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(semana nº 4)
Boletim Criminal Comentado 188 - Junho de 2022
Procurador-Geral de Justiça
Mário Luiz Sarrubbo
Assessores
Fabiola Sucasas Negrão Covas (descentralizada)
Olavo Evangelista Pezzotti
Ricardo Silvares
Rogério Sanches Cunha
Danilo Pugliesi (descentralizado)
Analistas Jurídicos
Ana Karenina
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Boletim Criminal Comentado 188 - Junho de 2022
SUMÁRIO
NOTÍCIAS...............................................................................................................................................4
AVISOS............................................................................ ......................................................................6
1-Tema: STJ muda jurisprudência sobre anulação integral de agravantes mediante confissão.............7
2-Tema: Duração de medidas cautelares diversas da prisão devem atender às circunstâncias do caso
concreto..............................................................................................................................................10
DIREITO PENAL....................................................................................................................................12
NÚCLEO DE GÊNERO...........................................................................................................................14
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Boletim Criminal Comentado 188 - Junho de 2022
NOTÍCIAS
O Centro de Apoio Operacional Criminal (CAOCrim) lançou, no dia 14 de junho, um aplicativo que
facilitará o acompanhamento de recursos na segunda instância, por parte dos promotores de Justiça,
em processos de relevância nos quais atuam.
A nova ferramenta (clique aqui) organiza melhor as informações e confere celeridade no fluxo da
comunicação com o CAOCrim.
A última edição do Programa Fala, MPSP, transmitido no canal do Ministério Público no YouTube
entrevistou o promotor Olavo Pezzotti, assessor do Centro de Apoio Operacional Criminal (CAOCrim),
que salientou que o Ministério Público aposta nos Acordos de Não Persecução Penal (ANPPs) porque
a ferramenta permite resolver "os casos mais simples, daquele criminoso que não é o habitual, não
é o profissional, não é o que se dedica a organizações criminosas, tem-se maior espaço e maiores
ferramentas para direcionamento à criminalidade e à criminalidade complexa".
Na conversa com o jornalista Claudio Augusto, Pezzotti esclareceu ainda quais são os parâmetros que
balizam o acordo, incluindo-se o ressarcimento da vítima, hoje figura central no processo penal.
Conforme noticiado no Boletim Criminal Comentado nº 186, a instituição, desde que passou a
priorizar esse caminho, já celebrou cerca de 30.000 ANPPs.
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Boletim Criminal Comentado 188 - Junho de 2022
3- Núcleo de Atendimento às Vítimas de Violência e seus familiares (NAVV) completa três meses
Nesse período, também disponibilizou no site do MPSP seu Planejamento Estratégico, o Protocolo
de Atendimento para violência envolvendo direta ou indiretamente crianças e adolescentes, roteiro
de escuta/oitiva para vítimas de violência sexual maiores de 18 anos e outros materiais destinados à
garantia de acesso à informação sobre direitos das vítimas de crimes violentos.
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Boletim Criminal Comentado 188 - Junho de 2022
AVISOS
O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no uso de suas atribuições legais, a pedido da
Secretaria Especial de Políticas Criminais, AVISA que, no momento, está disponível, exclusivamente,
aos (às) promotores (as) de justiça da Capital, Campinas, Carapicuíba, Cubatão, Diadema, Embu das
Artes, Guarujá, Guarulhos, Itapevi, Itaquaquecetuba, Osasco, Santana de Parnaíba, Santo André, São
Bernardo do Campo, São José dos Campos, Sumaré e Taboão da Serra, com atribuição cível, criminal
e de tutela coletiva, o cadastro para acesso aos vídeos captados pelas câmeras portáteis dos policiais
militares, vinculados a ocorrências de fatos típicos penais. Para tanto, o (a) interessado (a) deverá
enviar seus dados cadastrais pelo formulário.
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ESTUDOS DO CAOCRIM
O MPSP obteve uma vitória expressiva no Superior Tribunal de Justiça (STJ), alcançando na Terceira
Seção da corte a reformulação do Tema Repetitivo 585, que estabelecia que "é possível, na segunda
fase da dosimetria da pena, a compensação da atenuante da confissão espontânea com a agravante
da reincidência".
