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Batista

Relato LS et al.
de experiência

Avaliação psicopedagógica de criança


com alterações no desenvolvimento:
relato de experiência
Leila Santos Batista; Bárbara Gonçalves; Márcia Siqueira de Andrade

RESUMO – Objetivo: Apresentar relato de avaliação psicopedagógica


de criança com queixa de alterações no desenvolvimento. O caso rela­
tado é o de menino, 9 anos de idade, atendido em clínica-escola de ins­
tituição da grande São Paulo. O relatório médico reportou alterações no
desenvolvimento, especificamente atraso do desenvolvimento neu­rop­
si­comotor, desatenção e dificuldade de aprendizado, com diagnóstico
de transtorno específico misto do desenvolvimento e outro transtorno
com­portamental e emocional especificado com início habitualmente na
infância ou adolescência (F83 e F98-8). Método: O relato foi elaborado a
partir da descrição do protocolo utilizado para avaliação, que constou de
oito sessões em que foram aplicados os instrumentos: Desenho da Família,
Desenho da Família Cinética, Desenho do Par Educativo, Hora do Jogo
Diagnóstica, Sondagem da escrita e Provas Piagetianas. Resultados: A
avaliação psicopedagógica indicou atraso na aprendizagem da escri­ta, no
desenvolvimento cognitivo, além de dificuldades de coordenação mo­tora,
interação e comunicação. Verificou-se vínculo saudável com o objeto de
conhecimento, percepção saudável da estrutura familiar, ausên­cia de vínculo
entre os membros da família, e vínculo comprometido com o ensinante.
Conclusão: A avaliação psicopedagógica permitiu uma aná­lise abrangente
do sujeito e de sua aprendizagem, e sugestões de encaminhamento ba­
seadas nos resultados alcançados.

UNITERMOS: Psicopedagogia. Diagnóstico. Aprendizagem.

Leila Santos Batista – Psicopedagoga, mestranda do Correspondência


Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Psi­­co­lo­ Márcia Siqueira de Andrade
gia Educacional, Centro Universitário FIEO-UNIFIEO, Centro Universitário FIEO- UNIFIEO
Osasco, SP, Brasil. Programa de Psicologia Educacional
Bárbara Gonçalves – Psicopedagoga, Mestranda do Av. Franz Voegeli, 300 – Vila Yara – Osasco, SP, Brasil –
Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Psico­­ CEP: 06020-190
logia Educacional, Centro Universitário FIEO-UNIFIEO, E-mail: mandrade@unifieo.br
Osasco, SP, Brasil.
Márcia Siqueira de Andrade – Doutora em Psicologia
Educacional pela PUC/SP, Coordenadora do Programa
de Pós-graduação Stricto Sensu em Psicologia Educa­
cional, Centro Universitário FIEO-UNIFIEO, Osasco,
SP, Brasil.

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Avaliação psicopedagógica de criança com alterações no desenvolvimento

