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Coletânea de Ensinamentos

Compilação de Textos e Práticas de Grandes Mestres

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ÍNDICE
1. O Que é Mente? | Kalu Rinpoche| 4
2. Como meditar? | Sakyong Mipham Rinpoche | 13
3. Bodhichitta, a Mente da Iluminação | Kyabe Shechen Rabjam Rinpoche | 16
4. O voto de Bodisatva | S. E.Thrangu Rinpoche | 18
5. Os Quatro Pensamentos Ilimitados | Jigme Khyentse Rinpoche | 21
6. Os Dois Extremos e Além dos Dois Extremos | Thinley Norbu Rinpoche | 26
7. Os Quatros Selos do Budismo | Dzongsar Khyentse Rinpoche | 31
8. Fenômenos Pessoais e Gerais | Thinley Norbu Rinpoche | 37
9. Ignorância | Tenzin Wangyal Rinpoche | 42
10. O Caminho Excelente para Iluminação | Dilgo Khyentse Rinpoche | 44
11. Vendo a Vacuidade Diretamente | Geshe Lobsang Chünzin | 50
12. Como Somos Fisgados e Como se Soltar | Pema Chöndrön | 56
13. Guru Ioga | S.S. Penor Rinpoche | 60
14. Guia para Meditação | Kalu Rinpoche | 71
15. Prática na Vida Cotidina | Lama Padma Samten | 74
16. Superando Obstáculos na Meditação | Lama Padma Samten | 84
17. Os 5 Skandas | Lama Norlha | 92
18. Distorção | Dzongsar Khyentse Rinpoche |103
19. Extraindo a Essência Vital | Dudjom RInpoche | 109
20. Ati: A Essência Mais Íntima | Jigme Lingpa | 118
21. Jóia-Coração dos Afortunados | Dudjom Rinpoche | 121
22. Iluminação da Sabedoria Primordial | Dudjom Rinpoche | 124
23. Roteiro 21 Itens | Lama Padma Samten | 137
24. Uma Introdução ao Bardo | Dudjom Rinpoche |145
25. Prajnaparamita Comentado| Lama Padma Samten |151
26. Buscando Ponto Último | Lama Padma Samten | 155
27. Quatro Pensamentos que Transformam a Mente | Lama Padma Samten | 159
28. Canções de Milarepa | 178
29. De Longchenpa | 187
30. Hábitos | Thinley Norbu Rinpoche | 188
31. Os Quatro Samayas | Thinley Norbu Rinpoche | 190
32. Lidando com a Negatividade | Chögyam Trungpa Rinpoche | 191
33. As Cinco Famílias Búdicas | Chögyam Trungpa Rinpoche | 195

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O que é mente?
Kalu Rinpoche

[Kalu Rinpoche (1904-1989) nasceu no Tibet oriental e foi reconhecido como o tulku de Jamgön
Kongtrül, um dos principais mestres do século XIX e um dos fundadores do movimento não-sec-
tarista (Rime). Após a invasão chinesa, ele se estabeleceu em Sonada, na Índia, onde fundou
um monastério. Durante suas viagens, fundou cerca de cem centros de Dharma e por volta de
vinte centros de retiro no Ocidente.Ele faleceu em 1989, e seu tulku, reconhecido por S.S. o
Dalai Lama e pelo Tai Situpa, nasceu na Índia em 17 de setembro de 1990.]

APESAR DE todos nós termos a sensação de possuir uma mente e de existir, nossa compreensão
a respeito de nossa mente e de como existimos geralmente é vaga e confusa. Instantaneamen-
te dizemos, "Eu tenho uma mente ou uma consciência", "Eu sou", "Eu existo"; nos identificamos
com um "eu", ao qual atribuímos qualidades, mas não conhecemos a natureza desta mente, nem
deste "eu". Não sabemos do que são feitos, como funcionam, "o que" ou "quem" realmente são.

O paradoxo fundamental

Ao procurar a mente, inicialmente o mais importante é reconhecer a natureza da mente ao


questionar, no nível mais profundo, o que realmente somos. Aqueles que realmente examinaram
suas mentes e refletiram sobre o que ela é são realmente raros, e para aqueles que tentam, a
procura prova ser difícil. Ao buscarmos e observarmos o que nossa mente é, muitas vezes não a
cercamos verdadeiramente; não chegamos realmente a uma compreensão sobre ela.

Sem dúvida, uma perspectiva científica pode oferecer muitas respostas para uma definição de
"mente", mas não é o tipo de conhecimento ao qual estamos nos referindo aqui. A questão bá-
sica é que não possível que a mente conheça a si mesma porque aquele que procura, o sujeito,
é a própria mente, e o objeto que ele procura examinar também é a mente. Há um paradoxo
aqui: posso procurar por mim em todos os lugares, procurar por todo o mundo, sem nunca me
encontrar, porque eu não sou o que procuro.

O problema é o mesmo ao tentar enxergar o nosso próprio rosto: nossos olhos estão muito pró-
ximos do rosto, mas não podem ver muita coisa dele. Não reconhecemos a nossa mente simples-
mente porque ela está muito próxima. Um provérbio do Dharma diz, "O olho não pode ver a sua
própria pupila". Igualmente, nossa própria mente não tem a capacidade de ver a si mesma; ela
está próxima, tão íntima, que não podemos discerni-la.

Precisamos saber como mudar as perspectivas. Para enxergar nosso rosto, usamos um espelho.
Para estudar nossa própria mente, precisamos de um método que funcione como um espelho,
para permitir que reconheçamos a mente. Este método é o Dharma, que é transmitido a nós por
um guia espiritual.

É na relação com este ensinamento e com este amigo, ou guia, que a mente será gradualmente
capaz de despertar para a sua verdadeira natureza e de finalmente ir além do paradoxo inicial,
realizando um outro tipo de conhecimento. Esta descoberta é efetuada através de várias práti-
cas conhecidas como meditação.

Em busca da mente

A mente é uma coisa estranha. Os asiáticos tradicionalmente a situam no centro do corpo, no


nível do coração. Os ocidentais entendem que a mente está localizada na cabeça, no cérebro.
Apesar dos diferentes pontos de vistas serem justificados, estas designações são inadequadas.
Basicamente, a mente não está mais no coração do que no cérebro. A mente habita o corpo,

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mas é apenas uma ilusão achar que a mente possa ser localizada neste ou naquele lugar. Essen-
cialmente, não podemos dizer que a mente é encontrada em um lugar particular na pessoa, ou
em qualquer outro lugar.

Buscar a mente não é fácil porque, além do paradoxo do conhecedor não poder conhecer a si
mesmo, sua natureza essencial é indescritível.Não tem forma, nem cor ou qualquer característi-
ca que poderia permitirque concluíssemos, "É isso".

Porém, cada um de nós desenvolve uma experiência da natureza de nossamente ao nos pergun-
tarmos o que o observador está fazendo: o observador, o conhecedor, o sujeito que experiencia
os pensamentos e as diferentes sensações. Onde exatamente ele pode se encontrado? O que
ele é? É uma questão de observar nossa própria mente. Onde ele está? Quem sou eu? O que sou
eu? O corpo e a mente são o mesmo ou são diferentes? Minhas experiências se desdobram den-
tro ou fora de minha mente? A mente e seus pensamentos são distintos ou são a mesma coisa?
Se sim, como? Se não, como? A busca é levada na meditação, em conexão próxima com um guia
qualificado que pode nos dizer o que está correto e o que está errado. O processo pode demorar
muitos meses, ou até mesmo muitos anos.

À medida que esta busca se aprofunda, o mestre espiritual progressivamente nos direciona para
a experiência da verdadeira natureza da mente. É difícil compreender e realizar porque não é
algo que possa ser compreendido através de conceitos ou representações. O principal estudo da
mente não pode se feito através da teoria; precisamos da experiência prática da meditação para
penetrar em sua verdadeira natureza.

Na prática de meditação, há uma abordagem dupla: podemos dizer que há uma abordagem
analítica e outra contemplativa. A primeira é feita de questões como aquelas que pergunta-
mos anteriormente. Se levarmos este tipo de busca persistentemente, enquanto somos guiados
competentemente,uma compreensão definitiva se desenvolve.

Na segunda abordagem, a mente simplesmente descansa em sua própria lucidez, sem forçar ou
usar artifícios. Esta prática vai além de todas as formas anteriores de análise, ao nos fazer dei-
xar a esfera dos conceitos e de nos abrir para uma experiência imediata. No final destas medita-
ções, descobrimos a vacuidade essencial da mente. Isto é, a mente é vazia de determinações e
características, tais como forma, cor ou aspecto, e sua natureza está além das representações,
conceitos, nomes e formas. Para tentar invocar o reconhecimento da vacuidade, poderíamos
compará-lo à "indeterminabilidade" do espaço: a mente é vazia como o espaço. Mas isto é ape-
nas como imagem e, como veremos, a mente não é apenas vazia.

Por enquanto, gostaria de enfatizar como é importante o conhecimento da mente, assim como
os frutos deste conhecimento. A mente é o que somos. É ela que experiencia a felicidade e o
sofrimento. A mente é o que experiencia diferentes pensamentos e sensações; é ela que está
sujeita às emoções agradáveis e desagradáveis, é ela que experiencia o desejo, a aversão etc.
Uma compreensão real da natureza é libertadora porque nos desengaja de todas as ilusões e,
conseqüentemente, de toda fonte de sofrimentos, medos e dificuldades que constituem nossa
vida diária.

Por exemplo, se tivermos a ilusão de que uma pessoa má é um ajudante, ele poderá nos enga-
nar, nos abusar e nos causar o mal; mas assim que o reconhecemos como sendo mal, não sere-
mos mais ingênuos; ao desmascará-lo, podemos evitar cair como vítimas de seus maus atos.
Aqui, a pessoa má é a ignorância do que realmente somos, ou mais precisamente, a ilusão do
ego, do eu. O conhecimento que desmascara isto é a consciência da natureza da mente; ela nos
libera das ilusões e do conhecimento doloroso. Esta compreensão da mente é o fundamento
do Buddhadharma e de todos os seus ensinamentos.

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Iluminação e ilusão

A mente tem dois rostos, duas facetas, que são dois aspectos da realidade. Estes aspectos são a
iluminação e a ilusão.

A iluminação é o estado da mente pura. É o conhecimento não-dualista,chamado de sabedoria


primordial. Suas experiências são autênticas, isto é, elas são sem ilusão. A mente pura é livre e
dotada de numerosas qualidades.

A ilusão é o estado da mente impura. Seu modo de conhecimento é dualista; é a consciência


condicionada. Suas experiências estão maculadas pelas ilusões. A mente impura é condicionada
e dotada de muito sofrimento.

Os seres comuns experienciam este estado de mente impura e deludida como sendo o seu esta-
do habitual. A mente pura, iluminada, é um estado no qual a mente realiza sua própria nature-
za, livre das condições habituais e do sofrimento associado a elas. Este é o estado iluminado do
buddha.

Quando nossa mente está em seu estado impuro, deludido, somos seres comuns que se movem
através dos diferentes reinos da consciência condicionada. As transmigrações da mente dentro
destes reinos fazem seus giros indeterminados na existência condicionada, cíclica, ou ciclo de
vidas — samsara em sânscrito.

Quando é purificada de toda ilusão samsárica, a mente não mais transmigra. Este é o estado
iluminado de um buddha, é a experiência da pureza essencial de nossa própria mente, de nossa
natureza búdica. Todos os seres, quaisquer que sejam, têm a natureza búdica. Esta é a razão
pela qual todos podem realizar a natureza búdica. Como cada um de nós possui a natureza bú-
dica, é possível atingir a iluminação. Se já não a tivéssemos, nunca poderíamos ser capazes de
realizá-la.

Então, o estado comum e o estado iluminado são distinguidos apenas pela impureza ou pureza
da mente, pela presença ou ausência de ilusões. Nossa mente presente já tem as qualidades do
estado búdico; essas qualidades permanecem em nossa mente, elas são a natureza pura da men-
te. Infelizmente, nossas qualidades iluminadas são invisíveis para nós porque estão mascaradas
por diferentes mortalhas, véus e outros tipos de mácula.

Buddha Shakyamuni disse, "A natureza búdica está presente em todos os seres, porém escondida
por ilusões adventícias; quanto purificadas, eles são verdadeiramente o Buddha."

A distância entre o estado comum e o estado iluminado é o que separa a ignorância do conheci-
mento desta natureza pura da mente. No estado comum, é desconhecida. No estado iluminado,
é totalmente realizada. A situação na qual a mente é ignorante de seu estado real é o que cha-
mamos de ignorância fundamental. Ao realizar sua profunda natureza, a mente é liberada desta
ignorância, das ilusões e condicionamentos que a mente cria, e então entra no incondicionado
estado iluminado, chamado de liberação.

Todo o Buddhadharma e suas práticas envolvem a purificação, tirar as ilusões da mente, e proce-
der de um estado maculado para um imaculado, da ilusão para a iluminação.

A natureza da mente

A verdadeira experiência da natureza essencial da mente está além das palavras. Querer descre-
vê-la é como a situação de um mudo que quer descrever o sabor de um doce em sua boca: ele

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não tem um meio adequado de se exprimir. Mesmo assim, gostaria de oferecer algumas
idéias que aludem a esta experiência.

Podemos pensar que a natureza da mente pura tem três aspectos essenciais, complementares e
simultâneos: a abertura, a claridade e a sensitividade.

A abertura

A mente é o que pensa, "Eu sou", "Eu quero", "Eu não quero"; é o pensador, o observador, o sujei-
to de todas as experiências. Eu sou a mente. De um ponto de vista, esta mente existe, já que eu
sou e eu tenho a capacidade de ação. Se eu quero ver, eu posso ver; se eu quero ouvir, eu posso
ouvir; se eu decido fazer algo com minhas mãos, eu posso comandar meu corpo, e assim por
diante. Neste sentido, a mente e suas faculdades parecem existir.

Mas se buscarmos por ela, não podemos encontrar qualquer parte dela em nós, nem em nossa
cabeça, em nosso corpo ou em qualquer outro lugar. Então, desta outra perspectiva, ela parece
não existir. Portanto, de outro lado a mente parece existir, mas por outro lado não é algo que
verdadeiramente existe.

Por mais exaustivas que sejam nossas investigações, nunca seremos capazes de encontrar
quaisquer características formais da mente: não tem dimensão, nem cor, forma ou qualquer
qualidade tangível. É neste sentido que ela é chamada de aberta, porque é essencialmente
indeterminada, desqualificada, além do conceito e, assim, comparável ao espaço. Esta natureza
indefinível é a abertura que nos faz experienciar a mente como um "Eu" que possui as caracterís-
ticas que habitualmente atribuímos a nós mesmos.

Mas devemos ter cuidado aqui! Dizer que a mente é aberta como o espaço não é reduzi-la a algo
não-existente, no sentido de ser não-funcional. Como o espaço, a mente pura não pode ser loca-
lizada, mas é onipresente e permeia tudo; ela abraça e permeia todas as coisas. Acima de tudo,
ela está além da mudança e sua natureza aberta é indescritível e atemporal.

A claridade

Apesar da mente ser essencialmente vazia no sentido explicado acima, ela não é apenas aberta
ou vazia, porque se fosse, a mente seria inerte e não iria experienciar ou conhecer qualquer
coisa, nem sensações, nem alegria ou sofrimento. A mente não é apenas vazia — ela possui uma
segunda qualidade essencial, que é a sua capacidade de experiências, de cognição. Esta quali-
dade dinâmica é chamada de claridade. Ela é tanto a lucidez da inteligência da mente quanto a
luminosidade destas experiências.

Para melhorar nossa compreensão da claridade, podemos comparar a abertura da mente ao es-
paço da sala onde estamos. Este espaço sem forma permite que aconteçam nossas experiências;
ele contém a experiência em sua totalidade. É onde a nossa experiência toma o seu lugar. A
claridade, então, seria a luz que ilumina a sala e que nos permite reconhecer diferentes coisas.
Se houvesse apenas o inerte espaço vazio, não haveria possibilidade de haver consciência. Isto é
apenas um exemplo, porque a claridade da mente não é como a luz comum do sol, da lua ou da
eletricidade. É a claridade mente que faz possível toda cognição e experiência.

A natureza aberta e luminosa da mente é o que chamamos de "clara luz"; é uma claridade aber-
ta que, no nível da mente pura, está consciente em e por si mesma; é por isso que a chamamos
de cognição autoluminosa ou claridade.

Não há um exemplo verdadeiramente adequado para ilustrar esta claridade no nível puro, mas

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no nível comum, que podemos relatar mais facilmente, podemos ter uma idéia de alguns de seus
aspectos, ao compreender uma das manifestações da mente — o estado do sonho. Vamos dizer
que é uma noite escura, e que nesta escuridão estamos sonhando, ou experienciando um mundo
do sonho. O espaço mental onde o sonho acontece, independente do lugar físico onde estamos,
poderia ser comparado à abertura da mente, enquanto sua capacidade de experienciar, apesar
da escuridão externa, corresponde à sua claridade. Esta lucidez abarca todo conhecimento da
mente e é a claridade inerente nestas experiências. É também a lucidez do que ou quem as
experiencia; o conhecedor e o conhecido, a lucidez e a claridade, nada mais são do que duas
facetas da mesma qualidade. A inteligência que experiencia o sonho é a lucidez, e a claridade
presente em suas experiências é a sua luminosidade; mas no nível não-dual da mente pura, é
apenas uma e mesma qualidade, a "claridade", chamada de prabhasvara em sânscrito, ou de
selwa em tibetano. Este exemplo pode ser útil para o entendimento, mas tenha em mente que
isto é apenas uma ilustração, mostrando um nível manifestação particular da claridade em um
nível habitual. No exemplo,há uma diferença entre a lucidez o conhecedor e a luminosidade das
experiências do sujeito, porque o sonho é uma experiência dualista, diferenciada em termos de
sujeito e objeto, na qual a claridade se manifesta de uma vez, na consciência ou lucidez do su-
jeito e na luminosidade de seus objetos. De fato, o exemplo é limitado, pois fundamentalmente
não há dualidade nas mentes puras: é a mesma qualidade da claridade que é essencialmente
não-dual.

