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CAOCrim

Boletim Criminal Comentado n°185,


05/2022

(semana nº 4)
Boletim Criminal Comentado 185-
Maio de 2022

Procurador-Geral de Justiça
Mário Luiz Sarrubbo

Secretário Especial de Políticas Criminais


Arthur Pinto Lemos Junior

Assessores
Olavo Pezzotti
Ricardo Silvares
Rogério Sanches Cunha
Fabíola Sucasas (descentralizada)
Paulo de Palma (descentralizado)
Danilo Pugliesi (descentralizado)

Núcleo de Apoio ao Tribunal do Júri


Aluisio Antonio Maciel Neto (Coordenador)
Felipe Bragantini de Lima
Flavia Flores Rigolo
Juliana Mendonça Gentil Tocunduva
Luiz Carlos Ormeleze
Thiago Alcocer Marin

Artigo 28 e Conflito de Atribuições


Marcelo Sorrentino Neira
Manoella Guz
Roberto Barbosa Alves
Walfredo Cunha Campos
Cleber Masson
Fernando Célio de Brito Nogueira (descentralizado)

Analistas Jurídicos
Ana Karenina

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Boletim Criminal Comentado 185-
Maio de 2022

SUMÁRIO

ESTUDOS DO CAO CRIM........................................................................................................................4

1- Tema: Feminicídio contra pessoa menor de 14 anos: antes e depois da vigência da Lei Henry
Borel......................................................................................................................................................4

STF/STJ: decisões de interesse institucional COMENTADAS PELO CAOCRIM.........................................7

DIREITO PROCESSUAL PENAL:...............................................................................................................7

1-Tema: Rol de testemunhas. Art. 396-A do Código de Processo Penal. Apresentação extemporânea
pela defesa. Indeferimento. Nulidade. Inexistência..............................................................................7

2- Tema: Violação de domicílio. Presença de justa causa para o ingresso forçado de policiais.
Informações obtidas por inteligência policial. Diligências prévias. Atitude suspeita. Exercício regular
da atividade investigativa. Fundadas razões..........................................................................................8

3- Tema: Teoria do juízo aparente pode ratificar medidas cautelares adotadas em inquérito
policial.................................................................................................................................................10

DIREITO PENAL....................................................................................................................................13

1-Tema: Furto no período noturno. Causa de aumento de pena. Art. 155, § 1º, do Código Penal. Furto
qualificado. Não incidência. (Tema 1087)............................................................................................13

2- Tema: Configuração de maus antecedentes e reincidência. Consulta às informações processuais


constantes nos sítios eletrônicos mantidos pelos tribunais.................................................................17

MP/SP: decisões do setor art. 28 do CPP.............................................................................................18

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ESTUDOS DO CAOCRIM

1-Tema: Feminicídio contra pessoa menor de 14 anos: antes e depois da vigência da Lei Henry Borel

Antes da Lei 14.344/2022, o autor de um crime de homicídio contra pessoa menor de 14 anos, nos
termos do §2-A do art. 121 do CP, além da qualificadora do feminicídio, teria em seu prejuízo a
incidência da causa de aumento do § 7º, II, em razão da idade da vítima.

A pena de 12 anos – se permanecesse no mínimo - seria aumentada pelo magistrado de 1/3 até 1/2,
culminando numa sanção privativa de liberdade superior a 16 anos, a ser cumprida inicialmente em
regime fechado. Sendo superior a 15 anos de reclusão, seria determinada, inclusive, a execução
provisória da pena, nos moldes do que dispõe o art. 492, I, “e”, do CPP.

Com a nova lei, alterando-se o art. 121, §§ 2º e 7º, do CP, a pena, nas mesmas circunstâncias, muda
(pra menos!). É que a causa de aumento “crime contra pessoa menor de 14 anos” foi revogada,
passando a idade da vítima a servir de circunstância qualificadora. Os jurados, reconhecendo que o
feminicídio foi cometido contra pessoa menor de 14 anos de idade, permite concluir que o crime está
qualificado por duas circunstâncias, uma atuando como tal, fazendo incidir o § 2º, e a outra, já
estando o crime qualificado, servindo ao juiz na fixação da pena-base ou, se prevista em lei, como
agravante.

Contudo, o aumento nessa etapa, mesmo considerando a divergência na jurisprudência, pode variar
de 1/6 até 1/8. Percebe-se que, o legislador, ao que parece involuntariamente, acabou, de qualquer
modo, favorecendo o agente, podendo o condenado pleitear a nova ordem a fato cometido antes da
vigência da Lei 14.344/2022, com fundamento no art. 2º, parágrafo único, do CP.

O que não pode o condenado pleitear é responder somente pelo feminicídio, de modo a não ter
considerada em seu prejuízo a idade da vítima. Esse contorcionismo redundaria em indisfarçável
combinação de leis, o que acabaria na criação de uma terceira lei, violando-se a separação dos
Poderes. Diante desse cenário, o juiz, apurando a maior benignidade entre a lei posterior e anterior,
deve trabalhar com a integralidade das leis em conflito no tempo.

Em sentido semelhante – mas retratando a Lei de Drogas – sumulou o Superior Tribunal de Justiça:

“É cabível a aplicação retroativa da Lei n. 11.343/2006, desde que o resultado da incidência das suas
disposições, na íntegra, seja mais favorável ao réu do que o advindo da aplicação da Lei n.
6.368/1976, sendo vedada a combinação de leis” (súmula 501).

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Situação semelhante se deu com o advento da Lei 13.654/2018, que revogou a majorante da “arma
branca do crime de roubo”. O STJ, na época, logo concluiu que o emprego de arma branca, mesmo
com a lei revogadora, era apto a fundamentar o aumento da pena-base devido às circunstâncias mais
graves do roubo, e esta operação poderia ser feita até mesmo em grau de recurso sobre fatos
cometidos ainda sob a vigência da majorante revogada, sem que se cogitasse a ocorrência de
reformatio in pejus. Vejamos com mais detalhes essa decisão, não somente por conta da sua
explicação didática, mas também porque serve de paradigma para o debate ora exposto:

“(...) Em grau de apelação, o Tribunal de origem, por maioria, reformou parcialmente a sentença para
afastar a majorante pelo emprego da arma branca no roubo, mas reposicionou a força negativa dessa
circunstância para o primeiro estágio dosimétrico, a fim de exasperar em mais 1 (um) ano a pena-
base, o que resultou na sanção corporal de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de reclusão, em regime
inicial fechado, e pagamento de 20 (vinte) dias-multa (e-STJ fl. 195).