No julgamento desta quarta-feira (22/6), prevaleceu a tese apresentada em sustentação oral pelo
procurador-geral de Justiça, Mario Sarrubbo, para quem nos casos de multirreincidência os efeitos
da confissão devem favorecer o réu com a anulação de uma única agravante, não de todas,
possibilitando a majoração da pena.
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NOTÍCIAS DO STJ
Para a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), é cabível a celebração de acordo de delação
premiada em quaisquer crimes cometidos em concurso de agentes, e não apenas se houver
investigação pelo delito de organização criminosa.
Com esse entendimento, o colegiado negou o pedido da defesa de um ex-magistrado que alegava
ilegalidade no uso da colaboração premiada como meio de obtenção de prova em processo ao qual
responde. Para a defesa, a colaboração premiada, nos termos da Lei 12.850/2013, só seria admissível
se houvesse indícios de organização criminosa ou terrorista, ou ainda de criminalidade transnacional
(artigo 1º, parágrafos 1º e 2º).
Um dos peritos foi preso em outra ação – desdobramento da Operação Lava-Jato – e passou a
colaborar com a Justiça, ocasião em que falou a respeito do pagamento de propina nas perícias
realizadas por designação do juiz, além de outras irregularidades.
A relatora do habeas corpus, ministra Laurita Vaz, afirmou que, diante da definição de organização
criminosa contida no parágrafo 1º do artigo 1º da Lei 12.850/2013, a alegação da defesa não se
sustenta. Na sua avaliação, os pressupostos para que possa ser caracterizada a organização criminosa
estão configurados no caso.
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direcionados, o pai e a mulher do magistrado – os quais teriam constituído uma pessoa jurídica,
aparentemente estabelecida com a finalidade de lavar capitais.
Apesar disso, os investigados não foram acusados de integrar organização criminosa, mas, para a
relatora, tal circunstância não pode resultar no afastamento das provas obtidas no acordo de delação
premiada, uma vez que não se pode desconsiderar a hipótese de futura acusação por esse crime.
De todo modo, ressaltou Laurita Vaz, a doutrina e a jurisprudência têm admitido que sejam
celebrados acordos de colaboração premiada na investigação de outros crimes cometidos em
concurso de agentes, como já fez o Supremo Tribunal Federal em casos de corrupção passiva e
lavagem de capitais.
A ministra lembrou situações esparsas em que a legislação concede benefícios processuais e penais
aos colaboradores: extorsão mediante sequestro em concurso de agentes (artigo 159, parágrafo 4º,
do Código Penal); crimes contra o Sistema Financeiro Nacional (artigo 25, parágrafo 2º, da Lei
7.492/1986) e Lei de Crimes Hediondos (parágrafo único do artigo 8º), entre outras hipóteses.
Além disso, segundo ela, o Código de Processo Penal não regulamenta o procedimento de
formalização dos acordos de delação premiada, e a Lei 12.850/2013 não prevê, de forma expressa,
que os meios de prova ali previstos sejam válidos apenas na apuração do delito de organização
criminosa.
COMENTÁRIOS DO CAOCRIM
Sempre entendemos que o instituto da colaboração premiada, nos termos que delineados na Lei
12.850/13, pode ser aplicado para outros crimes, mesmo que não cometidos por organização
criminosa, mas que autorizam o beneplácito da delação (como, por exemplo, associação criminosa –
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art. 288 do CP). A citada Lei criou, no nosso ordenamento jurídico, um microssistema do pacto
premial, destrinchando os benefícios e o procedimento a serem observados, assegurando direitos e
ditando deveres aos atores envolvidos no negócio jurídico.