Sensitividade

Para uma descrição completa da mente pura, um terceiro aspecto deve ser adicionado às duas
primeiras qualidades já discutidas; é a sensitividade, ou desimpedimento. A claridade da mente
é a sua capacidade de experienciar; tudo pode surgir na mente, então suas possibilidades de
consciência ou inteligência são ilimitadas. O termo tibetano que designa esta qualidade literal-
mente significa "ausência de impedimento". Esta é a liberdade da mente experienciar sem
obstrução. No nível puro, estas experiências têm as qualidades da iluminação. No nível condi-
cionado, elas são as percepções da mente de cada coisa como sendo isto ou aquilo; ou seja, é a
habilidade de distinguir, perceber e conceber todas as coisas.

Voltando ao exemplo do sonho, a qualidade inerente de sensitividade da mente seria, por cau-
sa de sua abertura e claridade, a sua habilidade de experienciar a multiplicidade de aspectos
do sonho, tanto as percepções do sujeito sonhador quanto as experiências do mundo sonhado.
A claridade é o que permite surgir as experiências, enquanto a sensitividade é a totalidade de
todos os aspectos distintamente experienciados.

Esta sensitividade corresponde, no nível habitual e dualista, a todos os tipos de pensamentos e


emoções que surgem na mente e, no nível puro da mente de um buddha, à sabedoria ou quali-
dades iluminadas colocadas em prática para ajudar os seres.

Então, a mente pura pode ser compreendida assim: em essência, é aberta; em natureza, é cla-
ra; e em todos os seus aspectos, é uma sensitividade desimpedida. Estas três facetas, a abertu-
ra, a claridade e a sensitividade, não estão separadas, mas são concomitantes. Elas são as quali-
dades simultâneas e complementares da mente desperta.

No nível puro, estas qualidades são o estado de buddha; no nível impuro da ignorância e da
delusão, eles se tornam todos os estados da consciência condicionada, todas as experiências do
samsara. Mas não importa se a mente é iluminada ou deludida, nada há além dela, e ela
é essencialmente a mesma em todos os seres, humanos ou não-humanos. A natureza de buddha,
com todos os seus poderes e qualidades iluminadas, está presente em cada ser. Todas as qualida-
des do buddha estão em nossas mentes, porém veladas e obscurecidas, assim como uma vidraça
é naturalmente transparente e translúcida, mas fica opaca pela densa camada de sujeira.

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A purificação, ou remoção destas impurezas, permite que todas as qualidades iluminadas pre-
sentes na mente sejam reveladas. Realmente, nossa mente tem pouca liberdade e poucas quali-
dades positivas porque ela é condicionada pelo nosso karma, pelas marcas habituais do passado.
Pouco a pouco, porém, as práticas do Dharma e de meditação livram a mente e a desperta para
todas as qualidades de um buddha.

Uma breve meditação

Neste ponto, provavelmente ajudaria fazer uma curta prática experimental, uma meditação
para tentar melhorar nossa compreensão sobre tudo isso.

Sentando confortavelmente, vamos deixar a mente descansar em seu estado natural. Relaxamos
a nós mesmos, nossas tensões, e permanecemos sem tensão, sem qualquer intenção em particu-
lar, sem artifícios... Soltamos nossa mente e permitimos que ela fique aberta, como o espaço...
Espaçosa, a mente permanece clara e lúcida... Relaxada, solta, a mente permanece transparen-
te e luminosa... Não mantemos nossa mente encerrada em nós mesmos... Ela não está confina-
da em nossa cabeça, em nosso corpo, no ambiente ou em qualquer lugar. Relaxada, ela é vasta
como o espaço que abarca tudo... Ela abarca tudo, todo o mundo e todo o universo. Ela permeia
nosso mundo inteiro. Permanecemos descansados, relaxados, neste estado de abertura, ilimita-
do, totalmente lúcido e transparente.

A abertura e a transparência da mente, similares ao espaço infinito, são sinais do que temos
chamado de abertura. Sua consciência livre e clara é o que temos chamado de claridade.

Há também a sua sensitividade, que é a capacidade da mente experienciar tudo em uma desim-
pedida consciência de pessoas, de lugares e de todas as outras coisas. A mente pode conhecer
todas estas coisas e pode reconhecê-las distintamente.

Mais uma vez, sem orientar "a mente" — o sujeito-conhecedor — para fora nem para dentro, per-
manecemos como estivermos, à vontade e relaxados... Sem afundar num estado de indiferença
ou estagnação mental, nossa mente permanece alerta e vigilante... Neste estado, a mente é
aberta e desengajada. Isto é a abertura... Na consciência lúcida está a sua claridade... Todos os
aspectos que conhece, distinta e desimpedidamente, são a sua sensitividade.

Um obstáculo importante surge como resultado de habitualmente confinarmos a mente ao cor-


po, que percebemos como sendo o nosso corpo; nos identificamos com este corpo, nos fixamos
nele e nos encerramos nele. Para neutralizar isto, é importante relaxar toda tensão, toda in-
quietação. Tensa e inquieta, a mente fica presa. Estas tensões terminarão causando dores físicas
e de cabeça. Deixe a mente permanecer descansada em sua vastidão lúcida, aberta e relaxada.

Podemos começar a meditar deste modo, mas é fundamental continuar a prática sob a direção
de um guia qualificado, que nos conduzirá no caminho correto. Com a ajuda dele ou dela, pode-
mos realizar a vacuidade da mente, dos pensamentos e das emoções, o que é o melhor de todos
os métodos de nos livrarmos da delusão e do sofrimento. Reconhecer a natureza das emoções
negativas permite que elas sejam liberadas; é portanto essencial aprender a reconhecer sua va-
cuidade assim que elas surgirem. Se permanecermos ignorantes de sua natureza vazia, elas nos
carregarão em sua torrente, nos escravizando e subjugando. Elas têm controle sobre nós porque
atribuímos a elas uma realidade que, na verdade, elas não têm. Se realizarmos sua vacuidade,
então o seu poder alienador e o sofrimento que eles causam irão desaparecer.

Esta habilidade de reconhecer a natureza aberta e vazia da mente e de todas as suas produções,
projeções, pensamentos e emoções é a panacéia, o remédio universal que, em e por si mesmo,
cura toda delusão, toda emoção negativa e todo sofrimento.

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Nossa mente pode ser comparada a uma mão que está atada ou amarrada; neste caso, a mente
está presa pela representação de nosso "eu", "ego" ou "self", assim como pelos conceitos e fixa-
ções que pertencem a esta idéia. Pouco a pouco, a prática do Dharma elimina estas fixações e
conceitos auto-estimadores e, assim como uma mão desatada pode se abrir, a mente se abre e
ganha todos os tipos de possibilidades de atividade. Ela então descobre muitas qualidades e
habilidades, como a mão livre de suas amarras. As qualidades que são lentamente reveladas são
aquelas da iluminação, da mente pura.

Os véus da mente

Se não há uma diferença essencial entre a mente de um buddha e a nossa própria mente, por
que um buddha tem tantas qualidades atribuídas a ele, e nós não? A diferença é que em nossas
mentes a natureza de buddha está obscurecida por todos os tipos de cobertura.

No nível impuro — isso é, na ignorância — cada uma das três facetas da mente pura se torna um
dos elementos que constituem a experiência dualista. Para começar, a ignorância sobre a aber-
tura da mente conduz à uma concepção de um sujeito, de um "eu", de um observador; e a igno-
rância sobre a claridade essencial conduz à ignorância dos objetos exteriores. É assim que surge
a dicotomia sujeito-objeto, eu-outro.

Uma vez que os dois pólos da visão dualista tenham sido estabelecidos, vários relacionamentos
se desenvolvem entre eles, que por sua vez motivam diferentes atividades. Os estágios deste
processo são constituídos de quatro véus que mascaram a mente pura, a natureza de buddha.
Eles são: o véu da ignorância, o véu da tendência básica, o véu das aflições mentais e o véu do
karma. Eles são consecutivos e estão estruturados um após o outro.

O véu da ignorância

A ignorância sobre a verdadeira natureza da mente, isto é, o simples fato dela não reconhecer o
que é realmente, é chamada de ignorância fundamental. É a inabilidade básica da mente con-
dicionada perceber a si mesma. Podemos comparar a mente pura, que possui as três qualidades
essenciais, com as águas calmas e transparentes, nas quais tudo pode ser visto claramente. O
véu da ignorância é uma falta de inteligência, um tipo de estado nublado, assim como um vaso
opaco faz a água perder sua claridade transparente. Tal mente obscurecida perde a experiência
da abertura lúcida e se torna ignorante de sua natureza essencial.

Diz-se que a ignorância fundamental é inata, porque ela é inerente à nossa existência; nascemos
com ela. De fato, ela é o ponto de partida da dualidade, a raiz de todas as delusões e a fonte de
todo sofrimento.

O véu da tendência básica

A mente controlada pela ignorância se engaja em todas as delusões, entre as quais a mais bási-
ca, a raiz de todas as outras delusões, é o apego dualista em termos de sujeito e objeto.

Quando a mente não conhece a extensão de sua abertura, ao invés de experienciar sem centro
ou periferia, percebemos tudo através de um ponto central de referência. Este ponto, o centro
que se apropria de todas as experiências, é o observador, o ego-sujeito. É deste modo que a
mente, ignorante de sua abertura, produz a experiência delusória de um "eu".

Ao mesmo tempo, quando a natureza da claridade vai sem ser reconhecida, experienciamos uma
sensação de "outro" ao invés da qualidade autoconsciente da mente. Assim, o sujeito-ego distin-
gue coisas que se tornam a qualidade autoconsciente. Assim o sujeito-ego

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distingue coisas que se tornam objetos externos. Surge a dicotomia do sujeito e do objeto, do
"eu" e do outro. As "outras" coisas têm uma forma dual: as aparências do mundo externo e os
fenômenos duais.

Esta tendência da mente ser ignorante de sua natureza, e de perceber todas as situações de
modo dualista, é o véu da tendência básica. Desta perspectiva, este segundo véu pode ser cha-
mado de véu do apego dualista.

O véu das paixões

Como vimos, a mente ignorante de sua abertura e de sua claridade fica imersa na dualidade.
Então, a ignorância da sensitividade da mente dá surgimento a todos os relacionamentos que
existem entre os dois pólos da dicotomia sujeito-objeto. No nível puro, a sensitividade é a
imediação e a multiplicidade das qualidades iluminadas, mas na ignorância, estas qualidades
são substituídas pelas infinitas possibilidades relacionais dualistas. Na ignorância, começamos
tomando os objetos externos como sendo coisas reais. Então experienciamos atração aos objetos
agradáveis, aversão aos objetos desagradáveis e indiferença aos objetos que parecem neutros.
Se um objeto é agradável, queremos possuí-lo. Por outro lado, diante de objetos ou situações
desagradáveis, temos uma atitude de rejeição ou fuga. Finalmente, não nos relacionamos com
certos objetos ou situações por causa da indiferença ou estagnação mental.

Estes três tipos de relacionamentos — atração, aversão e indiferença — correspondem ao desejo,


ao ódio e à ignorância. Estes são os três venenos mentais primários, as três principais aflições
mentais que animam e condicionam a mente habitual.

Na base destes três tipos de relacionamento, outras numerosas aflições mentais ou emocionais
se multiplicam, notavelmente o orgulho, a ganância e a inveja. O orgulho surge deste "eu" que
nasce da ignorância; a ganância é uma extensão do apego desejoso; enquanto a inveja pro-
vém do ódio e da aversão. Assim, os três venenos primários se ramificam em seis paixões: ódio,
ganância, ignorância, apego desejoso, inveja e orgulho. Elas correspondem aos seis estados de
consciência característicos dos seis reinos da existência. Depois, eles são subdivididos de novo e
de novo, totalizando 84 mil tipos diferentes de paixões! Todos estes relacionamentos dualistas e
afligidos compõem o véu das paixões.

O véu do karma

As várias paixões conduzem a uma grande variedade das ações dualistas, que podem ser — em
termos de karma — positivos, negativos ou neutros. Elas condicionam a mente e a fazem nascer
em um dos seis reinos da existência condicionada. Isto é o que chamamos de véu da atividade
condicionada, ou véu do karma.

O Dharma: uma prática de desvelamento

Estes quatro véus que encobrem a mente fazem sermos seres comuns, lançados pelas delusões
nos seis reinos do samsara. Não podemos ser livres desta condição, exceto eliminando os véus e
desvelando a mente. A prática do Dharma oferece numerosos métodos que permitem que estas
impurezas caiam pouco a pouco, assim revelando a jóia da mente pura.

A natureza pura da mente pode ser comparada a uma bola de cristal e, os quatro véus, a quatro
pedaços de pano que a encobrem e escondem mais e mais. De acordo com uma outra imagem,
estes véus podem ser comparados às camadas de nuvens que encobrem o céu da mente. Do mes-
mo que as nuvens obscurecem o céu, os véus mascaram o espaço aberto, assim como a claridade
de sua lucidez. A prática do Dharma, e primariamente a meditação, gradualmente removem

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estes diferentes véus, do mais grosseiro ao mais sutil.

Quando todos estes véus ou coberturas são removidos, há um desvelamento completo, um es-
tado de purificação chamado de sang em tibetano. O desabrochamento de todos os aspectos do
espaço e da luz, revelados por esta purificação, é descrito pelo termo gye. Estas duas sílabas,
sang gye, que literalmente significam "pureza e desabrochamento perfeitos" ou "completamente
puro e totalmente desabrochado", juntas formam a palavra tibetana para buddha. O estado de
buddha é a manifestação das qualidades inerentes à mente, uma vez que ela tenha sido purifi-
cada dos véus que a obscurecem.

O desvelamento, que revela as puras qualidades inerentes da mente, marca todo o progresso
sobre o caminho da prática do Dharma.

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Como Meditar?
Sakyong Mipham Rinpoche

"A prática da meditação consciente e com atenção plena é comum a todas as tradições budistas.
Além disso, é comum - inerente - a todos os seres humanos.

NA MEDITAÇÃO estamos continuamente descobrindo quem e o quê somos. Isso poderia ser um
tanto assustador - ou tremendamente aborrecido; mas, após algum tempo, tudo isso deixa de
acontecer: entramos num tipo de ritmo natural e começamos a descobrir nossa mente e nosso
coração básicos.

Freqüentemente pensamos acerca da meditação como algum tipo de atividade incomum, sa-
grada ou espiritual. À medida em que nos dedicamos à prática, essa é uma das crenças básicas
que tentamos superar. O ponto é que o meditar é algo absolutamente normal: é a qualidade de
atenção plena presente em tudo que fazemos.

A principal descoberta do Buda foi que ele podia ser ele mesmo - cem por cento, totalmente.
Ele não inventou a meditação; não havia nada em particular a ser inventado. O Buda, 'o des-
perto', acordou e percebeu que ele não deveria tentar ser nada além daquilo que era. Assim, o
ensinamento completo do budismo é como redescobrir quem somos.

Esse é um princípio bastante direto, mas nós continuamente nos distraímos quanto a nos ache-
garmos a nosso estado natural, nosso ser natural. No decorrer do dia tudo parece impulsionar-
nos para longe da atenção plena natural, para distante do nosso foco. Vivemos muito assusta-
dos, ou tímidos, ou muito orgulhosos, ou simplesmente excessivamente malucos para sermos
quem somos.

Isto é o que chamamos a viagem ou a trilha: a contínua tentativa de reconhecer que podemos
verdadeiramente relaxar e ser quem somos. Assim, a pratica da meditação começa com uma
simplificação geral de tudo. Sentamo-nos na almofada, seguimos nossa respiração e observamos
nossos pensamentos. Simplificamos nossa situação como um todo.

Meditação plenamente atenta e consciente, meditação sentada, é a fundação dessa viagem


especial. A menos que sejamos capazes de lidar com nosso corpo e mente de uma maneira muito
simples, é impossível pensar em práticas mais avançadas. A maneira como o próprio Buda, de-
pois de ter efetuado todos os tipos de práticas, tornou-se o Buda, foi simplesmente sentando.
Ele sentou-se sob uma árvore e ficou quieto. Praticou, exatamente como estamos praticando.

O que estamos fazendo? Estamos domando nossas mentes. Estamos tentando superar todos os ti-
pos de ansiedades e agitação, todos os tipos de padrões habituais de pensamentos, de tal forma
a sermos capazes de nos sentarmos em nossa própria companhia. A vida é difícil, é possível que
tenhamos responsabilidades tremendas, mas o estranho nesse negócio, a lógica torcida, é que
a maneira como nos relacionamos com o fluxo básico de nossas vidas é sentarmo-nos completa-
mente imóveis. Poderia parecer mais lógico apressar-nos - mas aqui nós estamos reduzindo tudo
a um nível muito simples.