Os embargos infringentes e de nulidade manejados pela defesa (e-STJ fls. 240-242) foram acolhidos
para afastar a valoração negativa sobre o emprego da arma branca e, com isso, redimensionar a pena
corporal para 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de reclusão, em regime inicial fechado, e pagamento
de 20 (vinte) dias-multa (e-STJ fls. 255-269).

(...)

Nas razões do recurso especial (e-STJ fls. 322-343), o Ministério Público reputou contrariado os arts.
617 e 619 do Código de Processo Penal e o art. 59 do Código Penal. Suscitou, em primeiro lugar, a
omissão do Tribunal de origem sobre a suposta inconstitucionalidade da supressão do inciso I do §
2º do art. 157 do CP. Na sequência, alegou que o emprego da arma branca, embora não seja mais
passível de configurar causa de aumento para o crime de roubo, pode ser utilizado para majoração
da pena-base. Demais disso sustentou a ausência de reformatio in pejus no caso concreto, pois, a
despeito do recurso exclusivo da defesa, a transposição da referida circunstância do terceiro para o
primeiro estágio dosimétrico não implicou a fixação de pena definitiva maior que a estabelecida no
primeiro grau de jurisdição.

(...)

Ao que se nota, a reforma do acórdão referente ao julgamento da apelação foi justificada pela
inadmissibilidade da reformatio in pejus no caso de recurso exclusivo da defesa.

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Contudo, consoante a jurisprudência desta Corte Superior, "[não] há que se falar no presente caso
em ofensa ao princípio da ne reformatio in pejus. De fato, esta Corte Superior entende que o
emprego de arma branca, embora não configure mais causa de aumento do crime de roubo, poderá
ser utilizado para majoração da pena-base, quando as circunstâncias do caso concreto assim
justificarem" (HC n. 436.314⁄SC, Rel. Ministro FELIX FISCHER, Quinta Turma, julgado em 16⁄8⁄2018,
DJe 21⁄8⁄2018).

(...)

No caso concreto, conforme assinalado no voto condutor do julgamento da apelação, "o uso
ostensivo de um facão, arma com altíssima potencialidade lesiva, para ameaçar a vítima" (e-STJ fl.
193) durante a execução do roubo, elevou o senso de reprovabilidade da conduta a ponto de
justificar a exasperação da pena-base, por valoração negativa das circunstâncias do crime” (AgRg no
REsp 1.818.235/RS, Rel. Min. Jorge Mussi, j. 19/09/2019).

Em síntese, a análise de qual legislação é mais benéfica deve comparar a integralidade do regime
jurídico antigo e do novo, não fatiar a lei e retroagir apenas trechos dela.

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STF/STJ: decisões de interesse institucional COMENTADAS PELO CAOCRIM


DIREITO PROCESSUAL PENAL:

1- Tema: Rol de testemunhas. Art. 396-A do Código de Processo Penal. Apresentação


extemporânea pela defesa. Indeferimento. Nulidade. Inexistência.

INFORMATIVO 738 STJ

DESTAQUE:

Inexiste nulidade na desconsideração do rol de testemunhas quando apresentado fora da fase


estabelecida no art. 396-A do Código de Processo Penal.

INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR:

Discute-se o reconhecimento da nulidade da decisão que indeferiu o pedido de apresentação


extemporânea de rol de testemunhas de defesa, porquanto não arroladas tempestivamente, quando
da apresentação da resposta à acusação.

Nos moldes do art. 396-A do Código de Processo Penal, o rol de testemunhas deve ser apresentado
no momento processual adequado, ou seja, quando da apresentação da resposta preliminar, sob
pena de preclusão. Em respeito à ordem dos atos processuais não configura cerceamento de defesa
o indeferimento da apresentação extemporânea do rol de testemunhas.

A teor dos precedentes desta Corte, inexiste nulidade na desconsideração do rol de testemunhas
quando apresentado fora da fase estabelecida no art. 396-A do CPP (REsp 1.828.483/MG, Rel.
Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 03/12/2019, DJe de 06/12/2019).

Na hipótese, não há falar em manifesto prejuízo para a defesa do réu, em razão do indeferimento da
apresentação do rol de testemunhas em momento posterior. Consoante a fundamentação
apresentada pela Corte local, não obstante a defesa do acusado seja exercida pela Defensoria
Pública, observa-se, no caso em exame, que houve pedido genérico para apresentação do rol de
testemunhas de forma extemporânea, sem levar em consideração que a audiência de instrução foi
designada para data distante, havendo, portanto, tempo disponível para que a defesa tenha acesso
ao acusado, atualmente recolhido ao cárcere, mesmo com todas as dificuldades e limitações
decorrentes da pandemia.

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Por fim, como é de conhecimento, no processo penal, as nulidades observam ao princípio pas de
nullité sans grief, consagrado no art. 563 do CPP, segundo o qual "Nenhum ato será declarado nulo,
se da nulidade não resultar prejuízo para a acusação ou para a defesa".

Assim, esta Corte Superior já entendeu que: não é de presumir-se o prejuízo para o réu, pois a
inquirição - se essencial para a busca da verdade real - poderá ser realizada, de ofício, nos termos do
artigo 156 do Código de Processo Penal, restando, ainda, a possibilidade de aportarem-se aos autos
tais fontes de prova sob a forma documental, posto que atípica (HC 202.928/PR, Rel. Ministro
Sebastião Reis Júnior, Rel. p/ Acórdão Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em
15/05/2014, DJe de 08/09/2014).

Processo: AgRg no RHC 161.330-RS, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, por
unanimidade, julgado em 05/04/2022, DJe 08/04/2022.

COMENTÁRIOS DO CAOCRIM

Não tendo sido apresentado o rol de testemunhas no momento oportuno, tem-se o fenômeno da
preclusão. Foi o que decidiu o STJ no julgado em comento.

Importante lembrar que, no caso de denunciado assistido pela Defensoria Pública, também já se
decidiu não se revestir de juridicidade a menção de excesso de serviço e precariedade dos quadros
da Defensoria Pública, na medida em que, tempestivamente, apresentada a resposta escrita.

A circunstância de não se dispor dos endereços das testemunhas não impediria o seu arrolamento,
apontando-se a peculiaridade ao juízo, com a solicitação de prazo para a complementação da
qualificação (STJ – HC n° 192959-RS, Rel. Maria Thereza de Assis Moura, j. 11.04.2013, DJe
23.04.2013).