A aplicação da Lei 12.850/13 para crimes que não envolvem crime organizado tem autorização do
direito penal (analogia in bonam partem) e do processo penal (analogia integradora). Importante
recordar, num quadro de aparente conflito de normas, a teoria do diálogo das fontes. A ideia de que
as leis devem ser aplicadas de forma isolada umas das outras é afastada pela referida teoria. O
ordenamento jurídico deve ser interpretado de forma unitária. A teoria surge para fomentar a ideia
de que o Direito deve ser interpretado como um todo de forma sistemática e coordenada. Uma
norma jurídica não excluiria a aplicação da outra, como acontece com a adoção dos critérios clássicos
para solução dos conflitos de normas (antinomias jurídicas) idealizados por Norberto Bobbio. Pela
teoria, as normas não se excluiriam, mas se complementariam. Nas palavras do professor Flávio
Tartuce, “a teoria do diálogo das fontes surge para substituir e superar os critérios clássicos de
solução das antinomias jurídicas (hierárquico, especialidade e cronológico). Realmente, esse será o
seu papel no futuro” (Manual de direito civil, 2012, p. 66). Nesse mesmo sentido, citando Frederico
Valez Pereira, temos a lição dos promotores de Justiça Masson e Marçal:
“Noutro vértice, em qualquer caso que envolver delação, afigura-se conveniente a aplicação da
sistemática (diálogo das fontes) inaugurada pela Lei 12.850/13, nos seus artigos 4º ao 7º, até porque
este foi o único diploma normativo que delineou um procedimento a ser para a corporificação do
acordo de colaboração premiada, razão pela qual temos a Lei do Crime Organizado como uma
espécie de lei geral procedimental. (...) Não obstante a existência de vários regramentos prevendo o
instituto da delação premiada, até a vigência da Lei 12.850/13, havia em nosso ordenamento jurídico
uma imensa vala em relação ao procedimento a ser adotado na gestão da colaboração. Justamente
por isso, ‘e não apenas admissível, tendo em conta a analogia, mas plenamente recomendável que
se apliquem as regras procedimentais disciplinadas na Lei das organizações criminosas a todas as
hipóteses de utilização do instrumento premial no ordenamento jurídico penal brasileiro’” (Crime
Organizado, 5ª ed., 2020, p. 188).
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DESTAQUE
Não há disposição legal que restrinja o prazo das medidas cautelares diversas da prisão, as quais
podem perdurar enquanto presentes os requisitos do art. 282 do Código de Processo Penal,
devidamente observadas as peculiaridades do caso e do agente
AgRg no HC 737.657-PE, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, por unanimidade,
julgado em 14/06/2022.
COMENTÁRIOS DO CAOCRIM
A redação do art. 282 do CPP apresenta grande semelhança com a do art. 312 do mesmo Código,
este tratando dos pressupostos para a decretação da prisão preventiva, a saber, “garantia da ordem
pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação
da lei penal”. Indaga-se, então, qual o critério a ser utilizado pelo juiz, quando da opção por uma ou
outra medida. O norte a ser seguido é o que orienta a prisão preventiva como última ratio, isto é,
derradeira alternativa quando não restar outra menos gravosa.
Esse caráter residual da prisão preventiva, cabível, de forma excepcional, quando se revelarem
insuficientes ou ineficazes as demais medidas cautelares, inspirou a reforma. Nesse sentido, a
propósito, o disposto no art. 282, § 6º, do código, alterado pela Lei 13.964/19, ao dispor que “a prisão
preventiva somente será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida
cautelar (art. 319). O não cabimento da substituição por outra medida cautelar deverá ser justificada
de forma fundamentada nos elementos presentes do caso concreto, de forma individualizada”.
No julgado em comento, o STJ decidiu, em acréscimo, não haver disposição legal que restrinja o prazo
das medidas cautelares diversas da prisão, as quais podem perdurar enquanto presentes os
requisitos do art. 282 do Código de Processo Penal, devidamente observadas as peculiaridades do
caso e do agente.
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DIREITO PENAL:
JURISPRUDÊNCIA DO STJ
Para a incidência da majorante de pena pelo furto noturno, basta que a conduta tenha ocorrido no
período em que a população se recolhe para descansar. Portanto, não é necessário que as vítimas
estejam dormindo, sendo que a punição deve ser aumentada até mesmo se o crime se der em um
carro estacionado na rua.
Com esse entendimento, a 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça estabeleceu tese em recursos
repetitivos para definir de uma vez por todas as balizas para a correta aplicação da majorante de
pena prevista no parágrafo 1º do artigo 155 do Código Penal. A votação foi unânime.
Ao definir o aumento de pena, o Código Penal é genérico e econômico: diz que a punição é
aumentada em um terço pelo crime cometido durante o repouso noturno. As posições fixadas pelo
STJ foram desenvolvidas ao longo do tempo pela jurisprudência. A tese aprovada terá de ser
obrigatoriamente respeitada pelas instâncias ordinárias.