Como domamos a mente? Através da técnica da atenção plena. Muito simplesmente, atenção
plena consiste em dar uma atenção completa ao detalhe. Nós estamos completamente absortos
na teia da vida, a teia do momento. Percebemos que nossa vida é feita desses momentos e que
nós somos incapazes de lidar com mais do que um só momento de cada vez. Mesmo apesar de
termos memórias relacionadas ao passado e idéias acerca do futuro, é a situação presente que
estamos experimentando.

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Desse modo somos capazes de experimentar nossa vida plenamente. Poderíamos sentir que
pensar sobre o passado ou sobre o futuro torna nossa vida mais rica - mas é por não prestarmos
atenção à situação imediata que nós acabamos por verdadeiramente perder nossas vidas. Não há
nada que possamos fazer com relação ao passado, apenas podemos revisitá-lo incessantemente,
e o futuro nos é completamente desconhecido.

Assim, a prática da atenção plena é a prática de se estar vivo. Quando discorremos sobre téc-
nicas meditativas, estamos falando sobre técnicas de vida. Não estamos falando sobre alguma
coisa que é distinta, separada de nós. Ao falarmos de estarmos atentos e de viver com atenção
plena, estamos falando sobre a prática da espontaneidade.

É importante compreender que não estamos falando acerca de tentar obter algum tipo de nível
ou estado mental mais alto. Não queremos dizer que nossa situação imediata é sem valor. O que
estamos dizendo é que a situação presente está totalmente disponível e íntegra, e que podere-
mos perceber isso por intermédio da prática da atenção plena.

Nesse ponto podemos passar a discutir sobre a forma em si da prática. Primeiramente, é impor-
tante o modo como nos relacionamos com nosso espaço e a almofada sobre a qual praticare-
mos. Devemos nos relacionar com o local sobre o qual nos sentamos como o centro do mundo, o
centro do universo. É onde estamos proclamando nossa sanidade, e ao nos sentarmos a almofada
tem que ganhar os ares de um trono.

Ao sentarmos, o fazemos com um certo tipo de orgulho e dignidade. Nossas pernas se cruzam,
os ombros relaxam. Temos uma noção do que está acima, uma noção de que alguma coisa nos
puxa para cima - ao mesmo tempo em que também temos um sentido de chão. Os braços de-
vem repousar confortavelmente sobre as coxas. Aqueles para quem for impossível sentar numa
almofada, podem usar uma cadeira. O mais importante é desfrutar de algum conforto. O queixo
se volta ligeiramente para dentro, o olhar está suavemente focado para baixo, para cerca de
um metro a um metro e meio adiante, e a boca deve se abrir ligeiramente. O sentimento básico
é de conforto, dignidade e confiança. Caso você sinta que necessita mover-se, faça-o, apenas
altere sua postura delicadamente. Assim devemos proceder em relação ao corpo.

E então o que se segue - que é uma parte verdadeiramente simples - é o modo de nos relacio-
narmos com a mente. A técnica básica é que comecemos a observar nossa respiração, ter uma
noção de nossa respiração. A respiração é o que estamos usando como base de nossa técnica de
atenção total; ela nos traz de volta ao momento, de volta à situação presente. A respiração é
alguma coisa que é constante - se assim não for, é tarde demais.

Colocamos a ênfase no expirar. Não acentuamos ou alteramos a respiração em absoluto, apenas


a observamos. Assim percebemos nossa respiração saindo, e ao inspirarmos existe apenas um
oco momentâneo, um espaço. Existem muitos tipos de técnicas meditativas e esta verdadeira-
mente é a mais avançada delas. Estamos aprendendo a como focalizar nossa respiração, e con-
comitantemente concedendo algum tipo de espacialidade à técnica.

Então tomamos consciência de que, apesar de estarmos fazendo alguma coisa que é extrema-
mente simples, nós temos um número gigantesco de idéias, pensamentos e conceitos - sobre a
vida e sobre a prática em si. E o modo como lidamos com todos esses pensamentos é simples-
mente colocando um rótulo em cada um. Apenas registramos o fato de que estamos pensando, e
voltamos a observar nossa respiração.

Assim, se cogitarmos sobre o que é que vamos fazer do resto de nossas vidas, apenas rotula-
remos isso de 'pensar'. Se considerarmos o que é que vamos fazer de almoço, rotularemos isso
também de 'pensar'. Tudo o que surgir será reconhecido com gentileza - e dispensado.

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Não existem exceções para esta técnica; não existem bons e maus pensamentos. Se você esti-
ver considerando o quão magnífico é o meditar, isso também é 'pensar'; quão grande foi o Buda,
ainda é 'pensar'; se sentir ímpetos de assassinar a pessoa a seu lado, a isso também você dará o
rótulo 'pensar'. Não importa para qual extremo você vá, tudo é 'pensar' - e, então, voltar a ob-
servar sua respiração.

Face a todos esses pensamentos, é difícil conservar-se no momento, não ser desencaminhado.
Nossa vida criou uma barragem de diferentes tempestades, elementos e emoções que estão ten-
tando nos derrubar, nos desestabilizar. Todo o tipo de coisas aparece, mas tudo recebe o rótulo
de 'pensamento' - e não nos deixamos levar. Isto é conhecido por 'mantendo nosso assento'; é,
simplesmente, o modo de lidarmos com nós mesmos.

A idéia de 'conservar nosso assento' continua quando deixamos a sala de meditação e damos
prosseguimento a nossas vidas. Mantemos nossa dignidade e humor e a mesma leveza de toque
que usamos no lidar com nossos pensamentos. 'Manter-se no assento' não significa que somos rí-
gidos e que estamos tentando virar rocha; a idéia total está em aprender a ser flexível. O modo
como lidamos com nós mesmos - e com nossos pensamentos - é o mesmo modo de lidarmos com
o mundo.

Quando começamos a meditar, a primeira coisa que constatamos é o quão selvagem as coisas
são - quão selvagem nossa mente é, quão selvagem é nossa vida. Mas uma vez que comecemos
a ter a qualidade de sermos domados, quando passamos a poder sentar-nos em nossa própria
companhia, percebemos que existe uma imensa riqueza de possibilidades que jaz diante de nós.
Meditar é como olhar para o nosso próprio quintal, para o que realmente temos - e descobrir a
riqueza que já existe. A descoberta dessa riqueza é um processo de momento-a-momento e, à
medida que continuamos com a prática, nossa consciência vai se tornando cada vez mais aguda.

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Bodhichitta, a Mente da Iluminação
Kyabje Shechen Rabjam Rinpoche

NESTE evento, seria útil retornar à meditação sobre a verdade absoluta, para dissolver a solidez
que atribuímos aos fenômenos.Alternando assim os períodos de meditação sobre a verdade abso-
luta com o desenvolvimento das qualidades altruístas - baseadas na verdade relativa - e combi-
nando estas duas verdades - vistas como inseparáveis - podemos avançar sem obstáculos sobre o
caminho.

Para atingir a realização destes dois aspectos da Bodhichitta, é necessário respeitar as regras
da viagem. Nas palavras do Buddha, "Abandone as más ações, pratique bem a virtude, dome sua
mente: este é o ensinamento do Buddha". É importante compreender o que se quer dizer como
ações positivas e negativas. Não significa algum conceito abstrato de bem e mal definidos como
tal, independente de qualquer resultado externo. Um ato positivo produz felicidade, serenida-
de, para si mesmo e para os outros, enquanto um ato negativo produz sofrimento. Este definição
é extremamente prática; é baseada sobre resultados. Conhecer os mecanismos da causa e efeito
que conduzem à felicidade e ao sofrimento é um dos pontos fundamentais do budismo. Além
disso, já que a origem de cada ato ou palavra, positivo ou negativo, está em um pensamento, a
primeira coisa a se fazer é ter maestria sobre a mente.

Para nos abrirmos a este estado de mente altruísta, devemos antes de tudo considerar que o
bem-estar dos outros é tão importante quanto o nosso; assim, pouco a pouco, o bem-estar dos
outros torna-se mais importante do que o nosso. Por este motivo, podemos usar uma prática
extremamente simples e efetiva, aliada ao ritmo de nossa respiração. Ao expirar, enviamos os
todos os atos positivos e qualidades que adquirimos a todos os seres. Ao inspirar,pensamos que
estamos assumindo todos os seus sofrimentos e suas causas.

É claro que não é uma questão de efetivamente sofrer no lugar dos outros. Porém, esta prática
é essencial se quisermos nos abrir aos outros, porque ela nos dá grande coragem e força. Con-
frontados com uma situação difícil, doença, sofrimento físico ou mental, devemos expressar
o desejo, "Devido às dificuldades pelas quais estou passando agora, possam todas aquelas difi-
culdades experienciadas pelos outros - talvez maiores que as minhas - ser exauridas. Possam as
minhas dificuldades ser um resgate pelas dos outros." Graças a essa atitude de altruísmo, o sofri-
mento não tem mais o mesmo efeito sobre nós, tornando-se mais leve e mais fácil de se lidar, e
sentimos uma grande coragem.

Por outro lado, se tudo está indo bem, se estamos com boa saúde e em paz, é importante não
desfrutar desta situação de um modo egoísta. Ofereça-a a todos os seres, desejando que todos
desfrutem da mesma paz como nós. Então, este estado de paz assumirá uma dimensão muito
mais vasta.

Este processo de troca não deve ser limitado aos aspectos manifestos da felicidade e do sofri-
mento; deve ser estendido às suas causas, às emoções perturbadoras, tais como o ódio, o de-
sejo, a inveja, o orgulho e a falta de discernimento, ou ignorância. Então, quando quaisquer
destas emoções nascer em nossa mente, devemos lembrar que é não apenas a causa de nosso
próprio sofrimento,mas também do sofrimento de um grande número de seres. Pense o seguin-
te: "Possam todas as emoções similares, que preenchem a mente dos seres, ser exauridas graças
à minha."

Treinando-nos deste modo, progressivamente adquirimos grande força mental, nos tornamos
menos vulneráveis às emoções e nos livramos da ansiedade. Quaisquer sejam as circunstâncias
externas ou emoções que surjam em nossa mente, estamos assim certos de sermos capazes de
dissolvê-las. Mesmo se surgir um grande número delas, podemos ser como um bravo guerreiro,

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apropriando-se sem medo do campo de batalha.

Em resumo, o modo pelo qual as circunstâncias externas nos afetam não depende nem de sua
natureza nem de sua intensidade; depende unicamente de nós mesmos. Circunstâncias idênticas
afetam diferentes pessoas de diversos modos diferentes, dependendo de sua solidez ou
vulnerabilidade.

Alguém que desenvolveu este tipo de coragem altruísta será muito pouco afetado pelas diferen-
ças externas que perturbariam qualquer outra pessoa, destruindo completamente sua paz inte-
rior. Então, não é o mundo que devemos mudar, mas sim a nossa mente.

O que é verdade para o sofrimento também é verdade para a felicidade. Não podemos esperar
que a felicidade venha de fatores externos, como bens materiais, glória, fama ou poder. Todos
sabemos que as pessoas mais ricas e poderosas são muitas vezes as mais atormentadas. Então,
não é cercando a si mesmo com condições externas aparentemente favoráveis que nós podere-
mos atingir a serenidade real. Essa paz e felicidade de vir de dentro, e nós devemos construí-las
e desenvolve-las. Uma vez que tenhamos atingido este estado de paz, nada e ninguém poderão
tirá-lo novamente de nós.

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O Voto de Bodisatva
S.E. Thrangu Rinpoche

NAROPA predisse ao seu aluno Marpa que no futuro os ensinamentos do Dharma se tornariam
cada vez mais profundos e os praticantes cada vez maiores. A prova desta previsão pode ser vis-
ta na transmissão dos ensinamentos de Marpa para Milarepa e deste para Gampopa. Gampopa
integrou as duas tradições, aquela das Seis Yogas de Naropa, incluindo o Mahamudra, e o sistema
Kadam de Atisha. Depois o Terceiro Karmapa, Rangjung Dorje, que era realizado em ambos os
sistemas da Grande Perfeição (Dzogchen) e do Mahamudra, integrou estas duas tradições. Foi
desta maneira que a profundidade dos ensinamentos aumentou. A tradição do Mahamudra (os
ensinamentos mais diretos sobre a natureza da mente) que nós estamos praticando agora tem
a linhagem de instrução de Atisha na tomada de refúgio, bodhichita e os dois pontos do treina-
mento do bodhisatva também integrado com os sistemas de Metripa e Nagarjuna.

O desenvolvimento da bodhichita é essencial. Todos os Budas e Bodhisatvas atingiram a realiza-


ção através de primeiro terem desenvolvido a bodhichita eles mesmos. Devido a realização do
estágio de bodhisatva vir de se cultivar a bodhichita, nós precisamos seguir

o mesmo sistema de desenvolver a bodhichitta em nós mesmos.

O tópico fundamental da bodhichita é na verdade um método de pensar, a essência do qual é


desenvolver amor e compaixão ilimitados. Não se trata do amor e compaixão ordinários que nós
temos por aqueles que são próximos a nós. Ao invés disso, é o desenvolvimento de uma atitude
de querer remover o sofrimento e trazer felicidade para todos os seres sencientes. Esse amor e
compaixão que é vasto, ilimitado e profundo.

De uma maneira ordinária, o desenvolvimente do amor e da compaixão ocorre quando um indi-


víduo vê alguém sofrendo. Quando um indivíduo desenvolve o desejo de liberar aquele ser da
experiência do sofrimento, isto é compaixão. Sabendo que todos os seres querem obter felici-
dade, e querer proporcionar a eles felicidade, isso é amor.

O desenvolvimento do amor e da compaixão por todos os seres sencientes é necessário porque


todos temos uma coisa em comum, o desejo de experiênciar paz e felicidade, e de não experi-
ênciar dor e sofrimento.

Não é que 95% está desejando a felicidade e 5% simplesmente não se importa. 100% de todos
os seres compartilham este desejo comum de querer ter felicidade e estar livre do sofrimento.
Portanto, nós temos que incluir cada um dos seres vivos no nosso desenvolvimento da bodhichita
do amor e compaixão.

Então desta maneira, nós devemos extender o nosso desejo de liberar todos os seres sencien-
tes para aqueles seres nos numerosos outros reinos da existência. Ainda que eles possam ter
diferentes formas, o desejo último de todos os seres é o mesmo, o desejo de obter felicidade e
estar livre do sofrimento. Nós devemos desenvolver compaixão e amor por todos os seres sem
discriminação entre aqueles que nós sentimos próximos e aqueles que nós não gostamos. É
necessário não discriminar entre amigo e inimigo. Esta é a primeira característica do amor e da
compaixão.

De uma maneira ordinária, nós tentamos ajudar os outros de várias maneiras. Nós oferecemos
remédio para aliviar a dor, doença e ferimentos. Nós tentamos ensinar os outros para liberá-los
do estado de ignorância. Nós tentamos ajudar oferecendo presentes materiais para remover
os outros do estado de pobreza. Nós promovemos guerra para proteger os outros do medo dos
seus inimigos. Esta é a forma ordinária de tentar ajudar os outros. Ainda que esses esforços

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venham do desejo de ajudar, o tipo de ajuda que nós mencionamos pode levar ajuda a alguns,
mas também pode levar a ferir outros. Estes não são métodos que beneficiam cada um do seres
vivos; nós precisamos aprender técnicas que realmente ajudem a todos os seres sencientes.
Desde que a felicidade e a raíz da felicidade é um tópico da mente de acordo com o Budismo,
nós devemos ensinar os outros como desenvolver felicidade mental. O desejo de liberar os seres
sencientes e ensiná- los como remover a raíz do sofrimento da mente, e como atingir a raíz da
felicidade da mente é conhecido como estabelecer os seres sencientes no estágio de Buda. O
desejo de estabelecer a raíz da felicidade nos outros, remover a sua infelicidade e causar a eles
a experiência da eterna felicidade é conhecido como bodhichitta.

Bodhichitta pode ser explicada pela sua palavra tibetana jangchub- sem. Jang significa remo-
ver; o desejo de remover a raíz do sofrimento de cada indivíduo de forma que o indivíduo não
mais experimente o estado mental do sofrimento dos conceitos e pensamentos. Chup significa
familiarizado: desenvolver e estabelecer a felicidade no coração ou mente dos seres tão for-
temente que isso se torna muito familiar. Sem significa mente, então jangchup-sem significa
uma mente que deseja remover o sofrimento e estabelecer a felicidade. Quando a silaba "pa" é
adicionada a jangchub-sem, ela se torna um nome que indica uma pessoa que possui tal mente.

Pa é também traduzido como guerreiro ou herói. Normalmente nós pensamos que guerreiro é
alguém que faz guerra contra os outros e é capaz de destruir seu inimigo. Mas espiritualmente
falando, este indivíduo não é realmente um guerreiro. Lembre-se que tanto faz se você destrói
ou não o seu inimigo, aquele indivíduo vai eventualmente experiênciar a morte. Todo mundo
tem que morrer, então não há necessidade de destruir alguém que consideramos inimigo e que
está sujeito a morte de qualquer maneira. O verdadeiro significado de guerreiro em um ponto
de vista do Dharma é o de subjugar o inimigo da mente para remover a raíz do sofrimento.

Então nós explicamos bodhichita e o desenvolvimento da bodhichita como o desejo de liberar


todos os seres sencientes. Esta é a atitude do guerreiro. Como principiantes, nós não temos
a bodhichita firmemente estabelecida em nossas mentes. Entretanto, nós precisamos tomar o
voto e fazer o compromisso de que nós vamos desenvolver a bodhichitta sempre.