2- Tema: Violação de domicílio. Presença de justa causa para o ingresso forçado de policiais.
Informações obtidas por inteligência policial. Diligências prévias. Atitude suspeita. Exercício
regular da atividade investigativa. Fundadas razões.

INFORMATIVO 738 STJ

DESTAQUE:

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A investigação policial originada de informações obtidas por inteligência policial e mediante


diligências prévias que redunda em acesso à residência do acusado configura exercício regular da
atividade investigativa promovida pelas autoridades policiais.

INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR:

O ingresso forçado em domicílio sem mandado judicial para busca e apreensão é legítimo se
amparado em fundadas razões, devidamente justificadas pelas circunstâncias do caso concreto,
especialmente nos crimes de natureza permanente, como são o tráfico de entorpecentes e a posse
ilegal de arma de fogo.

Afere-se a justa causa para o ingresso forçado em domicílio mediante a análise objetiva e satisfatória
do contexto fático anterior à invasão, considerando-se a existência ou não de indícios mínimos de
situação de flagrante no interior da residência.

Com efeito, a investigação policial originada de informações obtidas por inteligência policial e
mediante diligências prévias que redunda em acesso à residência do acusado não se traduz em
constrangimento ilegal, mas sim em exercício regular da atividade investigativa promovida pelas
autoridades policiais.

Processo: AgRg no HC 734.423-GO, Rel. Min. João Otávio de Noronha, Quinta Turma, por
unanimidade, julgado em 24/05/2022, DJe 26/05/2022.

COMENTÁRIOS DO CAOCRIM

Conforme decidido pela Suprema Corte: “A entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é
lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas
a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de
responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade, e de nulidade dos atos
praticados” (Tema 280).

Em que pese o STJ, a depender das circunstâncias, divorciar-se da tese do STF, no caso em exame
dela se aproximou.

Percebe-se que o Pretório Excelso estabeleceu a necessidade de haver uma plausibilidade prévia,
concretamente demonstrável a posteriori, na afirmação de que está a ocorrer um delito no interior
da residência para que se justifique a incidência da exceção constitucional à proteção do domicílio.
Note-se que foi reafirmada a compreensão no sentido de que o crime permanente está sempre em

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situação de flagrância e, por isso, permite o afastamento episódico da proteção constitucional


conferida ao domicílio.

Ainda que possa parecer uma obviedade, há, inarredavelmente, um aclaramento em relação ao
regime da presunção de legitimidade dos atos estatais na seara penal. Depreende-se da decisão que
essa presunção pressupõe a demonstração da observância da fórmula constitucional por parte do
agente público, isto é, sua conduta deve ter lastro em circunstância concreta a permitir a afirmação
de que está ocorrendo um crime no interior do domicílio; somente assim sua ação estará́ coberta
pela exceção constitucional, não sendo suficiente, para tanto, a simples denúncia anônima, p. ex.

De se destacar que o caso concreto tinha um crime de tráfico de drogas como pano de fundo, sendo
esta espécie delitiva a que comumente gera esse tipo de discussão, justamente pela elevada
ocorrência e por compreender, dentre as condutas que o concretizam, as de ter em depósito e
guardar.

3- Tema: Teoria do juízo aparente pode ratificar medidas cautelares adotadas em inquérito policial

Notícias do STJ

A Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reafirmou a jurisprudência segundo a qual a
teoria do juízo aparente é aplicável para ratificar medidas cautelares no curso do inquérito policial,
quando autorizadas por magistrado aparentemente competente.

O caso julgado teve origem em investigação de supostos desvios de recursos públicos em contrato
de gestão firmado entre uma organização social e um município, para que a entidade administrasse
hospital municipal utilizando recursos provenientes do Sistema Único de Saúde (SUS).

Segundo os autos, durante o inquérito, a Polícia Civil requereu medidas judiciais de quebra de sigilo
fiscal e de dados, interceptação telefônica, prisão preventiva, sequestro de bens e busca e
apreensão. A prisão foi indeferida pelo juiz, e as outras medidas foram cumpridas pela polícia.

Um dos investigados, em habeas corpus, alegou a incompetência da Justiça estadual para a aplicação
das medidas cautelares, sob o argumento de que as verbas transferidas pelo SUS aos entes
federados, embora incorporadas aos respectivos fundos, não deixam de ser federais, o que
determinaria automaticamente a competência da Justiça Federal. Assim, seriam nulas as provas
colhidas por ordem do juízo incompetente.

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O pedido não foi conhecido pelo tribunal estadual, o qual consignou que não seria o habeas
corpus meio adequado para discutir a questão. Ao STJ, a defesa reforçou os mesmos argumentos.

Atos processuais praticados devem ser avaliados pelo juízo competente

Em seu voto, o relator do recurso, ministro Ribeiro Dantas, ponderou que, de fato, a jurisprudência
do STJ tem entendido que a ocorrência de desvio de verbas do SUS atrai a competência da Justiça
Federal, tendo em vista o dever de fiscalização e supervisão da União nesse caso.

Entretanto, destacou o ministro, ainda que se reconheça a incompetência do juízo estadual, os atos
processuais até então praticados devem ser avaliados pelo juízo competente, para que ele decida se
os valida ou não.

"Nesta Corte Superior de Justiça, é pacífica a aplicabilidade da teoria do juízo aparente para ratificar
medidas cautelares no curso do inquérito policial, quando autorizadas por juízo aparentemente
competente", afirmou.

Ribeiro Dantas citou precedentes nos quais a Primeira e a Segunda Turma do Supremo Tribunal
Federal (STF) entenderam que, devido à aplicação dessa teoria no processo investigativo, as provas
colhidas ou autorizadas por juízo aparentemente competente à época da autorização ou
da produção podem ser ratificadas posteriormente, mesmo que se reconheça a incompetência do
juízo.

Leia o acórdão no RHC 156.413.

Esta notícia refere-se ao(s) processo(s):RHC 156413

COMENTÁRIOS DO CAOCRIM

A teoria da aparência se caracteriza e produz os efeitos que a lei lhe atribui, somente quando realiza
determinados requisitos objetivos e subjetivos. São estes, na lição de Vicente Ráo (e citados no
acórdão):

"São seus requisitos essenciais objetivos:

a) uma situação de fato cercada de circunstâncias tais que manifestamente a apresentem como se
fora uma situação de direito;

b) situação de fato que assim possa ser considerada segundo a ordem geral e normal das coisas;

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c) e que, nas mesmas condições acima, apresente o titular aparente como se fora titular legítimo, ou
o direito como se realmente existisse.