Relator, o ministro Joel Ilan Paciornik destacou que o objetivo do legislador foi sancionar de forma
agravada aquele que se beneficia da condição de sossego, da menor vigilância dos bens e da reduzida
capacidade de resistência das vítimas para praticar o crime.
Isso significa que não importa se as vítimas estão dormindo ou mesmo em casa, se o local é
definitivamente habitado, se é residencial ou comercial. Também não há uma janela de horário para
incidência da majorante: tudo vai depender da análise do caso concreto, de acordo com os costumes
de cada localidade.
Um dos casos julgados, por exemplo, trata de réu que tentou furtar a bateria de um carro estacionado
na rua às três da manhã. Em teoria, seria plenamente aplicável a majorante de pena prevista no
parágrafo 1º do artigo 155 do Código Penal.
No entanto, o relator optou por afastá-la porque o crime se deu mediante rompimento de obstáculo.
E, nos termos de outra tese recentemente firmada, não incide a majorante do furto noturno na
hipótese de o crime ter ocorrido na sua forma qualificada. A votação na 3ª Seção foi unânime.
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COMENTÁRIOS DO CAOCRIM
1) Nos termos do parágrafo 1º do artigo 155 do Código Penal, se crime de furto é praticado durante
o repouso noturno a pena será aumentada de um terço;
4) É irrelevante o fato de as vítimas estarem ou não dormindo no momento do crime ou local de sua
ocorrência (estabelecimento comercial, via pública, residência desabitada ou veículos), bastando que
o furto ocorra obrigatoriamente à noite e em situação de repouso.
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NÚCLEO DE GÊNERO
NOTA DE POSICIONAMENTO
Manual “Atenção Técnica para Prevenção, Avaliação e Conduta nos Casos de Abortamento”,
elaborado pelo Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas da Secretaria de Atenção
Primária à Saúde, do Ministério da Saúde
Junho de 2022
Sem qualquer pretensão de abordar a temática que envolve a área médica no trato da
questão, pretende-se, com esta nota, enunciar o posicionamento técnico do Ministério Público no
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âmbito de sua atuação criminal, a respeito de conceitos cuja observação lhe cabe enquanto
instituição à qual a Constituição Federal incumbiu a titularidade da ação penal pública.
De fato, como bem lembra o manual, o Brasil adota legislação desde 1940, Código Penal, que
prevê, em seu artigo 128:
Além desses dois casos previstos no Código Penal, a Ação de Descumprimento de Preceito
Fundamental 54, julgada pelo Supremo Tribunal Federal, incluiu em 2012 outra figura que autoriza o
aborto, que é a hipótese de anencefalia do feto.
O direito à vida, previsto na Constituição Federal como direito fundamental, é direito que
cabe ao Estado assegurar, abrangendo não apenas o de continuar vivo, mas também o seu exercício
digno. A proteção à vida, inclusive a uterina, são bens jurídicos fundamentais garantidos, mas não
absolutos, fundamentando-se o direito à interrupção da gravidez nos casos previstos na lei e na
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, guardião da Carta Magna1.
Apesar da doutrina penal tradicional e já sedimentada sobre o tema reconhecer que tais
figuras são três espécies de reconhecido “aborto legal”, o manual, documento da área da saúde, quer
explicar juridicamente o seu significado negando tal nomenclatura, atribuindo-a de equivocada, e
busca lhe dar novo alcance, ocupando-se de um papel que incumbe não ao Ministério da Saúde, mas
a quem é titular da ação penal:
1 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional / Alexandre de Moraes. – 37. Ed. – São Paulo : Atlas, 2021.
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“Não existe aborto “legal” como é costumeiramente citado, inclusive em textos técnicos. O que existe é o
aborto com excludente de ilicitude. Todo aborto é um crime, mas quando comprovadas as situações de
excludente de ilicitude após investigação policial, ele deixa de ser punido, como a interrupção da gravidez por
risco materno. O acolhimento da pessoa em situação de aborto previsto em lei deve ser realizado por
profissionais habilitados” (pág. 14).
...
Nota-se que o móvel do legislador não foi nada nobre. Muito se debate se o fato de o artigo 128 falar em não
punir o aborto praticado por médico implica dizer que o aborto, mesmo nas hipóteses autorizadas, seria crime,
deixando-se apenas de aplicar sanção; ou se o próprio crime restaria afastado. Limitando a análise apenas à
redação, pode-se concluir sim que todo aborto é crime, sendo afastada a pena nos casos específicos apontados.
