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Introdução
Este texto realiza-se a partir de minhas próprias elaborações, mas não seria possível sem
as elaborações de outros que pesquisaram comigo, especialmente psicanalistas da ELP e
da AMP, mas também médicos e outros profissionais da área da saúde que caminham
conosco neste terreno incerto que é a fronteira entre a psicanálise e a medicina.
A ciência tem feito avanços que levam a vida além do que seria desejável. Para vidas que
podem não ser desejáveis. Isto abre a decisão de ter que frear a deriva, parar o processo
terapêutico, para não chegar a esses extremos onde prolongar a vida não faz sentido.
Isto tem sido trabalhado no Estado Espanhol há anos e algumas fórmulas foram
alcançadas para limitar a violência terapêutica. Essas vias eram legais, porque a morte
era causada pela doença, mesmo quando ocorria por recusa do paciente em receber
medicação eficaz. Tanto a eutanásia, como o suicídio assistido, eram puníveis. Os casos
que foram regulamentados com a nova lei são aqueles em que é solicitada a intervenção
de um profissional para poder morrer, sem que o paciente se encontre em estado
agonizante ou terminal.
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totalmente do roteiro previsto e, mais ainda, o orienta a um ato que contradiz aquilo
para o qual se formou e que orientou sua vocação. Acolher a demanda de receber a
morte e ser quem tenha que executá-la constitui um real: algo que não se pode
antecipar simbólica ou imaginariamente, que pode confrontá-lo com uma experiência
singular para a qual sente que não dispõe de recursos.
Historicamente, o suicídio foi rejeitado pela legislação e pela moral. Em diversos países e
momentos, cometer suicídio foi condenado moralmente e penalizado legalmente. Por
exemplo, uma pessoa suicida poderia perder o direito a ser enterrado em terra sagrada,
seu cadáver não era merecedor de cuidados ou poderia legalmente perder todos os seus
bens, os quais não poderiam ser deixados como herança aos seus descendentes.
Embora essas penas tenham desaparecido do código legal espanhol, não desapareceu a
criminalização da assistência ao suicídio. O que a legislação atual dispõe não é a
legalização, mas sim a descriminalização do auxílio a morrer em determinados casos, que
são os que a legislação indica.
Considero que esta legislação constitui, então, um avanço jurídico, mas também
relacionado à ética, ao suprimir o juízo moral a respeito do desejo de acabar com a
própria vida. Com essa lei se reduz o juízo moral que agora ficaria nas mãos do paciente
e seu médico, como um dilema ético.
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Trata-se de um procedimento protocolizado que deixa uma margem de decisão ao
profissional, mas que será avaliado, endossado ou não, por outros: na Catalunha,
intervêm um médico consultor e todos os casos passam por um Comitê de Garantia e
Avaliação. O procedimento foi desenhado para assegurar um controle anterior à
aplicação efetiva da eutanásia.
Se dizer “não” implica em ser objetor de consciência e retirar-se do caso, colocado assim,
implica que se faz necessário responder “sim” à todas as solicitações nas quais estejam
preenchidos os requisitos, deixando o médico como mero executor da lei. Nessa
operação a demanda é reduzida a um dado, fechando o acesso ao desejo e ao possível
trabalho da demanda. Essa questão me interessou porque me parece que o “não” nos
permite pensar no ato do médico com mais clareza.
Minha tese principal para o trabalho de hoje é que o fato de que não se proponha que o
médico possa dizer “não” e continuar vinculado com o paciente, elimina a dimensão do
ato de sua intervenção. Se por dizer não deve retirar-se do caso, para que serviria o
médico? Por isso, considero de máximo interesse estudar aqueles casos em que o médico
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efetivamente decide que não deve ser praticada a eutanásia e como se declina a
continuidade do tratamento com o paciente.
