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CAOCrim

Boletim Criminal Comentado n°181,


05/2022

(semana nº 4)
Boletim Criminal Comentado 181-
Maio de 2022

Procurador-Geral de Justiça
Mário Luiz Sarrubbo

Secretário Especial de Políticas Criminais


Arthur Pinto Lemos Junior

Assessores
Olavo Evangelista Pezzotti
Ricardo Silvares
Rogério Sanches Cunha
Valéria Scarance
Paulo de Palma (descentralizado)
Danilo Pugliesi (descentralizado)

Núcleo de Apoio ao Tribunal do Júri


Aluisio Antonio Maciel Neto (Coordenador)
Felipe Bragantini de Lima
Flavia Flores Rigolo
Juliana Mendonça Gentil Tocunduva
Luiz Carlos Ormeleze
Thiago Alcocer Marin

Artigo 28 e Conflito de Atribuições


Marcelo Sorrentino Neira
Manoella Guz
Roberto Barbosa Alves
Walfredo Cunha Campos
Cleber Masson
Fernando Célio de Brito Nogueira (descentralizado)

Analistas Jurídicos
Ana Karenina

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Boletim Criminal Comentado 181-
Maio de 2022

SUMÁRIO

ESTUDOS DO CAO CRIM........................................................................................................................4

1-Tema: A confissão e delação do indiciado que celebrou ANPP e sua oitiva na ação penal contra os
coautores da infração penal..................................................................................................................4

STF/STJ: decisões de interesse institucional COMENTADAS PELO CAOCRIM.........................................5

DIREITO PROCESSUAL PENAL:...............................................................................................................5

1-Tema: Tráfico de drogas. Denúncia anônima. "Disque-drogas". Diligências que constataram a


veracidade das informações prévias. Fundadas razões para o ingresso na residência do acusado.
Violação de domicílio. Inocorrência.......................................................................................................5

2-Tema: Homicídio qualificado. Recurso da defesa. Pena-base. Modificação dos institutos jurídicos.
Cúmulo material para continuidade delitiva. Pena final inalterada. Reformatio in pejus. Não
ocorrência.............................................................................................................................................8

3- Tema: Execução da pena. Relação entre a progressão para o regime semiaberto e a concessão de
saída temporária.................................................................................................................................13

DIREITO PENAL....................................................................................................................................14

1-Tema: Tráfico de drogas. Causa de diminuição de pena do art. 33, § 4º, da Lei n. 11.343/2006.
Diretrizes firmadas no EREsp 1.887.511/SP. Uso apenas supletivo da quantidade e natureza da droga
na terceira fase da dosimetria. Revisão de posicionamento.:..............................................................14

MP/SP: decisões do setor art. 28 do CPP.............................................................................................16

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Boletim Criminal Comentado 181-
Maio de 2022

ESTUDOS DO CAOCRIM

1-Tema: A confissão e delação do indiciado que celebrou ANPP e sua oitiva na ação penal contra
os coautores da infração penal

Para fins de atendimento de pressuposto do ANPP, em caso de concurso de agentes, não se pode
considerar a confissão “circunstanciada” se não incluir a delação dos demais envolvidos na infração
penal, dentro dos limites do conhecimento do imputado.

Celebrado o ANPP com o indiciado que tenha confessado e delatado os demais investigados, poderá
o Ministério Público arrolá-lo na denúncia, para que seja ouvido na instrução processual como
“informante”. Se, pelas peculiaridades do caso concreto, for possível verificar que a extinção da
punibilidade, em razão do cumprimento integral do ANPP, se dará em momento anterior ao da
realização da instrução processual, pode o Ministério Público requerer ao juiz, antes da assinatura
final do acordo, a produção antecipada da oitiva do “informante”, nos termos do inciso I do art. 156
do CPP. Nesse caso, deve o membro do Ministério Público:

i) já ter esclarecido o indiciado e sua defesa sobre os termos do ANPP, incluindo a necessidade de
confissão formal e circunstanciada dos fatos;

ii) colher a confissão/delação;

iii) colher a concordância do investigado em antecipar seu depoimento judicial;

iv) então, requerer ao juiz a produção antecipada de provas;

v) por fim, havendo a antecipação da prova, com a confirmação da confissão/delação, firmar o acordo
com o investigado e sua defesa e apresentá-lo para homologação judicial;

Se, posteriormente, houver o descumprimento das condições, a prova antecipada não poderá ser
valorada e deverá ser excluída do processo em que tenha sido produzida, sendo vedado seu uso
como prova emprestada.

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STF/STJ: decisões de interesse institucional COMENTADAS PELO CAOCRIM


DIREITO PROCESSUAL PENAL:

1- Tema: Tráfico de drogas. Denúncia anônima. "Disque-drogas". Diligências que constataram a


veracidade das informações prévias. Fundadas razões para o ingresso na residência do acusado.
Violação de domicílio. Inocorrência.

INFORMATIVO 734 STJ

DESTAQUE:

A denúncia anônima acerca da ocorrência de tráfico de drogas acompanhada das diligências para a
constatação da veracidade das informações prévias podem caracterizar as fundadas razões para o
ingresso dos policiais na residência do investigado.

INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR:

Inicialmente, registre-se que o ingresso de agentes públicos em residências sem ordem judicial ou
autorização de morador, nos termos da jurisprudência desta Corte e do Supremo Tribunal Federal,
deve estar amparado em fundadas razões, devidamente justificadas pelas circunstâncias do caso
concreto, que indiquem estar ocorrendo, no interior da casa, situação de flagrante delito.

No caso, verifica-se que, após denúncia anônima acerca da existência de tráfico de drogas, os policiais
realizaram diligências para a constatação da veracidade da denúncia e, com base em fundadas razões
sobre a existência da prática do delito, inclusive sobre a existência de um "disque-drogas",
ingressaram na residência do investigado, encontraram o entorpecente e realizaram o flagrante.

Tem-se que em decorrência das informações anteriores no sentido de que haviam indícios prévios
de traficância naquele local, o que foi confirmado pela abordagem policial que diligenciou ao local
para investigação, além da apreensão de quantidade expressiva de droga, verifica-se a existência de
justa causa para a atuação dos agentes, cujos atos são revestidos de fé pública, sobretudo quando
seus depoimentos se mostram coerentes e compatíveis com as demais provas dos autos.

Processo: AgRg nos EDcl no RHC 143.066-RJ, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em
19/4/2022, DJe 22/4/2022.