INTRODUÇÃO do processo de aprendizagem, postura clínica,


O Código de Ética do Psicopedagogo, no seu capacidade de observação e instrumentos e
artigo 1o, define a Psicopedagogia como “(...) um métodos adequados5.
campo de atuação em Saúde e Educação que O objetivo do diagnóstico psicopedagógico
lida com o processo de aprendizagem humana: clínico é identificar a modalidade de aprendi­
seus padrões normais e patológicos conside­ zagem, o nível da escrita e o nível cognitivo. Os
rando a influência do meio, família, escola e instrumentos aplicados no diagnóstico psico­
so­ciedade no seu desenvolvimento, utilizando pedagógico aqui relatado são descritos no item
procedimentos próprios da Psicopedagogia”1. método e fazem parte do protocolo utilizado na
A Psicopedagogia surge para atender a uma clínica-escola campo desta pesquisa5.
demanda específica de auxílio à superação das
dificuldades de aprendizagem, atuando de forma Modalidade de aprendizagem
preventiva e terapêutica2. A forma como cada indivíduo entra em con­
A Psicopedagogia se divide em três processos: tato com o objeto de conhecimento, a modali­
prevenção, diagnóstico e intervenção. Na pre­ dade de aprendizagem, é particular, individual
venção, o psicopedagogo realiza uma investiga­ e oferece um saber que é singular para cada
ção institucional, avaliando os processos didáti­ indivíduo. A modalidade de aprendizagem é
cos e metodológicos aplicados, e a dinâmica dos construída desde o nascimento e nas várias si­
profissionais, buscando compreender o processo tuações de aprendizagem, constituindo-se como
ensino/aprendizagem e propondo alternativas um esquema de operar ou processar as informa­
que otimizem os esforços empreendidos pelos ções6. Com a identificação da modalidade de
envolvidos3. aprendizagem do sujeito com dificuldades de
A Psicopedagogia, na forma clínica, busca a aprendizagem, o psicopedagogo poderá intro­
promoção da saúde mental auxiliando o indiví­ duzir a intervenção adequada, que atenda às
duo na superação das dificuldades de aprendi­ necessidades específicas do paciente.
zagem, investigando os sintomas, a modalidade Para melhor compreensão do processo que
de aprendizagem e desenvolvendo atividades resulta em modalidade de aprendizagem, é
interventivas. O atendimento psicopedagógico importante compreender o movimento definido
com uma postura clínica considera a singu­ como “adaptação”. Adaptação é o resultado de
laridade do sujeito, os aspectos inconscientes um duplo movimento complementar de assimi­
envolvidos no não aprender nos seus diversos lação e acomodação. Por meio da assimilação,
contextos (biológico, afetivo e cognitivo), além o sujeito transforma a realidade para integrá-la
da família e da escola4. às suas possibilidades de ação e, através da aco­
O presente estudo se desenvolveu a partir modação, transforma e coordena seus próprios
do relato de um processo de Diagnóstico Psico­ esquemas ativos, para adequá-los às exigências
pedagógico numa perspectiva teórica clínica. da realidade7.
As modalidades de aprendizagem sintomá­
Diagnóstico Psicopedagógico Clínico ticas são geradas por um desequilíbrio nos
O diagnóstico, para o terapeuta, tem a mesma movimentos de assimilação e/ou acomodação.
função que a rede para um equilibrista6, ou seja, O excesso (hiper) ou escassez (hipo) em um
ele dará o suporte para que o psicopedagogo desses movimentos afeta o resultado (aprendi­
caminhe de maneira segura durante o processo zagem), ou seja, dificuldades de aprendizagem
de intervenção. O sucesso e a eficácia do diag­ estão relacionadas a uma hiperatuação ou hipo­
nóstico psicopedagógico pressupõem por parte -atuação de um desses processos8. Quando há
do terapeuta: profundo conhecimento teórico o predomínio da assimilação, as dificuldades

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de aprendizagem são da ordem da não resig­ Desenvolvimento Infantil


