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À medida que se relatar o caso, será descrita a dinâmica das primeiras entrevistas e
a necessidade de o terapeuta concentrar-se no que o cliente manifesta e em como
isto se dá. Em seguida, será demonstrada a importância do contrato terapêutico - a
cujos mal-entendidos se deve a maioria das desistências em terapia - e a forma de
construir um diálogo eficaz entre terapeuta e cliente.
O QUE É GESTALT-TERAPIA
Para promover a mudança desse quadro, Barroso (1996) oferece uma diretriz
segura:
Conforme outra concepção errônea, diz-se que a Gestalt é uma terapia superficial.
Os profissionais da psicoterapia consideram, na recomendação a determinada linha
de trabalho, o que é “mais indicado” ou o que “o paciente precisa”. Nesse caso,
optam por uma terapia profunda (sinônimo escolhido para a psicanálise) ou
superficial (em referência às outras abordagens).
O ENCONTRO PROFUNDO
Para Buber (Hycner, 1995, p. 23), o encontro se faz no centro da relação EU-TU.
Hycner (1995) auxilia nesse ponto:
Desse modo, profundo pode ser traduzido por inconsciente — o que está de acordo
com os pressupostos da psicanálise. Por outro lado, ele também significa: muito
marcado; de grande intensidade; que vem ou parece vir do íntimo, fundo; enorme;
desmedido, excessivo — saber profundo; sagaz, perspicaz; difícil de compreender
etc. E nessa variabilidade de sentidos que se pode encontrá-lo no processo de ser
dos clientes.
Para exemplificar na prática os conceitos utilizados até aqui, assim como os que
serão usados doravante, segue-se o relato de um caso clínico. (As partes do texto
referentes ao relato do caso estarão destacadas graficamente por tipo itálico,
visando a facilitar a leitura. A fim de manter a fidelidade ao caráter afetivo que se liga
de maneira inelutável a este tipo de experiência, adotar-se-á o discurso na primeira
pessoa do singular.) (página 11)
RELATO DE CASO
E., no momento que a conheci, tinha 28 anos. Ela fez questão de expor
detalhadamente todos os seus sintomas, talvez mais uma vez na esperança de um
laudo conclusivo sobre suas queixas. Falava em tom monocórdio, ritmo lento e
interrompido parecendo que precisava de tempo para concatenar as idéias.
Sua principal preocupação era não ter recursos para criar os filhos. Afirmava que
quando os via tão pequenos e indefesos achava que não ia dar conta da educação
deles. As tarefas de mãe pareciam-lhe muito difíceis. Na verdade, seu corpo
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apontava para essa impotência O seu aspecto de bebê ainda não nascido levava-
me a (página 12) pensar sobre quem cuidava daquelas crianças tão nutridas e
risonhas. Essa foi a pergunta que fiz a ela. Para minha surpresa, verifiquei que a
maior carga de cuidados com as crianças era dela. Gostei do que ouvi — ali havia
um ponto de vida, mas em que grau?
Após alguns comentários sobre a participação do marido, visto como sua tábua de
salvação, da empregada e de alguns parentes, ela comunicou o medo que tinha de
sua mãe morrer. As lágrimas que agora desciam do seu rosto fizeram-na enxugá-
las, e nessa oportunidade observei como seus dedos e mãos estavam endurecidos,
o que dficultava os movimentos. A aparência dela, o clima de morte, as mãos
geladas que apertaram as minhas na entrada levaram-me a achar legítimo aquele
medo. Perguntei-lhe se tinha razões concretas para isso. Ela me explicou que era
filha temporã, caçula de quatro irmãs, e que sua mãe era idosa. Na realidade, ela
tinha três mães, segundo seu próprio relato: a verdadeira e duas irmãs mais velhas,
que eram solteiras e viviam para ela. Sempre fora excessivamente cuidada e
protegida dos perigos do mundo, mais particularmente pelas irmãs. Seu pai morrera
quando ela tinha 15 anos, e pareceu-me, nesse primeiro momento, que não era uma
figura muito forte na família internalizada por E. Os pais, embora morando na
mesma casa, não tinham uma vida de casal, e E. já os conheceu assim. Sabia-se de
relacionamentos extraconjugais do pai, razão alegada para o afastamento dos
cônjuges.