COMENTÁRIOS DO CAOCRIM

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O tema “denúncia anônima” sempre foi objeto de debate, em especial no dia a dia forense.

Nossos tribunais superiores (STF e STJ) vêm admitindo que, a partir de denúncia anônima, seja
deflagrada uma investigação criminal. É dizer: o simples fato de não se identificar o autor da denúncia
não impede, por si só, que investigações sejam realizadas. O que não se tolera, porém, é que, a partir
da denúncia anônima, de pronto seja instaurado o inquérito policial ou algum outro procedimento
investigatório. Antes disso, impõe-se a realização de algumas diligências preliminares, aptas, ainda
que de forma precária, a dar um mínimo de sustentação à acusação apócrifa.

Decidiu o STJ que a “denúncia anônima” acerca da ocorrência de tráfico de drogas acompanhada das
diligências para a constatação da veracidade das informações prévias podem caracterizar as
fundadas razões para o ingresso dos policiais na residência do investigado.

Esse quadro é diferente daquele decidido pela mesma Corte, no ano de 2019, oportunidade em que
a busca se deu exclusivamente com base na denúncia anônima e fuga do acusado, sem qualquer
diligência:

“A existência de denúncia anônima da prática de tráfico de drogas somada à fuga do acusado ao


avistar a polícia, por si sós, não configuram fundadas razões a autorizar o ingresso policial no
domicílio do acusado sem o seu consentimento ou sem determinação judicial. É imprescindível que
haja investigação policial para verificar a veracidade das informações recebidas” (STJ, HC 512.418/RJ,
Rel. Ministro Nefi Cordeiro, Sexta Turma, julgado em 26/11/2019, DJe 03/12/2019).

Vejamos o tema sob a ótica da jurisprudência:

“Nada impede que o Poder Público, provocado por delação anônima (‘disque-denúncia’, p. ex.),
adote medidas informais destinadas a apurar, previamente, em averiguação sumária, ‘com prudência
e discrição’, possível ocorrência de eventual situação de ilicitude penal, desde que o faça com o
objetivo de conferir a verossimilhança dos fatos nela denunciados, em ordem a promover, então, em
caso positivo, a formal instauração da ‘persecutio criminis’, mantendo-se, assim, completa
desvinculação desse procedimento estatal em relação às peças apócrifas ” (STF – HC n. 117.988-RS,
Rel. para o Acórdão Celso de Mello, j. 16.122.2014).

“Segundo precedentes do Supremo Tribunal Federal, nada impede a deflagração da persecução


penal pela chamada ‘denúncia anônima’, desde que esta seja seguida de diligências realizadas para
averiguar os fatos nela noticiados (86.082, rel. min. Ellen Gracie, DJe de 22.08.2008; 90.178, rel. min.

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Cezar Peluso, DJe de 26.03.2010; e HC 95.244, rel. min. Dias Toffoli, DJe de 30.04.2010). No caso,
tanto as interceptações telefônicas, quanto as ações penais que se pretende trancar decorreram não
da alegada “notícia anônima”, mas de investigações levadas a efeito pela autoridade policial” (STF –
HC n° 9940-SP, Rel. Joaquim Barbosa, j. 23.11.2010, DJe 01.02.2011).

“Conquanto a notícia anônima em si mesma não fosse vaga, pois trazia detalhes das negociações
feitas por pessoas ligadas a determinada instituição financeira, narrando, em oito oportunidades, por
escrito, fatos e apontando elementos que podiam, a princípio, corroborar as ações tidas como
criminosas, sem um mínimo de base empírica, não era possível a queima de etapas para, de pronto,
se determinar a quebra de sigilo das comunicações telefônicas dos delatados. Não obstante a
gravidade dos fatos narrados na denúncia anônima, não houve o cuidado de se fazer uma prévia
averiguação. Nem a Polícia, nem o Ministério Público, muito menos o magistrado poderia ter-se
deixado aturdir com as persuasivas mensagens, porquanto provenientes de pessoa que,
categoricamente, não quis se identificar, mesmo após o investigador haver mencionado que sua
identidade seria preservada. Devidamente demonstrado nos autos que houve ilegalidade em dar
início a interceptações telefônicas com base tão somente em documentos apócrifos” (STJ – HC n°
131225-SP, Rel. Sebastião Reis Junior, j. 27.08.2013, DJe 16.09.2013).

Denúncia anônima e interceptação telefônica

HABEAS CORPUS. INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA. DILIGÊNCIAS PRÉVIAS – “A interceptação telefônica


foi precedida de diligências preliminares, não sendo possível acolher a alegação de que o
procedimento penal instaurado baseou-se exclusivamente em denúncia anônima” (STF – Rel. Luis
Roberto Barroso, j. Ag .Reg. no HC n. 120.203-RJ, j. 10.02.2015).

Carta anônima

“Carta anônima, sequer referida e que, quando muito, propiciou investigações por parte do
organismo policial, não se pode reputar de ilícita. É certo que, isoladamente, não terá qualquer valor,
mas também não se pode tê-la como prejudicial a todas as outras validamente obtidas” (STJ – Rel.
Anselmo Santiago – RT 756/523).

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2-Tema: Homicídio qualificado. Recurso da defesa. Pena-base. Modificação dos institutos jurídicos.
Cúmulo material para continuidade delitiva. Pena final inalterada. Reformatio in pejus. Não
ocorrência.

INFORMATIVO 734- STJ

DESTAQUE:

O reconhecimento da continuidade delitiva não importa na obrigatoriedade de redução da pena


definitiva fixada em cúmulo material, porquanto há possibilidade de aumento do delito mais gravoso
em até o triplo, nos termos do art. 71, parágrafo único, in fine, do Código Penal.

INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR:

No caso, o agente foi condenado a 30 anos de reclusão, em cúmulo material de dois delitos de
homicídio qualificado com decapitação e esquartejamento das vítimas. Em recurso de apelação, foi
reconhecido crime continuado, mas sem alteração na pena final, porquanto aplicado o aumento por
continuidade delitiva para dobrar a pena de 15 anos, nos termos do art. 71, parágrafo único, in fine,
do Código Penal.

Sobre o tema, é pacífica a distinção entre os institutos da continuidade delitiva e da pena-base, a


despeito de aparentemente partilharem a necessidade de valoração de vetoriais semelhantes,
mesmo porque cada crime permanece independente na cadeia delitiva, tanto que se permite
dosimetrias distintas para cada evento.