nação, o que leva o sujeito a interpretar os O conceito de desenvolvimento infantil pode
ob­jetos de modo subjetivo, não internalizando ser entendido como um processo que envolve
as características próprias do objeto. Quando a vários aspectos: crescimento físico, maturação
acomodação predomina, o sujeito não empresta neurológica, construção de habilidades relacio­
sentido subjetivo aos objetos, antes, resigna-se nadas ao comportamento e às esferas cognitivas,
sem criticidade8. social e afetiva da criança. O desenvolvimento
As modalidades de aprendizagem sintomáti­ adequado habilita a criança a atender à demanda
cas são assim descritas8: do meio, tornando-a “competente” para respon­
• Hiperassimilação: sendo a assimilação o der às suas necessidades, considerando o seu
movimento de adaptação que permite a contexto de vida10.
alteração das informações fornecidas pelo O desenvolvimento infantil relaciona-se di­
meio, para que possam ser incorporadas retamente com fatores biológicos e ambientais.
pelo sujeito, na aprendizagem sintomati­ Os fatores biológicos estão relacionados a danos
zada pode ocorrer um exagero desse mo­ ocorridos nos períodos pré, peri e pós-parto, que
vimento, de forma que o sujeito não se podem conduzir a deficiências e problemas no
submete ao aprender. Nesse movimento, desenvolvimento neurológico. Neste grupo estão
há o predomínio dos aspectos subjetivos os distúrbios de ordem genética, malformações
sobre os objetivos; congênitas, prematuridade, hipóxia cerebral,
meningites e condições da gestação da mãe (uso
• Hipoacomodação: a acomodação consiste
de drogas, fumo e doenças) que podem impac­
em adaptar-se para que ocorra a internali­
tar o desenvolvimento da criança. Os fatores
zação. A sintomatização da acomodação
ambientais estão relacionados à exposição da
ocorre pela resistência em acomodar
criança aos estímulos e situações do meio, tais
elementos do meio (informações), que
como condições de habitação, higiene, conforto,
pode ser definida como a dificuldade de
nutrição, estímulo familiar e vida social11.
internalizar os objetos;
Neste contexto, a reabilitação é o processo
• Hiperacomodação: se acomodar significa
pelo qual a criança com alterações no desenvol­
internalizar os elementos do meio (infor­
vimento poderá ser adequadamente estimulada
mações), o exagero nesse processo pode
com o objetivo de melhorar a funcionalidade
levar a uma pobreza de contato com a das suas habilidades físicas, mental e/ou social.
subjetividade, levando à submissão e à Nessa perspectiva, todo trabalho de reabilitação,
obediência acrítica às normas; independente da idade, deve estar centrado
• Hipoassimilação: nesta sintomatização nas habilidades da criança, lembrando que sua
ocorre uma assimilação pobre ou baixa, o integridade e dignidade devem sempre ser res­
que resulta na pobreza no contato com o peitadas. Para tal, importa que, ao planejar os
objeto. As informações, ou elementos do programas de reabilitação e de apoio, o terapeuta
meio, são pouco alterados, de forma que possa impreterivelmente considerar os costumes,
não podem ser incorporados pelo sujeito, possibilidades e as estruturas da família e da
apenas acomodados. comunidade, adequando sua proposta terapêu­
Analisando a forma como operam as modali­ tica às dificuldades e necessidades da criança12.
dades de aprendizagem, existem três grupos No entanto, para orientar qualquer proposta
de modalidades (organizações) que perturbam terapêutica, a avaliação diagnóstica é a primeira
o aprender: hipoassimilação-hipoacomodação; etapa. Neste contexto, o objetivo do presente
hiperassimilação-hipoacomodação; e hipoassi­ artigo é apresentar o relato de avaliação diagnós­
milação-hiperacomodação9. tica psicopedagógica de menino encaminhado à

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clínica-escola por apresentar alterações no de­ zagem, que são específicos e de origem
senvolvimento e dificuldades de aprendizagem. neurobiológica. Assim, dificuldades de
aprendizagem podem estar associadas a
MÉTODO problemas pedagógicos, sociais, deficiên­
Campo da pesquisa cia intelectual ou ser secundários a outros
A criança, submetida à avaliação psicopeda­ transtornos16.
gógica relatada no presente estudo, será tratada F83: Transtornos específicos misto do desen­
pelo nome fictício “Pedro”. Pedro foi atendido volvimento. Esta categoria agrupa transtornos
pelo serviço de atendimento psicopedagógico, que apresentam ao mesmo tempo sinais de um
desenvolvido no âmbito de uma clínica-escola transtorno específico do desenvolvimento da
de uma instituição particular de ensino superior, fala e da linguagem, das habilidades escolares,
localizada na grande São Paulo. A clínica recebe e das funções motoras, mas sem a predominância
crianças, adolescentes e adultos encaminhados suficiente de elementos para constituir o diag­
por serviços de saúde e educação e possui um nóstico principal13.
F98.8: Outros transtornos comportamentais
protocolo de avaliação, por meio do qual todos os
e emocionais especificados com início habi­
indivíduos encaminhados são avaliados. Pedro
tualmente na infância ou adolescência. Inclui
foi atendido em grupo de 5 crianças, da mesma
sintomas como comer unhas, déficit de atenção
faixa etária (9 anos)5.
sem hiperatividade, enfiar os dedos no nariz,
masturbação exagerada e sucção do polegar.
Participante
É estudante do 3o ano do Ensino Funda­
Instrumentos
mental I, com idade de 9 anos, lê e escreve
Em conformidade com o protocolo implan­
com dificuldade, não apresenta problemas de
tado na clínica-escola citada, os instrumentos
comportamento e foi encaminhado ao atendi­
utilizados no processo e considerados para o
mento psicopedagógico pelo Neurologista por
presente estudo foram5:
apresentar:
• Desenho da Família: nessa atividade,
a) atraso no desenvolvimento neuropsico­
motor: refere-se a atraso no desenvol­ ob­serva-se a estrutura familiar, a fim de
vimento de dois ou mais domínios: mo­ investigar como se dá a relação entre seus
tricidade, linguagem, cognição, habilida­ membros como um todo e individualmente;
des sociais ou aquelas requeridas em • Desenho da Família Cinética: essa ati­
ati­­vidades da vida diária, e/ou ainda, vidade busca compreender como se dá
uma inadequação no desenvolvimento o estabelecimento de vínculos entre os
que impossibilita a saudável sequência membros da família;
de estágios considerados importantes • Desenho do Par Educativo: essa prova
marcadores semiológicos de integridade traz subsídios específicos para a com­
do sistema nervoso central14,15; preensão da relação entre quem ensina,
b) desatenção: refere-se à dificuldade de quem aprende, e o objeto de conhecimen­
concentração ou à falta de atenção; to, como é percebido pelo sujeito;
c) dificuldade de aprendizado: refere-se a • Hora do Jogo Diagnóstica: a aplicação
problemas na aquisição e uso de habili­ dessa prova tem como objetivo geral iden­
dades como leitura, escrita e matemática, tificar a modalidade de aprendizagem do
conduzindo a rendimento escolar abaixo sujeito e de analisar como o mesmo se
do esperado. As dificuldades de apren­ apropria do objeto de conhecimento dese­
dizagem possuem etiologias diversas e jado. Por outro lado, analisa-se, também,
são distintas dos transtornos de aprendi­ como ele lida com o não conhecer, como