Outro aspecto notável é que no seu pólo de vida ela pôde construir uma família que
em princípio me pareceu saudável.
Por último, imaginei que ela não me teria procurado para morrer e, indo mais longe,
talvez sua presença ali fosse o seu grito (página 13) de socorro. Apoiada nesses
indícios, dispus-me a começar um trabalho que durou alguns anos.
***
pessoa que recorre à terapia, buscando verificar o seu funcionamento, suas áreas
de contato, suas evitações, tudo o que permite uma compreensão provisória do
processo de ser do cliente, ou seja, o que ele traz e como traz.
***
Após esse conhecimento inicial e certa da motivação que tinha para acompanhá-lo,
passei a fazer as combinações necessárias para o trabalho. Habitualmente, atendo
a clientes uma vez por semana. No caso de E., estabelecemos que as nossas
sessões ocorreriam duas vezes por semana. Considero aquilo que chamamos de
contrato terapêutico como muito importante para o desenrolar do processo. O maior
índice de desistência na psicoterapia é devido a mal-entendidos no contrato. Penso,
então, no papel do terapeuta, no sentido de passar as informações de forma clara
para que o cliente saiba o que ele nessa relação pode receber, com o que ele pode
contar, até onde pode ir e decidir se aceita ou não as condições.(página 14) Se por
um lado quem estabelece as regras do contrato é o terapeuta, cabe ao cliente
manifestar a sua opinião. Essa é mais uma oportunidade de verificar como o cliente
se relaciona com as propostas do terapeuta. A postura de E. no contrato não foi dife-
rente de nada do que ela tinha me mostrado até então. Sem poder de decisão nem
um mínimo de autonomia, ela iria conversar com o marido a fim de decidir-se.
Mesmo assim, fiz questão de combinar tudo com ela. Essa era também uma forma
de mostrar-lhe que ela era proprietária de sua vida e de seus desejos.
***
***
Eu estava muito atenta a tudo o que acontecia na minha frente. Como já disse,
chamou-me muita atenção a sua postura. Eu avaliava o esforço que era falar
comprimindo o diafragma para baixo, tentando ficar sentada. Parecia que a espinha
dorsal não a apoiava.
Achei que deveria dar alguma explicação para a minha proposta, e justifiquei-me
alegando que eu achava que, à medida que ela conhecesse mais o corpo, poderia
usá-lo melhor. Seu jeito submisso deixava-me a impressão de que ela faria o que eu
quisesse, repetindo a forma com que se relacionava com o mundo. Perguntei-lhe se
ela concordava comigo. Ela assentiu, e me pareceu sincera. Pedi-lhe que prestasse
atenção ao seu corpo, focalizando sua postura. Achei que tinha encontrado um
ponto de contato favorável. Os (página 16) primeiros trabalhos eram de
conscientização corporal, e E. ficava feliz com as descobertas que fazia. À medida
que ela se dava conta do corpo, emergia bem o seu aspecto bebê desamparado.
Com muito cuidado, eu apenas a confirmava, sem forçar nada. Aliás, surpreendeu-
me como ela pôde aproveitar o conhecimento do seu corpo. Cada experiência a
enriquecia enquanto a expressão verbal ainda era precária. Nessa fase, ocorreu-me
que o contato do bebê é mais corporal, e tive a impressão de que ela nunca tivera
essa oportunidade, isto é, ela experienciava ali o bebê desconfirmado. Foi numa
dessas investidas que ela descobriu que tinha pés, e este foi um dos marcos do
trabalho.
— Acho horrível quando ando pela rua e não acho o chão — disse E. — Ele
afunda, parece que tem um buraco. Parece que eu vou cair; sabe?
— Vamos ver como é que é isso — intervim — Que tal nós caminharmos aqui
na sala?