A distinção entre os referidos institutos - a saber, pena-base e continuidade delitiva - permite,


inclusive, a valoração da mesma circunstância fática sob dois aspectos distintos, sem infringência ao
princípio do ne bis in idem.

Ademais, o reconhecimento da continuidade delitiva não importa na obrigatoriedade de redução da


pena definitiva fixada em cúmulo material, porquanto há possibilidade de aumento do delito mais
gravoso em até o triplo, conforme o trecho do dispositivo acima citado.

Portanto, mantida a pena definitiva no mesmo montante, modificados somente os institutos penais
sem o decote de qualquer vetorial negativa ou causa de aumento, não há de se falar em reformatio
in pejus.

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Frisa-se, na mesma linha, a manifestação da Procuradoria-Geral da República, para quem "não houve
nova valoração das circunstâncias judiciais na primeira fase da dosimetria da pena, mas apenas o
apontamento de elementos concretos para fundamentar o patamar aplicado em razão da
continuidade delitiva, nos exatos termos do art. 71, parágrafo único, do Estatuto Repressivo, não
havendo cogitar-se de reformatio in pejus".

Processo: AgRg no HC 301.882-RJ, Rel. Min. Antonio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, por
unanimidade, julgado em 19/04/2022, DJe 26/04/2022.

COMENTÁRIOS DO CAOCRIM

Vamos analisar, a partir do julgado em comento, o princípio da proibição da reformatio in pejus no


júri.

Antes, importante lembrar que, por esse princípio, a parte que recorreu não pode ter sua situação
agravada no julgamento da insurgência. Trata-se de consequência advinda do princípio da
personalidade, pelo qual somente o recorrente pode se beneficiar pelo julgamento, cujos efeitos não
aproveitam a parte que não exerceu essa faculdade. A razão é óbvia: todo recorrente almeja ver
melhorada sua situação. Se ao invés disso, além de negar provimento ao recurso, pudesse o tribunal,
em acréscimo, prejudicar a situação do recorrente, não haveria qualquer incentivo em se recorrer,
violando-se, assim, o princípio constitucional da ampla defesa. Além disso, estaria o Tribunal agindo
de ofício, afrontando o ne procedat judex ex officio e o princípio do tantum devolutum quantum
appelatum, já que apreciando questão (aumento da pena, por exemplo), que não foi objeto de
recurso, subvertendo, com tal conduta, o sistema acusatório que orienta nosso sistema.

É por isso que este dispositivo em análise prevê, expressamente, a impossibilidade de se reformar a
decisão para pior, em prejuízo do réu, quando somente ele recorreu. Assim, imaginemos a situação
em que o réu é condenado, pela prática de um roubo majorado, à pena de quatro anos de reclusão.
Não pode o tribunal, ao julgar a apelação do réu, negar provimento ao recurso e, demais disso, aplicar
a pena correta que seria, no mínimo, de cinco anos e quatro meses. A única maneira de corrigir o
equívoco ocorreria se o Ministério Público tivesse também apelado da sentença, no tocante à
aplicação da pena. Aí sim, o tribunal negaria provimento ao recurso do réu, mantendo a condenação
e acolheria o recurso do parquet, aplicando a pena correta.

Vale observar que o art. 617 veda somente o aumento da pena em recurso exclusivo do réu. Mas,
por força de entendimento doutrinário e jurisprudencial, esse impedimento não se restringe
somente à pena, mas a toda e qualquer situação que, eventualmente, venha a prejudicar o

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recorrente. Assim, por exemplo, se o réu é condenado pela prática de um roubo majorado e o juiz
fixa o regime aberto para início de cumprimento de pena, em apelação exclusiva do réu é vedado ao
tribunal, mantendo a condenação, impor o regime semiaberto ou fechado. Nesse sentido, STF – RT
749/593; JSTF 232/347. Ou reconhecer nulidade contrária aos interesses do réu, nos termos da
Súmula 160 do STF (RT 706/346).

Também não se admite a chamada reformatio in pejus indireta, que ocorre quando o tribunal anula
a sentença de primeiro grau e determina que outra seja proferida. Assim, se num primeiro
julgamento, pela prática de roubo majorado, o réu foi condenado a quatro anos de reclusão, anulada
essa sentença em recurso exclusivo da defesa, não pode a nova decisão impor uma pena superior
ou, de qualquer forma, agravar a situação do réu. A menos que a acusação tenha também recorrido
para aumentar a pena, em recurso que não foi apreciado ante a decretação da nulidade do julgado.
Nesse sentido: “Inexiste reformatio in pejus se, uma vez anulada a primeira sentença condenatória,
em razão do provimento da apelação do réu quanto à questão preliminar, ficou prejudicada a
apelação do Ministério Público, vindo o juiz a aplicar pena mais grave em nova sentença” (STJ – RT
656/350).

Vejamos o tema sob a ótica de jurisprudência:

Vedação da reformatio in pejus. Justificativa

“A vedação à reformatio in pejus se justifica na medida em que a admissão da piora da situação


daquele que recorre, quando há insurgência apenas de sua parte, tolheria por completo a
voluntariedade dos recursos, maculando o direito a ampla defesa, já que o interessado sempre se
questionaria acerca da possibilidade de recorrer, pois correria o risco de se ver em posição ainda
mais desvantajosa do que aquela em que já se encontra” (STJ – HC n° 189172-RS, Rel. Jorge Mussi, j.
21.06.2011, DJe 01.08.2011).

Vedação da reformatio in pejus indireta

No caso julgado, o agente havia sido condenado em primeira instância. Ao julgar a apelação, o
Tribunal de Justiça reduziu a pena. Após o trânsito em julgado para ambas as partes, o acórdão foi
atacado por meio de habeas corpus impetrado no STJ, que cassou a decisão. O Tribunal de Justiça
proferiu novo julgamento, mantendo a pena aplicada na apelação anulada. Contra este novo
julgamento de apelação o Ministério Público interpôs recurso especial, que foi provido
monocraticamente para aumentar a pena ao mesmo patamar que havia sido estabelecido na
sentença de primeira instância. Em razão disso, o agente ajuizou revisão criminal alegando que foi

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indevidamente prejudicado pelo STJ, pois, caso não houvesse recorrido para anular o acórdão
originário, sua pena não teria sofrido aumento. A pretensão foi acolhida por unanimidade. (STJ,
Revisão crim. 4.853/SC, Terceira Seção, j. 27/11/2019).