Existem muitos tipos de compromissos ou votos que são referidos como "samayas". Existem os
votos pratimoskha ou compromissos físicos tais como não matar ou roubar outros seres sencien-
tes. Existem outros votos chamados sosotarpa, ou votos de auto-liberação. O voto de bodhisa-
tva é baseado na mente. Parece ser mais facil guardar votos físicos tais como não roubar ou não
matar, porque enquanto você não matar ou roubar alguma coisa, você é capaz de manter seus
votos intactos. O voto de bodhisatva é um tópico de atitude e uma maneira de pensar. Nossa
mente desenvolve muitos pensamentos, positivos e negativos, então parece mais difícil guardar
um voto da mente. Entretanto, embora os votos físicos pratimoskha, como não matar ou não
roubar, possam parecer mais fáceis, uma vez que você tirou a vida de um ser ou roubou algu-
ma coisa, você realizou as ações físicas que quebram o voto. Então, os votos pratimoksha são
considerados como um pote de argíla. Uma vez que o pote é quebrado, não pode ser reparado.
Com o voto de bodhisatva, mesmo que você possa desenvolver muitos pensamentos negativos,
fisicamente você não realizou uma ação prejudicial, tal como ter matado alguém. Você pode
imediatamente mudar a atitude negativa para alguma coisa positiva. Desta forma, o voto de
bodhisatva é como um vaso feito de ouro; se cair, ele pode perder a forma, mas pode ser restau-
rado de maneira que volte a forma original.

Nós devemos entender e apreciar nossa boa fortuna de ter a oportunidade de tomar o voto de
bodhisatva. Nós não deveriamos ter medo de ser incapazer de guardar o voto em nossos cora-
ções em todas as ocasiões. No momento em que nós realizamos que estamos desenvolvendo um
pensamento negativo, nós podemos sempre mudar e transformar aquela atitude, então não há
necessidade de ficar receoso sobre tomar o voto. Nós também devemos apreciar o fato de ser

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capazes de aprender tais métodos.

Nós vamos agora falar sobre os benefícios do voto de bodhisatva. Nos ensinamentos sutrayana,
existem 230 benefícios que foram descritos pelo Buda. Nós vamos condensá-los e explicá-los em
4 pontos.

O primeiro benefício de ter obtido o voto de bodhisatva é que através da prática da bodhichitta,
nós vamos aprender como remover o sofrimento e obter felicidade. Nós iremos reconhecer que
a raíz de toda felicidade é a bodhichita.

Segundo; tendo desenvolvido a bodhichita, não apenas nós iremos experiênciar nossa própria fe-
licidade que é livre do sofrimento, mas com o voto de bodhisatva, nós somo capazes de benefi-
ciar os outros dando felicidade e removendo sofrimento. Por exemplo, há um longo tempo atrás
Buda Shakyamuni girou a roda do dharma na Índia em um lugar chamado Bodhigaya. Devido ao
Buda ter girado a roda do dharma e revelado os ensinamentos, eles se espalharam por muitos
outro países onde as pessoas os praticaram e atingiram a completa budeidade, a experiência
da felicidade última livre do sofrimento. Como todos esses seres obtiveram a Budeidade? Eles
fizeram isso seguindo as instruções de Shakyamuni Buda. Como Shakyamuni Buda ele próprio
obteve o nível da experiência última da felicidade? Bem no princípio ele desenvolveu o que é
conhecido como Bodhichita. Através do desenvolvimento e perfeição da bodhichita, o Buda foi
capaz de beneficiar seres inumeráveis.

Quando nós começamos a desenvolver a atitude altruística da bodhichita, ela pode parecer bas-
tante limitada, como um número muito pequeno de tais pensamentos surgem na nossa mente,
e nós pensamos que isso realmente não pode ajudar ninguém. Entretanto, a um longo prazo,
como a bodhichitta se desenvolve, nós nos tornamos mais familiares com ela e realizamos que
esta atividade búdica é a fonte de toda felicidade, e o método para remover o sofrimento e
beneficiar incontáveis seres.

O terceiro benefício de obter o voto de bodhisatva e desenvolvimento da bodhichita é que desde


que todos nós temos nosso maiores inimigos dentro de nós mesmos, as emoções conflituosas,
através das quais nós experiênciamos sofrimento infinito, é a bodhichita que nos dá a força para
superar tais emoções conflituosas. A Bodhichita é como uma espada que corta todo o sofrimen-
to.

O quarto benefício de desenvolver a pura bodhichita é que ela é a raíz da obtenção da felicida-
de última para si mesmo e para os outros. Se não é pura, nós não podemos experiênciar felici-
dade e nem ensinar aos outros a experiênciar felicidade. A Bodhichita é como uma preciosa jóia
que realiza todos os desejos.

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Os Quatro Pensamentos Ilimitados
Jigme Khyentse Rinpoche

Quer pratiquemos o Dharma ou não, todos possuímos a natureza de Buddha, a qual chamaria de
uma insustentável ternura. Esta ternura é expressa em dois tipos de contexto: através do medo
e através da coragem. Quando se expressa no contexto do medo, manifesta-se através do que
chamamos de três venenos. Gostaria de dar um outro nome aos três venenos. A ignorância, eu
preferiria chamar de inércia; o apego, de mentalidade do divã; e a aversão, chamaria de inter-
ferência.

Estes três fatores são a matéria do qual o medo é feito. Não falo necessariamente de um medo
repentino; o medo pode tornar-se algo normal, quase insuspeitável - por exemplo, os sentimen-
tos que nos empurram em direção do aborrecimento ou da curiosidade.

Então, o que chamamos de obscurecimentos, as emoções negativas, existem como efeito destes
três elementos. Quando estamos sob sua influência, isso é chamado de samsara.

De fato, estar no samsara é simplesmente interpretar esta profunda sensibilidade do modo


menos difícil, primariamente com inércia: não temos vontade de nos mexer, de encontrar outro
modo de traduzi-la. Não fazemos isso e, quando nos acostumamos a isso, desenvolvemos uma
mentalidade de divã, que chamamos de apego. É confortável, estamos acostumados a ela, gos-
tamos dela.

Cada vez que algo altera esse estado de coisas, cada vez que há um impulso ao movimento, à
não-inércia, há um sentimento de interferência e nos tornamos defensivos. É assim que a maio-
ria dos seres sofre no samsara dos seis reinos.

Porém, podemos encontrar outro modo de traduzir a insustentável ternura; agora, no contexto
da coragem. É uma questão de ter coragem para ir mais longe, de fazer uma interpretação mui-
to mais profunda. Temos falado da insustentável ternura: ousar a experiência do insustentável
requer muita coragem.

Acho que a ternura existe nas profundezas de nós mesmos - mas é difícil de nós vermos isso e
preferimos interpretar essa ternura como um tipo de fragilidade, ou mesmo de vulnerabilidade.

Assim que sentimos esta vulnerabilidade, desenvolvemos todos os tiposde estratégia para nos
protegermos, adotando uma atitude defensiva que pode até mesmo se tornar ofensiva. Mesmo
se este for o caso, nas profundezas do ser, esta ternura está sempre lá. Sem ela, nenhum ser
pode ser defensivo nem ofensivo. Quando vemos alguém zangado, desapontado, triste ou raivo-
so, sabemos que nada mais há do que um mal-entendido, uma má interpretação.

O que é esse outro modo de interpretação? Podemos expressar esta ternura através do que
chamamos de Quatro Pensamentos Ilimitados. O primeiro é a equanimidade. O que isto significa?
É uma grande tampaque cobre tudo? Qual é o perfume da equanimidade? Acho que essa equani-
midade é o protesto de um certo aspecto de nossa mente que não quer mais ser dominada pelas
emoções, que decide ser imparcial, que decide cruzar e superar cada ponto de referência que
demos a nós mesmos. Por exemplo, apesar de nos treinarmos para desejar a felicidade de todos
os seres, é possível que, às vezes, tenhamos o pensamento de que a felicidade deva estar do
nosso lado, ou entãodo lado dos outros.

Em primeiro lugar, a imparcialidade simplesmente significa ousar acreditar que é possível ser im-
parcial. Quando dizemos, "Eu precisopraticar a imparcialidade", este "eu" ocupa muito espaço, é
muito pesado. Um exemplo: quando penso sobre meus mestres, Khyentse

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Rinpoche ou Kangyur Rinpoche, e sobre as vidas que eles levaram, em primeiro lugar fico inspi-
rado, e então essa inspiração fica tão grande que quero possuí-la. Mas ao invés disso, ao sentir
essa inspiração, poderia também estar consciente de que me é possível sentir inspiração e sim-
plesmente acolher este momento.

Khyentse Rinpoche muitas vezes disse que a grande dificuldade dos praticantes desta época é
que, assim que ouvem falar de uma prática, querem obter imediatamente os resultados dela.
Isso parece ser o caso conosco.

Se assistirmos a um desfile de moda e virmos uma pessoa magra vestindo roupas das quais gos-
tamos, talvez logo iremos comprá-las e vesti-las. Por outro lado, podemos descobrir que somos
muito gordos ou magros para vesti-las, e então ficamos deprimidos.

Para praticar a imparcialidade, devemos começar aplicando-a à própria prática da imparciali-


dade, ao invés de seguir o hábito de tomar atalhos. Isto é algo que muitas vezes esquecemos de
praticar: as roupas que vestimos - o que chamamos de personalidade, nosso caráter - são muito
difíceis de nós vermos. É como a história do homem que perdeu seu burro. Ele tinha oito deles.
Um dia decidiu contá-los e descobriu que estava faltando um. Ele olhou em todos os lugares,
procurando seu burro para cima e para baixo, sem encontrá-lo. Então alguém contou os burros e
descobriu que ohomem tinha esquecido de contar o burro sobre o qual estava montado.

Então, quando penso sobre a imparcialidade, não falo sobre umaimparcialidade com grandes
lupas voltadas para dentro. De fato, os Quatro Pensamentos Ilimitados são um tipo de antena,
direcionada tanto para o exterior quanto para o interior.

O que queremos, de fato, é encontrar a liberdade. Dizemos que estamoslivres porque somos
homens e mulheres vivendo em uma democracia. Porém, a maioria de nós usa sua liberdade por-
que acha que deve fazerisso: se uma opção existe, deve-se usá-la. Mas se você tiver que fazer
algo, então não é mais uma liberdade.

De fato, queremos ir ainda mais longe daqui, obter mais liberdade emrelação às nossas emo-
ções. Normalmente, são a nossas emoções quedeterminam como nos comportamos em relação
aos seres próximos. Porém, devido à noção da imparcialidade, queremos nos tornar nossospró-
prios mestres.

É difícil para nós, no presente, imaginarmos o que pode ser a imparcialidade dos Buddhas, mas
esta prática deve começar no ponto onde estamos agora. Temos a inspiração da imparcialidade,
e não somosobrigados a projetá-la imediatamente sobre os outros. O desejo de experienciar a
imparcialidade não deve ser confundida com a imparcialidade em si. Não é que o primeiro tipo
de imparcialidade seja ruim, mas ele não é necessariamente ilimitado. Ele é limitado pelo nosso
desejo.

Normalmente, nossa imparcialidade é limitada a 180 graus: só podemos ver o que está em nossa
frente. Devemos tentar cultivar a imparcialidade de 360 graus. Que tipo de imparcialidade? A
imparcialidade baseada no fato de que o amor e a compaixão podem ser expressos para tudo.
Desejamos ir além das fronteiras normais do amor e da compaixão. Mas o que é amor? Nos tex-
tos, o amor é definido como desejar o bem dos outros, como o desejo de um pai ou de uma mãe
para que seus filhos tenham sucesso e felicidade. Não é realmente uma questão de desejar, mas
sim de uma atmosfera de ternura e gentileza que esta sensação cria.

O que eu chamaria de amor parece mais uma abertura que não precisa de desculpas. Todos esta-
mos obcecados por desculpas. Por exemplo, se tivermos alguns minutos livres, podemos querer
nos sentar e fazer nada. Mas se alguém bate na porta, logo nos levantamos para abrir

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uma janela ou se sentar, para dar a impressão de que estávamos praticando, ou então dizemos
que estamos cansados, mesmo quando não é verdade. Por que temos que achar uma desculpa?
Esquecemos que, para sermos aceitos como humanos, não temos que nos esconder atrás da bar-
reira protetora de nossas emoções, as quais consideramos como nossa mãe no samsara.

De fato, os Quatro Pensamentos Ilimitados não são quatro coisas diferentes, mas sim quatro
faces de uma mesma coisa. O que é essa coisa? É aquilo que estremece dentro de nós a cada vez
que uma palavra é usada, a cada vez que vemos uma cor.

E o que é compaixão? Acho que é um sentimento insustentável. Não necessariamente terno, nem
suculento, nem doce. Quando o estremecimento torna-se insustentável - é a compaixão. Este
sentimento de insuportabilidade é similar ao que se sente em relação à feiúraexterna, no sen-
tido de que onde quer que haja uma mácula, ela é intolerável. Internamente, essa mácula é o
sofrimento dos seres.

É claro que, quando ele surge, os três venenos estão lá e até mesmonos convidam a fechar nos-
sos olhos, pensando, "Não posso suportarisso!", ou nos impele a tentar encontrar alguém sobre
quem espalharnossa compaixão. Esta é a mentalidade do divã, que nos dá este desejo. Isso não
significa que não devamos fazer isto, mas devemos estar conscientes do que estamos fazendo.
Ser capaz de reconhecerisso já é uma boa coisa. Nossos venenos trabalham apenas se não esti-
vermos conscientes deles.

Gostaria agora de mudar um pouco a noção que temos sobre a compaixão.Neste contexto, diria
que a compaixão é coragem: ousar não fecharos olhos quando é difícil, quando é doloroso. A
pessoa mais tímidadesmaia após alguns instantes, outras demoram mais. A compaixãosignifica
nunca fechar os olhos, nunca aguardam nem um instante de divã, esperando que alguém faça
algo por nós. A noção de feriado parece um convite à fraqueza interior.

Por exemplo, se alguém está andando a pé sobre um longo caminho e fica cansado depois de
quatro ou cinco horas, deve dizer, "Agora mereço um descanso", e pára. A pausa é tão boa que é
difícil voltar a caminhar novamente. Se alguém cede, logo pára, pensando, "Vou ficar
um pouco mais", e assim nunca chega ao destino. Esta fraqueza, este apego, fica fixo dentro de
nós. A atitude correta é como aquela que se faz ao cair de um cavalo - volte logo, ou nunca mais
poderá fazer
isso.

A mentalidade do divã se instala. O único modo de nos livrarmos disto é contar para si mesmo
que a vez do divã é impossível, um conceito que não existe no caminho do Buddha. Isso não sig-
nifica que não haja algo como um descanso, mas sim outro tipo de descanso, que eu chamo de
derreter.

Um gordo cansado pela caminhada tem dois modos de resolver o problema: ou ele se senta e
descansa - no caso, ele se sentará lá para o resto de sua vida - ou então ele derrete a gordura, e
assim não terá que parar a cada três passos. Esta última abordagem é a melhor - mesmo que se
demore mais para alcançá-la. A iluminação aqui significa derreter toda a gordura.

Então, o que é a alegria ilimitada? É a alegria que se espalha em todas as direções, em 360
graus. Não ter medo da alegria. Às vezes, quando temos um sentimento de alegria, dizemos a
nós mesmos: "Não posso - é apego, é orgulho, etc.", mas isso é o ego falando. O ego não quer
parecer orgulhoso, então ele se abaixa. Mas, realmente, ele abaixa sua cabeça para colocar
seu traseiro sobre um trono. Portanto, mesmo quando ele diz que não devemos pensar nisso, ou
quando ele se sente culpado por estar feliz, isso não é o fim. Quando estamos felizes, podemos
ousar, sentir alegria por nós mesmos, e não podemos necessariamente segurar nossa experiência

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com luvas, como se ela estivesse contaminada. Por exemplo, se praticamos e nos sentimos bem,
por um lado estamos felizes, mas por outro temos medo de nos apegarmos à nossa prática e,
então, colocamos luvas. Isto não é necessário.

Se colocarmos luvas a cada vez, um dia acabaremos com as mãos engessadas e não sentiremos
mais coisa alguma. O amor e a alegria experienciados com esta noção de ilimitado não são um
convite ao amor ou compaixão narcisistas. Mas, por outro lado, se sentimos algo, não devemos
necessariamente reagir a ele - pois, de fato, é um narcisismo disfarçado.

A Confiança Interior

Todos temos algo dentro de nós que estremece cada vez que uma palavra é usada ou a cada vez
que vemos uma cor. A cada vez que sentimos este estremecimento, esta comichão, nós nos co-
çamos. Este mecanismo repete-se muitas vezes, sem que nosso ser esteja consciente disto.
Os ensinamentos mostram-nos o que está faltando neste processo: a liberdade, ou espaço.

Quando nos tornamos conscientes do modo mecânico pelo qual nos coçamos ao menor comi-
chão, quer físico ou mental, devemos tentar ver se não podemos esperar alguns segundos antes
de agir. Devemos adquirir a liberdade de nos coçarmos quando quisermos, e não por impulso.
Devemos esperar cinco segundos, talvez um minuto. Como podemos fazer isso? Tendo confiança
em nossa mente, em nossa natureza de Buddha, no que eu chamaria de insustentável ternura
do ser. De qualquer modo, se a comichão existe, é de fato porque temos essa ternura dentro de
nós. É uma radiação, um reflexo doBuddha. Reconhecendo isso, sabemos que o estado búdico é
possível, e que se desenvolvermos a capacidade de não nos coçarmos imediatamente, podemos
chamar isso de um despertar.