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Fiquei ao seu lado para que ela se sentisse mais segura. Caminhamos um pouco, e
foi notável a mudança do início para o final do experimento.
À medida que ela andava, percebi que ela encontrava dificuldade de orientar-se no
espaço; olhava para baixo com a cabeça semifletida. Perguntei-lhe o que via quando
olhava para o chão. Imaginei que ela fosse responder algo sobre o chão ou sobre o
buraco. Para minha surpresa, ela respondeu emocionada:
***
A esta altura do relato, cabe registrar o que Lima Filho (1993) afirma sobre
experimento a partir dos ensinamentos de Latner:
***
Lembro-me de uma fantasia em que E. encontrava-se parada num canto e via diante
de si vários caminhos, sem saber qual deles escolher. Tentei trabalhar a situação
dramaticamente, reencenando o vivido. Foi muito difícil para ela verificar que não
sabia que rumo tomar. Ela ficou estava presa no chão. O que E. pôde fazer foi
assumir que ainda era cedo para decidir qual era o seu rumo na vida.
Percebi nesse momento que E. se encontrava mesmo num impasse. Pressenti que
estávamos perto de uma grande mudança, e E. resistia. Lembrei-me de que Polster
e Polster (1979) afirmam que a resistência surge no movimento para o contato com
o novo. Eu esperava. Tratei simplesmente de favorecer um maior contato com essas
resistências (por exemplo, pedir a ela que se identificasse com o muro). Ambas
sabíamos que estávamos perto, mas ainda não havia energia suficiente para a
mudança.
Um episódio importante nessa época foi a fantasia de estar presa num quarto
escuro. Tratei de reconstituir a cena, e este foi mais um marco na terapia de E.
Pedi-lhe que esquadrinhasse aquela porta, e ela explorou-a verificando que ela
mesma podia abri-la ou fechá-la. Ela sorria ao mesmo tempo que escorriam lágrimas
dos seus olhos. Nós duas nos emocionamos. Aquela porta passou a ser o símbolo
da terapia.
Não sei se foi exatamente a partir daí, mas uma série de mudanças vieram a
acontecer e pretendi aproveitar mais essa fase. Eu tinha o hábito de ocasionalmente
fazer umas maratonas terapêuticas de fins de semana com os clientes de
atendimento individual. Presumi que E. poderia beneficiar-se desse tipo de trabalho.
Parti das seguintes premissas: primeiro, E. já tinha suporte suficiente para lidar com
a mobilização de grupo; manifestava também o desejo de conhecer outras pessoas,
visto que vivia muito isolada no seio familiar. Seria mais uma oportunidade de sentir-
se ajudada e de poder ajudar (esse era um desejo dela); ela poderia, ainda, ver-se
na situação de grupo, identificando-se e diferenciando-se; e, por fim, achei que era
uma boa oportunidade para ela rever e corrigir experiências com seu grupo familiar
de origem. Conversamos sobre isso, e ela ficou muito interessada. Discutimos os
prós e os contras dessa investida. Nessa etapa do trabalho terapêutico, E. já era
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uma pessoa sensível, sagaz, porém sua pouca experiência com relacionamentos
interpessoais a fazia inocente e assustada, projetando nas pessoas suas
dificuldades nesse sentido. Acreditei também que ver-se num grupo era a
oportunidade para aumentar sua auto-estima. Assim, partimos para o grupo tendo
claro que as minhas hipóteses poderiam não se confirmar, mas certa de que E.
queria viver tal experiência.
— Sou R., filho de E., e vou apresentá-la. A minha mãe é muito insegura, ela
olha para mim e acha que... não sei... não vai poder.. não vai ser capaz... ela... eu
queria.., a minha mãe queria ser forte.
Chorando, E. fala não só das suas impossibilidades, mas também da sua luta para
ficar melhor percebi que ela se apresentava inicialmente frágil no grupo com quem
precisa de ajuda. O grupo fez a sua parte dando devoluções e tentando ajudar. Era
assim também que ela se enquadrava no grupo familiar (anotei isso mentalmente).