Configuração da reformatio in pejus

a) na majoração da pena

“Se a sentença condenatória transitou em julgado para o órgão de acusação, que dela não interpôs
recurso, não pode o Tribunal competente, ao conhecer da apelação interposta pelo réu, aumentar a
pena declarada no dispositivo da sentença sob pretexto de corrigir erro material. O art. 617 do CPP
repudia situações em que a reforma da sentença condenatória se opera em detrimento do réu-
apelante, quando apenas este se insurgiu contra o julgado. Ordem de habeas corpus deferida” (STF
– HC n° 88213-SP, Rel. Joaquim Barbosa, DJ 02.02.2007).

b) no reconhecimento de qualificadora

“Operada a desclassificação, no primeiro grau de jurisdição, de homicídio doloso para lesões


corporais, se o recurso do Ministério Público afasta, de modo expresso, nas razões respectivas, a
incidência do motivo fútil, não poderia o Tribunal tê-la reconhecido, sob pena de violação ao efeito
devolutivo” (STJ – HC n° 195675-SC, Rel. Maria Thereza de Assis Moura, j. 06.06.2013, DJe
14.06.2013).

c) no reconhecimento de nulidade absoluta

“Se é certo que, no processo civil, erro material pode ser corrigido a qualquer tempo, até ‘ex officio’,
conforme preceitua o art. 463, I, CPC, é diverso o sistema que informa o processo penal, em cujo
âmbito não consta preceito idêntico nem análogo e, como princípio cardeal, vige proibição de
‘reformatio in pejus’. Dispõe, com efeito, o art. 617, parte final, do CPP, que o tribunal não poderá
agravar a pena, quando somente o réu houver apelado da sentença. é a expressão da regra da
chamada personalidade dos recursos, que, em última análise, significa que o réu recorrente não pode
ter a situação agravada, quando não for interposto recurso da parte contrária. Ao sistema processual
penal repugna-lhe a ‘reformatio in pejus’. É o que, por exemplo, se vê à exceção da regra que faz
cognoscível de ofício, a qualquer tempo, toda causa de nulidade absoluta, salvo quando agrave a
situação do réu: não pode o tribunal, em recurso exclusivo da defesa, pronunciar nulidade absoluta
que, não arguida pela acusação, prejudique a defesa. É a postura que esta Corte sedimentou na
súmula 160, a qual preceitua: ‘É nula a decisão do Tribunal que acolhe, contra o réu, nulidade não

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arguida no recurso da acusação, ressalvados os casos de recurso de ofício’. E essa repugnância do


sistema assume contornos absolutos perante a norma implícita de que, ainda quando contenha
gritante erro judiciário, que é o mais, sentença absolutória se reveste, uma vez transitada em julgado,
de autoridade incontrastável e, como tal, não admite revisão (art. 621 do Código de Processo Penal,
a contrário). Trata-se da cabal confirmação do entendimento de que, neste, como noutros temas, o
processo penal não é estruturado por princípios comuns ao processo civil, senão por regras próprias,
em razão da prevalência dos interesses públicos que constituem a substância e o objeto permanente
do conflito jurídico típico que se presta a decidir e, sobretudo, por força do valor supremo do ‘ius
libertatis’ , do qual o processo é concebido e disciplinado como instrumento de tutela” (STF – HC n°
83464-SP, Rel. Cezar Peluso, DJe 03.06.2006).

d) na correção de erro material

“EMENTA: SENTENÇA PENAL. Capítulo decisório. Condenação. Pena privativa de liberdade. Reclusão.
Fixação. Soma dos fatores considerados na dosimetria. Erro de cálculo. Estipulação final de pena
inferior à devida. Trânsito em julgado para o Ministério Público. Recurso de apelação da defesa.
Improvimento. Acórdão que, no entanto, aumenta de ofício a pena, a título de correção de erro
material. Inadmissibilidade. Ofensa à proibição da reformatio in pejus. HC concedido para
restabelecer o teor da sentença de primeiro grau. Não é lícito ao tribunal, na cognição de recurso da
defesa, agravar a pena do réu, sob fundamento de corrigir ex officio erro material da sentença na
somatória dos fatores considerados no processo de individualização” (STF – Rel. Cezar Peluso – RT
849/474).

e) na decretação da prisão preventiva

PRISÃO PREVENTIVA. AUSÊNCIA DE ELEMENTOS CONCRETOS A INDICAR A NECESSIDADE DA


MEDIDA. FUNDAMENTAÇÃO GENÉRICA. DECRETAÇÃO EM RECURSO EXCLUSIVO DA DEFESA.
REFORMATIO IN PEJUS. ILEGALIDADE – “Caracteriza reformatio in pejus a decretação de prisão
cautelar pelo Tribunal de Justiça local quando do julgamento de recurso exclusivo da defesa.
Precedentes” (STJ – HC n° 191515-RJ, Rel. Sebastião Reis Júnior, j. 16.020.2012, DJe 11.04.2012).

f) na substituição da pena por medida de segurança

f.1) possibilidade

“Não constitui reformatio in pejus o fato de o Tribunal substituir a pena privativa de liberdade por
medida de segurança, com base em laudo psiquiátrico que considerou o acusado inimputável, vez

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que a medida de segurança é mais benéfica do que a pena, vez que objetiva a proteção da saúde do
acusado” (STJ – HC n° 187051-SP, Rel. Gilson Dipp, j. 06.10.2011, DJ 14.10.2011).

f.2) impossibilidade

“AÇÃO PENAL. Condenação. Sentença condenatória. Pena restritiva de liberdade. Substituição por
medida de segurança. Determinação de exame de sanidade mental, determinada de ofício em
recurso exclusivo do réu, que a não requereu. Inadmissibilidade. Coisa julgada sobre aplicação da
pena. Decisão, ademais, viciada por disposição ultra petita e reformatio in pejus. HC concedido.
Aplicação da súmula 525 do Supremo. Votos vencidos. Não é lícito aplicar medida de segurança em
grau de recurso, quando só o réu tenha recorrido sem requerê-la” (STF – HC n° 111769-SP, Rel. Cezar
Peluso, j. 26.06.2012, DJe 26.02.2013).