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ele trabalha com questões cognitivas liberados e foi desenvolvida atividade para es­
relacionadas às habilidades mentais de tabelecimento de vínculo.
classificar, ordenar e seriar; A sala para atendimento do grupo foi esco­
• Sondagem da Escrita: essa prova tem lhida levando em consideração a necessidade
por objetivo identificar o nível conceitual de interação social e comunicação apresentadas
da escrita do sujeito: se ele já reconhece por Pedro. A terapeuta escolheu uma sala peque­
as letras, se já está alfabetizado ou não e na, com mesa redonda, que proporcionou uma
como está seu processo de aquisição da maior aproximação dos integrantes e facilitou
leitura e escrita. Com base em Ferreiro a comunicação. Os materiais disponibilizados
é possível identificar em que nível de para realização das atividades foram de uso cole­
aquisição da leitura/escrita o paciente tivo, também pensando na proposta de interação
se encontra, dentro das seguintes possi­ social e comunicação.
bilidades: pré-si­lábico, silábico, silábico Na segunda sessão, foi aplicado Desenho da
alfabético, alfabético e ortográfico; Família; na terceira, Desenho da Família Ciné­
• Provas Piagetianas: tem por finalidade tica; na quarta, Desenho do Par Educativo; na
identificar o estágio do desenvolvimento quinta, entrevista com pais, na sexta, Hora do jogo
cognitivo em que o sujeito se encontra. Diagnóstica; na sétima, Sondagem da escrita;
Para isso, foram aplicadas provas de
e, por fim, na oitava sessão, Provas Piagetianas.
conservação: conservação de pequenos
Ao término das sessões de avaliação diagnós­
conjuntos discretos de elementos, con­
tica, os testes foram analisados de acordo com
servação de quantidades contínuas e
Andrade4 e as informações compiladas em um re­
conservação de líquido (transvasamento);
latório, cujas informações foram compartilhadas
• Entrevista com os Pais: pretende-se obter
e esclarecidas com o responsável pela criança.
o máximo de informação possível sobre
a história de vida do sujeito, a relação
estabelecida entre ele, enquanto alguém RESULTADOS E DISCUSSÃO
com possibilidades de aprender, e os pais A análise da produção do paciente se deu
como aqueles que podem ensinar. Tem de conforme descrito a seguir.
se ter em conta não só o que é dito, mas Estabelecimento do Vínculo: na primeira
também como é dito, bem como observar sessão, o paciente não interagiu com o grupo.
a linguagem corporal dos entrevistados. Comportou-se de maneira tímida, introvertida e
apresentou problemas na fala (linguagem). Parti­
Procedimentos cipou da atividade proposta (jogo pega-varetas),
O processo de avaliação diagnóstica psico­ porém não demonstrou compreensão das regras.
pedagógica ocorreu ao longo de 8 sessões, cada Desenho da Família: após a consigna “de­
qual com duração de 60 minutos. Para o forta­ senhe uma família”, Pedro desenhou os três
lecimento do vínculo paciente/terapeuta, foram membros da família (ele, pai e mãe); conforme
desenvolvidas, ao término da aplicação de cada Figura 1, notam-se esquemas corporais empo­
uma das provas, atividades lúdicas como brinca­ brecidos, olhos vazados e ausência de braços;
deiras, jogos diversos, montagem de quebra-ca­ observa-se que Pedro se desenhou ao lado da
beça, leitura de histórias e desenho livre. mãe; o tamanho relativo dos personagens foi
Na primeira sessão, os responsáveis foram evidenciado e a produção foi centralizada na
informados sobre os procedimentos de avaliação folha; por fim, evidencia-se que Pedro desenhou
diagnóstica e sobre as normas da clínica-escola. a sua família real, composta por ele, pai e mãe, o
Nessa sessão, foi ouvida a queixa principal dos que sugere uma percepção de relação saudável
pais com relação à criança. Após, os pais foram entre os membros.