— Eu não preciso de nada. Eu não tenho nada, tudo quem faz é o meu
marido.., eu não sou nada... eu queria fazer alguma coisa. — Ela chora.
Foi nessa época que ela e o marido resolveram se mudar. Esse fato relacionava-se
com o trabalho de separação e discriminação que era tão comum naquela etapa. O
apartamento em que moravam era muito úmido, e as crianças estavam sempre com
problemas respiratórios. O pediatra alertara para os perigos de continuar ali, e o
casal ponderou a possibilidade de sair E. iria morar longe da mãe.
Ao mesmo tempo que o casal partia à procura de uma nova moradia, E. dizia com
frequência que queria que a mãe fosse para bem perto dela. Percebi, no entanto,
que, apesar de viver esse distanciamento com muito medo e dor, E. encarava-o
como necessário. Esse foi um momento em que, infringindo as regras do contrato
terapêutico, fui visitá-la e conhecer sua nova residência. Para E., esse era um
grande passo, e achei que a minha visita era um apoio necessarío. Posteriormente,
ela admitiu que aquela mudança era uma reconstrução de sua própria vida, e
verbalizou isso diversas vezes: “Quero criar asas como um passarinho” ou “Quero
ser mais livre”. Realmente, esse foi mais um marco no processo (página 22)
terapêutico. E. começou a sair de casa, a fazer visitas, a produzir objetos de arte, a
pintar quadros, a ser mais livre. Também passou a freqüentar aulas de jazz.
Guardava uma reminiscência que agora a fazia feliz: “Depois que eu conheci os
meus pés, pude conhecer o meu corpo todo.”
Mantinha-se agora mais afastada dos filhos. A despeito disso, assumiu o cargo de
mãe-representante na escola, e o exerceu por quatro anos, sendo reconhecida pela
participação, comprometimento e capacidade de liderança.
Não tive reação, somente tratei de entender o que estava acontecendo, já que tudo
fora muito rápido. Supus que, para ele, eu era responsável pelas mudanças que
agora geravam conflitos na vida do casal.
Passei um bom tempo ouvindo E. falar do marido e verifiquei projeções típicas: “Ele
não me deixa crescer”; “Ele me trata como uma criancinha “. O marido tinha feito por
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muito tempo o papel de mãe, e E. não precisava mais disso. Por outro lado, encará-
lo como marido implicou experienciar introjeções, confrontar limites, retificar
percepções, focalizar crenças e reformular valores relacionados às imagens de
homem e de mulher. Bem mais consciente da sua participação e responsabilidade
nos eventos de sua vida, E., amedrontada pelo risco de destruir o casamento, pôde
rever as fantasias, as idealizações, as (página 23) situações inacabadas tão
atuantes no relacionamento a dois. Foram descobertas interessantes, e a família foi-
se regulando de um outra maneira.
Nessa mesma época, a mãe de E. morreu. Era uma grande prova. Como ela iria
reagir a essa perda, agora concreta? Afinal, esse era um dos motivos pelos quais
ela buscara atendimento. Eu sabia que ela poderia lidar com esse luto, mas
aguardei. Como eu esperava, mesmo com a dor que implica a perda de um ente
querido, ela estava inteira, coerente, bem apoiada.
Um dia ela chegou fazendo uma avaliação do seu processo de crescimento: como
chegou, o que viveu e como estava agora. Percebi claramente que ela estava
fazendo um fechamento. Verbalizei a minha percepção baseada nos dados que ela
estava me trazendo. Ela concordou, mas ficou triste. Quanto a mim, sentindo a dor
da separação por um lado, experimentava também uma enorme satisfação de vê-la
crescida. Comuniquei-lhe o que se passava comigo, e ela se sentiu compreendida.
Após mais alguns poucos encontros, despedimo-nos eu e ela sabíamos que estava
na hora. (página 24)
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CONCLUSÁO
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AGRADECIMENTO
Por ter permitido o relato e colaborado com dados precisos sobre a sua história, e
pela maneira por que fez a autora crescer e aprender como pessoa e terapeuta, um
agradecimento especial a E.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFIAS