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Eutanásia: entre demanda e desejo

Araceli Teixidó, psicanalista membro da ELP e da AMP. Professora do Instituto do Campo


Freudiano da Espanha. Coordenadora da Rede Psicanálise e Medicina
araceliteixido@gmail.com

Resumo: A nova Lei de Regulamentação da Eutanásia na Espanha nos faz trabalhar a


diferença entre demanda e desejo, bem como a relevância do ato do profissional ao dar
sua resposta. Na prática, a resposta negativa tem sido considerada como objeção de
consciência do médico e supõe o fim do relacionamento com o paciente. Este trabalho
propõe que possa ser dada uma resposta negativa sem pressupor o fim do
relacionamento com o paciente. Discute-se também a aceitação literal das demandas:
quando a decisão do paciente é tida como um dado e o trabalho do médico como a
verificação dos requisitos para acesso ao procedimento.

Palavras-chave: eutanásia, demanda, desejo, ato, objeção de consciência.

Introdução
Este texto realiza-se a partir de minhas próprias elaborações, mas não seria possível sem
as elaborações de outros que pesquisaram comigo, especialmente psicanalistas da ELP e
da AMP, mas também médicos e outros profissionais da área da saúde que caminham
conosco neste terreno incerto que é a fronteira entre a psicanálise e a medicina.

A ciência tem feito avanços que levam a vida além do que seria desejável. Para vidas que
podem não ser desejáveis. Isto abre a decisão de ter que frear a deriva, parar o processo
terapêutico, para não chegar a esses extremos onde prolongar a vida não faz sentido.
Isto tem sido trabalhado no Estado Espanhol há anos e algumas fórmulas foram
alcançadas para limitar a violência terapêutica. Essas vias eram legais, porque a morte
era causada pela doença, mesmo quando ocorria por recusa do paciente em receber
medicação eficaz. Tanto a eutanásia, como o suicídio assistido, eram puníveis. Os casos
que foram regulamentados com a nova lei são aqueles em que é solicitada a intervenção
de um profissional para poder morrer, sem que o paciente se encontre em estado
agonizante ou terminal.

Em todos os casos, compete ao médico a decisão de aceitar ou não a demanda e avaliar


se a falta de desejo é decorrente de fatores irreversíveis ou é transitória. Para isso será
necessário conversar com o paciente e decidir. No entanto, assim como foi disposto na
Espanha, ao médico é solicitado apenas verificar se os requisitos estão preenchidos ou
não. Nesse sentido, alguns profissionais tomam a decisão do paciente como um dado e,
portanto, como uma afirmação incontestável.

A eutanásia diz respeito a um real. O médico, preparado para procurar o bem do


paciente no sentido de melhorar sua saúde ou ajudá-lo a enfrentar os sofrimentos que a
doença ou a própria vida podem acarretar, se depara com uma demanda que sai

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totalmente do roteiro previsto e, mais ainda, o orienta a um ato que contradiz aquilo
para o qual se formou e que orientou sua vocação. Acolher a demanda de receber a
morte e ser quem tenha que executá-la constitui um real: algo que não se pode
antecipar simbólica ou imaginariamente, que pode confrontá-lo com uma experiência
singular para a qual sente que não dispõe de recursos.

Historicamente, o suicídio foi rejeitado pela legislação e pela moral. Em diversos países e
momentos, cometer suicídio foi condenado moralmente e penalizado legalmente. Por
exemplo, uma pessoa suicida poderia perder o direito a ser enterrado em terra sagrada,
seu cadáver não era merecedor de cuidados ou poderia legalmente perder todos os seus
bens, os quais não poderiam ser deixados como herança aos seus descendentes.

Embora essas penas tenham desaparecido do código legal espanhol, não desapareceu a
criminalização da assistência ao suicídio. O que a legislação atual dispõe não é a
legalização, mas sim a descriminalização do auxílio a morrer em determinados casos, que
são os que a legislação indica.

Considero que esta legislação constitui, então, um avanço jurídico, mas também
relacionado à ética, ao suprimir o juízo moral a respeito do desejo de acabar com a
própria vida. Com essa lei se reduz o juízo moral que agora ficaria nas mãos do paciente
e seu médico, como um dilema ético.

