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Perspectivas, São Paulo

4:43-47, 1981.

A QUESTÃO DA M U L H E R NA
REPRODUÇÃO DA FORÇA DE T R A B A L H O

Elisabeth Souza L O B O *

RESUMO: Análise da relação entre a reprodução da força de trabalho e os papéis sexuais. O eixo
do estudo se desloca do papel da mulher como reprodutora na esfera econômica para o seu papel na
reprodução social.

UNITERMOS: Reprodução; força de trabalho; mulheres e trabalho doméstico; relações sociais


de produção; papéis sexuais.

Analisar a questão da mulher na re- destinou-a a pôr filhos no mundo, n ã o a


produção da força de trabalho supõe ex- predestina a efetuar uma p r o d u ç ã o do-
plicitar as conexões existentes entre as re- méstica invisível". (9:15)
lações sociais de p r o d u ç ã o e reprodução e Dá-se pois uma assimilação das duas
os papéis sexuais. É exatamente ao papel funções — aquela que é efetivamente na-
social que desempenham as mulheres en-
tural e aquela que é uma atribuição social,
quanto sexo, na sociedade capitalista que
— como se ambas fossem igualmente
remonta a natureza específica de sua su-
"naturais".
bordinação. (11)
Este processo se realiza numa primei-
Em primeiro lugar, as mulheres estão ra instância através da família. Sobre isto
definidas por sua função reprodutora na- diz Meillassoux: " a comunidade domésti-
tural, extendida e identificada à função de ca é o único sistema econômico e social
reprodutora social que ela exerce através que regula a reprodução física dos i n -
do trabalho doméstico, a qual está indis- divíduos, a reprodução dos produtores e a
soluvelmente ligada. reprodução social sob todas suas formas,
A extensão da função biológica de re- através de um conjunto de instituições,
produção à função social de reposição/re- dominando a reprodução pela mobiliza-
produção da força de trabalho se d á por ção ordenada dos meios de r e p r o d u ç ã o
um processo de transposição de caráter humanos, isto é, a mulher". (8: 15).
natural da função biológica à função do- Não se trata aqui de considerar a pro-
méstica. dução doméstica como a u t ô n o m a e confi-
As mulheres foram obrigadas no cur- guradora de um modo de p r o d u ç ã o dife-
so de uma primeira etapa do desenvolvi- renciado, mas de inseri-la no quadro do
mento capitalista a assumir certas tarefas, sistema de p r o d u ç ã o / r e p r o d u ç ã o capita-
valorizadas no conceito do papel de espo- lista.
sas. Realizou-se uma "leitura biológica" Interessa-nos p ô r em evidência que
da mulher, sem fundamentos, na medida dentro do espaço familiar a mulher cum-
em que se " a biologia da mulher pre- pre uma função reprodutora. E l a realiza:

* Professora Assistente-Doutora do Departamento de Ciências Políticas e Econômicas — Faculdade de E d u c a ç ã o , Filo-


sofia, Ciências Sociais e da D o c u m e n t a ç ã o — U N E S P — 17500 — Marília — SP — Brasil.

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LOBO, E.S. — A questão da mulher na reprodução da força de trabalho. Perspectivas, S ã o Paulo, 4:43-47, 1981

1 / a reprodução biológica da força de força de trabalho, processo que se realiza