Outro aspecto desta ternura é o que chamaria de insustentável leveza, que é o aspecto da va-
cuidade, da liberdade. De fato, o que estamos tentando fazer é cortar alguns dos fios que estão
amarrados na enguia que se agita incessantemente dentro de nós, e que nos faz dançar como
uma marionete, seguindo os movimentos que são ditados para nós.

Vamos nos observar por um instante: a comichão se manifesta no fato de assumirmos uma pos-
tura. Todos temos uma postura através da qual nos sentimos à vontade. Se um dia alguém des-
cobre isso e nos expõe, assumimos outra postura. Não nos coçarmos ao mudar de postura é fazer
uso de nossa liberdade. Esta liberdade também está ligada à uma atitude de estabilidade, uma
dignidade que não vacila - o oposto de uma folha que é levada toda vez que o vento sopra.

Apenas quando reconhecemos esta comichão, nossa falta de liberdade, é que a idéia de refúgio
vem à mente. O refúgio é a coragem da abertura, a inspiração, onde a bodhichitta nos permite
encontrar um uso para essa inspiração. É por isso que o refúgio e a bodhichitta são artes úteis.

Hoje em dia, certos objetos de arte às vezes expressam apenas o non-sense sentido e se tornam
fontes de irritação, ao invés de se tornarem úteis. É claro que essa é uma questão de interpre-
tação pessoal de cada um. Quanto a mim, acho que o Buddha é um artista revolucionário, no
sentido de que sua arte pode ser realmente útil para nós. A inspiração da qual eu falo não é ape-
nas o apogeu da arte, mas também tem um uso assegurado para todos aqueles que tomam
refúgio.

Assim, aqui está uma arte que é prática e útil, e que não é apenas um outro tipo de exibicio-
nismo. Há aqueles que mostram suas emoções no papel, outros através de vários materiais: há
todos os tipos de exibicionistas. Este não é o caso aqui - muito pelo contrário. É algo que ousa
reconhecer a si mesmo, mas não necessariamente se mostra ao exterior. Toda prática espiritu-

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al, desde as práticas preliminares, é apenas um método para tentar oferecer à nossa mente os
meios para encontrar confiança em si mesma.

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Os Dois Extremos e Além dos Dois Extremos
Thinley Norbu Rinpoche

Sofrimento na esperança é o eternalista.


Sofrimento na desesperança é o niilista.
Além tanto da esperança quanto da desesperança é o buddhista.

Por causa de nossos hábitos, não reconhecemos o potencial da sabedoria secreta pura dos cin-
co sentidos, que é inseparável do potencial da sabedoria secreta pura dos cinco elementos. Ao
invés disso, usamos os sentidos grosseiros internos que percebem apenas os elementos grosseiros
externos, e podemos entender apenas a essência secreta e sem divisão dos fenômenos como
sendo separada, dividida e substancial. Se valorizarmos a substância como muito duradoura e
imutável e, depois de os elementos grosseiros desaparecerem, concluirmos que os elementos su-
tis permanecem como seu aspecto mais refinado e puro, este é o ponto de vista eternalista. Se
não valorizarmos nada além da substância conspícua e, quando os fenômenos grosseiros desapa-
recerem, concluirmos que nada mais existe além da substância, esta é a base do ponto de vista
niilista. Em ambos os casos, nunca acreditamos na essência secreta que permeia e que continua
tanto além dos elementos visíveis quando dos sutis.

O eternalismo é expresso por muitas pessoas diferentes de muitos modos diferentes, mas es-
sencialmente elas compartilham o ponto de vista de que uma forma mais sutil existe além dos
elementos visíveis e tangíveis. Os eternalistas acreditam em uma eterna divindade imortal cujas
infinitas qualidades sutis são a fonte dos elementos da substância grosseira. Eles acreditam que
aqueles que confiam e rogam a um criador primordial do céu e da terra temporariamente ob-
terão benefício nesta vida e definitivamente terão uma vida imortal depois de o seu corpo de
elementos grosseiros morrer. Eles acreditam que quando os elementos grosseiros desaparecem,
a alma de elementos sutis renasce como um deus ou no séqüito de um deus, em um paraíso ou
terra pura eternos, além dos elementos grosseiros. Os eternalistas geralmente cultuam divinda-
des que apareceram na terra em tempos lendários e cujas qualidades são reveladas através de
sua história de elementos sutis. Eles cultuam incontáveis imagens diferentes de divindades, de
tantas formas diferentes quanto de tradições que existem para beneficiar os seres.

O niilismo é expresso por muitas pessoas diferentes de muitos modos diferentes, mas essencial-
mente elas compartilham o ponto de vista de que nada há além das qualidades da substância
dos elementos grosseiros. Elas não acreditam em uma fonte insubstancial de elementos grossei-
ros. Algumas acreditam que a substância aparece do nada e outras acreditam no círculo ine-
xaurível da matéria e da energia, que os fenômenos surgem quando as circunstâncias se juntam
por acaso e coincidência. De acordo com o ponto de vista dos niilistas, quando os elementos se
juntam, a forma de elementos grosseiros do corpo é nascida espontaneamente, inseparavelmen-
te combinada com a mente. Eles acreditam que quando os elementos grosseiros se separarem
e se dissolverem, apenas as cinzas permanecerão e nada da mente será deixado. Então os nii-
listas não têm necessidade de concepções sobre uma vida futura ou de uma conexão kármica
contínua. Os niilistas geralmente reverenciam qualidades de poder, fama, beleza, progresso e
sucesso, e são apegados aos elementos grosseiros em incontáveis formas diferentes, através de
incontáveis modos mundanos diferentes, dependendo da história de elementos grosseiros de sua
cultura, para beneficiar a si mesmos nesta vida em tantos estilos quanto os egos mundanos que
existem.

Para o eternalista, a confiança do niilista sobre a substância grosseira apenas é uma ameaça ao
entendimento da fonte de substância sutil de todos os fenômenos. Para o niilista, a confiança do
eternalista sobre o sutil e imaterial é uma ameaça ao progresso material, que é o produto visível
de todas as qualidades substanciais.

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Os eternalistas realmente acreditam na essência pura dos elementos, mesmo que eles não a
expressem em termos de elementos. Eles entendem que não pode haver conexão permanente
entre os elementos grosseiros impermanentes, então quando rogam, eles confiam sobre o bene-
fício de seus elementos puros. Desejando conhecer seu deus, obter seu poder, bênção ou graça,
obter imortalidade em uma terra pura ou paraíso, os eternalistas estão tentando alcançar a
essência pura dos elementos. Eles estão realmente dizendo que a forma de elementos grosseiros
impuros do objeto de culto pode se conectar com a forma leve e pura do objeto de culto nesta
vida, e que depois de os elementos grosseiros terem se tornado inertes e perecerem, a essência
pura permanece fresca e eterna. Esta crença não reconhecida nos elementos puros é expressa
através de incontáveis formas de preces, seja com oferendas de sangue repelente, de água pura
ou de belas flores, seja em um estilo tradicional, em louvor esperançoso e suplicante, ou com
lamentações solitárias. É expressa através de preces, seja a divindade na forma de uma besta
com rabos, chifres ou asas, seja numa forma humana ou sobre-humana, cujo aspecto é cruel ou
bondoso, irado ou pacífico, violento ou confortador, esteja a divindade cavalgando um animal ou
dançando no céu, esteja crucificado ou sentado sobre um lótus imaculado, esteja sobre uma lua
ou sol brilhantes, ou sobre um trono de jóias - a essência de toda essa devoção é sempre a fonte
pura dos elementos.

A forma leve e pura aparece não-obstruidamente e inseparavelmente da vacuidade imaculada; a


forma não pode surgir no nada inerte. A forma da divindade não pode aparecer, a fala da divin-
dade não pode soar, a mente da divindade não pode permear os elementos grosseiros sem uma
intenção de elementos puros. A graça e a bênção da forma da divindade vêm predominantemen-
te dos elementos terra e água puros; a graça e a bênção da fala da divindade vêm predomina
temente dos elementos fogo e ar puros; a graça e a bênção da mente da divindade vêm predo-
minante do elemento espaço puro.

Os niilistas também estão realmente envolvidos com a fonte insubstancial de toda substância,
apesar de eles negarem isso. Como disse o Buddha, “A natureza búddhica permeia todos os seres
sencientes”. Apesar de os niilistas dizerem que os elementos sutis não existem, eles descrevem
os temperamentos das pessoas como terrenos, aguados, fogosos, aéreos ou espaciais, e usam
expressões como pé no chão, indiferença gélida, espíritos húmidos, discussão acalorada, sangue
quente, temperamento tempestuoso e mente aberta.

Se perguntarmos aos líderes de governo niilistas se eles acreditam nas qualidades sutis invisíveis
dos fenômenos, eles dirão não, mas seus policiais e soldados estão sempre calculando no pre-
sente visível os eventos futuros invisíveis e fazendo planos baseados sobre algo invisível e sutil,
que se tornará visível e grosseiro no futuro. Isto significa que eles realmente acreditam que o
invisível e sutil existe. Apesar de os niilistas dizerem que não acreditam no karma, por planeja-
rem eles revelam sua crença na continuidade invisível entre o passado e o futuro, e sua crença
em causar resultados futuros. Esta crença na causa e resultado significa implicitamente que eles
também acreditam no karma.

A intenção dos niilistas é similar à intenção de alguns meditadores. Se perguntarmos a um me-


ditador do sem-forma sobre o que ele está meditando, ele pode responder, “Nada com forma,
nada visível”. Mas ele realmente quer pegar o invisível, quer ver algo especial; de outro modo,
pelo quê ele estaria esperando? Se pega algo, ele se comporta como os policiais do governo.
Primeiro eles fazem o invisível ficar visível; então tentar mudá-lo ou aniquilá-lo. Quando você
pergunta ao niilista e ao meditador se sua intenção é a mesma, eles negarão isso; mas realmen-
te é a mesma.

Se perguntarmos a um niilista que horas são, ele pode responder que é uma hora. Então se
perguntamos o que ele fará esta tarde, ele pode responder que tem uma reunião às cinco horas.
Isto implica que ele acredita nos elementos invisíveis sutis, dormentes no tempo expresso como

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o futuro, então sua resposta é baseada na crença em uma vida futura, mesmo que ele negasse
acreditar nela se isso fosse perguntado diretamente.

Os niilistas acham que estão separados dos elementos externos por seus corpos físicos, mas
realmente a essência secreta de todos os elementos, que permeia todos os fenômenos, nunca é
dividida. Mesmo que uma pessoa esteja em Paris telefonando para uma outra em Nova Iorque,
realmente não há separação. Mesmo que pensemos que a mente está dentro de nossos corpos,
ela não está nem dentro nem fora, nem em nosso cérebro nem em nosso coração. Se examinar-
mos cuidadosamente este “dentro e fora”, não poderemos encontrar os limites de dentro e fora.
Nosso limite vem do hábito kármico de usarmos elementos grosseiros, que criam estas divisões
entre Nova Iorque e Paris, entre uma voz e outra, entre dentro e fora. Todas as divisões vêm dos
hábitos kármicos destes elementos grosseiros.

Duas pessoas podem se conectar uma com a outra de uma longa distância e comunicar os pen-
samentos sutis de suas mentes com suas vozes sutis, intocáveis, através do aparato grosseiro do
telefone. Mesmo que elas já estejam ligadas desde o início através de sua mente sem ligação,
que tudo permeia, os elementos sutis dormentes são despertados através das circunstâncias
grosseiras da chamada telefônica, e sua conexão original é refeita. Mas é melhor não falar aos
engenheiros de telefone niilistas sobre esta ligação que tudo permeia, secreta e sem ligação, ou
eles vão querer cortar os fios metálicos grosseiros do telefone.

Nossa mente real é ilimitada mas não sabemos isto porque usamos apenas nossas mentes ordi-
nárias limitadas. Quando pensamos na chamada telefônica, nossas mentes param em Paris, em
Nova Iorque e entre Paris e Nova Iorque. Através de nossos elementos sutis, podemos facilmente
lembrar de um país onde estivemos antes por causa de nossa ligação prévia com seus elementos
grosseiros, mas como permanecemos em nossos elementos grosseiros divididos, não podemos ir
além deste limite. Se através de nossos elementos grosseiros imaginarmos um país que nunca vi-
sitamos, ou se sonharmos com um país onde nunca estivemos, isto pode significar que tenhamos
estado lá em uma vida anterior ou que estaremos lá no futuro, mas até mesmo esta concepção
de um país desconhecido é o limite sutil de nossas mentes ordinárias. Quando quer que esteja-
mos no extremo do niilismo ou no extremo do eternalismo, dividimos “fenômenos” de “vacuida-
de”, e por causa do nosso hábito de divisão não podemos ir além da essência secreta leve e pura
dos elementos.

O Buddha está além do eternalismo e nunca permanece em quaisquer elementos. O Buddha está
além do niilismo e nunca se separa de quaisquer elementos. Mas os seres sencientes não podem
reconhecer isto, então sempre confiamos ou no eternalismo ou no niilismo, e estamos sempre
sofrendo e nos punindo no círculo da morte e renascimento.

É por isso que o Buddha se manifesta sem propósito como certas divindades dotadas de quali-
dades e aspectos eternos, como os de nunca morrer e e sempre ser puro, a fim de libertar os
seres obscurecidos pelos errôneos entendimentos niilistas. É por isso também que a natureza das
manifestações do Buddha é dita sendo a vacuidade, a fim de libertar os seres obscurecidos
pelos errôneos entendimentos eternalistas. Realmente o Buddha permeia inseparavelmente am-
bos os extremos e portanto permanece além de ambos os extremos. Ele nunca permanece nem
em um extremo como divindade ou vacuidade porque elas são inseparáveis. Separar a divindade
da vacuidade ou a vacuidade da divindade cria disposição e circulação de um extremo para o
outro. O buddhismo está além destes dois extremos.

O buddhismo é o ponto de vista que segue as palavras do Buddha. Quando quer que tenhamos
um ponto de vista, temos sujeito e objeto, e o “entre” sujeito e objeto. Se ficarmos em um ban-
galô, poderemos apenas enxergar a visão em frente a nós, mas não acima de nós. Se ficarmos
sobre o topo de uma prédio alto, poderemos apenas enxergar a visão em frente a nós, ao nosso

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redor e abaixo de nós, incluindo o bangalô. Se ficarmos sobre o topo do pico de uma montanha,
poderemos enxergar o que está a frente de nós, ao nosso redor e abaixo de nós, e tudo no meio,
incluindo o bangalô e o prédio. Dependendo de nossas faculdades que vêm dos fenômenos kár-
micos prévios, somos capazes de enxergar um ponto de vista ou muitos pontos de vista diferen-
tes. Mesmo que ouçamos sobre algo que não podemos ver, muitas vezes não o aceitamos por
causa de nossas faculdades individuais e do hábito de nosso ponto de vista limitado.

Por incontáveis vidas podemos tentar encontrar nossa mente, mas ela nunca pode ser encontra-
da dentro de quaisquer fenômenos de substância porque ela é sempre a grande vacuidade. Este
ponto de vista vai além do ponto de vista eternalista sem rejeitá-lo. O espelho de nossa mente
sempre reflete incontáveis fenômenos, não-obstruidamente e sem esforço. Este ponto de vis-
tavai além do ponto de vista niilista sem rejeitá-lo. Isto não significa que a grande vacuidade e
os fenômenos não-obstruídos existem separadamente e que eles podem ser combinados juntos
como duas linhas sendo trançadas para se fazer uma. Desde o início, a vacuidade e os fenôme-
nos são inseparáveis. Este é o ponto de vista buddhista geral. Onde quer que haja vacuidade, há
fenômenos, e onde quer que haja fenômenos, há vacuidade. Não vemos isto por causa do hábi-
to de divisão de nossa dualista, então vemos apenas uma coisa de cada vez, vendo a vacuidade
como sendo diferente dos fenômenos. Às vezes, ao invés de reconhecermos nossa mente de
vacuidade inerente e permeadora, quando praticamos nós tentamos criar uma vacuidade dife-
rente, e quando não podemos encontrá-la ou somos incapazes de criá-la através de nossos
fenômenos, nos tornamos frustrados.

Dos seres ordinários aos seres sublimes, o ponto de vista existe até que a iluminação seja alcan-
çada. Dentro do ponto de vista buddhista, dependendo de diferentes faculdades individuais, há
diferentes pontos de vista.

De acordo com o sistema do Hinayana, o ponto de vista é o não-ego. De acordo com o sistema
do Mahayana, o ponto de vista é o não-ego, a insubstancialidade dos fenômenos e a liberdade
de todas as atividades mentais. De acordo com o sistema do Mahamudra, o ponto de vista é a
Mente de Sabedoria que tudo permeia nos fenômenos existentes e não-existentes. De acordo
com o sistema do Dzogchen, o ponto de vista é a liberação sem início da Mente de Sabedoria de
Samantabhadra.

Na Mente de Sabedoria iluminada, não há sujeito, não há objeto, não há “entre” sujeito e obje-
to, não há início, não há fim, não há tempo e não há direção, então não há ponto de vista.

O Buddha disse, “Apesar de eu não ter aparecido em lugar algum, apareço em todos os lugares
para aqueles que gostam da aparência. Para aqueles que não gostam da aparência, sou sempre a
vacuidade.

“Apesar de eu nunca ter falado, falo para aqueles que gostam do som. Para aqueles que não
gostam do som, permaneço silente.