O ato de morrer não pode ser reduzido a um procedimento burocrático. Despojar a


demanda de morrer a um juízo moral não precisa ser sinônimo de simplesmente aceitá-
la, ou aceitá-la porque estão preenchidos os requisitos, ou porque o profissional sente
empatia com o sofrimento do paciente. Aí está um dos espaços fronteiriços que
exploraremos hoje. A clínica nos convoca. Por isso, será necessário observar como
considera-se e trata-se a demanda do paciente.

Questões que definem a lei do Estado Espanhol


A lei que regulamente e descriminaliza a eutanásia na Espanha, conhecida como LORE
3/2021, foi aprovada em março de 2022 e entrou em vigor 3 meses depois, em junho.

A eutanásia é aplicável naquelas situações em que uma pessoa manifesta vontade


expressa de pôr fim à sua vida com o objetivo de evitar o “padecimento grave, crônico e
incapacitante” provocado por uma “doença grave e incurável”. Um exemplo que está ao
alcance de todos é o filme “Mar adentro” de Alejandro Amenabar (Amenabar, 2004).

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Trata-se de um procedimento protocolizado que deixa uma margem de decisão ao
profissional, mas que será avaliado, endossado ou não, por outros: na Catalunha,
intervêm um médico consultor e todos os casos passam por um Comitê de Garantia e
Avaliação. O procedimento foi desenhado para assegurar um controle anterior à
aplicação efetiva da eutanásia.

Finalmente gostaria de destacar a questão da objeção de consciência. Como sabem,


trata-se da possibilidade de não ser convocado a participar nestes casos, em razão das
convicções morais contrárias à eutanásia.

A lei não orienta a clínica nem o ato


A lei não orienta a clínica nem o ato, apenas estabelece o marco legal. Os médicos têm-
se esforçado em conhecer os aspectos legais, tem havido muita formação nesse âmbito,
que certamente tem que ser conhecido e constitui um primeiro véu diante do real, mas
sabemos que se o mantivermos somente neste nível, a angústia do médico pode ficar
escondida sob essas questões.

Em um dos espaços convocados pelo Departamento de Saúde do Governo da Catalunha,


chamou-me muito a atenção a pergunta que um médico fez ao professor: posso me opor
em um único caso? Perguntei-me o que seria opor-se em um único caso. O professor
respondeu-lhe em termos legais. A orientação do Departamento de Saúde indica que
existem outros mecanismos para recusar-se a intervir em um único caso sem que seja
necessário ser objetor, como o conflito de interesses, a recusa a atuar por outros motivos
tais como a proximidade pessoal com o paciente ou, coloca-se como exemplo, que o
médico possa sentir-se desconfortável se considera que pode haver soluções
terapêuticas1. Há, ali, uma confusão.

Se dizer “não” implica em ser objetor de consciência e retirar-se do caso, colocado assim,
implica que se faz necessário responder “sim” à todas as solicitações nas quais estejam
preenchidos os requisitos, deixando o médico como mero executor da lei. Nessa
operação a demanda é reduzida a um dado, fechando o acesso ao desejo e ao possível
trabalho da demanda. Essa questão me interessou porque me parece que o “não” nos
permite pensar no ato do médico com mais clareza.

Minha tese principal para o trabalho de hoje é que o fato de que não se proponha que o
médico possa dizer “não” e continuar vinculado com o paciente, elimina a dimensão do
ato de sua intervenção. Se por dizer não deve retirar-se do caso, para que serviria o
médico? Por isso, considero de máximo interesse estudar aqueles casos em que o médico

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efetivamente decide que não deve ser praticada a eutanásia e como se declina a
continuidade do tratamento com o paciente.

A objeção de consciência ou o ato de dizer não


Dizer “sim” é um ato, mas ao apoiar a demanda do sujeito, costuma ser mais fácil
esquecê-lo. Dizer “não”, também é um ato, mas ao se opor à demanda do sujeito coloca-
se em jogo com mais força a posição do profissional e a necessidade de administrar
aspectos do caso que se comprometem no âmbito da relação entre profissional e
paciente.