São seus requisitos subjetivos essenciais:

a) a incidência em erro de quem, de boa fé, a mencionada situação de fato como situação de direito
considera;

b) a escusabilidade desse erro apreciada segundo a situação pessoal de quem nele incorreu.

Como se vê, não é apenas a boa fé que caracteriza a proteção dispensada à aparência de direito. Não
é, tampouco, o erro escusável, tão somente. São esses dois requisitos subjetivos inseparavelmente
conjugados com os objetivos referidos acima, - requisitos sem os quais ou sem algum dos quais a
aparência não produz os efeitos que pelo ordenamento lhes são atribuídos" (Ato Jurídico, Saraiva,
São Paulo, 2ª ed. 1979, p. 226).

A teoria em comento tem larga aplicação jurisprudencial na seara civil, processual civil e no Código
de Defesa do Consumidor. No STF, foi usada, de forma pioneira, no RE n 77 814-SP, que tratava da
responsabilidade da empresa, por ato de antigo dirigente que, embora tendo ficado impedido de
continuar a presidir a empresa, pelo fato de ter sido nomeado corretor dos fundos públicos
continuou a operar de fato em nome e por conta da mesma. Por sua vez, o STJ, em julgado da sua 4ª
Turma, no RESP. n 12.811, tendo corno relator o ilustre Ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO, decidiu, por
unanimidade, que a teoria da aparência mostra-se aplicável nos casos em que vendedor, gerente ou
pessoa equiparada, por expressa ou tácita permissão do comerciante, vende mercadorias, salvo se
comprovado erro inescusável ou má fé de adquirente.

Depois de democratizada em várias áreas, vem ganhando espaço na penal.

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DIREITO PENAL:

1- Tema: Furto no período noturno. Causa de aumento de pena. Art. 155, § 1º, do Código Penal.
Furto qualificado. Não incidência. (Tema 1087).

INFORMATIVO 738-STJ

DESTAQUE:

A causa de aumento prevista no § 1° do art. 155 do Código Penal (prática do crime de furto no período
noturno) não incide no crime de furto na sua forma qualificada (§ 4°).

INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR:

Ressalte-se, preliminarmente, que se pode pensar que a fixação de um precedente judicial guarda
relação direta com a consolidação da orientação jurisprudencial uníssona e reiterada do Superior
Tribunal de Justiça, sobretudo quanto coincidente com a posição adotada pelo Supremo Tribunal
Federal.

Entretanto, essa premissa não é absoluta. Se a orientação jurisprudencial não guarda


compatibilidade com a melhor interpretação dos postulados de regência e com o contexto social em
que se insere a aplicação das normas jurídicas, mostra-se inequívoca a necessidade de sua revisão,
mormente quando desta resultará um posicionamento judicial vinculatório que pressupõe segurança
jurídica e, por conseguinte, longevidade. Assim, a construção de precedente judicial na via do recurso
especial repetitivo constitui momento adequado para o reexame de entendimentos derivados da
interpretação do direito infraconstitucional, para que se mantenham ou se adéquem a novas
realidades.

A disposição técnica do Código Penal assim se apresenta: refere-se o art. 155, § 1º, do CP à pena do
furto simples, prevista no caput desse dispositivo. Desse modo, não se refere à cominação do furto
qualificado, que se encontra três parágrafos depois. Seguindo a técnica legislativa, para que
considerasse aplicável a majorante no furto qualificado, deveria o legislador colocar o § 1º após a
pena atribuída, o que não ocorreu. Se a qualificação do delito é apresentada em parágrafo posterior
ao que trata da majorante, é porque o legislador afastou a incidência desta em relação aos crimes
qualificados previstos no § 4º do art. 155 do CP. Nesse contexto, aderindo a uma interpretação
sistemática sob o viés topográfico, em que se define a extensão interpretativa de um dispositivo legal
levando-se em conta sua localização no conjunto normativo, a aplicação da referida causa de
aumento limitar-se-ia ao furto simples, não incidindo, pois, no furto qualificado.

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Outra forma interpretativa para dirimir a questão é o método hermenêutico teleológico. Aqui, o que
se propõe é a averiguação do objetivo da norma, de seus fins sociais, objetivos ligados à justiça, à
segurança jurídica e à dignidade da pessoa humana. Com efeito, quando se busca o atendimento a
esses aspectos, especialmente o relativo à dignidade humana, devem ser atendidos os princípios da
proporcionalidade e da taxatividade.

Sob o viés do princípio da proporcionalidade, objetiva-se evitar excesso de punição, mormente a


possibilidade de aplicação de reprimendas mais severas a infrações que refletem menor gravidade,
assim como evitar que haja proteção insuficiente aos bens jurídicos resguardados pelas normas
penais.

Ora, a agravação da pena derivada da incidência da majorante do furto noturno nas hipóteses do
furto qualificado resultaria em um desproporcional quantitativo. Veja-se: o dispositivo relacionado
ao furto cometido durante o repouso noturno (art. 155, § 1º, do CP) prevê acréscimo fixo de 1/3 da
pena. Se possível a incidência dessa mesma majorante no furto qualificado (art. 155, § 4º, do CP),
seriam gerados aumentos excessivos no quantitativo da pena: se considerada a pena mínima, o
acréscimo seria de 8 meses (pena mínima de 2 anos do crime qualificado, aumentada em 1/3). De
outra parte, se considerada a pena máxima, o aumento resultaria em 2 anos e 8 meses. Dessa forma,
a pena do crime de furto qualificado, acrescida do quantum relativo à incidência da majorante,
desconsiderando-se a incidência de quaisquer outras circunstâncias agravantes ou causas de
aumento, poderia resultar em 10 anos e 8 meses, pena superior à do crime de roubo, tipo penal em
que se protegem não só bens patrimoniais, tal qual no crime de furto, mas também a integridade
corporal. Sendo assim, não se mostra razoável que determinada pena possa ser semelhante para
crimes de gravidades diversas, como são o furto, ainda que em sua forma qualificada, e o roubo.