“Apesar de minha mente nunca ter pensado qualquer coisa, para aqueles que pensam que minha
mente é onisciente, ela é onisciente. Para aqueles que pensam que minha mente não existe,
minha mente não existe.

“Quem quer que queira me ver gradualmente pode me ver gradualmente. Quem quer que queira
me ver instantaneamente pode me ver instantaneamente. Tudo o que for desejado será atingi-
do. Esta é a qualidade do meu corpo.

“Quem quer que queira me ouvir gradualmente pode me ouvir gradualmente. Quem quer que
queira me ouvir instantaneamente pode me ouvir instantaneamente. Tudo o que for desejado

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será atingido. Esta é a qualidade da minha fala.

“Quem quer que queira conhecer minha mente gradualmente pode conhecer minha mente
gradualmente. Quem quer que queira conhecer minha mente instantaneamente pode conhecer
minha mente instantaneamente. Tudo o que for desejado será atingido. Esta é a qualidade da
minha mente.”

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Os Quatro Selos do Budismo
Dzongsar Khyentse Rinpoche.

Muitas vezes já me perguntaram, “O que é o budismo em poucas palavras?” ou “Qual é a vi-


são ou a filosofia que caracteriza o budismo?” Infelizmente, no Ocidente, o budismo parece ter
caído no departamento da religião ou, então, no departamento da auto-ajuda; claramente no
departamento da meditação, um dos modismos do momento. Eu gostaria aqui de contestar a
definição de meditação budista.
Para muitos meditação é algo que tem a ver com relaxar, assistir ao pôr-do-sol ou acompanhar
as ondas do mar. Idéias atraentes como “soltar-se de todos os problemas” e ficar “livre, leve e
solto” vêm à mente. Do ponto de vista do budismo, meditação é um pouco mais do que isso.

Primeiramente, acredito ser necessário falar do contexto clássico em que a meditação aparece
no budismo, o qual é descrito em termos de visão, meditação e ação. Essa é uma forma bas-
tante hábil de compreender o caminho. Ainda que não empreguemos esses termos em nosso
cotidiano, sempre temos alguma visão, meditação e ação. Se pretendemos comprar um carro,
escolhemos um que imaginamos será um bom carro. A visão nesse caso é essa idéia ou crença.
Meditação, então, seria contemplar essa idéia, admirar suas características e familiarizar-se
com ela, ao passo que ação é efetivamente sair e comprar o carro, dirigi-lo, usá-lo. Isso não é
uma coisa necessariamente budista; essa conduta está presente a todo tempo, mesmo quan-
do escolhemos um restaurante para ir jantar. Talvez não chamemos isso de visão, meditação e
ação, mas, sim, de “ter uma idéia”, “contemplá-la” e “realizá-la.”

Qual seria, então, a visão com a qual os budistas buscam se familiarizar? Há quatro selos que
distinguem o budismo. Na verdade, se encontramos todas essas quatro visões em uma filosofia
ou caminho < independentemente de ser chamado de budista ou não, já que a designação na
realidade não tem importância < esse caminho poderá ser considerado o caminho do Buda. Por
isso são chamados “Os Quatro Selos do Darma.”

Esses Quatro Selos são:


· Tudo que é composto é impermanente.
· Todas as emoções são dolorosas. Isso é algo que só os budistas dizem. Muitas religiões
veneram sentimentos como o amor e o celebram em suas canções. Os budistas pensam que “es-
sas coisas são todas sofrimento.”
· Os fenômenos são desprovidos de uma natureza dotada de existência intrínseca. Aqui
temos a visão última do budismo. Os outros três selos, na realidade, se assentam neste tercei-
ro.
· O quarto é O Nirvana está adiante dos extremos.

Sem esses quatro selos o caminho budista passa a ser teísta, um dogma religioso, e a própria fi-
nalidade do budismo se perde. Poderia ocorrer uma situação em que uma pessoa louca estivesse
dando ensinamentos sobre como ficar sentado numa praia assistindo ao pôr-do-sol. Se por acaso
esses quatro selos também estivessem presentes, os ensinamentos seriam, necessariamente, bu-
distas. Talvez eles desagradem aos tibetanos, chineses ou japoneses, mas não precisam aparecer
dentro de um formato tradicional para serem budistas.

O Primeiro Selo

Esses Quatro Selos estão também muito interligados, como veremos. O primeiro diz que “Todas
as coisas compostas são impermanentes.” Não há um único fenômeno que possamos imaginar
que não seja composto e, portanto, não esteja sujeito à impermanência. Podemos aceitar fa-
cilmente certos aspectos da impermanência, como a mudança do tempo; há porém outros as-
pectos, igualmente óbvios, que não aceitamos. Embora nosso corpo seja visivelmente imperma-

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nente, envelheça a cada dia, não queremos aceitar isso. Certas revistas populares que vendem
a juventude e a beleza exploram essa atitude. Se pensarmos em termos de visão, meditação e
ação, a visão de seus leitores poderia ser concebida em termos de não envelhecer, passar adian-
te do envelhecimento de algum jeito. Contemplando essa visão de permanência, a ação desses
leitores é freqüentar academias de ginástica, fazer cirurgia plástica e se meter em todo tipo
de complicações. Aos seres sublimes isso pareceria ridículo, baseado em uma visão equivocada.
Ao olhar para esses diferentes aspectos da impermanência, como o envelhecimento, a morte,
a mudança do tempo, etc., os budistas têm uma única coisa a declarar < esse primeiro selo: os
fenômenos são impermanentes porque são compostos. Tudo que é feito de partes reunidas, cedo
ou tarde, irá se dispersar.

Quando dizemos “composto”, isso inclui o tempo, o espaço e as dimensões. O tempo é compos-
to e, por isso, impermanente. Sem o passado e o futuro, o presente não existe. Se o momento
presente se tornasse permanente, não haveria futuro, pois o presente estaria sempre aqui. Tudo
que podemos fazer < por exemplo, plantar uma flor ou cantar uma canção < tem um começo,
meio e fim. Se enquanto estivéssemos cantando uma canção faltasse o começo, o meio ou o fim,
não haveria como cantar a canção, o que faz desse ato algo composto.
Poderíamos, então, nos perguntar, “E daí?” “Por que se preocupar com esse tipo de coisa?” “O
que há de tão importante nisso?” “Tem um começo, meio e fim < e daí?” Não é que os budistas
estejam de fato preocupados com começos, meios e fins. Esse não é o problema aqui. O pro-
blema está no fato de que, quando a impermanência está presente, a incerteza e o sofrimento
também estão presentes.

Algumas pessoas acham que o budismo é pessimista, sempre falando de morte, morrer, imper-
manência, velhice < mas isso não é necessariamente verdade. A impermanência é um alívio!
Eu não tenho uma BMW hoje e é graças à impermanência desse fato que eu posso vir a ter uma
amanhã. Sem a impermanência eu ficaria preso à não-posse de uma BMW e nunca poderia vir a
ter uma. Eu posso estar me sentindo muito deprimido hoje e, graças à impermanência, amanhã
eu posso estar me sentindo ótimo. A impermanência não é necessariamente uma má notícia;
tudo depende de como a interpretamos e a compreendemos. Mesmo que hoje nossa BMW seja
riscada por um vândalo ou que nosso melhor amigo nos deixe na mão, não vamos ficar tão preo-
cupados assim.

Quando não reconhecemos que toda coisa composta é impermanente, isso é um engano, uma
ilusão. Quando compreendemos isso < e não só intelectualmente ficamos livres desse engano. É
a isso que chamamos de liberação: ficar livre da crença unidirecionada e bitolada de que as coi-
sas são permanentes. Mesmo o caminho, o precioso caminho budista, também pertence à esfera
do composto, quer gostemos disso ou não. Ele tem um começo, tem um fim, tem um meio.
Quando você compreende que todas as coisas compostas são impermanentes e você vive alguma
perda, você tem condição de aceitar esse fato. Visto que todas as coisas são impermanentes,
esse fato é de se esperar.

O Segundo Selo

“Todas as emoções são dor.” Nós aceitamos que certas emoções, como a raiva ou o ciúme, são
dor. Mas o que dizer do amor e do carinho, da bondade e da devoção? O que dizer dessas emo-
ções que são agradáveis, belas, adoráveis? Nós não as encaramos como sendo dor. No entanto,
as emoções implicam em dualidade, o que, ao final, cria sofrimento. Emoções como o choro, a
dor, a raiva, são na verdade apenas o amadurecimento de emoções mais sutis; surgem no final
de um processo. Elas são as menos perigosas e logo se exaurem. A causa é a verdadeira emoção,
a mente dualista, e isso inclui quase todos os pensamentos que temos.

Por que isso é dor? Porque é equivocado. Toda mente dualista é uma mente equivocada, uma

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mente que ignora a natureza das coisas. O que é que se entende por dualidade? De um lado, es-
tamos nós; de outro, nossa experiência. Ela é relativa, pois podemos ver que pessoas diferentes
percebem o mesmo objeto de diferentes modos. Um homem pode pensar que uma mulher seja
bonita, e para ele isso é verdade. Mas se essa verdade fosse independente, então uma outra
pessoa também teria que ver essa mesma mulher como bonita. Essa verdade não é independen-
te; depende da mente de cada um, da projeção de cada um.
A mente dualista cria muitas expectativas, muito medo, muitas esperanças. Onde quer que a
mente dualista exista, existe a esperança, existe o medo. A esperança é uma forma perfeita e
sistematizada de sofrimento. Com relação ao medo nenhuma explicação é necessária, mas nossa
tendência é pensar que a esperança não é sofrimento. Na verdade, porém, é um grande sofri-
mento e definitivamente é uma fonte de dor.

O Buda ensinou “conheça o sofrimento.” Essa é a primeira Nobre Verdade. Muitos de nós toma-
mos erroneamente o sofrimento pelo prazer. O prazer que tenho hoje é, na verdade, a própria
causa da dor que vou estar experimento mais cedo ou mais tarde. Uma outra forma que o budis-
mo tem de colocar isso é dizer que, quando uma grande dor fica menor, tomamos isso por pra-
zer. Esse é o período que chamamos de felicidade.
Além disso, a emoção é algo que não tem uma existência intrínseca. Quando uma pessoa que
está com sede vê água em uma miragem, tem um sentimento de alívio, “Ah, encontrei água!”
Porém, à medida que se aproxima, a qualidade e a percepção desaparecem e, por fim, resta a
decepção. Esse é um aspecto bastante importante da definição de emoção, segundo o budismo:
“Algo que não tem nada em sua essência,” “Algo que não tem existência autônoma” < isso mes-
mo, existência autônoma.

Os budistas concluem que todas as emoções são sofrimento porque são impermanentes e dua-
listas, o que quer dizer que estão envoltas em incerteza e vêm acompanhadas de esperança e
medo, não tendo, em última análise, qualquer natureza dotada de existência intrínseca. Então,
podemos dizer elas não valem a pena tanto assim. Tudo o que criamos por intermédio das emo-
ções, ao final, é completamente fútil e doloroso. Por essa razão os budistas fazem meditação
shamatha e vipassana. O benefício que isso nos traz é soltar o laço com o qual as emoções nos
prendem, soltar a fixação que temos em relação às emoções.

O Terceiro Selo

“Todos os fenômenos são desprovidos de existência intrínseca. Aqui estamos falando de shunya-
ta, vacuidade. Quando dizemos todos os fenômenos, isso inclui todas as coisas, até mesmo o
Buda, a iluminação ou o caminho. Os budistas definem fenômeno como algo que possui caracte-
rísticas e que seja um objeto percebido por um sujeito. É a ignorância que toma o objeto como
algo externo e faz com que ignoremos a verdade daquele fenômeno. A verdade do fenômeno é
o que denominamos shunyata, vacuidade, o que dá a entender que ele não possui uma essência
que exista verdadeiramente. Quando um sujeito enganado vê um objeto, este é interpretado
como algo que existe verdadeiramente. No entanto, a existência que o sujeito imputa ao objeto
é uma suposição equivocada que aparece apoiada em diferentes condições. Como no caso de
alguém que vê uma miragem, a pessoa não tem diante dos olhos uma miragem dotada de exis-
tência verdadeira. Ao falar em vacuidade, o Buda queria dizer que as coisas de fato não existem
como equivocadamente acreditamos que elas existam, e que as coisas são, em realidade, vazias
dessa existência falsamente imputada.

Por que acreditam no que é, na realidade, apenas projeções confusas, os seres sencientes so-
frem, e para corrigir isso o Buda ensinou o Darma. De modo muito simples, podemos nos referir
à vacuidade dizendo “a maneira como as coisas aparecem não é como elas realmente são.”
Como expliquei ao falar sobre a emoções, quando você olha para um fenômeno como se esti-
vesse olhando para uma miragem, ele desaparece à medida que você se aproxima, ainda que no

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princípio parecesse real.

A vacuidade é, às vezes, denominada dharmakaya e, em um contexto diferente, poderíamos es-


tar descrevendo como o dharmakaya é permanente, imutável, permeia tudo < todas essas pala-
vras poéticas e belas. Essas são palavras místicas que dizem respeito ao caminho. Agora, porém,
estamos tratando do terreno, da base, estamos nos esforçando para adquirir uma compreensão
intelectual. No caminho é possível retratar o Buda Vajradhara como um símbolo do dharmakaya
ou da vacuidade, mas do ponto de vista acadêmico até mesmo pensar em pintar o dharmakaya é
um erro.

P: Se nós próprios somos dualistas, podemos chegar a compreender a vacuidade, que é algo que
está além de qualquer descrição?

R: Os budistas são muito escorregadios. Você tem razão: não podemos nunca falar da vacuida-
de absoluta, mas podemos falar de uma “imagem” da vacuidade. Então, você pode avaliá-la,
contemplá-la e, por fim, chegar à verdadeira vacuidade. E se você dissesse, “Mas isso é facili-
tar as coisas demais, isso é uma embromação,” os budistas diriam, “Mas é assim que as coisas
funcionam.” Se você precisa encontrar alguém com quem nunca tenha estado antes, eu posso
descrever essa pessoa para você, mostrar-lhe uma fotografia dela e, com a ajuda dessa imagem,
você pode ir e achar a verdadeira pessoa. O caminho, em última instância, é irracional mas,
do ponto de vista relativo, é muito racional, pois se casa com as convenções relativas do nosso
mundo. Quando estou falando da vacuidade, tudo que estou apresentando é uma “imagem” da
vacuidade. Não posso lhe mostrar a verdadeira vacuidade, mas posso lhe contar porque as coisas
não são dotadas de existência intrínseca.

O Buda ensinou três caminhos diferentes em três momentos separados, conhecidos como “Os
Três Giros da Roda”. Porém, ele resumiu esses três caminhos em uma única frase: “Mente; não
há mente; a mente é luminosa.” Aqui “Mente” se refere ao “primeiro giro da roda,” o primeiro
conjunto de ensinamentos. Indica que o Buda ensinou que há uma “mente”, e isso serve para
afastar a visão niilista de nenhum céu, nenhum inferno, nenhuma causa e efeito. Quando ele
disse, “Não há mente,” isso reflete o ponto de vista de que a mente é apenas um conceito e
que não existe algo como uma mente dotada de existência verdadeira. A terceira afirmação, “A
mente é luminosa,” aponta para a natureza búdica, a sabedoria sem equívocos nem ilusões que
existe deste o começo.

Nagarjuna, um grande comentarista, disse que a finalidade do primeiro giro foi afastar tudo
que é não-virtuoso. Quando a não-virtude aparece? Quando você se torna eternalista ou niilista.
Portanto, para pôr fim aos atos e pensamentos não virtuosos, o Buda fez o primeiro sermão. O
segundo giro, no qual o Buda ensinou sobre a vacuidade, foi apresentado para afastar o apego
ao eu, bem como o apego aos fenômenos como verdadeiramente existentes. O terceiro giro
destinou-se a afastar todos os pontos de vista, todas as visões, até mesmo a visão da ausência
do eu. Os três conjuntos de ensinamentos do Buda não pretendem introduzir algo de novo; sua
finalidade é apenas eliminar a confusão.

Como budistas, praticamos compaixão mas, se nos falta a compreensão deste terceiro selo, a
compaixão pode ser um tiro que sai pela culatra. Se você fica apegado à meta da sua compai-
xão, ao solucionar um problema é possível que você passe por cima do fato de que a sua idéia
de solução está inteiramente baseada na sua interpretação, e você pode acabar vítima da espe-
rança e do medo, vítima da decepção. Você pode se tornar um bom praticante do mahayana e,
uma vez, duas vezes, você tenta ajudar os seres sencientes. Mas, porque lhe falta a compreen-
são deste terceiro selo, pode ser que você fique cansado de ajudar os seres sencientes.

Um outro tipo de problema que também vem da falta de compreensão da vacuidade e que ocor-

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re com budistas mais superficiais ou enfastiados, tem a ver com a questão de que, nos círculos
budistas, se você não aceita a vacuidade, então você não está por dentro. Assim, fingimos que
apreciamos a vacuidade e fingimos meditar sobre ela. No entanto, quando não a compreende-
mos adequadamente, pode surgir um efeito colateral nocivo. Dizemos, “Ah, tudo é vacuidade.
Posso fazer tudo o que eu quiser.” Ignoramos e violamos os detalhes do carma, a responsabili-
dade sobre nossos atos. Você se torna deselegante e também uma fonte que leva os outros a
perder inspiração. Sua Santidade o Dalai Lama muitas vezes faz referência a essa falha que é
a não-compreensão da vacuidade. A compreensão correta da vacuidade nos leva a ver como as
coisas são inter-relacionadas e como temos responsabilidade por nosso mundo.

