma casa e um lugar para nutrir sentimentos.

A modernidade líquida favorece aqueles que tem a capacidade


de recomeçar. Dar início a novos projetos, esquecer o passado
e olhar para o futuro é a melhor qualidade que se pode ter nestes
tempos. Naturalmente, com isso perdem-se inúmeros
referenciais. Por exemplo, a identidade pessoal sustentada na
memória deixa de existir, pois esquecer o que se foi pode ser
fundamental para conseguir reiniciar. Outro referencial que fica
ameaçado é a distinção entre o local e o global, pois com a
movimentação de pessoas novas mercadorias caminham junto
e invadem espaços. A invasão de espaços por elementos
globais provoca a perda das formas locais de vida – tradições,
hábitos, formas de relação, línguas etc. vão se interpenetrando
com o global formando o que Robertson chamou de Glocal.
124
“as organizações sociais (estruturas que limitam as escolhas
individuais, instituições que asseguram a repetição de rotinas,
padrões de comportamento aceitável) não podem mais manter
sua forma por muito tempo (nem se espera que o façam), pois
se decompõem e se dissolvem mais rápido que o tempo que leva
para moldá-las e, uma vez reorganizadas, para que se
estabeleçam. É pouco provável que essas formas, quer já
presentes ou apenas vislumbradas, tenham tempo suficiente
para se estabelecer, e elas não podem servir como arcabouços
de referência para as ações humanas, assim como para as
estratégias existenciais a longo prazo, em razão de sua
expectativa de vida curta: com efeito, uma expectativa mais curta
que o tempo que leva para desenvolver uma estratégia coesa e
consistente, e ainda mais curta que o necessário para a
realização de um “projeto de vida” individual.” – Bauman, Z.
Tempos Líquidos.

O mundo líquido não é para todos, no entanto. A liquidez é uma


característica que uma certa parcela da população vive, pois a
globalização trouxe enormes desigualdade sociais internamente
às nações e entre as próprias nações. Há uma parcela da
população que permanece atrelada à solidez não porque isso
seja um projeto para suas vidas, mas porque a pobreza serve
como uma amarra social.

“As chances mais amplas de vitória pertencem às pessoas que


circulam perto do topo da pi- râmide do poder global, para as
quais o espaço pouco significa e a distância não é problema [...]
Os que estão do lado receptor da nova mobilidade planetária não
têm essa liberdade. Não podem contar com a clemência
daqueles em relaçao ̃ aos quais prefeririam manter distância,
nem com a tolerância daqueles de quem gostariam de estar mais
próximos. Para eles, não há saídas sem guardas nem portas de
entrada hospitaleiramente abertas. Eles são daquele lugar.” –
Bauman, Z. Tempos Líquidos.

A nova sociedade líquida também aboliu as barreiras entre o


público e o privado. Cada vez mais a confissão por meio de
redes sociais faz com que haja uma perda de fronteiras entre
aquilo que deve ser tratado com o cuidado das pessoas
próximas e a mera curiosidade dos conhecidos distantes.

“Os adolescentes equipados com confessionários eletrônicos


portáteis são apenas aprendizes treinando e treinados na arte
de viver numa sociedade confessional – uma sociedade notória
por eliminar a fronteira que antes separava o privado e o público,
por transformar o ato de expor publicamente o privado numa
virtude e num dever públicos, e por afastar da comunicação
pública qualquer coisa que resista a ser reduzida a confidências
privadas, assim como aqueles que se recusam a confidenciá-
las.”– Bauman, Z. Vida para Consumo
125
Um último tema de relevo na sociologia de Bauman é o conceito
de instituições zumbi. Tais instituições são assim chamadas
porque perderam a funcionalidade apesar de seguirem
existindo. Esse é o caso da família tradicional e nuclear que em
inúmeras sociedades perdeu a capacidade de manter-se
estruturada como pai, mãe e filhos unidos morando sob o
mesmo teto. Essa instituição vem sendo modificada por
aspectos ligados ao ritmo de trabalho dos pais, pelos agregados
da família que fazem o papel de cuidadores dos filhos ou mesmo
pela longevidade dos avós. Além disso, essas instituições tem
um comportamento de frequentemente engolir outras
instituições.

