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Este artigo resulta de uma breve adaptação de uma conferência apresentada no Centro de
Investigação e Formação para uma Cultura da Paz da Fundação Mário Soares e retracta alguns
episódios de uma experiência militar vivida durante o período de Fevereiro a Outubro de 2001.
A base do texto resulta da observação dos factos, do relembrar de alguns apontamentos e notas
soltas, das conversas com o bom amigo jesuíta, alguns Liurais, o vendedor do mercado ou com o
simples homem da rua.
Para a concretização deste objectivo articulámos o texto em três partes. Na primeira abordamos o
envolvimento da ONU em Timor, as suas fases e principais missões; na segunda analisamos e
descrevemos a situação interna; na terceira fazemos a descrição da participação militar
portuguesa com o seu terceiro contingente, bem a alusão a alguns episódios mais interessantes
com que nos deparámos.
1. A ONU e Timor
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indonésio para questões relacionadas com a violação dos direitos humanos, acabando
com uma distribuição de tarefas dentro da estrutura das várias Agências da Organização.
Um período de atenuação/contenção, entre 1983 e 1998 – Neste período Portugal
negoceia bilateralmente com a Indonésia, sob mediação de representantes do Secretário-
Geral, não conseguindo resultados efectivos.
Um período de forte envolvimento a partir de 1999 - Inicia-se com a abertura política da
Indonésia, que leva aos acordos de Maio de 1999 em Nova Iorque, e pelas respostas aos
actos bárbaros perpetrados pelas milícias integracionistas, após o anunciar dos resultados
do referendo sobre os destinos do território, findando com a extinção da UNMISET
(United Nations Mission of Support in East Timor), a de 20 de Maio de 2005.
A partir de 1997, a Indonésia enfrenta uma crise económica séria que leva ao afastamento do
General Shuarto, em 1999. O novo Presidente, General Habibie, inicia um conjunto de reformas
políticas, encetando também uma abertura quanto ao caso de Timor, cujo primeiro resultado
substantivo se traduz nos acordos de 5 de Maio em Nova Iorque, no âmbito das negociações
iniciadas em 1983. No fundo, cedendo à pressão internacional, aceita acordar com Portugal e
com as Nações Unidas a realização de um referendo no território sob a égide desta última
Organização.
Estes acordos basicamente contemplavam um Acordo Geral, onde estava prevista uma consulta
popular, baseada no escrutínio directo secreto e universal, e um Acordo Bilateral onde estava
prescrito que a Indonésia seria a responsável pela paz e segurança em Timor, de modo a garantir
uma consulta em ambiente pacífico e sem intimidações. Porém, logo a partir do momento em
que a Indonésia admitiu uma eventual independência (1999), teve início uma operação de terror,
com o nome de código Operasi Sapu Jagad, conduzida pelas milícias que integravam não só
timorenses como militares dos TNI (Tentarra Nasional Indonesia / Forças Armadas da
Indonésia).
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(78,5% dos votos) a favor da independência. Estes resultados nunca foram os esperados pelo
Poder indonésio, que apoiou o desencadear de uma onda de violência sem precedentes por parte
das milícias integracionistas.
Com o caos instalado, as Nações Unidas decidem, através da Resolução 1264, constituir uma
força internacional para repôr a lei e a ordem, forçando a paz, a INTERFET (International Force
in East Timor). Esta Força. sob comando australiano, com o consentimento indonésio, entra a 20
de Setembro de 1999, em Dili.
A UNTAET assumiu a administração do território sob tutela das Nações Unidas a partir de 23 de
Fevereiro de 2000.
A resolução que instituiu a UNTAET é paradigmática neste aspecto, pois decide a constituição
de uma Administração Transitória das NU para o território, incumbida da responsabilidade geral
pela administração de Timor Leste, com poderes para exercer todas as funções legislativas e
executivas, incluindo a administração da justiça. A resolução atribuía ainda as seguintes funções:
segurança e manutenção da ordem, administração efectiva, assistência no desenvolvimento civil
e de serviços sociais, coordenação e entrega de assistência humanitária, reabilitação e
desenvolvimento, apoio à formação de governo próprio e assistência à criação de condições para
um desenvolvimento sustentado.
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Para tal foi organizada em três componentes:
A componente de administração pública e governo ETTA (East Timor Transitorial
Administration, incluindo a Polícia);
A componente de assistência humanitária;
A componente militar – PKF (Peace Keeping Force).
Este mandato da UNMISET foi projectado para assegurar e consolidar os resultados alcançados
pela UNTAET. Para garantir a consolidação dos objectivos definidos, o mandato foi depois
prolongado por mais 2 anos, até 20 de Maio de 2005.