Um dos limites da decisão do médico são os da lei, mas nesse marco, a decisão lhe
corresponde como agente. Estar diante de uma solicitação de eutanásia não deveria
significar realizar um procedimento administrativo ou legal, não se pode reduzir a
questão a apenas verificar o preenchimento dos requisitos. Foi dado a esse procedimento
o nome de Prestação de Auxílio para Morrer, conferindo ao ato um caráter
administrativo. Da mesma forma é uma prestação o auxílio financeiro que se dá a uma
pessoa desempregada. Suponho que essa denominação está de acordo com a decisão de
não julgar moralmente o desejo de querer acabar com a própria vida, ignorando que
qualquer outro significante escolhido também se apoiará sobre uma moral. Nesse caso,
trata-se da moral vazia do capitalismo que foraclui o gozo e deixa os sujeitos reduzidos a
dados, em consonância com a ideologia autonomista. Supõe-se, assim, eliminar também
a angústia do médico quando se afirma que o paciente sabe o que diz, o que quer e o
médico apenas deve decidir se aceita ou não sua demanda. Felizmente, o real não se
elimina, se desloca. A questão é que esse real possa ser recolhido e trabalhado em algum
lugar.
O médico que se responsabiliza por seu ato escuta ou procura escutar cada demanda em
sua singularidade e avalia com o paciente o pedido, podendo dizer que sim, que não, ou
propor outras soluções ao paciente – podem ser oferecidos cuidados paliativos, mas
também pode-se adiar a conclusão oferecendo uma nova sessão, como o fazemos os
psicanalistas.
Também tenho a impressão, pelas conversas tidas com diversos colegas, de que quando
o médico diz que “não”, e o paciente o aceita, o caso não entra na consideração de
solicitação de eutanásia. Deveriam ser incluídos? Não sei, porque se não é incluído, não
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se contabiliza, mas também evita-se prestar atenção em algo dessa solicitação que
certamente não convém evidenciar. Mas, em última análise, acredito que é
especialmente importante trabalhar esses casos, levá-los em consideração.
Assim, o discurso fica desvinculado do Outro e ao médico não lhe é dado nenhum poder
de interpretar o dito. Perguntar geralmente supõe uma dúvida a respeito do juízo de
quem fala, seja este o paciente ou o médico. Por isso, se o paciente disse que sente dor,
não é necessário questionar: ou acredita-se nele e atua-se em consequência,
prescrevendo uma analgesia, ou bem não se acredita nele e o abandona na suposição de
que mente e “apenas” quer chamar a atenção.
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dimensão na demanda de eutanásia. Não se trata do insuportável para qualquer um, mas
sim do insuportável para um. Nem todos os pacientes com a mesma doença no mesmo
estágio demandam a morte. Nunca é a mesma dor. Caso contrário, bastará, como
acontece com o profissional que considere que tal sofrimento é insuportável, para que
aceite a demanda sem mais delongas.
As demandas recolhem e encobrem o sofrimento, com elas pede-se uma solução. Por
isso, nem sempre são claras, por isso nem sempre são exatamente o que se pretendia
dizer, inclusive quando são formuladas com clareza. Por isso é necessário questioná-las,
para que possam ser ditas de uma maneira melhor.
De fato, poderíamos concordar, pois qual ferramenta tem o médico não analisado para
evitar sugestionar o paciente? Os psicanalistas também acreditamos que o paciente deve
tomar sua decisão não influenciada por nós.
É assim que na medicina as decisões dos pacientes são tidas como dados que entram em
um algoritmo e não como manifestações de dor, de medo, de angústia. Enquanto a
psicanálise considera que todos esses afetos influenciam na decisão do paciente e o
deixam em uma situação de falta de autonomia e de vulnerabilidade que fazem
imprescindível não deixá-lo sozinho no processo de decidir.