126
19. Stuart Hall
1. Contexto

Stuart Hall é um sociólogo anglo-jamaicano de influência


marxista que se interessou por compreender a questão das
identidades culturais no mundo moderno e globalizado. Tal
fenômeno é de especial interesse para Hall porque, além da sua
trajetória pessoal, o mundo globalizado tem produzido
competitividade e perda de seguranças básicas. Diante disso, a
xenofobia é um sentimento que se cresce conjuntamente ao
nacionalismo no século XXI. No entanto, há uma diferença em
relação ao nacionalismo do romantismo do século XIX. O novo
nacionalismo tem um apelo populista que desapega da
valorização da própria cultura. Ele torna-se um sentimento
sobretudo de ódio à cultura do outro.

2. Questões de Identidade Cultural

Sobre a questão da identidade Hall afirma que socialmente há


duas definições contrastantes. A primeira é da identidade como
uma essência imutável que reflete uma integralidade e
incorruptibilidade de um povo ou nação.

“a questão da identidade o preocupa em função do chamado o


retorno da questão da identidade – não que a questão da
identidade algumas vez tenha sido abandonada, mas ela
retornou com uma força particular. Esse retorno tem a ver com
o fato de que a questão da identidade foca no ponto onde todo
o conjunto de diferentes desenvolvimentos sociais e discursos
passam a estar inter-relacionados. [...] A lógica do discurso de
identidade afirma que elas têm estabilidade e que isso seria algo
com um certo número de vantagens em um mundo que se
modifica rápida e constantemente. Identidades parecem
oferecer uma espécie de garantia de que o mundo não está
sendo arruinado e desmantelado tão rápido quanto às vezes
pode parecer. É como um ponto fixo do pensamento e do ser,
um fundamento para as nossas ações, um ponto fixo num
mundo que dá voltas. [...] A lógica da linguagem sobre
identidades é uma lógica de profundezas. Por exemplo, dizemos
“aqui, dentro de mim sei que...” para expressar alguma coisa que
pareça profundamente verdadeira sobre mim mesmo. As
identidades parecem guardar uma certa autenticidade
inquebrantável sobre quem nós somos, uma espécie de
“verdadeiro eu””.

Mas há uma outra definição de identidade que reflete um


processo em constante transformação. Essas novas identidades

127
são as mais presentes no mundo moderno. Hall afirma que elas
não refletem mais uma pureza. Os movimentos migratórios do
mundo global retiraram delas a unidade e a integridade.

“identidades não são unificadas e, nos tempos modernos


tardios, elas são cada vez mais fragmentadas e fraturadas;
nunca são singulares, mas, sim, construções discursivas
múltiplas que cruzam posições e práticas diferentes, por vezes
interseccionadas e antagônicas. Elas estão sujeitas a uma
historicização radical e estão constantemente em processo de
mudança e transformação [...] Identidades são, então,
constituídas dentro, e não fora das representações discursivas.”
– Hall, S. Questões de Identidade Cultural

Essas identidades de processos são aquelas compostas por


comunidades imaginárias. São os descendentes de italianos no
Brasil que se referem a uma Itália que não existe mais. São os
ingleses filhos de caribenhos que se referem a uma vida na
Jamaica ou Barbados que não existe mais. São essas
comunidades imaginadas que irão compor as novas identidades
no mundo globalizado.

Ao final, as ideias de Hall servem para compreender os


fenômenos recentes de retorno das ideologias nacionais, do
racismo autorizado por líderes políticos e a xenofobia contra
imigrantes. Com as ideias de Hall percebemos que o racismo e
a xenofobia são fenômenos com uma complexidade maior do
que supostamente se possa pensar. O ódio que trazem diz
menos respeito ao entendimento de si mesmo ou ao incomodo
que o diferente gera na vida prática. O ódio brota mais em função
de que o diferente parece colocar um espelho em frente a
alguém que não reconhece a própria identidade, mas que alega
tê-la. A frustração de não saber qual a sua própria essência é
revertida em violência e por meio da raiva a sensação de ao
menos saber que não são serve de base para unir um grupo.

“Os ingleses não são racistas porque eles odeiam negros, mas
porque eles não sabem quem são sem os negros. Eles têm de
saber quem eles não são para manterem-se sabendo quem
são.”– Hall, S. Questões de Identidade Cultural

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