No entanto, no âmbito da doutrina do Direito Penal, prevalece o entendimento de que a punibilidade integra
o conceito de crime e, nessa perspectiva, o crime seria, de plano, afastado. Na prática, a discussão tem pouca
relevância, pois, uma vez que a gravidez tem tempo limitado e, para fins de interrupção, a limitação temporal
é mais restritiva ainda, seria impossível aguardar transcorrer todo um procedimento para apurar se houve
crime, ou não (pág. 22/23).
O Manual atenta que o tema tem aparente pouca relevância, mas busca, na realidade,
reforçar o caráter penal da norma e incutir nas entrelinhas a persistência da conduta criminal que
eventualmente legitime a adoção de providências intimidatórias e persecutórias à gestante.
Nesse passo, cabe ao Ministério Público, enquanto titular da ação penal, não apenas reforçar
a doutrina aplicável ao tema, mas também ressaltar que a comunicação falsa de crime, a denunciação
caluniosa, o abuso de autoridade e a violência institucional também são figurais penais relevantes e
adequadas às condutas daqueles que deturparem a leitura e a interpretação jurídica da norma e
conduzir à mulher cuja gravidez decorreu de violência sexual, ou diagnosticada nas situações em que
o aborto é permitido por lei e pela ADPF 54 do STF, a um atendimento abusivo, intimidatório e
revitimizante.
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infração penal sem dizer que ‘não há crime’, como faz no art. 23 do mesmo diploma legal.”2. No
mesmo sentido, temos a lição de Mirabete 3.
“Costuma-se chamá-lo aborto sentimental: nada justifica que se obrigue a mulher a aceitar uma maternidade
odiosa, que dê vida a um ser que lhe recordará, perpetuamente, o horrível episódio da violência sofrida” 4.
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5 De acordo com a Portaria MS/GM n° 2.282/2020 do Ministério da Saúde, há ainda a necessidade de um parecer técnico
do(a) profissional de medicina que ateste a compatibilidade da idade gestacional com a data da violência sexual relatada e
um termo que aprove o procedimento de interrupção da gravidez, assinado por no mínimo três integrantes da equipe
multiprofissional.
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A propósito, pertinente observar que a Convenção de Belém do Pará prevê, em seu artigo
2º, que a violência contra a mulher abrange não só a violência física, sexual e psicológica, mas
também aquela perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, onde quer que ocorra;
outrossim, em seu artigo 4º, que toda mulher tem direito ao reconhecimento, desfrute, exercício e
proteção de todos os direitos humanos e liberdades consagrados em todos os instrumentos regionais
e internacionais relativos aos direitos humanos, que abrangem, dentre outros, o direito a que se
respeite sua vida; o direito a que se respeite sua integridade física, mental e moral; e o direito a não
ser submetida a tortura.
O art. 9º, §3º, da Lei 11.340/06 dispõe que à mulher submetida a violência doméstica e
familiar se asseguram, além de serviços de contracepção de emergência e de profilaxia de doenças
sexualmente transmissíveis a da AIDS, “outros procedimentos médicos necessários e cabíveis”. Nada
impede que o juiz, o promotor de Justiça ou a autoridade policial adote medidas para o
encaminhamento da vítima a hospitais para o acesso ao direito de interrupção da gravidez, quando
se estiver diante das hipóteses da lei e essa for sua intenção.
Não bastasse, a Lei Federal n. 12.845/13, que dispõe sobre o atendimento obrigatório e
integral de pessoas em situação de violência sexual, prevê a obrigação dos hospitais de garantir às
vítimas de violência sexual atendimento emergencial e multidisciplinar, objetivando tratamento dos
agravos físicos e psíquicos decorrentes de violência, o que compreende diagnóstico e tratamento das
lesões; amparo médico, psicológico e social; facilitação do registro da ocorrência e providências
correlatas; profilaxia da gravidez e de Doenças Sexualmente Transmissíveis DST; coleta de material
para exame de HIV e acompanhamento; além de fornecimento de informações sobre direitos legais
e serviços disponíveis, o que evidentemente abrange o direito à interrupção da gestação, desde que
presentes as hipóteses previstas em lei.