trabalho; principalmente sob a base do trabalho do-
2 / a reprodução/reposição da força de méstico das mulheres. " A ruptura entre
trabalho; as duas esferas de p r o d u ç ã o : a produção
3 / a reprodução das relações sociais. privada para o uso doméstico e a produ-
ção social se cristaliza na família. E o des-
Cada uma dessas funções na medida tino da mulher será não somente se espe-
da sua incidência na organização da socie- cializar na produção doméstica, mas fazê-
dade se vê regulamentada pelos objetivos lo no interior da família, lugar da vida
e interesses da sociedade e do Estado. privada que pouco a pouco se recorta co-
Neste sentido, as formas e a natureza mo uma esfera separada da vida públi-
particular da a r t i c u l a ç ã o Estado- ca." (1 :4)
sociedade determinam as formas de inter-
Assim o custo da reprodução do tra-
venção do Estado nos padrões familiares,
balho é calculado tomando como certa a
na capacidade reprodutora das mulheres
contribuição invisível, não remunerada
através de políticas de planejamento fami-
das mulheres na forma do trabalho do-
liar, da legislação, da política sexual.
méstico. (11: 38)
Os interesses que movem as políticas
de planejamento familiar estão relaciona- Na relação doméstico-familiar a mu-
dos com os padrões de acumulação vigen- lher não vende sua força de trabalho por
tes. Com razão, diz Foucault: " O corpo um salário, aliena sua pessoa. Isto impli-
só se torna urna força útil, quando é, ao ca:
mesmo tempo, corpo produtivo e corpo a) na apropriação de seu tempo;
submetido." (4: 31)
b) na apropriação de seu corpo;
As crises do sistema capitalista ou
c) na obrigação sexual;
seus períodos de expansão, a situação do
mercado de trabalho são fatores que se d) no encargo dos enfermos e invá-
traduzem em medidas de estímulo ou de- lidos;
sestímulo à natalidade. A natureza do Es- e) no cuidado das crianças e dos
tado, suas relações com a sociedade civil, membros do sexo masculino. (5: 10)
fundamentam sua forma de intervenção:
através de estímulos indiretos ou através O trabalho doméstico n ã o cria rique-
de métodos impositivos de planejamento za, sua função é exatamente contribuir
familiar, aplicadas à revelia das principais para a reprodução da força de trabalho
concernidas — como no caso do projeto permitindo ao capital reduzir os custos
de planejamento familiar que o governo desta reprodução, ou seja os custos rela-
brasileiro pretende hoje implantar. cionados com a educação, equipamentos
coletivos e serviços em geral.
Reprodução/reposição da força de traba-
lho e trabalho doméstico. No entanto, a própria dinâmica con-
traditória do sistema capitalista termina
A transposição do caráter natural da por jogar a mulher fora do espaço domés-
função de reprodução biológica à função tico e a força de trabalho feminina passa a
de reprodução social supõe, por seu turno participar da produção de mercadorias ou
a "naturalidade da função d o m é s t i c a " da prestação de serviços.
das mulheres.
Mas a principalidade do papel/repro-
A família torna-se, pois, o espaço dutor/doméstico da mulher permanece e
privilegiado da r e p r o d u ç ã o / r e p o s i ç ã o da se manifesta através de vários fatores:

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1. A desigualdade da participação da 8. Finalmente, mas n ã o menos impor-


mulher no mercado de trabalho; tante, a dupla jornada de trabalho,
fardo quotidiano das mulheres traba-
2. O caráter complementar do salário
lhadoras, reafirma a principalidade
feminino, sua desvalorização em rela-
do trabalho doméstico.
ção ao salário masculino. Segundo da-
dos do D I E E S E , em São Paulo, a mé- O caráter dominante do papel de re-
dia salarial dos operários metalúrgicos produtora é explicativo de questões tais
é 73% superior a das mulheres operá- como:
rias. (3) 1. A visão de mundo da mulher sofre a
3. A forte presença do trabalho das determinação básica de sua inserção
mulheres na agricultura de subsistên- no mundo doméstico. A representa-
cia, o que significa a extensão de sua ção ideológica desta condição se faz
participação na reprodução da força através das imagens da mulher-mãe,
de trabalho, no barateamento dos cus- da "rainha do l a r " .
tos de subsistência, e a extensão da 2. A integração à esfera da p r o d u ç ã o de
apropriação do trabalho das mulheres mercadorias introduz um distancia-
no espaço familiar. (6: 19) mento entre a imagem com a qual a
mulher se identifica e a realidade do
4. A predominância do trabalho das
mundo social-público. N o entanto, na
mulheres nos serviços e particular-
medida em que a principalidade do
mente nos serviços domésticos-não
papel doméstico de reprodutora n ã o é
produtivos, onde mais uma vez se ve-
questionado e que a condição domés-
rifica a identificação das mulheres
tica se reproduz, se reproduzem tam-
com a reprodução/reposição da força
bém os valores e comportamentos cor-
de trabalho.
respondentes à identidade natural do-
5. A desqualificação profissional gene- méstica. Mas esta n ã o é a única deter-
raliza uma situação de subordinação minação que incide sobre as mulheres.
no processo de trabalho. A s chefias " A contradição que aparece de ma-
são quase sempre masculinas, mesmo neira evidente no capitalismo entre
nas fábricas onde a força de trabalho família e indústria, privado e público,
é majoritariamente feminina. pessoal e impessoal é na consciência das
6. A posição subordinada no processo mulheres a fissura que abre o espaço para
de trabalho cria as condições ótimas a revolta." (10 : 22)
para que se reproduza na fábrica o A função doméstica é, pois, uma das
modelo de comportamento domésti- faces da função reprodutora e, portanto,
co: subordinação face às chefias, dis- um dos aspectos da opressão feminina.
criminação e violência sexual, fato Mas, "mesmo se a divisão doméstica do
apontado na Resolução do Primeiro trabalho fosse redefinida, não eliminaria
Congresso da Mulher Metalúrgica de a própria fonte da subordinação das mu-
São Paulo. lheres que é a propriedade privada de sua
sexualidade pelos homens, no casamento
7. A discriminação da mulher nas di-
e na família, como estabelecida pelo siste-
versas instâncias da esfera pública: v i -
ma de reprodução social vigente na socie-
da política, vida sindical. A ela são re-
dade de classes." (11 : 49)
servados os movimentos próximos do
seu espaço privado e de sua atividade Reprodução da força de trabalho,
reprodutora/repositora da força de reprodução das classes e reprodução da
trabalho. dominação.