Efectuado este enquadramento sobre a intervenção das Nações Unidas, vamos agora caracterizar
a situação interna em Timor durante o período da eleições legislativas, caracterização que em
certos aspectos permanece actual, e que penso ser fundamental para depois compreendermos o
papel da componente militar.
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2. A situação Interna
Esta situação foi habilmente aproveitada pelo remanescente das milícias e pela sua
estrutura política (UNTAS)1, que se opunham à presença da UNHCR e da OIM em
Timor Lorosa´e.
A UNTAS reafirmava que o referendo em 1999 fora fraudulento; todavia, alguns dos
seus dirigentes admitiam mesmo os resultados eleitorais de 30 de Agosto de 2001, e
falavam num eventual regresso ao território. Este processo era conduzido nos
bastidores com negociações complexas, onde as cedências e as cumplicidades eram
consideráveis. No fundo constituiu-se num jogo de contrapartidas, de que se esperava
o regresso de alguns dirigentes e do retorno de populações por si controladas.
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população urbana estivesse desempregada, vivendo do pequeno expediente. Muitos
jovens e inúmeros quadros qualificados, por exemplo, vagueavam por Dili e Baucau,
almejando a timorisação dos cargos públicos ocupados por funcionários internacionais
da UNTAET.
As sociedades locais sofriam uma influência cultural intensa devido à presença dos
funcionários das NU, de ONG e de outras Organizações, o que determinava, em parte,
a sua desagregação sem, contudo, se assistir a uma correlativa assimilação da cultura
dos novos Poderes instituídos. Estes fluxos e refluxos culturais (primeiro o português,
depois o indonésio e agora o dos funcionários internacionais) provocaram, dependendo
das circunstâncias, aquilo que se designa por “desenraizamento” ou então a
coexistência forçosa do desenraizado com a sociedade tradicional. A posição do
desenraizado origina um sentimento de vácuo pela falta das estruturas tradicionais que
o explicam perante si mesmo. Nascem, então, as hierarquias de compensação, de
forma a preencher o vazio e insegurança resultantes da desagregação das instituições
tradicionais. A insegurança resultante do desenraizamento, acrescida de um
sentimento de frustração, face a uma integração difícil e, em consequência, o seu
progresso social, vulnerabiliza estes homens a propagandas aliciantes e conduz ao
reagrupamento, feito sob novas formas, para readquirir a segurança perdida.
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Durante o processo eleitoral verificou-se a criação de grupos de segurança dos
partidos; alguns deles envergando uniforme camuflado e espadas tradicionais, o que
lhes permitia realizar a cerimónia de hastear e arrear da bandeira do seu partido com
todas as honras. Surgiram também diversos grupos que se intitulavam de autodefesa
das populações. Estas oranizações para-militares, no fundo emergem como uma
tradição cultural de defesa dos aglomerados populacionais, muito enraizada
localmente.
Ao nível político partidário, Timor vivia uma situação em tudo idêntica ao PREC do
Verão Quente Português, em 1975. Os partidos proliferavam e a actividade partidária
intensificava a sua actuação.
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Destacamos ainda, no período pré-eleitoral e mesmo eleitoral, o movimento CPD-RDTL
(Comité Para a Defesa da República Democrática de Timor Leste), que fora presidido
por Xavier do Amaral até a criação do ASDT (Associação Social Democrática
Timorense). A criação deste novo partido provocou cisões no movimento com a
consequente transferência de alguns quadros.
O CPD-RDTL defendia que Timor já era independente desde 1975, situação que
pretendia ver reconhecida por Portugal e pela Indonésia. O CPD-RDTL foi reabilitado
em 1999 por jovens timorenses, aquando das comemorações da proclamação da
independência em 1975. Com base na declaração unilateral de independência,
entendia ser o legítimo governo. Para o CPD-RDTL, as eleições eram, assim,
desnecessárias, pois ele era o governo em exercício aquando da invasão da Indonésia.
O seu apelo era atractivo para a juventude sem esperança e revoltada, para ex-
FALINTIL e ex-milícias, bem como para todos os desenraizados e desempregados que
vagueavam pelos centros urbanos.
Nas eleições, que decorreram num ambiente seguro e demonstrativo do civismo dos
timorenses, os partidos mais votados foram, por ordem decrescente, a FRETILIN, que
elegeu 55 deputados, o PD com 7 deputados, o PSD e a ASDT, que elegeram 6
deputados cada.