Tribunal que acolhe nulidade em desfavor do réu. Impossibilidade

“O Órgão julgador, ao apreciar recurso da acusação versando sobre nulidade, esta jungido as causas
de pedir nele contidas, sendo-lhe defeso considerar ato em relação ao qual se mostre silente. ‘E nula
a decisão do Tribunal que acolhe, contra o réu, nulidade não arguida no recurso da acusação,
ressalvados os casos de recurso de oficio’ – verbete de n. 160 que integra a Súmula do Supremo
Tribunal Federal” (STF – REsp. 72677-DF, Rel. Marco Aurélio, j. 06.06.1995, DJ 04.08.1995, p. 22448).

3- Tema: Execução da pena. Relação entre a progressão para o regime semiaberto e a concessão
de saída temporária.

PESQUISA PRONTA- STJ

"A jurisprudência deste Superior Tribunal de Justiça firmou-se no sentido de que a concessão do
benefício de visita periódica ao lar não prescinde da observação de sua compatibilidade com os
objetivos da pena, além do bom comportamento, devendo ser gradual o contato maior do apenado
com a sociedade, a fim de não frustrar os objetivos da execução. Além disso, também é firme o
posicionamento de que o fato de o apenado ter progredido para o regime semiaberto não lhe
assegura o direito à visitação periódica ao lar (AgRg no HC n. 707.418/RJ, Ministro Ribeiro Dantas,
Quinta Turma, DJe 17/12/2021)".AgRg no HC 723.401/RJ, Rel. Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta
Turma, julgado em 22/03/2022, DJe 31/03/2022.

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DIREITO PENAL:

1- Tema: Tráfico de drogas. Causa de diminuição de pena do art. 33, § 4º, da Lei n. 11.343/2006.
Diretrizes firmadas no EREsp 1.887.511/SP. Uso apenas supletivo da quantidade e natureza da
droga na terceira fase da dosimetria. Revisão de posicionamento.

INFORMATIVO 734-STJ

DESTAQUE:

É possível a valoração da quantidade e natureza da droga apreendida, tanto para a fixação da pena-
base quanto para a modulação da causa de diminuição prevista no art. 33, § 4º, da Lei n. 11.343/2006,
neste último caso ainda que sejam os únicos elementos aferidos, desde que não tenham sidos
considerados na primeira fase do cálculo da pena.

COMENTÁRIOS DO CAOCRIM

Este assunto gera indisfarçável controvérsia na doutrina e na jurisprudência. Já foi objeto de estudo
do CAO-Crim, bem como tema de debate na Escola Superior do MPSP.

Agora, a Terceira Seção do STJ, no julgamento do EREsp 1.887.511/SP, da Relatoria do Ministro João
Otávio de Noronha, fixou as seguintes diretrizes para a aplicação do art. 33, § 4º, da Lei n.
11.343/2006:

"1 - A natureza e a quantidade das drogas apreendidas são fatores a serem necessariamente
considerados na fixação da pena-base, nos termos do art. 42 da Lei n. 11.343/2006.

2 - Sua utilização supletiva na terceira fase da dosimetria da pena, para afastamento da diminuição
de pena prevista no § 3º do art. 33 da Lei n. 11.343/2016, somente pode ocorrer quando esse vetor
conjugado com outras circunstâncias do caso concreto que, unidas, caracterizem a dedicação do
agente à atividade criminosa ou a integração a organização criminosa.

3 - Podem ser utilizadas para modulação da causa de diminuição de pena prevista no § 4º do art. 33
da Lei n. 11.343/2006 quaisquer circunstâncias judiciais não preponderantes, previstas no art. 59 do
Código Penal, desde que não utilizadas na primeira etapa, para fixação da pena-base".

No julgamento do ARE 666.334/AM, de Relatoria do Ministro Gilmar Mendes, o Pleno do STF, em


análise da matéria reconhecida como de repercussão geral, reafirmou a jurisprudência de que "as

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circunstâncias da natureza e da quantidade da droga apreendida devem ser levadas em consideração


apenas em uma das fases do cálculo da pena". O resultado do julgado foi assim proclamado:

"Tese: As circunstâncias da natureza e da quantidade da droga apreendida devem ser levadas em


consideração apenas em uma das fases do cálculo da pena. Tema 712: Possibilidade, em caso de
condenação pelo delito de tráfico de drogas, de valoração da quantidade e da natureza da droga
apreendida, tanto para a fixação da pena-base quanto para a modulação da causa de diminuição
prevista no art. 33, § 4º, da Lei 11.343/2006".

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MP/SP: decisões do setor do art. 28 do CPP

1-Tema: Subsunção dos fatos ao conceito de violência doméstica ou familiar contra a mulher –
crime de stalking - atribuição do Promotor de Justiça de Enfrentamento à Violência Doméstica.

CONFLITO NEGATIVO DE ATRIBUIÇÃO

Autos n.º 150xx86-x1.2021.8.26.0002 – MM. Juízo da 3ª Vara de Violência Doméstica e Familiar


contra a Mulher do Foro Regional II – Santo Amaro, Comarca da Capital
Investigado: FRANCISCO HERMESSON LIMA
Suscitante: xxº Promotor de Justiça de Enfrentamento à Violência Doméstica do Foro Regional II –
Santo Amaro (Comarca da Capital)
Suscitada: Promotora de Justiça Substituta oficiante no JECRIM do Foro Central
Assunto: subsunção dos fatos ao conceito de violência doméstica ou familiar contra a mulher –
crime de stalking - atribuição do Promotor de Justiça de Enfrentamento à Violência Doméstica.

EMENTA: CONFLITO NEGATIVO DE ATRIBUIÇÃO ENTRE


PROMOTORES DE JUSTIÇA. CRIME DE PERSEGUIÇÃO (STALKING)
CONTRA VÍTIMA DO SEXO FEMININO. AUSÊNCIA DE
RELACIONAMENTO AMOROSO ENTRE AUTOR E VÍTIMA. “AMOR
PLATÔNICO”. APLICABILIDADE DA LEI MARIA DA PENHA.
1. A controvérsia reside em determinar se aos fatos objeto desta
investigação se aplica a Lei Maria da Penha e a resposta se
afigura positiva.
2. O pressuposto para a subsunção do fato ao Diploma Especial é a
configuração de violência de gênero, fazendo-se necessário,
destarte, detectar a prevalência no sujeito ativo de uma
condição de superioridade, subjugando a ofendida.
3. As características do fato sugerem ter ele conexão com violência
de gênero, até porque foi consignado nas declarações da
ofendida que o investigado lhe enviava diversas mensagens
elogiando sua beleza e, por não ser correspondido, perturbava a
vítima, ameaçando-a e a ofendendo.