Vale observar que a lei não prevê o período máximo para a interrupção da gravidez. Norma
técnica do Ministério da Saúde prevê:
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“Sob a perspectiva da saúde, abortamento é a interrupção da gravidez até a 20a ou 22a semana de gestação,
e com produto da concepção pesando menos que 500g. Aborto é o produto da concepção eliminado pelo
abortamento.de que o procedimento deva ocorrer até a 20ª semana de gestação”6.
É uma referência da área técnica que, a nosso ver, é legítima, entretanto o transcorrer do
prazo não afasta a legalidade do procedimento, consideradas as condições seguras do procedimento.
Incumbe à área médica inclusive proceder a um diagnóstico pautado na perspectiva de gênero, ou
seja, que atente não só aos riscos da gestante no âmbito de sua saúde física, mas também no de sua
saúde psicológica. Ter a perspectiva das dores de carregar, nos ombros, a tortura de prosseguir com
uma gravidez decorrente de grave violação a dignidade sexual da mulher, é uma diretriz também
legítima, constitucional e assim reconhecida em nossa legislação penal.
Não por outro motivo, o tempo para a decisão e para a realização do procedimento é
fundamental para impedir violações outras, garantindo-se prioridade ao processo. Ao Ministério
Público incumbe atentar a essa cautela a fim de garantir atenção humanizada à gestante vítima de
violência sexual e evitar que se sucedam casos de violência institucional.
6 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas Prevenção
e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes : norma técnica / Ministério da
Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. – 3. ed. atual. e ampl., 2. reimpr.
– Brasília : Ministério da Saúde, 2014. Disponível em: https://portaldeboaspraticas.iff.fiocruz.br/wp-
content/uploads/2018/01/Preven%C3%A7%C3%A3o-e-Tratamento2014.pdf.
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confiança evidenciam que fetos anencefálicos morrem no período intrauterino em mais de 50% dos
casos. A gestante convive diuturnamente com a triste realidade e a lembrança ininterrupta do feto,
dentro de si, que nunca poderá se tornar um ser vivo. Se assim é – e ninguém ousa contestar –, trata-se
de situação concreta que foge à glosa própria ao aborto – que conflita com a dignidade humana, a
legalidade, a liberdade e a autonomia de vontade.
Logo após a decisão do STF, o Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou as diretrizes
para interrupção da gravidez em caso de feto anencéfalo. O texto prevê que os exames de
ultrassonografia precisam ser feitos a partir da 12ª semana de gravidez, período no qual o feto já se
encontra num estágio suficiente para se detectar a anomalia.
No caso do diagnóstico da anencefalia, o laudo terá que ser assinado, obrigatoriamente, por
dois médicos. A gestante será informada do resultado e poderá optar livremente por antecipar o
parto (fazer o aborto) ou manter a gravidez e, ainda, se gostaria de ouvir a opinião de uma junta
médica ou de outro profissional. A interrupção da gravidez poderá ser realizada em hospital público
ou privado e em clínicas, desde que haja estrutura adequada. A gestante terá toda assistência de
saúde e será aconselhada a adotar medidas para evitar novo feto anencefálico, com a ingestão de
ácido fólico.
Vale ressaltar que, em nenhuma hipótese, esta nota garante qualquer possibilidade aos
chamados aborto social e aborto honoris causa, situações não justificadas à interrupção da gravidez
e, portanto, passíveis de persecução penal.
Por fim, recomenda-se, em acréscimo a esta Nota, a leitura da Nota Técnica Conjunta que
questiona a constitucionalidade da Portaria nº 2.561, de 23 de setembro de 2020 elaborada pelo
Centro de Apoio Criminal e Centro de Apoio Cível e de Tutela Coletiva do MPSP, que dispõe sobre o
Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez nos casos previstos em lei,
no âmbito do Sistema Único de Saúde-SUS, a respeito da qual foi lançado posicionamento que a ela
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atribui caráter de violação aos direitos humanos das mulheres e meninas, infringindo tratados
internacionais ratificados pelo Brasil, bem como a Constituição Federal da República e leis federais.
Núcleo de Gênero do Centro de Apoio Operacional Criminal do Ministério Público do Estado de São
Paulo
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No início do mês de outubro de 2018, alguns navios foram cancelados e a substância não foi
utilizada. Mesmo sabendo da nocividade do produto, o denunciado o recebeu de volta e o
encaminhou para o galpão de JOSÉ RIBEIRO, que prestava serviços autônomos à empresa de CARLOS.