Um dos limites da decisão do médico são os da lei, mas nesse marco, a decisão lhe
corresponde como agente. Estar diante de uma solicitação de eutanásia não deveria
significar realizar um procedimento administrativo ou legal, não se pode reduzir a
questão a apenas verificar o preenchimento dos requisitos. Foi dado a esse procedimento
o nome de Prestação de Auxílio para Morrer, conferindo ao ato um caráter
administrativo. Da mesma forma é uma prestação o auxílio financeiro que se dá a uma
pessoa desempregada. Suponho que essa denominação está de acordo com a decisão de
não julgar moralmente o desejo de querer acabar com a própria vida, ignorando que
qualquer outro significante escolhido também se apoiará sobre uma moral. Nesse caso,
trata-se da moral vazia do capitalismo que foraclui o gozo e deixa os sujeitos reduzidos a
dados, em consonância com a ideologia autonomista. Supõe-se, assim, eliminar também
a angústia do médico quando se afirma que o paciente sabe o que diz, o que quer e o
médico apenas deve decidir se aceita ou não sua demanda. Felizmente, o real não se
elimina, se desloca. A questão é que esse real possa ser recolhido e trabalhado em algum
lugar.

O médico que se responsabiliza por seu ato escuta ou procura escutar cada demanda em
sua singularidade e avalia com o paciente o pedido, podendo dizer que sim, que não, ou
propor outras soluções ao paciente – podem ser oferecidos cuidados paliativos, mas
também pode-se adiar a conclusão oferecendo uma nova sessão, como o fazemos os
psicanalistas.

É importante ver como declinam-se as negativas, como se chega a elas. Se o médico


considera que não se deve dar continuidade ao pedido, ele irá se retirar do caso? Se
ficar, qual sentido terá esse “não”? Tornar-se-á um ato?

Também tenho a impressão, pelas conversas tidas com diversos colegas, de que quando
o médico diz que “não”, e o paciente o aceita, o caso não entra na consideração de
solicitação de eutanásia. Deveriam ser incluídos? Não sei, porque se não é incluído, não

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se contabiliza, mas também evita-se prestar atenção em algo dessa solicitação que
certamente não convém evidenciar. Mas, em última análise, acredito que é
especialmente importante trabalhar esses casos, levá-los em consideração.

Estou prestes a iniciar um pequeno grupo de trabalho de casos com médicos e


enfermeiros que participam do processo de eutanásia em Barcelona. Espero que nos
sirva para aprender a partir da experiência.

O ideal da autonomia do sujeito esconde o fracasso da comunicação


O discurso autonomista choca-se com a psicanálise de orientação lacaniana, na qual
operamos a partir do lugar ao qual dirige-se a palavra, partindo da premissa de um
sujeito não tão autônomo, pois é dependente do corpo e do Outro (Freud, 1986/1930, p.
66-67).

A pergunta é a matéria-prima da psicanálise. Contudo, no delírio autonomista a palavra


não se pensa dependente de um desejo, mas sim que o discurso pertence a cada sujeito
e tem direito a que ninguém o interprete. Qualquer interferência será vivida como uma
intromissão paternalista.

Assim, o discurso fica desvinculado do Outro e ao médico não lhe é dado nenhum poder
de interpretar o dito. Perguntar geralmente supõe uma dúvida a respeito do juízo de
quem fala, seja este o paciente ou o médico. Por isso, se o paciente disse que sente dor,
não é necessário questionar: ou acredita-se nele e atua-se em consequência,
prescrevendo uma analgesia, ou bem não se acredita nele e o abandona na suposição de
que mente e “apenas” quer chamar a atenção.

A deriva autonomista impede uma verdadeira conversação e, portanto, impede o acesso


ao desejo. Se a dor é recebida como um dado a respeito do qual o médico dirá
“verdadeiro ou falso”, elide-se toda a dimensão do gozo, esquece-se que dor é um nome
do gozo e que às vezes une a vida, mesmo que seja de uma maneira ruim. Mas que ali
há uma forma de elaboração.

Pensa-se uma divisão entre sofrimento físico e sofrimento psíquico – dividem-se as


demandas de eutanásia entre aquelas que correspondem a doenças físicas ou às de
saúde mental – sendo o físico mais verdadeiro e o psíquico duvidoso. Esquece-se que no
ser falante tal distinção é, em certo sentido, arbitrária. De acordo com a lei, um
sofrimento físico ou um diagnóstico concreto não são motivo para aceitar a demanda da
eutanásia: deve ser irreversível ou insuportável. Essas dimensões não têm sentido a não
ser no domínio do falasser, como gozo. Parece-me muito importante distinguir essa

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dimensão na demanda de eutanásia. Não se trata do insuportável para qualquer um, mas
sim do insuportável para um. Nem todos os pacientes com a mesma doença no mesmo
estágio demandam a morte. Nunca é a mesma dor. Caso contrário, bastará, como
acontece com o profissional que considere que tal sofrimento é insuportável, para que
aceite a demanda sem mais delongas.