Em decorrência dessa maneira de agir, a decisão de morrer pode ser entendida como a
firme decisão de morrer quando o próprio médico tem a convicção de que a dor do
paciente é insuportável. A psicanálise considera quão insuportável pode ser para um
sujeito, também para o médico, suportar a dor do outro; especialmente quando se é o
destinatário da demanda. A obrigação de viver bem, que determina nossa época, deixa
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no esquecimento que viver é difícil, que há quem não consiga fazê-lo e que é condenado
a não ser mais do que um resto se não lhe for permitido falar bem. A obrigação de viver
bem dá as costas à obrigação do bem dizer (Lacan, 2012/1973, p. 558) que
promovemos, a obrigação de viver bem quando dá as costas à obrigação do bem dizer,
supõe deixar o sujeito sozinho com seu gozo.
Leonora Troianovski, colega da ELP, me contou o caso em que uma mulher pedia a
eutanásia depois da morte de sua pequena filha em um acidente, a médica disse
rapidamente que não procederia com essa demanda, mas, ao mesmo tempo, acolheu o
real que emergia dessas palavras: a morte de um filho, como viver depois disso? Cada
um deverá encontrar seu caminho, em solidão, mas acompanhado de alguém que possa
acolher seu sofrimento e suas palavras. Alguém que possa esperar e dar tempo. Até que
se produzam ou se reconheçam outras âncoras para a vida.
Da minha parte, assisti a um caso no qual propor a eutanásia como horizonte surgiu
como remédio para acalmar o sofrimento de um paciente bem idoso em um momento de
perda do controle transitório das funções corporais, à qual sucedeu uma tentativa de
suicídio. Contudo, o paciente não havia podido dialetizar sua experiência naquele
momento e passou ao ato suicida. Já no hospital, a escuta tranquilizou o paciente,
revelando as dificuldades sofridas, mas também seus laços com a vida. Não proponho
que sugerir a eutanásia como possibilidade futura, no caso de chegar a uma situação
irreversível, seja a melhor solução, mas foi a que pôde ser realizada naquele momento e
que tranquilizou o paciente no sentido de dar-lhe um sentimento de controle, que lhe
permitia continuar vivendo.
Durante esse trabalho, outro profissional interpretou esse desejo de morrer como uma
demanda de morrer e já se disponibilizava a processar a solicitação de eutanásia. Não
teve seguimento, mas é uma demonstração do enlouquecimento extremo que às vezes
se produz na situação de uma leitura literal da passagem ao ato. Oferecer a eutanásia a
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uma pessoa suicida não é uma indicação a ser considerada (Jovelet, 2023). Cada vez há
mais suicídios entre pessoas idosas, o qual nos confronta com questões a respeito da
qualidade dos nossos cuidados.
Por outro lado, e em relação à demanda de eutanásia, também deve ser considerado que
a demanda de pedir morte e sua aceitação, podem introduzir um limite ao sofrimento
que permita situar-se novamente na vida (Ansermet, 2023, p. 91). Não é rara a proposta
que alguns pacientes propõem de adiar a realização da eutanásia depois de já ter sido
aprovada. Nesse caso, eles mesmo pronunciam o “não”, uma vez que já foi aprovada sua
demanda. Saber que é possível ter certo controle sobre o sofrimento ajuda a suportá-lo.
A posição do médico
Por fim e no cerne da questão, a clínica da eutanásia também atinge o próprio médico
em sua posição ética.
Para abordar os aspectos clínicos e éticos, aspectos que dizem respeito à relação entre
profissional e paciente, no ano passado propusemos dois espaços na Rede Psicanálise e
Medicina2, aos quais vieram inúmeros profissionais da saúde. Um primeiro espaço no
qual trabalhamos a partir de um texto de referência 3, em junho de 2022, e uma jornada
na qual alguns médicos e psicanalistas introduziram suas reflexões, dúvidas e medos a
respeito dos primeiros casos recebidos e pudemos conversar 4, em dezembro de 2022.