Você pode ler milhões de páginas sobre esse assunto. Só de Nagarjuna você pode ler cinco co-
mentários diferentes que tratam basicamente deste tópico. Há também comentários escritos
pelos seguidores de Nagarjuna. Há incontáveis ensinamentos sobre o estabelecimento da visão
da vacuidade. Nos templos ou monastérios mahayana canta-se o Sutra do Coração da Prajnapa-
ramita, que também é um ensinamento sobre o terceiro selo.

As filosofias ou religiões podem dizer “as coisas são ilusórias”, “o mundo é maya, ilusão”, mas
há sempre uma ou duas coisas que ficam de fora por serem tidas como verdadeiramente exis-
tentes < como Deus, a energia cósmica, seja lá o que for. No budismo, não é isso que acontece.
Tudo no samsara e no nirvana, da cabeça do Buda até um pedaço de pão, tudo é vacuidade. Não
há nada que não esteja incluído na verdade última.

P: No budismo há tanta iconografia que parece ser objeto de meditação ou de adoração. No en-
tanto, seu ensinamento parece me conduzir para a compreensão de que tudo isso é inexistente.

R: Quando você vai a um templo, vê muitas belas estátuas, cores e símbolos. Eles são importan-
tes no caminho. Isso é o que chamamos “imagem” da sabedoria, “imagem” da vacuidade. Ainda
assim, mesmo enquanto seguimos pelo caminho e aplicamos seus métodos, precisamos saber
que o caminho, em última instância, é uma ilusão. O caminho, de modo bastante hábil, coadu-
na-se com a nossa mente habitual e, ainda assim, tem o potencial de, ao final, despertá-la.

O Quarto Selo

Com a explicação dada sobre a vacuidade acho que de algum modo já cobrimos o “Nirvana está
além dos extremos.” Esse último selo também é um ponto de vista único ao budismo. Em muitas
filosofias ou religiões a meta final é alguma coisa na qual podemos nos firmar, a qual podemos
conservar: “a meta final é a única coisa verdadeira que existe.” No budismo, porém, a meta não
é fabricada; por isso não pode ser guardada. Por isso dizemos: ela está “além dos extremos.”
Talvez imaginemos que, de algum modo, poderíamos ir para um lugar onde houvesse um sofá
melhor, um chuveiro melhor, uma rede de esgotos melhor, algum tipo de nirvana onde você não
precisa nem mesmo de controle remoto, onde todas as coisas aparecem no momento em que
você pensa nelas. No entanto, como disse antes, nós não introduzimos alguma coisa que não
estava presente antes. A meta é alcançada quando removemos o que havia de artificial e obscu-
rante. Não ficamos apegados a uma verdade última dotada de existência real, a um nirvana que
realmente existe.

Quer você seja um monge ou monja que tenha renunciado à vida mundana, quer seja um io-
gue que pratique métodos tântricos profundos, quando você busca abandonar ou transformar o
apego às suas próprias experiências, se você não tem familiaridade com esses quatro selos você
estará encarando suas experiências como manifestação de alguma coisa má, satânica, ruim. Isso
quer dizer que você estará longe da verdade. Todo o budismo tem por objetivo levar à compre-
ensão da verdade. Se houvesse alguma permanência verdadeira nas coisas compostas, se hou-

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vesse prazer verdadeiro nas emoções, o Buda teria sido o primeiro a recomendá-las, dizendo,
“Por favor, guardem e prezem essas coisas,” porque o que ele queria, em sua grande compaixão,
era que tivéssemos o que é verdadeiro, real.

Quando você tiver uma clara compreensão desses quatro selos como a base da sua prática, você
se sentirá confortável, independentemente das experiências que surgirem. Desde que você
mantenha esses quatro selos como a sua visão, nada pode sair errado. A pessoa que mantém
esses quatro selos no coração ou na mente, a pessoa que os contempla, é budista. Ainda que não
ostente o rótulo de budista, ela será uma seguidora do Buda.

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Fenômenos Pessoais e Gerais
Thinley Norbu Rinpoche

As coisas não são o que parecerem


Nem são qualquer outra coisa.
(Senhor Buddha, Lankavatara Sutra)

Dentro da verdade relativa, sempre há circulação e reflexão entre interno e externo, sutil e
grosseiro, sujeito e objeto, e entre fenômenos pessoais e gerais. Se não pudermos distinguir
entre fenômenos pessoais e gerais, nos tornamos confusos e não podemos fazer uma conexão
significativa entre sujeito e objeto.

Um exemplo de fenômenos pessoais são os fenômenos do sonho que surgem à noite, a partir dos
hábitos diurnos. Em um sonho podemos ver uma casa. Porque esta é visível apenas para nós, ela
é nosso fenômeno pessoal. Então podemos realmente construir a casa, que se torna visível para
todos aqueles que a vêem. Este é um fenômeno geral.

Os fenômenos gerais são os hábitos coletivamente compartilhados, geralmente visíveis ou obje-


tivos, de grupos de pessoas ou de sociedades. Diferentes expressões de fenômenos pessoais vêm
juntos para criar fenômenos gerais, que por sua vez deixam um resíduo em fenômenos pessoais
adicionais. Por exemplo, um estilista pode introduzir uma nova moda através de seus fenômenos
pessoais. Isto transforma-se em fenômenos grupais gerais que podem inspirar um outro estilista,
que por sua vez pode criar uma nova moda derivada.

Confiamos nos fenômenos gerais através de elementos e lógica grosseiros complementares, com
os quais concordamos. Por exemplo, se conhecemos apenas o açúcar branco e nunca tivermos
visto o açúcar marrom, temos os fenômenos do açúcar branco, e quando quer que pensemos
em açúcar, automaticamente pensamos “branco”. Nem mesmo precisamos da palavra “branco”
porque ela é geralmente concordada e assumida. Mas se em algum outro lugar há pessoas que
só conheçam o açúcar marrom, elas nem mesmo precisam da palavra “marrom” porque quando
pensam em açúcar, automaticamente pensam “marrom”. Aquelas que tem tanto o hábito do
açúcar branco quanto o do marrom pensam, “Qual açúcar, branco ou marrom?”

A menos que nossa mente dualista esteja no torpor da mente inconsciente ou até que ela se
torne a iluminada Mente de Sabedoria não-dualista, sempre haverá fenômenos obstruídos. Onde
os fenômenos são obstruídos, sempre há conceitos verdadeiros e falsos; a verdade de um é a
falsidade do outro e a falsidade de um é a verdade do outro. De acordo com a mente dualista, a
verdade existe temporariamente como conceitos verdadeiros e falsos dependendo de sua rela-
ção com a intenção e com as circunstâncias. É isso que chamamos de verdade relativa.

Dentro do sistema da verdade relativa há duas divisões: verdade relativa real e verdade relativa
invertida. Estas duas divisões não são categorias absolutas, mas sim relativas uma para com a
outra e dependem do ponto de vista. Por exemplo, para um tigre, uma tigresa é atrativa. Esta
é a sua a verdade relativa real. Para nós um tigre é apenas amedrontador, e sua paixão é uma
verdade relativa invertida.

De acordo com a mente ordinária, a verdade relativa real é o que pode ser percebido através
dos sentidos e que funciona. Neste sistema, a verdade relativa invertida é um símbolo da verda-
de relativa atual, como uma pintura da lua ou o seu reflexo na água, que não funciona porque
ela divide os elementos invisíveis internos dos elementos visíveis externos.

De acordo com a mente sublime, a verdade relativa atual e a verdade relativa invertida da
mente ordinária são, ambas, uma verdade relativa invertida. Para a mente sublime, a verdade

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absoluta está além dos conceitos de interno e externo, então as duas verdades da mente ordiná-
ria são ambas ilusões criadas pela mente deludida, na qual não se pode confiar para alcançar a
iluminação.

A verdade relativa invertida dos fenômenos pessoais podem ser nossa verdade relativa atual
para os fenômenos gerais. Por exemplo, um mágico sabe que sua mágica não é verdadeira, mas
ele cria truques mágicos nos quais sua audiência ingênua acredita como sendo verdadeiros. A
verdade relativa invertida dos fenômenos gerais pode ser a verdade relativa atual para os fenô-
menos pessoais. Por exemplo, as motivações de Hitler eram uma lunática verdade relativa inver-
tida para muitas nações, mas para ele eram uma inteligente verdade relativa atual. Suas ações
foram uma verdade relativa atual para todos.

Os seres ordinários acham que as qualidades desejáveis são úteis. Isto é a sua verdade relativa
real. Os praticantes do Hinayana acham que estas mesmas qualidades são inúteis, que são a cau-
sa do sofrimento, sem benefício para alcançar a iluminação. Para eles a verdade relativa atual
dos seres ordinários é uma verdade relativa invertida. Os praticantes do Hinayana acham que
as qualidades desejáveis são reais e tentam abandoná-las através da aversão a fim de atingir a
iluminação. Esta é a sua verdade relativa atual. Os praticantes do Mahayana acham que, para
aqueles que vêem os fenômenos como ilusórios, não há causa para apego ou aversão, o que é
um benefício para alcançar a iluminação. Para eles a verdade relativa atual do Hinayana é uma
verdade relativa invertida. Os praticantes do Mahayana acham que todas as qualidades desejá-
veis e indesejáveis são ilusórias. Esta é a sua verdade relativa real. Os praticantes do Vajrayana
interior acham que ver todas as qualidades como fenômenos divinos puros é um benefício para
atingir a iluminação. Para eles, a verdade relativa atual do Mahayana é uma verdade relativa
invertida. Os praticantes do Vajrayana interior acham que o que quer que surja é a exibição da
sabedoria. Esta é a sua verdade relativa atual.

De acordo com a verdade relativa atual de alguns cientistas niilistas modernos, todos os fenô-
menos são criados ao acaso ou por acidente. Mas de acordo com a verdade relativa atual do
buddhismo, a intenção individual cria todos os fenômenos pessoais e gerais, e o acaso ou aci-
dente é definida como a manifestação impura do karma anterior. O karma dos fenômenos pes-
soais toma efeito do mesmo modo que uma semente plantada em condições desfavoráveis ou
favoráveis. A circunstância raiz - a semente - tem dormente dentro de si a receptividade para
as circunstâncias contribuintes adequadas - os elementos terra, água, fogo, ar e espaço. Se elas
ocorrerem juntos na hora e lugar favoráveis, a semente cresce como uma planta saudável. Do
mesmo modo, se nosso karma não é bom, nossa circunstância raiz - a mente - será atraída para
circunstâncias contribuintes - que não são conducentes a um renascimento favorável - e renas-
ceremos com os obscurecimentos resultantes. Se nosso karma é bom, nossa circunstância raiz -
a mente - será atraída para outras circunstâncias contribuintes - pais cujos genes, qualidades ou
situação no tempo e lugar sejam conducentes a um renascimento favorável.

O karma dos fenômenos pessoais também se liga com circunstâncias contribuintes constituídas
por fenômenos grupais gerais ruins e bons, como inanição e genocídio em massa, ou prosperida-
de e paz nacionais. Os fenômenos pessoais de pessoas que não acreditam no karma muitas vezes
atraem fenômenos grupais gerais ruins porque são baseados sobre a crença no poder do ego dos
elementos grosseiros. Essas pessoas acreditam que os fenômenos podem ser terminados através
dos meios dos elementos grosseiros e não acreditam no poder da mente para reaparecer em
novas formas visíveis e invisíveis. Elas não têm medo de criar fenômenos negativos com seus ele-
mentos grosseiros a fim de atingir suas intenções impuras, que vêm da energia dos elementos
kármicos de muitas vidas passadas.

Se forem líderes políticos, elas atrairão fenômenos grupais gerais ruins através do assassinato ou
genocídio, tentando limpar seu país de pessoas que consideram como sendo inferiores. Por outro

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lado, os líderes políticos que entendem a natureza do karma realizam que a mente nunca morre
e que os inimigos - os fenômenos negativos de um país - não podem ser terminados pelos meios
dos elementos grosseiros, como através do assassinato ou do genocídio. Gandhi era um líder
assim. Ele entendeu que os fenômenos positivos deveriam ser criados com a intenção, e através
dos fenômenos pessoais de sua mente pacífica ele tentou criar fenômenos gerais pacíficos.

Independente de nossas tendências políticas, estamos sempre sofrendo de um lado para o ou-
tro entre fenômenos gerais e pessoais. Às vezes, através do acordo dos fenômenos gerais, nos
libertamos e nos revoltamos contra os fenômenos pessoais de um ditador mau. Então elegemos
um novo líder, que cria novos fenômenos gerais através de seus fenômenos pessoais, e que por
sua vez iremos querer mudar novamente. Sejam nossos fenômenos bons ou ruins, é o fenômeno
geral do samsara estar sempre circulando.

Os fenômenos gerais impermanentes sempre mudarão ou ferirão os fenômenos pessoais de um


líder ordinário, que acredita apenas no poder do ego dos elementos grosseiros. Uma pessoa
sublime com a energia da sabedoria pura pode mudar os fenômenos gerais com seus fenômenos
pessoais, mas ele nunca irá feri-los. Os fenômenos gerais nunca podem mudar ou ferir seus fenô-
menos pessoais puros porque os elementos impuros grosseiros dos fenômenos gerais não podem
penetrar em seus elementos puros, assim como um vulcão nunca pode afetar a fonte da bri-
lhante luz solar. Ele tem o poder secreto da sabedoria sem ego, que é inexaurível e que sempre
beneficia porque é leve e puro.

Sem este poder puro, a energia dos elementos sutis deve depender da energia oscilante dos
elementos grosseiros. Se não reconhecemos as circunstâncias raiz de nossa essência secreta e se
usarmos a energia de nossos elementos sutis externamente, sobre as circunstâncias contribuin-
tes, então quando as circunstâncias contribuintes diminuírem, nossa energia diminuirá. Apesar
de a energia de nossas circunstâncias raiz secretas nunca diminuir, ela pode se tornar dormente
ou oculta através da negligência e de não nos conectarmos com as circunstâncias contribuintes,
então assim esta energia é perdida para nós quando precisamos dela.

Se pudermos realizar o potencial secreto de nossos elementos, podemos criar novas circuns-
tâncias contribuintes infinitamente. Circunstâncias raiz ordinárias dependem de circunstâncias
contribuintes para se desenvolverem, mas as circunstâncias raiz secretas da Mente de Sabedoria
não precisam de circunstâncias contribuintes a fim de se manifestarem porque elas são a essên-
cia secreta pura. Quando reconhecidas, elas não diminuirão nem se tornarão dormentes, mesmo
quando as circunstâncias contribuintes mudam, pois elas nunca dependem de circunstâncias
grosseiras ou sutis. É por isso que elas são chamadas de secretas.

De acordo com a lógica ordinária do samsara, as circunstâncias raiz e as circunstâncias contri-


buintes são sempre diferentes, mas de acordo com a lógica sublime, as circunstâncias contri-
buintes são inerentes dentro das circunstâncias raiz; uma não pode existir sem a outra, assim
como a luz não pode existir sem a escuridão. Se não fosse assim, como poderíamos encontrar e
aceitar circunstâncias contribuintes?

Através do encontro das circunstâncias contribuintes dos bons elementos leves com nossas
circunstâncias raiz dos bons elementos leves, a separação entre circunstâncias contribuintes e
circunstâncias raiz torna-se menor e menor, e as qualidades espirituais tornam-se mais vastas e
leves. Quando elas se tornam completamente inseparáveis, e as circunstâncias contribuintes e
não são diferentes das circunstâncias raiz, chamamos isto de iluminação.

Até que nos tornemos iluminados, os fenômenos pessoais e gerais comunicam-se uns com os
outros. Por causa desta comunicação, é possível que as qualidades espirituais dos seres ilumina-
dos tornem-se conspícuas através de suahistória e permaneçam como ecos no sistema espiritual

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geral, mesmo que a fonte de seus fenômenos puros auto-visíveis seja invisível para nós até a
iluminação. Para os indivíduos, assim como para os grupos, quando a circunstância contribuinte
- a história sublime dos seres iluminados - junta-se com a circunstância raiz - a semente da ilu-
minação de nossa essência secreta -, a semente pode despertar e crescer. Juntando estas duas
circunstâncias, nossas qualidades espirituais aumentam.

Quando tentamos lembrar de grandes seres sublimes como Milarepa, Jesus, Buddha Shakyamuni
e Padmasambhava, achamos que eles realizaram milagres intencionalmente. É claro que é bom
se sentir deste modo porque tentando nos conectar com a essência secreta pura deles, acumula-
mos mérito. Mas a percepção desta intenção é apenas nosso acordo de fenômenos grupais ge-
rais. Realmente estes milagres apareceram apenas quando os seres sublimes usaram a essência
secreta pura e não-dividida dos elementos, que existe desde o início, a fim de fazer a verdade
se tornar conspícua.

Pensamos que eles estavam realizando milagres e criando mágica porque somos limitados pelos
obscurecimentos e pelos nossos obscurecimentos sutis, pornão acreditarmos no que nós mesmos
podemos fazer. Então quando, de acordo com o acordo os fenômenos grupais gerais, é dito que
Jesus andou sobre a água, acreditamos que isto é um milagre porque nossa obscurecida mente
dualista divide os elementos entre água e terra. De acordo com os fenômenos pessoais de Jesus,
ele não andou sobre água. Com sua mente de equanimidade, ele estava apenas permanecendo
na essência secreta primordial dos elementos, que nunca é dividida, sempre vasta, inseparavel-
mente permeando tudo. De acordo com a percepção do hábito dividido dos fenômenos grupais
gerais, um evento puro torna-se impuro porque obscurecemos a verdade relativa de Jesus sepa-
rando-o da verdade absoluta de Jesus. Quando é dito que Jesus andou sobre a água, isto signifi-
ca que através das circunstâncias contribuintes desta história, ele estava adaptando as faculda-
des individuais e encorajando os seres a aumentarem suas qualidades espirituais.