Acrescente-se, também sob o enfoque do princípio da proporcionalidade, que, sendo a controvérsia


a interpretação de normas penais que podem ensejar, em um cenário de dúvida, a incidência de
penas mais severas, é razoável que também se analise o tema sob a perspectiva das circunstâncias a
seguir relacionadas, muitas delas relativas à política criminal, que não contribuirão para a
concretização do escopo preventivo, repressivo e reabilitatório do Direito Penal: a) busca de
resolução de questões sociais mediante a exagerada edição da legislação penal e processual penal
mais severa; b) existência de componentes administrativos na seara criminal que operam com
deficiência, tais como os estabelecimentos prisionais, a sobrecarga dos tribunais, a ineficácia de
aplicação de penas clássicas, sobretudo sobre o aspecto da reabilitação do condenado, o alto custo
do sistema penitenciário associado à escassez de recursos públicos para sua manutenção e melhoria,
etc.

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Deve-se registrar também que o princípio da proporcionalidade destina-se igualmente a evitar a


proteção insuficiente ou deficiente dos bens jurídicos resguardados pelo Direito Penal.

Ora, é evidente que a lesividade advinda do cometimento do furto qualificado durante o repouso
noturno é maior que a do furto simples ocorrente no mesmo período.

Assim, é razoável admitir a possibilidade de, diante das circunstâncias fáticas, a prática do furto
durante o período de repouso noturno ser levada em consideração na dosimetria da pena. Em outras
palavras, se a incidência da majorante no furto qualificado mostra-se excessiva, poderá ser utilizada
como circunstância judicial negativa na primeira fase da dosimetria (art. 59 do CP). Nessa
oportunidade, o órgão julgador avaliará, sob a ótica de sua discricionariedade, o elemento relativo
ao espaço temporal em que a infração foi cometida, podendo, se assim considerar, analisar a
circunstância judicial referente às circunstâncias do crime com maior reprovabilidade. Esse proceder
possibilitaria calibrar a reprimenda de modo a atender o postulado da proporcionalidade diante do
caso concreto.

Entretanto, ressalte-se que essa matéria - possibilidade de consideração da causa de aumento


relativa ao repouso noturno como circunstância judicial desfavorável (art. 59 do CP) quando do
cometimento do furto qualificado - não enseja a fixação de tese vinculante na via do recurso especial
repetitivo, visto que a variabilidade dos conceitos empregados no exercício discricionário do órgão
julgador na confecção da primeira etapa da dosimetria penal é incompatível com o estabelecimento
de fundamentos vinculatórios, tais como os exigidos na fixação de tese no sistema de precedentes
judiciais.

Sob o prisma do princípio da taxatividade, como garantia expressa do postulado da legalidade, deve-
se entender que, ao ser positivada uma norma penal incriminadora - tal como uma causa de aumento
de pena -, deve ela ser clara e precisa com vistas a não permitir discricionariedades, bem como ser
de fácil compreensão para os destinatários.

Efetivamente, não há precisão e clareza desejáveis na proposição penal prevista no art. 155, § 1º, do
CP quando se deve definir sua aplicabilidade tanto ao furto simples quanto ao furto qualificado.
Restrita essa norma a indicar situação temporal em que há aumento de pena, não se veem nela
elementos que lhe confiram extensão para que incida nas hipóteses do furto qualificado.
Pensamento diverso, de modo a justificar a incidência extensiva dessa disposição legal, equivaleria a
um agravamento dos tipos já existentes através de uma reinterpretação de garantias do Direito
Penal, especialmente aquela relacionada à interpretação favorável ao réu nos casos em que há
dúvida acerca do sentido da norma. Deve-se ressaltar que a interpretação no sentido de possibilitar

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a existência de bens jurídico-penais não expressamente definidos amplia os espaços de riscos


jurídico-penais relevantes e a flexibilização das regras de imputação e relativização dos princípios
político-criminais de garantia, circunstâncias que não condizem com a excepcionalidade inerente às
normas penais sancionatórias, assim como não se compatibilizam com a necessária segurança
jurídica, fundamento do Direito Penal.

Também não se justifica a premissa de que, uma vez possível a aplicação da regra do furto
privilegiado (art. 155, § 2º, do CP) ao furto qualificado, seria possível a incidência da causa de
aumento relativa ao cometimento do furto durante o repouso noturno (art. 155, § 1º, do CP) no furto
qualificado.

Essa situação merece algumas observações.

O privilégio previsto no § 2º do art. 155 e a causa de aumento relativa ao furto noturno são hipóteses
fático-jurídicas diversas. A primeira refere-se a uma norma penal não incriminadora; a segunda, a
uma causa de aumento, uma norma penal incriminadora.

Sendo o furto privilegiado uma norma não incriminadora, pode comportar extensividade quando
utilizado para integração do sistema jurídico penal. Já o furto cometido durante o repouso noturno,
por ser uma norma incriminadora, tem sua extensividade vedada, visto que tem por consectário o
agravamento da situação do réu. Com efeito, o uso de raciocínio analógico integrativo no âmbito do
Direito Penal é inadmissível em hipótese em que haja prejuízo para o acusado.

Desse modo, também sob a ótica de uma interpretação finalística, em que se deve conferir
aplicabilidade aos princípios da proporcionalidade e da taxatividade, a incidência da causa de
aumento referente ao cometimento do furto noturno limita-se ao furto simples, não se aplicando ao
furto qualificado.

Processo: REsp 1.890.981-SP, Rel. Min. João Otávio de Noronha, Terceira Seção, por unanimidade,
julgado em 25/05/2022 (Tema 1087)

COMENTÁRIOS DO CAOCRIM

Se a incompatibilidade da majorante com as formas qualificadas vai ganhando força no STJ, é


importante alertar que no STF ainda vem prevalecendo tese em sentido diverso:

“1. Não convence a tese de que a majorante do repouso noturno seria incompatível com a forma
qualificada do furto, a considerar, para tanto, que sua inserção pelo legislador antes das

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qualificadoras (critério topográfico) teria sido feita com intenção de não submetê-la às modalidades
qualificadas do tipo penal incriminador. 2. Se assim fosse, também estaria obstado, pela concepção
topográfica do Código Penal, o reconhecimento do instituto do privilégio (CP, art. 155, § 2º) no furto
qualificado (CP, art. 155, § 4º) - como se sabe, o Supremo Tribunal Federal já reconheceu a
compatibilidade desses dois institutos. 3. Inexistindo vedação legal e contradição lógica, nada obsta
a convivência harmônica entre a causa de aumento de pena do repouso noturno (CP, art. 155, § 1º)
e as qualificadoras do furto (CP, art. 155, § 4º) quando perfeitamente compatíveis com a situação
fática”1.