Parece-me uma boa questão que deve ser esclarecida como esclarece-se a incógnita nas
equações matemáticas. Na demanda de eutanásia está em jogo a questão da pergunta
pelo desejo do outro. Atualmente, se pensa a vida em termos de utilidade e muitos
pacientes, ao ver chegar a fase final de sua vida, dizem para si e para nós: “não sirvo
para nada”. Pode ter sido dito em outras épocas, mas no contexto atual, o paciente pode
ver-se reduzido a não ser mais do que uma despesa, questão que se agrava pela falta de
tempo das famílias para estar ao seu lado.
Portanto, às vezes, o pedido de eutanásia pode ser a verificação do desejo do outro, uma
pergunta a respeito de se, apesar da dependência, ainda se é amado. Por isso me parece
extremamente importante que não seja considerado objetor quem considera que deve
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dizer que não autoriza a prática da eutanásia. Não deve se ver obrigado a se retirar do
caso, deve poder continuar para sustentar seu ato.
Para concluir, da mesma maneira em que não consideraríamos o desejo de matar o outro
levianamente, nem como algo a ser discutido, convém não se colocar inteiramente à
disposição diante da demanda de receber a morte. Hoornaet sugere, inclusive, não
aprofundar o assunto, pois se trata de uma tendência a ser contida (Hoornaert, 2023, p.
99). Ou seja, às vezes não se trata de fazer falar sobre isso, mas sim do contrário, de
fazer calar. Acontece que na psiquiatria, o diagnóstico de incurabilidade levaria a poder
praticar a eutanásia de maneira absolutamente louca. Repensar a psicose como posição
pessoal e não como doença dá outra dimensão ao seu tratamento. Também dá espaço a
repensar o papel do psiquiatra que hoje, em muitos casos, está alinhado com a promessa
terapêutica e pode esquecer o papel testemunhal e de acompanhamento que lhe cabe
(Dewambrechies-La Sagna, 2018, p. 11).
Da minha parte, e considerando que minha área é na saúde física e não na saúde
mental, parece-me importante que o paciente possa sentir sempre que sua demanda é
acolhida por aquilo que nela circula do sofrimento, do mal-estar de viver, portanto, do
gozo, e que está ligado a uma palavra. Acredito que é o que se obtém das vinhetas
apresentadas.
Na ética médica, a reflexão somente surge diante dos casos, também nos processos de
eutanásia. Como na psicanálise, a revisão do ato deveria ser posterior. Do contrário,
sustentaremos que é possível controlar o ato antes, que é possível eliminar o real da
morte.
Até aqui chegam as elaborações que consegui articular para trabalhar hoje. É difícil estar
à fronteira do processo de atender solicitações de eutanásia, há um real em jogo. O
incalculável está sempre presente, para o profissional, para o paciente e para sua família.
Não se podem prever os efeitos que o ato terá sobre si mesmo. E me parece que é
aconselhável deixar permanentemente aberto algo a esse nível, impedir que se feche e
me parece que o trabalho sobre o próprio inconsciente e sobre a clínica dos casos é o
caminho.
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Núcleo de Psicanálise e Medicina
Belo Horizonte, 15 de setembro 2022.
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BIBLIOGRAFÍA CITADA
Broggi, M.-A. (2011). Per una mort apropiada. Barcelona: Edicions 62.
Jovelet, G. (2023). Mouirir au XXIe. siècle. Place du suicide et de ses équivalents chez la
personne âgée. Mental (47), 110-117.
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Na única nota de rodapé sobre a objeção de consciência do Comitê de Garantias e Avaliação da Catalunha.
https://canalsalut.gencat.cat/ca/professionals/consells-comissions/comissio-garantia-avaluacio-catalunya/
parers-posicionament/objeccio-consciencia-pram (10/09/2023)
2
Red Psicoanálisis y Medicina (ICF) https://redpsicoanalisisymedicina.org/
3
https://redpsicoanalisisymedicina.org/wp-content/uploads/2022/05/Programa-Al-pie-de-la-letra-2022.pdf
4
https://redpsicoanalisisymedicina.org/wp-content/uploads/2022/10/PROGRAMA-6a-JORNADA-2022.pdf