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Desenho da Família Cinética: nesta atividade Hora do Jogo Diagnóstica: após apresentar a
foi solicitado o desenho de uma família fazendo caixa, foi solicitado ao grupo para realizar a ati­
alguma coisa. Pedro desenhou os personagens vidade. Pedro não fez inventário, pegou um livro
sem diferenciação de sexo; todos os membros e ficou folheando, depois pegou a lata de palitos
da família num mesmo ambiente, porém cada e brincou um pouco, sem demonstrar muita
um fazendo uma coisa diferente. Essa situação vontade, por fim, fez um desenho, utilizando
sugere comprometimento no vínculo familiar. canetinhas e papel sulfite, porém não terminou.
Desenho do Par Educativo: foi solicitado ao Essa atitude demonstra a dificuldade da criança
grupo o desenho de alguém aprendendo alguma em se apropriar do objeto de conhecimento dese­
coisa e alguém ensinando. Pedro se desenhou jado; o contato superficial com a caixa e com os
fazendo uma prova; observa-se no desenho que objetos oferecidos sugere dificuldades em lidar
ele está ao lado de uma folha, com um lápis na com a situação e com o não conhecer.
mão; a ausência de ensinante sugere vínculo Sondagem da Escrita: conforme Figura 2, a
comprometido com quem ensina e não com o escrita de Pedro foi classificada como silábica­
objeto de conhecimento (folha de prova); o ta­ -alfabética, sem o registro da sílaba de três letras,
manho do aprendente, o tamanho do objeto de estando aquém do esperado para a idade, de
conhecimento e o contato do aprendente com o acordo com a padronização do teste. As palavras
lápis sugere vínculo saudável com o objeto de ditadas ao paciente foram: elefante, rã, formiga,
conhecimento. cachorro e tigre; e a frase foi: “O elefante pisou
Entrevista com os pais: durante a entrevista na formiga”.
a mãe relatou que Pedro é autista (apesar dessa Frente às Provas Piagetianas, apresentou res­
informação não constar no relatório médico), tem postas perceptivas e de não-conservação, quando
problemas na fala e dificuldades de socialização. o esperado para a idade seria uma res­posta cog­
Faz acompanhamento neurológico, fonoaudiólo­ nitiva (lógica) e conservativa, próprias do estágio
go e usa os medicamentos Risperidona e Tofranil.
Na entrevista, foi evidenciado que Pedro tem
um primo (filho de um tio por parte de mãe),
com a idade de 7 anos, que também é autista. A
mãe relatou que Pedro nasceu de parto normal,
sem complicações e começou a falar com 1 ano
2 meses.

Figura 1 – Desempenho de Pedro na Prova da Família. Figura 2 – Desempenho de Pedro na Sondagem da Escrita.