Lembro-me da expressão do médico Marc Broggi a respeito do que acontece quando se


recolhe uma demanda em sua literalidade, por estar de acordo com o texto da lei. Ele diz
que isso é “abandonar o paciente aos seus direitos” (Broggi, 2011, p. 156).

As demandas recolhem e encobrem o sofrimento, com elas pede-se uma solução. Por
isso, nem sempre são claras, por isso nem sempre são exatamente o que se pretendia
dizer, inclusive quando são formuladas com clareza. Por isso é necessário questioná-las,
para que possam ser ditas de uma maneira melhor.

Como pontua Hoornaert, na realidade, a qualificação de insuportável não se baseia


apenas na avaliação do indivíduo autônomo, mas está contaminada de paternalismo
(Hoornaert, 2023, p. 96), tendo em vista que é o médico quem decide sobre o
insuportável. Mas quando o médico se limita a verificar os requisitos, supõe-se que ao
dizer que sim, nada do seu desejo está em jogo. Porque a operação da medicina atual
tenta eliminar da equação o desejo do médico. Por esse motivo, todo ato que não se
limite a considerar exclusivamente o juízo do paciente é habitado por uma sombra de
liberticídio (Hoornaert, 2023, pag. 96). Um atentado à liberdade do sujeito.

De fato, poderíamos concordar, pois qual ferramenta tem o médico não analisado para
evitar sugestionar o paciente? Os psicanalistas também acreditamos que o paciente deve
tomar sua decisão não influenciada por nós.

É assim que na medicina as decisões dos pacientes são tidas como dados que entram em
um algoritmo e não como manifestações de dor, de medo, de angústia. Enquanto a
psicanálise considera que todos esses afetos influenciam na decisão do paciente e o
deixam em uma situação de falta de autonomia e de vulnerabilidade que fazem
imprescindível não deixá-lo sozinho no processo de decidir.

Em decorrência dessa maneira de agir, a decisão de morrer pode ser entendida como a
firme decisão de morrer quando o próprio médico tem a convicção de que a dor do
paciente é insuportável. A psicanálise considera quão insuportável pode ser para um
sujeito, também para o médico, suportar a dor do outro; especialmente quando se é o
destinatário da demanda. A obrigação de viver bem, que determina nossa época, deixa

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no esquecimento que viver é difícil, que há quem não consiga fazê-lo e que é condenado
a não ser mais do que um resto se não lhe for permitido falar bem. A obrigação de viver
bem dá as costas à obrigação do bem dizer (Lacan, 2012/1973, p. 558) que
promovemos, a obrigação de viver bem quando dá as costas à obrigação do bem dizer,
supõe deixar o sujeito sozinho com seu gozo.

Na ideologia autonomista, fazer falar, perguntar, é duvidar da palavra, é duvidar da


capacidade do paciente. Paradoxalmente, isso deixa o pacienta à mercê de uma decisão
que o exclui. Ao contrário, no discurso do analista, perguntar é devolver ao sujeito sua
capacidade de responder e fazer-se responsável por suas palavras.

Dizer não, introduzir a conversação


Freud, com suas palavras se quiseres suportar a vida, prepara-te para a morte (Freud,
1984/1915, p. 301) nos encoraja a entender que a demanda de receber a morte deve
ser considerada pelo real que contém em seu seio.

Leonora Troianovski, colega da ELP, me contou o caso em que uma mulher pedia a
eutanásia depois da morte de sua pequena filha em um acidente, a médica disse
rapidamente que não procederia com essa demanda, mas, ao mesmo tempo, acolheu o
real que emergia dessas palavras: a morte de um filho, como viver depois disso? Cada
um deverá encontrar seu caminho, em solidão, mas acompanhado de alguém que possa
acolher seu sofrimento e suas palavras. Alguém que possa esperar e dar tempo. Até que
se produzam ou se reconheçam outras âncoras para a vida.