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3. A componente Militar
E qual o papel da componente militar das diversas missões das NU neste contexto.
A força foi autorizada ao abrigo do cap. VII da Carta, a utilizar todas as medidas
necessárias para cumprir o seu mandato. Esta força de entrada, deveria ainda preparar
o terreno para que as NU completassem a tarefa da transição de Timor para a
independência, o que envolveria forças de capacetes azuis e o estabelecimento de
uma autoridade transitória.
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Em 2001, altura em que o meu contingente estava no território, o Sector Central, de
comando português, abrangia 6 Distritos (Dili, incluindo a ilha de Ataúro, Liquiça,
Ermera, Aileu, Ainaro e Manufahi), cabendo a responsabilidade pelo Distrito de Ermera
à Companhia Queniana (KENCET), e os restantes ao Batalhão Português (PORBATT).
Portugal participou nesta missão de paz com 4524 militares só do Exército organizados
em 8 UEB. Depois ainda estiveram envolvidos 1193 fuzileiros, mais os elementos da
Força Aérea, e ainda outros que integravam a estrutura do Quartel-General da PKF,
incluindo os observadores militares.
Nesta altura tínhamos uma Unidade de escalão Companhia como reserva do Force
Comander a 24h NTM e em Dili éramos os responsáveis pela segurança dos pontos
sensíveis (Local de reabastecimento de água; Heliporto; Aeroporto de Comoro;
Hospital Militar; Centro de trânsito de retornados).
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viaturas; garantia a segurança pessoal ao Brigadeiro General Taur Matan Ruak 2;
eventualmente conduzia investigações policiais e mantinha uma estreita ligação com a
CIVPOL.
Ao nível das actividades CMA, o Sector efectuava ligação com a administração distrital
e com as autoridades locais, efectuava a ligação e fazia a gestão dos pedidos das
Organizações Internacionais e das ONG´s, com quem realizava projectos comuns.
Timor Leste apresentava grandes carências na área da saúde, no que diz respeito a
instalações e a pessoal para exercer esta actividade. Assim, uma das actividades de
grande importância desenvolvida ao nível CMA foi a assistência médica às populações.
Os médicos das sub-unidades do Sector, além de participarem activamente nas
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Até Maio de 2001 assegurava também a segurança de Ramos Horta e Xanana Gusmão.
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patrulhas CMA deslocando-se a zonas remotas para apoiarem sanitariamente os
timorenses, davam consultas em diversas ONG e nos próprios aquartelamentos.
A ilha de Ataúro era também uma das grandes preocupações do CMA, pois, devido ao
isolamento, as suas necessidades são ainda mais gritantes e em que qualquer
pequena acção tem efeitos imediatos e de grande visibilidade, nomeadamente o apoio
médico/sanitário ou mesmo a distribuição de roupas e material escolar.
Nesta ilha tivemos algumas dificuldades com o contingente norte-americano que não
estava integrado na PKF.
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O Sector também foi responsável pelo acompanhamento e coordenação de outras
actividades, como o ministrar de cursos de informática, a reparação das estradas e
melhoramentos de escolas e o apoiar projectos de reabilitação de edifícios; o
acompanhamento da campanha e acto eleitoral e o garantir apoio a viveiros e centros
de melhoramento de sementes de café para garantir uma produção de melhor
qualidade.
Conclusão
Esta foi uma Missão das NU com grande sucesso e que contribuiu, substancialmente,
para reabilitação de instalações de infra-estrutura públicas, a restauração da harmonia
social, das estruturas administrativas e comunitárias, bem como para o
estabelecimento de uma governação democrática.
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Peace building, seja no pós violência, pós Acordo (compreensive settlement) ou como esforço de
impedimento de reemergir do conflito, depende da capacidade para transformar a situação conflituosa de
uma potencial/actual violência em massa, numa relação pacífica e cooperativa, capaz de promover a
reconciliação e a reconstrução e um desenvolvimento sustentado no tempo. Objectivo do mandato
A PeaceKeeping é uma ferramenta de gestão de conflitos, para conter a violência, enquanto
peacebuilding são os meios para estabelecer uma governação democrática viável e inclusiva numa
sociedade de post-conflito, por norma através de eleições livres e justas, função legislativa e judicial
independentes, transparência e administração responsáveis, acesso a oportunidades políticas e
económicas, e partilha equitativa da riqueza.
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No fundo acompanhou-se a transformação do conflito, típico das operações de paz,
num produto coordenado de várias intervenções levadas a cabo por actores oficiais e
não oficiais que trabalharam a todos os níveis da sociedade.
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