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do desenvolvimento cognitivo operacional-con­ Mesmo com evidente dificuldade de comu­


creto, adequado a crianças de 7 a 11 anos. nicação e socialização, Pedro não se isolou com­
No mais, observações gerais com relação pletamente do grupo. No decorrer dos encontros
ao desempenho, comportamento e conduta do ao longo do processo diagnóstico, à sua maneira,
paciente durante o processo foram registradas esteve presente, realizando as propostas e par­
conforme relato a seguir. Pedro esteve presente ticipando das atividades lúdicas (jogos, conta­
em todas as sessões e realizou todos os testes gem de histórias, desenho e pintura, dentre ou­
aplicados com dedicação. Utilizou o material tras). Apresentou muitas vezes comportamento
de maneira adequada e se mostrou organiza­ motor estereotipado e repetitivo, movimentando
do devolvendo os lápis de cor na caixa correta, dedos e/ou mãos, fazendo caretas, rindo sozinho
guar­dando borracha e apontador no estojo após e evitando contato visual. Demonstrou também,
o uso e recolocando cadeiras no lugar ao término durante a execução das atividades, a fixação por
das sessões. rotinas e regras.
Desde a primeira sessão, Pedro apresentou Foi principalmente nas atividades lúdicas, a
di­ficuldades relacionadas à interação social e partir da 4ª sessão, que se tornaram evidentes
comunicação (linguagem verbal). Nota-se o uma melhor compreensão do grupo com relação
com­prometimento do desenvolvimento da fala às dificuldades apresentadas pelo Pedro (co­
e da linguagem de forma acentuada, conforme municação e coordenação motora fina). Essa
descrição da CID-10 F8311. Interagiu pouco com evidência se embasa no auxílio que o grupo
o grupo e com a psicopedagoga, limitando mui­ passou a prestar, ajudando-o em atividades
tas respostas a “sim” ou “não”. Respostas mais onde o mesmo demonstrava mais dificuldades,
complexas, adequadas às perguntas, surgiam esclarecendo com calma as regras dos jogos e
apenas quando abordado de forma mais pre­ esperando com paciência e respeito a sua res­
cisa e individualizada, o que sinaliza prejuízos posta ou fala.
associados às possíveis alterações das funções Com relação à modalidade de aprendiza­gem,
cognitivas, dentre elas a linguagem, apresenta­ Pedro foi classificado como Hipoassimilativo/
das pelo quadro (CID-10 F83). Hi­poacomodativo. Na hipoassimilação, ocorre
Déficits relacionados às funções motoras, pobreza de contato com o objeto, e déficit lúdico
descritos na CID-10 F83, foram evidenciados e criativo; na hipoacomodação, além de pobreza
durante a execução das atividades de Sonda­ de contato com o objeto, ocorre também dificul­
gem da Escrita, e nos Testes piagetianos, e dade na interiorização das imagens6.
percebidos também nas brincadeiras e jogos Apesar dos déficits e prejuízos apresentados,
lúdicos (montagem de quebra-cabeça, pega­ Pedro cumpriu todas as atividades propostas. A
-varetas, entre outras). Prejuízos relacionados avaliação psicopedagógica demonstrou déficits
à desatenção não foram evidenciados na ava­ da aprendizagem da escrita, dificuldades rela­
liação, Pedro se mostrou atento às normas e às cionadas à coordenação motora e à comunicação
consignas solicitadas. (linguagem verbal), além de prejuízo no desen­
À medida que os encontros foram se cons­ volvimento cognitivo. Com relação aos aspectos
tituindo, Pedro foi se integrando ao grupo, e emocionais, os resultados obtidos a partir das
essa integração pôde ser percebida em atitudes análises da produção da criança sugerem a
comportamentais, tais como: rir com os colegas existência de percepção saudável da estrutura
diante de uma situação engraçada; chamar a te­ familiar; vínculo saudável com o objeto de co­
rapeuta pelo nome; expressar o desejo de contar nhecimento, percepção de ausência de vínculo
histórias diante dos testes projetivos (família, familiar, e vínculo comprometido com o ensinan­
família cinética e par educativo) e contar sobre te. Essas informações sugerem que, com relação
sua rotina diária. à dimensão afetiva da aprendizagem (dimensão