Em função da ocorrência, e entre outros transtornos, diversos moradores tiveram que ser
retirados às pressas de suas residências e passar por descontaminação e avaliação médica.
A denúncia foi recebida (fls. 583), juntando-se certidões criminais e folhas de antecedentes
em nome de CARLOS (fls. 601/602) e de JOSÉ (fls. 605/606), dando conta de que se trata de réus
primários e sem antecedentes.
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O corréu JOSÉ foi citado a fls. 619; não se conseguiu a citação do corréu CARLOS (fls. 620).
A proposta de suspensão condicional do processo foi aceita pela Douta Defesa de JOSÉ e
homologada pelo Juízo, declarando-se a suspensão do processo pelo prazo de dois anos, com
fundamento no artigo 89, § 1º, incisos III e IV, da Lei nº 9.099/95 (fls. 635/636).
O Douto Promotor de Justiça natural concordou com o pedido (fls. 668), e a proposta foi
aceita pela Douta Defesa (fls. 670) e homologada pelo MM. Juízo (fls. 671).
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A proposta não foi aceita pela Defesa (fls. 718/719), que postulou a remessa dos autos a esta
Procuradoria Geral de Justiça, para revisão. Argumentou ser descabida a reparação do dano, haja
vista a ausência de descrição, na denúncia, de prejuízo a ser compensado perante o juízo criminal;
sustentou ser impossível a utilização, no processo penal, de valor de dano apurado em ação civil
pública ainda em fase inicial; violação à coisa julgada, porquanto a proposta de suspensão condicional
do processo anterior já fora aceita e homologada pelo Juízo; e ofensa ao princípio da isonomia, uma
vez que a mesma proposta já fora deferida ao corréu JOSÉ RIBEIRO (fls. 740/745).
A Douta Promotora de Justiça reiterou a manifestação de fls. 720, anotando que o acusado
CARLOS não reside no Brasil e que o comparecimento por WhatsApp, ou pela plataforma Teams, não
permite fiscalização e controle da condição, nos termos do inciso III, do § 1º, do artigo 89 da Lei nº
9.099/95, e não tem previsão legal (fls. 762).
Pelo Douto Juízo foi determinada a remessa dos autos a esta Procuradoria-Geral de Justiça
(fls. 765).
O art. 129, inc. I, da CF, atribui ao Ministério Público a titularidade exclusiva da ação penal
pública. E, de fato, compete ao dominus litis verificar o cabimento das medidas despenalizadoras
contidas na Lei n.º 9.099/95, notadamente da suspensão condicional do processo.
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(STJ, AgInt no RHC 66.292/PR, Rel. Min. NEFI CORDEIRO, 6.ª Turma,
julgado em 02/06/2016, DJe de 16/06/2016)
Nesse aspecto, não se verifica, a priori, qualquer irregularidade na proposta formulada pelo
Ministério Público em audiência. Afinal, os instrumentos despenalizadores, como é a suspensão do
processo, foram concebidos para atribuir maior protagonismo à vítima; e a própria Lei n. 9.099/95,
por isso mesmo, estabelece a reparação do dano ou a restituição do objeto do crime como inicial
condição para o ajuste (art. 89, § 1º, I).
Por isso, o Ministério Público não deve abrir mão dessa condição, nem substituí-la por outra,
que, a toda evidência, não atenderia ao que é necessário e suficiente para prevenção e reprovação
do ilícito cometido.
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Boletim Criminal Comentado 188 - Junho de 2022
Por outro lado, não se aplica ao caso a Súmula 696, do STF.7 Afinal, não houve recusa do
Ministério Público, mas discordância do acusado em relação às condições oferecidas. Entra aqui,
portanto, o magistrado “como mediador, controlador da proposta e da discussão das condições”.8
7 Reunidos os pressupostos legais permissivos da suspensão condicional do processo, mas se recusando o Promotor
de Justiça a propô-la, o Juiz, dissentindo, remeterá a questão ao Procurador-Geral, aplicando-se por analogia
o art. 28 do Código de Processo Penal.
8 Nereu José Giacomolli, Juizados Especiais Criminais, Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2017, p. 149, g.n..
9 Idem, p. 199.
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