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4. Os comportamentos de perseguição e vigilância constante, além


das ameaças, comprovados nos autos, configuram a conduta
chamada de stalker, a qual é apta a causar diversos dissabores à
vida cotidiana da ofendida, limitando-a, atemorizando-a e
intimidando-a.
5. Referida hipótese foi expressamente contemplada pela Lei n.º
11.340/2006 que, em seu artigo 7.º, enumerou a violência
psicológica.
6. Tais situações, cada vez mais comuns, deram ensejo a aprovação
da Lei 14.132/21, que inseriu no Código Penal o art. 147-A, cuja
finalidade é tutelar efetivamente a liberdade individual, abalada
por condutas que constrangem alguém a ponto de invadir
severamente sua privacidade e de impedir sua livre
determinação e o exercício de liberdades básicas.
7. No caso concreto, embora inexistente relacionamento amoroso
entre as partes, as atitudes do investigado denotam ação
lastreada em dominação de gênero, com postura de pretensa
superioridade, possivelmente motivada pela condição do autor
de pessoa do sexo masculino, vislumbrando-se histórico
compatível com a esfera de proteção da Lei Maria da Penha.
8. Depreende-se, portanto, que a opinio delicti deve ser formada
no seio da Promotoria de Justiça dedicada ao combate da
violência doméstica ou familiar contra a mulher.
9. A remessa do caso para a vara especializada permitirá ainda à
ofendida proteção mais efetiva, em face das medidas protetivas
de urgência, nos termos da Lei nº 11.340/06, com a possibilidade
de prisão preventiva do agressor em caso de eventual
descumprimento, nos termos do art. 20 de precitada lei.
Solução: conflito de atribuição conhecido e dirimido, reconhecendo
a atribuição do Promotor de Justiça de Enfrentamento à Violência
Doméstica.

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Cuida-se de inquérito policial instaurado para apurar o crime de perseguição, previsto no


artigo 147-A, caput, do Código Penal, em tese praticado por FRANCISCO HERMESSON LIMA, em face
da vítima Juliane Massaoka Mika.

Segundo consta, a vítima mora no Rio de Janeiro/RJ e é jornalista da TV Globo, atualmente


trabalhando no programa “Mais Você”, da apresentadora Ana Maria Braga. Em razão do seu ofício,
a ofendida possui uma conta pública na rede social Instagram (@julianemassaoka), local em que
divulga o seu trabalho e expõe alguns momentos da sua vida com o objetivo de compartilhar sua
rotina com os seus fãs e seguidores.

Em meados de 2021, a vítima começou a perceber a constância e a impertinência de alguns


comentários que eram proferidos por um perfil identificado como @emersonlima5781, pertencente
ao ora investigado. De início, o perfil curtiu todas as fotos da ofendida, deixando comentários com
elogios, como “te adoro” e “que linda”. Contudo, com o tempo, o perfil em questão passou a deixar
comentários com tons mais agressivo e intimidatório, como por exemplo: “não tem vergonha de
postar uma foto dessa”; “pode apagar esse vídeo não gostei nem um pouco”; “não quero mais saber
desse tipo de foto nas redes sociais ok???”; “Eu aqui trabalhando duro, E você curtindo a vida numa
boa né dona Juliane”; “bom que você aproveitou foi a última” (este relacionado a uma postagem em
que a vítima aparece dançando com uma amiga) (cf. prints de fls. 37).

Ainda, segundo noticiado pela vítima, o perfil tentou adicioná-la à sua conta, passando-lhe a
encaminhar mensagens privadas questionando o motivo pelo qual a ofendida não o respondia,
dizendo, em tom intimidatório, que iria até a casa dela, mensagem esta que foi apagada logo em
seguida. O investigado também postou fotos da vítima no citado perfil, inclusive alterando a foto do
perfil para uma montagem da foto dele com a de Juliane e colocando na descrição do perfil que
estaria em um relacionamento sério com a ofendida (print – fls. 38).

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Além de toda perseguição virtual, no dia 22 de junho de 2021, a vítima estava hospedada no
Hotel Stanplaza Nações Unidas, situado na Rua Guararapes, nº 1889, nesta Capital, quando por volta
das 23h30min, foi contactada pela recepção informando que um indivíduo que se identificava como
HERMESSON gostaria de lhe falar. A vítima respondeu que não o conhecia e que não desceria ao
saguão do hotel. Pouco depois, novamente recebeu um chamado da recepção, comunicando que o
indivíduo disse que não sairia do local caso a vítima não o atendesse.

Os seguranças do hotel avisaram que a vítima não iria atendê-lo, momento em que
HERMESSON saiu do local e sentou na mureta do hotel, em frente à porta de entrada, no aguardo de
Juliane.

Depois de alguns minutos, a vítima voltou a ligar para a recepção para se cientificar de que
HERMESSON havia ido embora, oportunidade em que foi informada que ele ainda se encontrava na
calçada, ao lado da porta do Hotel, aguardando sua saída. A vítima, então, acionou a Polícia Militar
que compareceu ao local.

Questionado pelos policiais militares, FRANCISCO HERMESSON disse que era namorado da
vítima e que ambos haviam se conhecido dias atrás em um restaurante, que saíram algumas vezes e
que teriam discutido (cf. boletim de ocorrência de fls. 01/04).

Ouvido em solo policial, o investigado afirmou que conheceu a vítima nas redes sociais e que
a acompanhava e a admirava. Por meio de uma postagem da vítima, a qual marcava o Bairro
Liberdade, percebeu que ela estava em São Paulo. Assim, saiu de Mauá, onde reside, e veio até a
Capital apenas para vê-la. Afirmou tê-la visto no domingo em um bar localizado na Av. Engenheiro
Luís Carlos Berrini e, em pesquisa por hotéis próximos, após contato com três hotéis, descobriu o
hotel em que a vítima estava hospedada. Por fim, afirmou que fez um perfil falso, utilizando as fotos
da vítima como casal e que vem comentando nas fotos dela há aproximadamente dois meses, tudo
para chamar sua atenção (fls. 09).

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Ouvida em declarações, a vítima confirmou os fatos conforme supra narrado, acrescentando


que não conhece FRANCISCO HERMESSON, e nunca o viu antes, embora ele insistisse, a todo tempo,
na história de que a conhecia e que haviam tido uma briga de casal (fls. 05). Na ocasião, a vítima
representou pela continuidade das investigações (fls. 06).