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subjetivante), na qual opera a lei do desejo que gógico, se possível, individualizado, visando à
permite dar um significado à ignorância16, Pedro alfabetização, e um aprofundamento na análise
apresenta potencial de aproximação do objeto do das percepções da criança, a fim de se compreen­
conhecimento para construção e apropriação da der a sua relação com quem ensina (ensinante).
aprendizagem.
Frente ao desempenho do paciente nas ativi­ CONCLUSÃO
dades propostas, presume-se que as dificulda­ A descrição do processo avaliativo da criança
des de aprendizagem apontadas pelo relatório com alterações no desenvolvimento teve como
médico sejam oriundas, em parte, das alterações objetivo ilustrar o processo diagnóstico psico­
no desenvolvimento (CID-10 F83; F98-8), e em pedagógico, seus instrumentos e possibilida­
parte da falta de atendimento adequado às suas des de interpretação de seus resultados. Dessa
necessidades especiais, considerando a reali­ for­ma, a avaliação psicopedagógica permitiu
dade das instituições públicas de ensino e das uma análise abrangente do sujeito e de sua
políticas sociais nacionais. aprendizagem, contribuindo para a compreen­
Assim, tendo em vista as dificuldades elenca­ são de como Pedro se coloca na construção do
das, e a importância do funcionamento indepen­ conhecimento, subsídios que auxiliarão ao en­
dente e simultâneo dos aspectos afetivos e cog­ caminhamento do caso.
nitivos do pensamento do sujeito que aprende, A avaliação psicopedagógica deve possi­
algumas recomendações para atendimento de bilitar o entendimento das especificidades e
Pedro são: scompanhamento psicopedagógico necessidades da criança, suas dificuldades, sua
com oferecimento de atividades que contribuam relação com o outro e com a aprendizagem,
para o desenvolvimento das suas habilidades possibilitando delinear ações terapêuticas para
cognitivas (pensar, simbolizar, perceber, criar, atendimento dessas necessidades. Limitações e
analisar, etc) e sociais (comunicação e lingua­ direções futuras apontam para o fato de que o
gem), que favoreçam o desenvolvimento da atendimento em grupo não otimiza o processo
coor­denação motora fina e que possibilitem o de avaliação e o próprio desenvolvimento das
pro­cesso criativo; e atividades que contemplem crianças, exceto com relação à interação social e
os aspectos emocionais e afetivos, favorecendo comunicação, uma vez que muitas crianças que
o contato com o objeto de conhecimento e ali­ chegam às clínicas de psicopedagogia podem
mentando o desejo que leva à aprendizagem. requerer atenção individualizada para lidar com
É importante também acompanhamento peda­ suas dificuldades.

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SUMMARY
Psychopedagogical evaluation of one child
with developmental abnormalities: experience report

Objective: Present psychoeducational valuation report of child complaint


changes in development. The case reported is a boy, 9 years old, attended
by clinic-school located in greater São Paulo. The medical report tells
developmental abnormalities, specifically developmental delay, learning
difficulties with inattention, with a diagnosis of mixed specific developmental
disorders and other specified behavioral and emotional disorders with onset
usually occurring in childhood and adolescence (F83 and F98-8). Methods:
The experience report was drawn from the description of the protocol used
for evaluation which consisted of eight sessions in which the instruments
were applied: Family drawing, Kinetics family drawing, Educative pair
drawing, Diagnostic playtime, Writing survey, Piagetian tasks. Results:
The psychopedagogic evaluation showed delayed literacy, and cognitive
development, and difficulties in motor coordination, interaction and
communication. There was perception of healthy link with the object of
knowledge and healthy perception of the family structure, although there
was perception of lack of link between family members and impaired
with teacher. The psychopedagogic evaluation provided a comprehensive
analysis of the subject and their learning, and routing suggestions based
on the achieved results.

KEY WORDS: Psychopedagogy. Diagnosis. Learning.

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Trabalho realizado no Centro Universitário FIEO- Artigo recebido: 10/8/2015


UNIFIEO, Osasco, SP, Brasil. Aprovado: 7/11/2015

Rev. Psicopedagogia 2015; 32(99): 326-35

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