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A questão da reprodução se coloca casa que determina o trabalho de sua(s)


num terceiro nível de problematização: a empregada(s) não é a mesma que de uma
articulação da reprodução material e da mulher que as realiza.
reprodução social.
Reproduzem-se as condições de clas-
se e reproduzem-se as condições de domi-
Simplificando posições, nos depara-
nação. Por outro lado o quadro domésti-
mos com duas vertentes:
co tende a desenvolver um controle direto
sobre os indivíduos através da organiza-
N a primeira, a " r e p r o d u ç ã o é a pro-
ção social do espaço e através de sua pri-
dução renovada da relação entre o capital
vatização. Desta forma ela favorece a via-
e o trabalho, entre o capitalista e o operá-
bilização de formas de controle assumidas
r i o . " (7 : 422) A reprodução seria assim a
pelo próprio indivíduo. E se o espaço pró-
extensão do domínio da mercadoria.
prio da mulher é o espaço doméstico pri-
vado, ela vai assumir mais marcadamente
Numa outra ótica, se estabelece uma
a tarefa de sua reprodução com todas as
separação entre esfera da reprodução so-
suas implicações, inclusive a mais contra-
cial, incluindo-se nesta última a escola, a
ditória que é a reprodução de sua opres-
família, a polícia, a prisão e a esfera da
são.
produção de mercadorias. As duas esferas
funcionam paralelamente sem se articula-
rem. (2 : 124) Assim, a prática material e ideológica
da família reproduz os papéis sexuais e os
Consideremos que as formas históri- papéis sociais. No caso da mulher, seu pa-
cas das instituições que reproduzem a so- pel social, construído através de uma " l e i -
ciedade capitalista se modificam, às vezes tura biológica", aliena-a da função repro-
até mesmo deixam de existir. Isto aconte- dutora biológica e social. Mesmo quando
ce com a escola, a famlia, a democracia convertida em trabalhadora, dela se exige
parlamentar, a previdência social. A com- que continue sendo antes de tudo domés-
preensão destas formas não é deduzível de tica, consoladora e fantasma sexual. As
si próprias, nem da instância econômica. atribuições da função reprodutora estão
" O caráter contraditório e caótico que a em estado puro na empregada doméstica.
história apresenta é o resultado da apari- Nela é evidente que o processo da repro-
ção, do desenvolvimento, do modo de ar- dução biológica é a u t ô n o m o e que o pro-
ticulação de todos estes espaços de sociali- cesso de reprodução/reposição é também
z a ç ã o . " (2:126) um mecanismo para reproduzir a estrutu-
ra social.
Nossa preocupação é pensar a rela-
ção entre a esfera da p r o d u ç ã o e a esfera As atribuições da função reproduto-
da reprodução social, que se dá também ra significam manter o corpo e a afetivi-
através da família, e que marca a natureza dade, alienar-se no outro para que o outro
e o papel de cada família. Assim, a função sobreviva, colocar sua razão de ser no ex-
da reprodução social é investida de um terior de si própria para assegurar o fun-
conteúdo, enquanto ela reproduz relações cionamento da estrutura familiar e por
de classe. conseguinte da estrutura social. Esta é a
" m i s s ã o " da qual nos incumbiram nossas
Cada mulher adquire na sua família avós, nossas mães, a literatura, os mídia,
de origem as práticas educativas e as téc- a escola, a religião, a moralidade pública.
nicas de trabalho doméstico, bem como Por isso a liberação das mulheres passa
os conteúdos ideológicos. Assim, a rela- pela arqueologia deste papel de reprodu-
ção com o trabalho doméstico da dona de toras que se nos foi colado à pele.

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LOBO, E.S. — A questão da mulher na reprodução da força de trabalho. Perspectivas, São Paulo, 4:43-47, 1981.

LOBO, Elisabeth Souza. — The woman question in the work power reproduction. Perspectivas, São
Paulo, 4, 43-47, 1981.

ABSTRACT: Analysis of the relationship between the work power reproduction and the sexual ro-
les. The forms of the analysis passes from the woman as reproducer in the economic sphere to her role
in the social reproduction.

KEY-WORDS: Reproduction; work power; woman; housework; social relationship of produc-


tion; sexual roles.

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