2-Tema: Configuração de maus antecedentes e reincidência. Consulta às informações processuais


constantes nos sítios eletrônicos mantidos pelos tribunais.

PESQUISA PRONTA- STJ

"'Admite-se o uso de informações processuais extraídas dos sítios eletrônicos dos tribunais, quando
completas, a fim de demonstrar a reincidência da parte ré, sendo descabido o entendimento de que
apenas a certidão cartorária tem condição de demonstrar a referida circunstância agravante.
Precedentes' (AgRg no HC 448.972/SP, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA
TURMA, julgado em 16/8/2018, DJe 24/8/2018). "

AgRg no HC 704.114/PR, relator ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, DJe de 2/3/2022.

Clique aqui

1. HC 130.952/MG, Rel. Min. Dias Toffoli, DJe 20/02/2017.

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COMENTÁRIOS DO CAOCRIM

MP/SP: decisões do setor do art. 28 do CPP

1-Tema: Divergência acerca do foro competente para apuração de tráfico de drogas (remessa de
substâncias psicoativas pelo correio).

CONFLITO NEGATIVO DE ATRIBUIÇÃO

Autos n.º 1500xxx-5x.2021.8.26.0346 – MM. Juízo da Vara Única da Comarca de Patrocínio Paulista
Suscitante: Promotor de Justiça de Patrocínio Paulista
Suscitado: Promotor de Justiça de Martinópolis
Assunto: divergência acerca do foro competente para apuração de tráfico de drogas (remessa de
substâncias psicoativas pelo correio).

Cuida-se de investigação penal instaurada para apurar a prática do crime de tráfico ilícito de
entorpecentes (art. 33, caput, da Lei n.º 11.343/06), praticado por meio de remessa de substância
psicoativa via postal para a Penitenciária de Martinópolis (fls. 2/3).

Depreende-se da análise dos autos que, no dia 12 de maio de 2021, por volta das 13h40min,
os agentes penitenciários Luciano Rodrigo Magi e Sérgio Antônio Mazetti estavam na Penitenciária
"Tacyan Menezes de Lucena", localizada à Rodovia SP 284, altura do km 542, na cidade de
Martinópolis, quando em revista à correspondência enviada ao sentenciado CARLOS ALESSANDRO
MARTINS, enviada via SEDEX, foram localizadas 10 tiras de papel, aparentando ser droga ilícita "K4",
constando como remetente José Carlos Alessandro, genitor do sentenciado, regularmente inscrito
no rol de visitas da unidade (cf. Boletim de ocorrência de fls. 4/5).

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As 10 tiras de papel foram apreendidas (fls. 6) e periciadas, constatando do Exame Químico-


Toxicológico que foi detectada a presença da substância ADB-BUTINACA, constante na Lista F2 por
se enquadrar no item b (classes estruturais dos canabinoides sintéticos) subitem 6 (estrutura 8) da
Portaria SVS/MS 344/98 e atualizações posteriores (Portaria SPTC 136 de 03/08/2020) (fls. 17/19).

Apurou-se que a droga foi postada na data de 03 de maio de 2021 na Cidade de Itirapuã, que
é abrigada pela Comarca de Patrocínio Paulista (fls. 28/29).

O procedimento disciplinar instaurado no estabelecimento prisional para apurar os fatos foi


juntado às fls. 30/74.

Durante a apuração da falta disciplinar, o sentenciado negou a participação na prática


criminosa. Afirmou que não esperava pelo Sedex que originou os fatos, bem como que teve os dados
de seus familiares furtados por presos do pavilhão onde reside e que devido “a lei do silêncio que
impera nas cadeias”, não pode denunciar os culpados pelos fatos (fls. 54/55).

Consta ainda do procedimento de apuração da falta disciplinar o depoimento dos agentes


penitenciários, corroborando as informações contidas na portaria inaugural (fls. 56/58).

Em relatório final do inquérito policial (fls. 118/119), a I. Autoridade Policial de Martinópolis


representou pela remessa dos autos à Itirapuã, por entender que o crime se consumou no momento
de postagem da droga naquela cidade.

Ao receber os autos, o Ilustre representante Ministerial oficiante na 1ª Vara Judicial da


Comarca de Martinópolis, considerando que o envio da droga ocorreu dentro do território nacional
e encampando os fundamentos da representação policial, no sentido da aplicação da regra do artigo
70 do Código de Processo Penal, declinou da atribuição e requereu a remessa dos autos para a
Comarca de Patrocínio Paulista, onde se consumou o delito com a postagem da droga nos Correios,
via SEDEX (fls. 122/124).

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Vieram aos autos folha de antecedentes e certidões criminais do investigado (fls. 127/138).

O pleito ministerial foi atendido a fls. 126, sendo os autos encaminhados a Comarca de
Patrocínio Paulista.

O Douto Promotor de Justiça recipiente, contudo, discordou da remessa e suscitou conflito


negativo de atribuição. Argumentou que, embora não se cuide de tráfico internacional de drogas, o
entendimento do E. STJ foi recentemente flexibilizado para afirmar que o local do destino da droga
deve ser o foro competente, por ser o local mais eficiente para a apuração do crime. (fls. 141/143 ).

Vieram os autos a esta Chefia Institucional para solução do impasse (fls. 145).

Eis o relato do necessário.

A remessa se fundamenta no art. 115 da Lei Complementar Estadual n.º 734/93,


encontrando-se configurado, portanto, o conflito negativo de atribuição entre promotores de
justiça.

Como destaca HUGO NIGRO MAZZILLI, tal incidente tem lugar quando o membro do
Ministério Público nega a própria atribuição funcional e a atribui a outro, que já a tenha recusado
(conflito negativo), ou quando dois ou mais deles manifestam, simultaneamente, atos que importem
a afirmação das próprias atribuições, em exclusão às de outros membros (conflito positivo) (Regime
Jurídico do Ministério Público, 6.ª edição, São Paulo, Saraiva, 2007, pp. 486-487).

Considere-se, outrossim, que em semelhantes situações, o Procurador-Geral de Justiça não


se converte no promotor natural do caso; assim, não lhe cumpre determinar qual a providência a ser
adotada (oferecimento de denúncia, pedido de arquivamento ou complementação de diligências),
devendo tão somente dirimir o conflito para estabelecer a quem incumbe oficiar nos autos.

Pois bem.

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A razão assiste ao Douto Suscitado, com a máxima vênia do Ilustre Suscitante; senão,
vejamos.