Da minha parte, assisti a um caso no qual propor a eutanásia como horizonte surgiu
como remédio para acalmar o sofrimento de um paciente bem idoso em um momento de
perda do controle transitório das funções corporais, à qual sucedeu uma tentativa de
suicídio. Contudo, o paciente não havia podido dialetizar sua experiência naquele
momento e passou ao ato suicida. Já no hospital, a escuta tranquilizou o paciente,
revelando as dificuldades sofridas, mas também seus laços com a vida. Não proponho
que sugerir a eutanásia como possibilidade futura, no caso de chegar a uma situação
irreversível, seja a melhor solução, mas foi a que pôde ser realizada naquele momento e
que tranquilizou o paciente no sentido de dar-lhe um sentimento de controle, que lhe
permitia continuar vivendo.

Durante esse trabalho, outro profissional interpretou esse desejo de morrer como uma
demanda de morrer e já se disponibilizava a processar a solicitação de eutanásia. Não
teve seguimento, mas é uma demonstração do enlouquecimento extremo que às vezes
se produz na situação de uma leitura literal da passagem ao ato. Oferecer a eutanásia a

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uma pessoa suicida não é uma indicação a ser considerada (Jovelet, 2023). Cada vez há
mais suicídios entre pessoas idosas, o qual nos confronta com questões a respeito da
qualidade dos nossos cuidados.

Por outro lado, e em relação à demanda de eutanásia, também deve ser considerado que
a demanda de pedir morte e sua aceitação, podem introduzir um limite ao sofrimento
que permita situar-se novamente na vida (Ansermet, 2023, p. 91). Não é rara a proposta
que alguns pacientes propõem de adiar a realização da eutanásia depois de já ter sido
aprovada. Nesse caso, eles mesmo pronunciam o “não”, uma vez que já foi aprovada sua
demanda. Saber que é possível ter certo controle sobre o sofrimento ajuda a suportá-lo.

A posição do médico
Por fim e no cerne da questão, a clínica da eutanásia também atinge o próprio médico
em sua posição ética.

Para abordar os aspectos clínicos e éticos, aspectos que dizem respeito à relação entre
profissional e paciente, no ano passado propusemos dois espaços na Rede Psicanálise e
Medicina2, aos quais vieram inúmeros profissionais da saúde. Um primeiro espaço no
qual trabalhamos a partir de um texto de referência 3, em junho de 2022, e uma jornada
na qual alguns médicos e psicanalistas introduziram suas reflexões, dúvidas e medos a
respeito dos primeiros casos recebidos e pudemos conversar 4, em dezembro de 2022.

Em um desses espaços, um médico questiona-se a respeito da influência que pode se ter


no paciente se for oferecida a eutanásia como uma das possibilidades diante da situação
que o acomete, pois nem todos os pacientes estão informados de que esse benefício
existe na carteira de serviços.

Parece-me uma boa questão que deve ser esclarecida como esclarece-se a incógnita nas
equações matemáticas. Na demanda de eutanásia está em jogo a questão da pergunta
pelo desejo do outro. Atualmente, se pensa a vida em termos de utilidade e muitos
pacientes, ao ver chegar a fase final de sua vida, dizem para si e para nós: “não sirvo
para nada”. Pode ter sido dito em outras épocas, mas no contexto atual, o paciente pode
ver-se reduzido a não ser mais do que uma despesa, questão que se agrava pela falta de
tempo das famílias para estar ao seu lado.

Portanto, às vezes, o pedido de eutanásia pode ser a verificação do desejo do outro, uma
pergunta a respeito de se, apesar da dependência, ainda se é amado. Por isso me parece
extremamente importante que não seja considerado objetor quem considera que deve

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dizer que não autoriza a prática da eutanásia. Não deve se ver obrigado a se retirar do
caso, deve poder continuar para sustentar seu ato.

Para concluir, da mesma maneira em que não consideraríamos o desejo de matar o outro
levianamente, nem como algo a ser discutido, convém não se colocar inteiramente à
disposição diante da demanda de receber a morte. Hoornaet sugere, inclusive, não
aprofundar o assunto, pois se trata de uma tendência a ser contida (Hoornaert, 2023, p.
99). Ou seja, às vezes não se trata de fazer falar sobre isso, mas sim do contrário, de
fazer calar. Acontece que na psiquiatria, o diagnóstico de incurabilidade levaria a poder
praticar a eutanásia de maneira absolutamente louca. Repensar a psicose como posição
pessoal e não como doença dá outra dimensão ao seu tratamento. Também dá espaço a
repensar o papel do psiquiatra que hoje, em muitos casos, está alinhado com a promessa
terapêutica e pode esquecer o papel testemunhal e de acompanhamento que lhe cabe
(Dewambrechies-La Sagna, 2018, p. 11).