Os autos foram distribuídos à 2ª Vara Criminal do Foro Regional de Santo Amaro, e a Douta
Promotora de Justiça que recebeu o feito requereu que fosse redistribuído a uma das Vara Criminais
do Foro Central, tendo em vista que o crime apurado é apenado com reclusão (fls. 14).

O Douto xx Promotor de Justiça Criminal da Capital, oficiante no DIPO 3, ao receber os autos,


requereu a remessa ao Juizado Especial Criminal do Foro Central, posto que, ao crime do art. 147-A,
caput, do CP, é cominada pena máxima de dois anos de reclusão (fls. 20/22).

O Douto Promotor de Justiça oficiante no JECRIM do Foro Central, ao receber os autos,


requereu a realização de diligências complementares (fls. 31).

A ofendida, por seus Ilustres Advogados, manifestou-se nos autos, apresentando os prints
das mensagens enviadas pelo investigado por meio do Instagram, bem como requereu a expedição
de ofício ao Hotel Stanplaza, para o fornecimento de cópias das imagens de segurança do local, ante
a informação que recebeu, de funcionários do hotel, dando conta que, na data dos fatos, o
investigado teria acessado os andares privativos do local e batido em alguns quartos no 6º andar, em
busca da ofendida, tendo persistido com tal conduta mesmo após confrontado pelo segurança do
local.

A vítima ainda informou que, no dia do ocorrido, retornou da Delegacia, para o hotel, por
volta das 03h30min e, ao acordar às 05h30min para ir trabalhar, foi informada pela recepcionista do
hotel que o investigado teria retornado à porta do hotel, pouco após sua chegada, e ali permanecia.
Temerosa, a ofendida saiu do hotel com ajuda da equipe de segurança da TV Globo. Não bastasse,
também no dia seguinte, a vítima recebeu uma mensagem do perfil do investigado dizendo “oi amor,

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eu to aqui na praça de alimentação”, mensagem que fora apagada em seguida pelo emissor, não
tendo sido possível realizar um print da tela do celular (cf. fls. 32/47).

Por esses motivos, a vítima requereu a concessão de medidas cautelares de afastamento e


de proibição de contato por qualquer meio, o que foi deferido pelo Juízo da Vara do Juizado Especial
Criminal do Foro Central (autos 1019908-41.2021.8.26.0050).

Em resposta ao ofício, a direção do Hotel Stanplaza Nações Unidas forneceu cópia das
imagens do circuito de segurança do local (link de acesso – fls. 65).

Após, a Ilustre Promotora de Justiça que assumiu o feito requereu a redistribuição dos autos
à Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, por entender que a conduta do investigado
sugere violência de gênero, tendo em vista o teor dos comentários deixados na rede social da vítima,
relacionados à dominação e subjugação da ofendida. Além disso, o comportamento stalker do
investigado pode ser perfeitamente enquadrado como situação de violência psicológica, prevista no
artigo 7º da Lei nº 11.340/2006 (fls. 68/71).

O Douto xxº Promotor de Justiça de Enfrentamento à Violência Doméstica, contudo,


discordou de sua antecessora e suscitou o presente conflito de atribuição, argumentando que, apesar
do “amor platônico” nutrido pelo investigado, não existe qualquer relacionamento entre as partes,
de modo que não há, portanto, violência doméstica e familiar contra a mulher (fls. 77/78).

Vieram os autos a esta Chefia Institucional para a resolução do impasse (fls. 79).

É o relato do necessário.

Há de se sublinhar, preliminarmente, que o endereçamento do caso a esta Chefia


Institucional assenta-se no art. 115 da Lei Complementar Estadual n.º 734/93, encontrando-se
devidamente configurado, portanto, o incidente supramencionado entre promotores de justiça.

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Como destaca HUGO NIGRO MAZZILLI, tal incidente tem lugar quando o membro do
Ministério Público nega a própria atribuição funcional e a atribui a outro, que já a tenha recusado
(conflito negativo), ou quando dois ou mais deles manifestam, simultaneamente, atos que importem
a afirmação das próprias atribuições, em exclusão às de outros membros (conflito positivo) (Regime
Jurídico do Ministério Público, 6.ª edição, São Paulo, Saraiva, 2007, pág. 486-487).

Considere-se, outrossim, que em semelhantes situações o Procurador-Geral de Justiça não


se converte no promotor natural do caso; assim, que não lhe cumpre determinar qual a providência
a ser adotada (oferecimento de denúncia, pedido de arquivamento ou complementação de
diligências), devendo tão somente dirimir o conflito para estabelecer a quem incumbe a
responsabilidade de oficiar nos autos.

Pois bem.

Com razão a Douta Promotora de Justiça Suscitada, com a máxima vênia do Ilustre
Suscitante; vejamos.

Os elementos de informação colhidos nestes autos, até o momento, dão conta que, a partir
de meados de 2021, o investigado perseguiu a vítima – que é jornalista da TV Globo e, portanto,
pessoa pública –, de início, virtualmente, deixando mensagens em suas redes sociais, de cunho
ameaçador e intimidatório, tendo, inclusive, criado um perfil fake na rede social Instagram, na qual
publicava fotos da vítima e ainda afirmava que estava em um relacionamento sério com ela.

Posteriormente, sabendo que a vítima estava em São Paulo, o investigado saiu de Mauá,
onde reside, e veio até a Capital para encontrá-la. Após descobrir o hotel onde a Juliane estava
hospedada, foi até o local e chegou a acessar os andares privativos do estabelecimento, tendo batido
na porta de alguns quartos na tentativa de encontrá-la.

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Após a chegada da Polícia Militar ao local, o investigado teria dito aos policiais que era
namorado da vítima e que ambos haviam se conhecido dias atrás em um restaurante, que saíram
algumas vezes e que teriam discutido.

E mesmo após ter sido conduzido à Delegacia, onde foi lavrado o boletim de ocorrência nº
900092/2021, acostado as fls. 01/04, o investigado retornou à porta do hotel onde Juliane estava, de
madrugada, onde permaneceu a sua espera, tendo a ofendida solicitado ajuda da equipe de
segurança da TV Globo para sair do local.

Se não bastasse, conforme noticiado pela vítima nos autos da medida cautelar 1019908-
41.2021.8.26.0050, após deferidas as medidas de afastamento e de proibição de que o investigado
mantenha qualquer forma de comunicação com a ofendida, dois perfis em redes sociais (um no
Instagram e outro no TikTok), com nomes muito semelhantes ao do investigado (“emersonfran762”
e “emersonlima5397”, respectivamente), passaram a bombardear o perfil de Juliane com likes (like
attack), bem como a comentar suas postagens com os seguintes dizeres: “gata com qualquer
figurino”; “japa linda”; “muito linda” (fls. 51/64 daqueles autos), de forma semelhante ao
comportamento inicial do investigado, descrito nestes autos.