Verte dos autos que a droga foi postada na agência dos Correios do município de Itirapuã
(Comarca de Patrocínio Paulista) e remetida, via Sedex, à cidade de Martinópolis, constando como
destinatário o sentenciado CARLOS ALESSANDRO MARTINS. Consumou-se, assim, crime de tráfico
ilícito de entorpecentes.

O tráfico de drogas é delito de ação múltipla, de conteúdo variado, cuja consumação deriva
diretamente do núcleo verbal a que se subsome a conduta específica do agente. In casu, cotejando-
se a ação criminosa – evidentemente, dentro do que foi apurado até o momento – com os dezoito
verbos que compõe o tipo, conclui-se que o melhor enquadramento típico se insere no núcleo
remeter.

Fixado isso, e analisando-se o iter criminis percorrido pelo agente, tem-se que o delito se
consumou no exato instante em que o objeto foi entregue na agência dos Correios, de modo que,
aplicando-se a norma processual-base sobre competência (artigo 70 do Código de Processo Penal),
assenta-se que a competência para apreciação dos fatos é o Juízo Criminal da Comarca de Patrocínio
Paulista, a que pertence a cidade de Itirapuã, do que descende a atribuição do Promotor de Justiça
respectivo.

É importante esclarecer que os atos praticados posteriormente, notadamente a apreensão


da droga, são irrelevantes para fins de fixação do foro competente, pois a conduta típica já havia se
consumado.

Não se ignora que do Superior Tribunal de Justiça já emanaram precedentes relacionados à


flexibilização da regra geral de competência prevista no artigo 70 do CPP (CC 131.566/DF, Rel.
Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, TERCEIRA SEÇÃO, DJe 29/9/2015; CC 151.836/GO, Rel.
Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, TERCEIRA SEÇÃO, DJe 26/6/2017; CC 169.792/RJ, Rel.

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Ministro RIBEIRO DANTAS, TERCEIRA SEÇÃO, DJe 18/3/2020), sempre conectados ao atrativo da
melhor produção probatória.

É fato, no entanto, que para justificar o afrouxamento da aplicação da norma de regência há


que se extrair do contexto processual um substancial e excepcional ganho de qualidade na produção
dos atos destinados à elucidação da materialidade ou autoria delitiva.

Na hipótese ora tratada, já apurada de pronto a materialidade com a apreensão, deve seguir
a investigação no sentido da elucidação da autoria, e, quanto isso, tem-se que as únicas diligências
úteis relacionadas à Comarca de Martinópolis, notadamente as constantes do procedimento
disciplinar, já foram realizadas.

Não se vislumbra, assim, situação excepcional a sustentar o afastamento da regra-base. Ao


revés, analisando-se os autos vê-se que as diligências para apuração da autoria seriam mais bem
encetadas na comarca de Patrocínio Paulista.

Importante mencionar, ainda, que o precedente apontado pelo Douto Suscitante trata de
hipótese muito diferente da tratada nos presentes autos. Na hipótese trazida, o Colendo Superior
Tribunal de Justiça flexibilizou o disposto na Súmula 528 para entender competente o foro do local
do destino da droga, nas hipóteses de importação de entorpecentes.

Ocorre que a importação de drogas pressupõe ato negocial anterior do destinatário do


entorpecente. Em outras palavras, a cadeia negocial se inicia e se desenrola por atos praticados pelo
importador/destinatário da droga, exaurindo-se no instante em que mercadoria ilícita alcança o
território nacional.

Em tal contexto, realmente, faz muito mais sentido que a investigação e a instrução
probatória sejam realizadas no local de destino do entorpecente; até porque os fatos não possuem

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conexão alguma com a barreira alfandegária responsável pela apreensão nem, tampouco, é possível
se apurar o local preciso e exato da entrada da mercadoria no país.

Outra é a hipótese dos autos: a conduta de remeter teve o seu local de consumação
precisamente identificado, de modo que não há falar-se na aplicação analógica das conclusões
alcançadas no citado acórdão, já que totalmente díspares as circunstâncias, se aproximando apenas
no concernente a um dos elementos – a remessa postal.

E, por outro lado, o Colendo Superior Tribunal de Justiça já se manifestou em hipótese que
melhor se aproxima do caso ora tratado:

“PROCESSUAL PENAL. CONFLITO DE COMPETÊNCIA. CRIME DE


TRÁFICO INTERESTADUAL DE ENTORPECENTES. REMESSA POSTAL.
CONSUMAÇÃO. LOCAL DA REMESSA DA DROGA. ART. 70 DO CPP.
CONFLITO DE COMPETÊNCIA CONHECIDO. COMPETÊNCIA DO JUÍZO
SUSCITANTE.

1. O tráfico ilícito de entorpecentes, crime plurinuclear ou de


condutas múltiplas, formal, consuma-se com a prática de qualquer
um de seus verbos. No caso em comento, remetida a droga de um
Estado para outro, dentro do próprio território nacional, restou
consumado o delito, embora interceptada a droga antes de alcançar
o seu destino final.

2. In casu, no tráfico interestadual de drogas, tal qual a exportação,


no tráfico internacional de entorpecentes, cujos últimos atos de
execução são praticados dentro do país, é de se considerar como local
da remessa do entorpecente o lugar da consumação do delito, nos
termos do art. 70 do Código de Processo Penal, relevando-se a
competência, inclusive, em favor da produção de provas e do
desenvolvimento dos atos processuais.

3. Conflito conhecido para declarar a competência do Juízo de Direito


da 2ª Vara Criminal de Campo Grande - MS, o suscitante.”(CONFLITO
DE COMPETÊNCIA Nº 147.802, Rel. Ministro Ribeiro Dantas, julgado
em 28 de setembro de 2016)

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E mais recentemente:

CONFLITO DE COMPETÊNCIA Nº 187563 - SP (2022/0108318-9)

EMENTA: CONFLITO DE COMPETÊNCIA. PENAL. TRÁFICO DE


INTERESTADUAL DE DROGAS. REMESSA VIA POSTAL. COMPETÊNCIA:
LOCAL DA REMESSA. CONFLITO CONHECIDO PARA DECLARAR A
COMPETÊNCIA DO JUÍZO DE DIREITO DA 2.ª VARA CRIMINAL DE
CAMPINAS/SP, O SUSCITANTE.