Da minha parte, e considerando que minha área é na saúde física e não na saúde
mental, parece-me importante que o paciente possa sentir sempre que sua demanda é
acolhida por aquilo que nela circula do sofrimento, do mal-estar de viver, portanto, do
gozo, e que está ligado a uma palavra. Acredito que é o que se obtém das vinhetas
apresentadas.

Como sempre, o trabalho que fazemos na intersecção entre a psicanálise e a medicina


nos leva a nos questionar a respeito da função do médico. A deriva a curar tudo, leva ao
ponto de limite da impotência da medicina equiparada à ciência onipotente e elimina o
resto que permitiria continuar trabalhando.

Na ética médica, a reflexão somente surge diante dos casos, também nos processos de
eutanásia. Como na psicanálise, a revisão do ato deveria ser posterior. Do contrário,
sustentaremos que é possível controlar o ato antes, que é possível eliminar o real da
morte.

Até aqui chegam as elaborações que consegui articular para trabalhar hoje. É difícil estar
à fronteira do processo de atender solicitações de eutanásia, há um real em jogo. O
incalculável está sempre presente, para o profissional, para o paciente e para sua família.
Não se podem prever os efeitos que o ato terá sobre si mesmo. E me parece que é
aconselhável deixar permanentemente aberto algo a esse nível, impedir que se feche e
me parece que o trabalho sobre o próprio inconsciente e sobre a clínica dos casos é o
caminho.

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Núcleo de Psicanálise e Medicina
Belo Horizonte, 15 de setembro 2022.

10
BIBLIOGRAFÍA CITADA

Amenabar, A. (Dirección). (2004). Mar adentro [Filme].

Ansermet, F. (2023). Une mort prescrite. Mental. Revue International de Psychanalyse


(47), 89-94.

Broggi, M.-A. (2011). Per una mort apropiada. Barcelona: Edicions 62.

Broggi, M.-A. (2013). Por una muerte apropiada. Barcelona: Anagrama.

Comitè de Garantia i Avaluació de Catalunya. (11 de 04 de 2022). Objección de


consciencia i PRAM. Recuperado no dia 10 de 09 de 2023, do Canal Salut Gencat:
https://canalsalut.gencat.cat/ca/professionals/consells-comissions/comissio-garantia-
avaluacio-catalunya/parers-posicionament/objeccio-consciencia-pram/

Dewambrechies-La Sagna, C. (2018). Les choses qui importen. Em G. Briole, Comment


s'orienter dans la clinique (p. 11-12). París: Le Champ Freudien Éditeur.

Freud, S. (1984/1915). De guerra y muerte. Temas de actualidad (1915). Em S. Freud,


O.C. (Vol. XIV, págs. 273-303). Buenos Aires: Amorrortu.

Freud, S. (1986/1930). El malestar en la cultura (1930a [1929]). Em S. Freud, O.C.


Vol.XXI (págs. 58-140). Buenos Aires: Amorrortu.

Hoornaert, G. (2023). Euthanasie pour souffrance psychique insupportable. Mental.


Revue Internationale de Psychanalyse (47), 95-103.

Jovelet, G. (2023). Mouirir au XXIe. siècle. Place du suicide et de ses équivalents chez la
personne âgée. Mental (47), 110-117.

Lacan, J. (2012/1973). Televisión. Em J. Lacan, Otros escritos (p. 535-572). Buenos


Aires: Paidós.

Traduzido do espanhol ao português por Victoria Carmín Musachi.

11
1
Na única nota de rodapé sobre a objeção de consciência do Comitê de Garantias e Avaliação da Catalunha.
https://canalsalut.gencat.cat/ca/professionals/consells-comissions/comissio-garantia-avaluacio-catalunya/
parers-posicionament/objeccio-consciencia-pram (10/09/2023)
2
Red Psicoanálisis y Medicina (ICF) https://redpsicoanalisisymedicina.org/
3
https://redpsicoanalisisymedicina.org/wp-content/uploads/2022/05/Programa-Al-pie-de-la-letra-2022.pdf
4
https://redpsicoanalisisymedicina.org/wp-content/uploads/2022/10/PROGRAMA-6a-JORNADA-2022.pdf

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