Em um cenário tal, a Lei Maria da Penha se aplica, de fato, ao caso concreto.

O pressuposto para a subsunção do fato ao Diploma Especial é a configuração de violência


de gênero, fazendo-se necessário, destarte, detectar a prevalência no sujeito ativo de uma condição
de superioridade, subjugando a ofendida.

Calha à pena citar, nessa ordem de ideias, o escólio de MARIA BERENICE DIAS, que pondera
devam os arts. 5.º e 7.º da Lei n.º 11.340/06 ser interpretados conjugadamente, a fim de se extrair o
conceito de violência doméstica ou familiar contra a mulher:

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“Primeiro a Lei define o que seja violência doméstica (art. 5º):


“qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte,
lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou
patrimonial”. Depois estabelece seu campo de abrangência. A
violência passa a ser doméstica quando praticada: a) no âmbito da
unidade doméstica; b) no âmbito da família; ou c) em qualquer
relação íntima de afeto, independente da orientação sexual” (A Lei
Maria da Penha na Justiça – efetividade da Lei n. 11.340/06 de
combate à violência doméstica e familiar contra a mulher, São Paulo,
Editora Revista dos Tribunais, 2007, pág. 40).

As características do fato sugerem ter ele conexão com violência de gênero, até porque foi
consignado nas declarações da ofendida que o investigado lhe enviava diversas mensagens elogiando
sua beleza e, por não ser correspondido, perturbava a vítima, ameaçando-a e a ofendendo.

Os comportamentos de perseguição e vigilância constante, além das ameaças, comprovados


nos autos, configuram a conduta chamada de stalker, a qual é apta a causar diversos dissabores à
vida cotidiana da ofendida, limitando-a, atemorizando-a e intimidando-a.

Nesse sentido, a jurisprudência do STJ:

As condutas do paciente, consistentes em incessante perseguição e


vigília; de busca por contatos pessoais; de direcionamento de
palavras depreciativas e opressivas; de limitação do direito de ir e vir;
de atitudes ameaçadoras e causadoras dos mais diversos
constrangimentos à vítima, aptos a causarem intensa sensação de
insegurança e intranquilidade, representam o que é conhecido na
psicologia como stalking, como muito bem ressaltou o Tribunal a
quo.

(HC 359.050/SC, Rel. Ministro ANTONIO SALDANHA PALHEIRO,


SEXTA TURMA, julgado em 30/03/2017, DJe20/04/2017).

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Referida hipótese foi expressamente contemplada pela Lei n.º 11.340/2006 que, em seu
artigo 7.º, enumerou a violência psicológica, definida como “qualquer conduta que lhe cause dano
emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou
que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça,
constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição
contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou
qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação”, como uma
das formas de violência doméstica e familiar contra a mulher.

Importante trazer à colação pesquisa feita pelo Núcleo de Violência de Gênero do Ministério
Público de São Paulo:

Afeto não correspondido é uma das causas de feminicídio (1% dos


casos)1.

Pesquisa Raio X do Feminicídio:

1
http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/Nucleo_de_Genero/Feminicidio/RaioXFem

inicidioC.PDF

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A perseguição incessante é um dos fatores de risco.

Conforme consta do Formulário Nacional de Avalição de Risco,


aprovado pela Resolução do CNJ e CNMP pela Resolução Conjunta
nº 05, de 03 de março de 2020, o controle e a perseguição
configuram fatores de risco descritos nos itens 5 e 6.

Tais situações, cada vez mais comuns, deram ensejo a aprovação da Lei 14.132/21, que
inseriu no Código Penal o art. 147-A, cuja finalidade é tutelar efetivamente a liberdade individual,
abalada por condutas que constrangem alguém a ponto de invadir severamente sua privacidade e
de impedir sua livre determinação e o exercício de liberdades básicas.

Isso porque, como já exposto, até a criação deste crime, a maior parte dos atos de
perseguição se inseriam no art. 65 do Decreto lei 3.688/41, cuja pena de prisão simples variando de
quinze dias a dois meses era considerada insuficiente, em um claro exemplo de proteção deficiente.
Com a Lei 14.132/21, a contravenção foi revogada e a perseguição passou a ser punida com reclusão
de seis meses a dois anos.

Nesse contexto, as atitudes de FRANCISCO HERMESSON denotam ação lastreada em


dominação de gênero, com postura de pretensa superioridade, possivelmente motivada pela
condição do autor de pessoa do sexo masculino, vislumbrando-se histórico compatível com a esfera
de proteção da Lei Maria da Penha.

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Depreende-se, portanto, que a opinio delicti deve ser formada no seio da Promotoria de
Justiça dedicada ao combate da violência doméstica ou familiar contra a mulher.

A remessa do caso para a vara especializada permitirá ainda à ofendida proteção mais
efetiva, em face das medidas protetivas de urgência, nos termos da Lei nº 11.340/06, com a
possibilidade de prisão preventiva do agressor em caso de eventual descumprimento, nos termos do
art. 20 de precitada lei.

Conclui-se, portanto, com base no quanto já apurado, que as condutas do investigado, em


tese, configuram violência de gênero e amoldam-se ao crime de perseguição (art. 147-A, caput, do
CP).

Nesse sentido, ainda que o crime imputado ao acusado seja um delito menor potencial
ofensivo, uma vez praticado em contexto de violência de gênero, aplica-se a Lei n° 11.340/06,
afastando-se, portanto, a competência do Juizado Especial Criminal.

Ante o exposto, conhece-se do presente conflito negativo de atribuição para declarar que a
atribuição para oficiar nestes autos de inquérito policial cabe ao Douto Promotor de Justiça de
Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Foro Regional de Santo Amaro,
a quem incumbirá formar a opinião delitiva no caso concreto.

A controvérsia a respeito da incidência da Lei Maria da Penha, nos termos ora analisados,
não colide com eventual opinião delitiva a ser deduzida pelo promotor natural, motivo por que não
se afigura necessária a designação de outro membro ministerial para atuar em seu lugar.

São Paulo, 25 de abril de 2022.

Mário Luiz Sarrubbo


Procurador-Geral de Justiça

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