DECISÃO:

Trata-se de conflito de competência em que figura como suscitante


o JUÍZO DE DIREITO DA 2.ª VARA CRIMINAL DE CAMPINAS/SP e,
como suscitado, o JUÍZO DE DIREITO DA 2.ª VARA DE DELITOS DE
TRÁFICO DE DROGAS DE FORTALEZA/CE.

O Juízo suscitado declinou de sua competência com lastro nos


seguintes fundamentos: "é indiscutível que no caso sub examine,
extreme de dúvidas que a infração penal apurada neste inquisitório,
em respeito a norma do artigo 69, II, do CPP, que por sinal, trata-se
de tráfico nos interestadual consumou-se quando o vendedor a
despachou nos CORREIOS DE CAMPINAS/SP para ser entrega (sic) ao
suposto adquirente em outra unidade federativa" (fl. 66).

Por sua vez, o Juízo suscitante não reconheceu sua competência e


suscitou o presente conflito a partir da fundamentação a seguir (fl. 2;
sem grifos no original):

"Cuida-se de inquérito policial instaurado inicialmente pela


Delegacia de Polícia Federal de Fortaleza/CE com o objetivo de
apurar eventual prática de delito de tráfico de entorpecentes, em
razão da apreensão, aos 13 de setembro de 2017, em uma agência
dos Correios daquela capital, de um envelope plástico contendo 55
(cinquenta e cinco) comprimidos de ecstasy, tendo como remetente
a empresa Conecta Componentes, situada à Avenida Engenheiro
Antônio Francisco de Paula Souza, nº 1817, nesta cidade e comarca
de Campinas/SP, e como destinatário, Dayvis Albuquerque Carneiro,

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Boletim Criminal Comentado 185-
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com endereço à Rua José Elias, nº 131, Centro, na cidade de Jijoca de


Jericoacoara/CE. Ouvido em solo policial, Dayvis negou qualquer
envolvimento com o entorpecente apreendido, afirmando, ainda,
que não reside no endereço indicado na correspondência.

Finalizado o inquérito policial, o MM. Juiz ora suscitado, acolhendo o


parecer formulado pelo Ministério Público do Estado do Ceará,
determinou a redistribuição dos autos para uma das Varas Criminais
desta Comarca, por entender que a consumação do delito em
questão se deu no momento em que as drogas foram remetidas,
portanto, nesta cidade de Campinas/SP.

Ocorre que, como bem destacado pela i. Promotora de Justiça de


Campinas, o tráfico de drogas praticado mediante envio postal
estabelece um vínculo lógico entre os traficantes e o endereço do
local de destino da droga, sendo comum utilizarem-se, para tanto,
nomes e endereços falsos de remetentes, para dificultar a localização
de sua origem.

Nesse sentido é a mais recente jurisprudência desta Egrégia Corte,


ao analisar caso semelhante, envolvendo, entretanto, delito de
tráfico de entorpecentes transnacional, que culminou por flexibilizar
o teor da Súmula 528 para, justamente, firmar a competência do
local de destino da droga, quando conhecido o seu endereço."

O Ministério Público Federal manifestou-se pelo conhecimento do


conflito e declaração da competência do Juízo Suscitado (fls. 92-95).

É o relatório.

Decido.

A Terceira Seção desta Corte Superior de Justiça firmou


entendimento segundo o qual, no tráfico interestadual de drogas,
realizado por via postal, ainda que o entorpecente não chegue ao
destinatário, o delito deve ser considerado consumado no local da
remessa, sendo certo que o juízo com jurisdição sobre tal comarca
é o competente para processar e julgar o feito.

Nesse sentido:

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"PROCESSUAL PENAL. CONFLITO DE COMPETÊNCIA. CRIME DE


TRÁFICO INTERESTADUAL DE ENTORPECENTES. REMESSA POSTAL.
CONSUMAÇÃO. LOCAL DA REMESSA DA DROGA. ART. 70 DO CPP.
CONFLITO DE COMPETÊNCIA CONHECIDO. COMPETÊNCIA DO JUÍZO
SUSCITANTE.

1. O tráfico ilícito de entorpecentes, crime plurinuclear ou de


condutas múltiplas, formal, consuma-se com a prática de qualquer
um de seus verbos. No caso em comento, remetida a droga de um
Estado para outro, dentro do próprio território nacional, restou
consumado o delito, embora interceptada a droga antes de alcançar
o seu destino final.

2. In casu, no tráfico interestadual de drogas, tal qual a exportação,


no tráfico internacional de entorpecentes, cujos últimos atos de
execução são praticados dentro do país, é de se considerar como
local da remessa do entorpecente o lugar da consumação do delito,
nos termos do art. 70 do Código de Processo Penal, relevando-se a
competência, inclusive, em favor da produção de provas e do
desenvolvimento dos atos processuais.

3. Conflito conhecido para declarar a competência do Juízo de Direito


da 2ª Vara Criminal de Campo Grande - MS, o suscitante." (CC
147.802/MS, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, TERCEIRA SEÇÃO,
julgado em 28/09/2016, DJe 13/10/2016; sem grifos no original.)

No mesmo sentido, as seguintes decisões monocráticas: CC n.


181392/GO, Rel. Min. JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, DJe 08/10/2021;
CC n. 181.235/RS, Rel. Min. Ministro JESUÍNO RISSATO
(DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJDFT), DJe 31/08/2021; CC n.
177790/SP, Rel. Min. FELIX FISCHER, DJe 02/08/2021; CC n.
177532/PR, Rel. Min. SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, DJe 21/05/2021; e CC
n. 162767/RO, de minha relatoria, DJe 28/02/2019.

Ante o exposto, CONHEÇO do conflito e DECLARO a competência do


JUÍZO DE DIREITO DA 2.ª VARA CRIMINAL DE CAMPINAS/SP , o
Suscitante.

Publique-se. Intimem-se.

Brasília, 29 de abril de 2022.

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MINISTRA LAURITA VAZ Relatora

(Ministra LAURITA VAZ, 03/05/2022)

Diante do exposto, conhece-se deste incidente, declarando-se que a atribuição para atuar
no caso incumbe ao Douto Promotor de Justiça de Patrocínio Paulista.

Como a controvérsia limita-se ao foro competente e não vai à classificação jurídica da


conduta, não se identifica a necessidade de designar outro Promotor de Justiça para funcionar nos
autos em lugar do Suscitante.

Restituam-se os autos ao E. Juízo competente.

São Paulo, 10 de maio de 2022.

Mário Luiz Sarrubbo


Procurador-Geral de Justiça

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