Os elementos grosseiros e sutis estão sempre conectados com sua essência secreta. As pessoas
que viram Jesus andando sobre água tinham uma boa ligação kármica com ele porque, com os
elementos de seus fenômenos grosseiros e sutis, eles puderam se conectar com a essência secre-
ta pura do que perceberam como sendo um milagre. Mesmo agora, quando ouvimos através da
história da linhagem inquebrantável de nossos elementos que Jesus andou sobre a água, estamos
usando os fenômenos de nossos elementos grosseiros e sutis para conhecer os fenômenos da
essência secreta pura de Jesus.

O Buddha disse, “Eu mostrei a vocês o caminho da liberação; se vocês atingirão ou não a libera-
ção, isto depende de vocês.” Isto significa que sem tentarmos encontrar a liberação através do
exame interno, não podemos reconhecer a verdade dentro de nossos fenômenos pessoais, cuja
fonte é a essência secreta pura dos elementos. Ainda tentamos encontrar a liberação apenas
através do exame externo e esperamos reconhecer a verdade em nossos fenômenos grupais ge-
rais, cuja fonte são os elementos grosseiros. Se pensarmos que podemos beneficiar nossos fenô-
menos pessoais desenvolvendo os elementos grosseiros de nossos fenômenos gerais, não realiza-
remos que nós não podemos confiar nos fenômenos dos elementos grosseiros porque eles são
impermanentes e morrerão. Quando os elementos externos tornam-se inflexíveis, inertes, e di-
minuem, nossos fenômenos pessoais não-desenvolvidos parecem desesperados. Então, por causa
de nossa falta de confiança na fonte pura de nossos fenômenos pessoais, culpamos os fenômenos
gerais e dizemos que o Dharma é falso. Deste modo, através da inexperiência com a essência
secreta pura dos elementos, criamos fenômenos negativos diante dos fenômenos gerais e nunca
amamos ou temos fé em nós mesmos. Mas se primeiro reconhecermos e estabelecermos con-
fiança na essência secreta pura e na leve energia de nossos próprios fenômenos pessoais, po-
demos amar e ter fé em nós mesmos porque entenderemos claramente que a fonte de todas as
qualidades puras - que nunca desvanece e que nunca diminui - é a nossa Mente de Sabedoria.
Então somos automaticamente auto-conquistados pelaauto-sedução pura das cinco Dakinis de

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Sabedoria, que governam os cincoelementos universais e que são as consortes dos cinco Buddhas
de Sabedoria. Através desta auto-evidência, através do espontâneo aumento infinito de nossas
qualidades espirituais, podemos gerar fenômenos positivos espontaneamente diante dos fenô-
menos gerais, que se tornam puros através de nossa visão pura.

Se não tivermos este ponto de vista da sabedoria pura, quer pratiquemos com yoga, rituais,
visualização ou meditação de acordo com as faculdades de nossos fenômenos pessoais, apenas
permanecemos no samsara dos elementos sutis. Se praticamos de acordo com o Dharma puro,
não importa se temos concepções negativas ou positivas, já que ambas podem ser dissolvidas na
mente de equanimidade. Quando o negativo não tem uma essência negativa sólida e o positivo
não tem uma essência positiva sólida, ambos aparecem apenas como uma exibição. Então os
fenômenos da realidade samsárica dissolvem-se e não mais há nem mesmo o nome “samsara”.
Apenas com um ponto de vista de sabedoria é que poderemos transformar nossos auto-fenôme-
nos dos elementos grosseiros pessoais impuros em fenômenos da sabedoria auto-secreta pura.
Já que todos os fenômenos gerais vêm dos fenômenos pessoais, quando os fenômenos pessoais
tornam-se puros, os fenômenos gerais impuros também se tornam puros. Através desta trans-
formação, podemos espontaneamente ajudar os seres sem rejeitar os fenômenos gerais e sem
aceitar os fenômenos pessoais, tornando-nos um com a essência secreta pura de todos os fenô-
menos.

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Ignorância
Tenzin Wangyal Rinpoche

Toda a nossa experiência surge da ignorância. Esta é uma afirmação bem surpreendente se feita
no Ocidente, então primeiro vamos entender o que significa ignorância (tib. ma-rigpa). A tradi-
ção tibetana distingue dois tipos de ignorância: ignorância inata e ignorância cultural. A ignorân-
cia inata é a base do samsara e a característica definidora dos seres comuns. É a ignorância de
nossa própria natureza verdadeira e da natureza verdadeira do mundo, e resulta no embaraço
com as delusões da mente dualista.

O dualismo cria polaridades e dicotomias. Ele divide a unidade sem costura da experiência em
“isto” e “aquilo”, “certo” e “errado”, “você” e “eu”. Baseados nestas divisões conceituais,
desenvolvemos preferências que se manifestam como o apego e a aversão, as respostas habi-
tuais que fabricam a maioria do que identificamos como sendo nós mesmos. Queremos isto,
não aquilo; acreditamos nisto, não naquilo; respeitamos isto e desdenhamos aquilo. Queremos
prazer, conforto, riqueza e fama, e tentamos escapar da dor, pobreza, vergonha e desconforto.
Queremos estas coisas para nós mesmos e para aqueles que amamos, e não nos importamos com
os outros. Queremos uma experiência diferente daquela que estamos tendo, ou queremos man-
ter uma experiência e evitar as mudanças inevitáveis que a conduzirá à sua cessação.

Há um segundo tipo de ignorância que é culturalmente condicionado. Ele vem quando os desejos
e aversões tornam-se institucionalizados em uma cultura e codificado em sistemas de valores.
Por exemplo, na Índia, os hindus acreditam que é errado comer vacas mas adequado comer por-
cos. Os muçulmanos acreditam que é apropriado comer bife mas são proibidos de comer porco.
Os tibetanos comem ambos. Quem está certo? O hindu acha que os hindus estão certos, o mu-
çulmano acha que os muçulmanos estão certos e o tibetano acha que os tibetanos estão certos.
As crenças diferentes surgem das tendências e crenças que são parte da cultura - não da sabe-
doria fundamental.

Um outro exemplo pode ser encontrado nos conflitos internos da filosofia. Há muitos sistemas
filosóficos que são definidos por suas discordâncias de uma para com as outras a respeito de
pontos finos. Mesmo que os sistemas em si sejam desenvolvidos com a intenção de conduzir os
seres à sabedoria, eles produzem ignorância no sentido de que seus seguidores se apegam a um
entendimento dualista da realidade. Isto é inevitável em qualquer sistema conceitual porque a
mente conceitual é, por si mesma, uma manifestação da ignorância.

A ignorância cultural é desenvolvida e preservada em tradições. Ela permeia cada costume,


cada opinião, cada conjunto de valores e corpo de conhecimento. Tanto os indivíduos quanto as
culturas aceitam estas preferências de modo tão fundamental que elas são tomadas como sendo
um sentido comum ou uma lei divina. Crescemos nos apegando a várias crenças, a um partido
polít co, a um sistema médico, a uma religião, a uma opinião sobre como as coisas deveriam ser.
Passamos pela escola primária, pelo colegial e talvez pela faculdade, e em certo sentido cada
diploma é um prêmio pelo desenvolvimento de uma ignorância mais sofisticada. A “educação”
reforça o hábito de ver o mundo através de certas lentes. Nos tornamos experts em uma visão
errônea, nos tornamos muito precisos em nosso entendimento e nos relacionamos com outros
experts. Este pode ser o caso também na filosofia, na qual se aprende sistemas intelectuais
detalhados e se desenvolve a mente em um instrumento afiado de indagação. Mas até que a
ignorância fundamental seja penetrada, estaremos simplesmente desenvolvendo uma tendência
adquirida, não a sabedoria fundamental.

Nos tornamos apegados até mesmo às menores coisas: a um sabor específico de sopa ou ao nosso
cabelo sendo cortado em certo estilo. Em uma escala maior, desenvolvemos religiões, sistemas
políticos, filosofias, psicologias eciências. Mas ninguém nasce com a crença de que é errado co-

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mer bife ou porco, ou que um sistema filosófico é correto e que o outro está errado, ou
que esta religião é verdadeira e que a outra é falsa. Isto precisa ser aprendido. A submissão a
valores específicos é o resultado da ignorância cultural, mas a propensão a aceitar visões limita-
das origina-se no dualismo que é a manifestação da ignorância inata.

Isto não é ruim. É apenas o que é. Nossos apegos podem nos levar à guerra mas também podem
se manifestar como tecnologias úteis e como diferentes artes que são de grande benefício para
o mundo. Enquanto formos não-iluminados, participamos do dualismo e está tudo bem com isso.
No Tibet há um ditado, “Quando estiver no corpo de um burro, desfrute o sabor do capim”. Em
outras palavras, deveríamos apreciar e desfrutar esta vida porque é ela é significativa e valorosa
por si mesma, e porque ela é a vida que nós estamos vivendo.

Se não formos cuidadosos, os ensinamentos podem ser usados para sustentar nossa ignorância.
Alguém pode dizer que é ruim que obter uma graduação avançada ou que é errado ter restrições
de dieta, mas esta não é a questão. Ou alguém pode dizer que a ignorância é ruim ou que a vida
normal é apenas uma estupidez samsárica. Ser apegado a isto ou ser repelido por isto é apenas
o mesmo velho jogo do dualismo, jogado no reino da ignorância. Podemos ver o quão penetrante
ele é. Até mesmo os ensinamentos devem trabalhar com o dualismo - por exemplo, encorajando
o apego à virtude e a aversão à não-virtude - usando paradoxalmente o dualismo da ignorância
para superar a ignorância. Quão sutil nosso entendimento deve ser e quão facilmente podemos
nos perder! É por isto que a prática é necessária, a fim de ter a experiência direta ao invés de
apenas desenvolver mais um outro sistema conceitual para elaborar e defender. Quando as coi-
sas são vistas de uma perspectiva mais alta, elas tendem a se nivelar. Da perspectiva da sabedo-
ria não-dual, não há importante ou não-importante.

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O Caminho Excelente para a Iluminação
Prática Preliminar curta por
Jamyang Khyentse Wangpo
Explicada por
H.H. Dilgo Khyentse Rinpoche

1) a contemplação da raridade e preciosidade de um nascimento humano 2) a contemplação de


morte e impermanência. 3) a contemplação de karma, a lei de causa e efeito, 4) a contempla-
ção do sofrimento. 5) a contemplação das qualidades da insuperável liberação 6) a contempla-
ção da necessidade para seguir um mestre espiritual

O CAMINHO EXCELENTE PARA A ILUMINAÇÃO

Para escutar os ensinamentos, nós temos que gerar primeiro apropriada atitude como todas as
escrituras dos Sutras e Tantras explicam. Principalmente, isto insinua que nós temos de ter a
grande aspiração para alcançar ILUMINAÇÃO por causa dos outros. O Buddha deu um número
vasto de ensinamentos requeridos por seres de capacidades diferentes. De todos estes, nós
explicaremos aqui as chamadas instruções preliminares ou prática de fundação, que têm duas
partes: a parte exterior ou geral; e a parte interna ou extraordinária.

As Preliminares Gerais

Começar com saber que a devoção é a fonte principal de nosso progresso no caminho, no come-
ço de cada sessão nós deveríamos visualizar no céu diante de nós, ou sobre nossa cabeça, nosso
guru de raiz na forma de Guru Padmasambhava, resplandecente com sabedoria, sorrindo com
compaixão, sentado no meio de uma massa de luz de arco-íris. Então com forte devoção nós
dizemos três vezes, “Lama kyeno”, que pode ser feito: “Guru você sabe tudo! Eu estou em suas
mãos!”, e lhe pede que nos abençoe de forma que nós possamos alcançar realização completa
do caminho profundo nesta mesma vida. Raios de luz emanam do Guru, enquanto tira o véu de
ignorância e nos enchendo de bênçãos.

Nós refletimos então na parte exterior ou geral destes preliminares para qual há seis tópicos. O
primeiro é refletir na raridade da existência humana que causará a nossas mentes de virar para
o Dharma. O segundo é a contemplação de morte e impermanência que nos faz perceber como
urgente é praticar o Dharma e aumentar nosso empenho. O terceiro é refletir na lei do carma de
causa e efeito, ou ações e os seus resultados que nos conduzirão a uma compreensão clara do
modo de como esta lei trabalha. O quarto é a instrução para nos ajudar a reconhecer que a
condição iludida de samsara nunca está sem sofrimento. O quinto é reconhecer que por receber
e praticar os ensinamentos, nós podemos nos livrar do samsara e no final das contas podemos
alcançar o insuperável nível de onisciência, ou ILUMINAÇÃO. O sexto é reconhecer que para
alcançar tal nível nós temos que confiar nas bênçãos e instruções de um professor espiritual.

1) A contemplação da raridade e preciosidade de um nascimento humano:

Pergunta-se quantos dos bilhões de habitantes deste planeta percebem como é raro ter nascido
como um ser humano. Quantos desses que percebem isto pensam de usar esta chance para
praticar o Dharma? Quantos destes na verdade começam a praticar? Quantos desses que come-
çam continuam praticando? Quantos desses que continuam atingem a última realização? O nú-
mero desses que atingem a última realização está como o número de estrelas que você pode ver
na alvorada; ao invés do número de estrelas que você pode ver em uma noite clara.

Pode haver vários tipos de existências humanas. Alguns estão perdidos em perseguições ordiná-

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rias e alguns são usados para progredir para ILUMINAÇÃO. Nascimento humano pode ser chama-
do precioso quando a pessoa for livre para praticar o Dharma e conheceu todas as condições
favoráveis por fazer assim. Assim ser livre das oito condições desfavoráveis das quais nós falare-
mos depois nos dá a oportunidade para praticar o Dharma. Mas lazer não é bastante. Nós tam-
bém precisamos de dez condições favoráveis, cinco que dependem de nós mesmos e cinco que
dependem de outros.

As cinco condições intrínsecas que surgem de nossa própria situação são: nascer um ser humano,
estar em um lugar onde o Dharma pode ser achado, ter todas as faculdades sadias, não viver e
agir dentro de um modo completamente negativo, e ter fé nos merecedores de fé.

Nós precisamos nascer um ser humano, com isto é o único estado de existência no qual se está
sofrendo bastante para nos fazer desejar estar livre de samsara intensamente, contudo não
sofrendo tanto que nós não tenhamos a oportunidade para se livrar pela prática do Dharma.

Nós precisamos nascer no que é chamado uma “terra-central”, significando um lugar onde os
ensinamentos do Buddha existem. Caso contrário nós não temos nenhuma chance de conhecer
estes ensinamentos e progredir ao longo do caminho.

Nós precisamos de todas nossas faculdades para estudar, refletir e praticar o Dharma. Por exem-
plo, se fosse cego não poderia ler os ensinamentos; se fosse surdo, a pessoa não os poderia
ouvir.

Nós precisamos conduzir nossa vida de um modo positivo. Se a direção de nossos objetos apega-
dos de vida estão para ações negativas -como ser um caçador, um ladrão, ou gastando a vida da
pessoa em guerra - naturalmente isso conduz na direção oposta das condições positivas para o
Dharma.

Nós precisamos ter fé e confiança nesses que podem nos guiar ao longo do caminho para a ILU-
MINAÇÃO - as Três Jóias, e o professor espiritual.

As cinco condições externas que dependem de outros são: um Buddha deve ter aparecido no
kalpa ou aeon nos quais nós estamos vivendo; o Buddha deve ter ensinado o Dharma; o Dharma
ainda deve estar presente no nosso tempo; deve ser praticado; e nós devemos ser guiados por
um professor espiritual.

Tudo isso constitui um nascimento humano dotado de todas as liberdades e condições favoráveis
para praticar o Dharma. Isso é que nós chamamos um nascimento humano precioso. Por que é
precioso? Porque, usando este nascimento humano, há um modo para alcançar ILUMINAÇÃO
nesta mesma vida. Todos os grandes siddhas do passado nasceram como seres ordinários; mas,
entrando na porta do Dharma, e seguindo um professor esclarecido e dedicando as suas vidas
inteiras a praticar as instruções que eles receberam, eles puderam manifestar as atividades
iluminadas de grande Bodhisattvas.

Se nós examinarmos os seis reinos de samsara um por um, nós podemos ver que, excluindo o
reino humano, os obstáculos para a prática do Dharma são muito fortes. Nos reinos inferiores,
como os infernos, sofrer é tão intenso que não há nenhuma chance pela mente contemplar e
praticar os ensinamentos. Nos reinos celestiais onde os seres podem voar no céu, alimento de
ambrosia e desfrutando todos os tipos de prazeres, as condições parecem mais favoráveis. Mas
porque as mentes destes seres estão completamente distraídas por essas tentações e o seu
sofrimento é tão mínimo, eles nunca se cansam de samsara e então nunca pensam em praticar o
Dharma. Assim, se nós não usarmos a oportunidade preciosa de uma existência humana, nós não
temos nenhuma escolha senão ir em declive como uma pedra rolante.

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2) a contemplação de morte e impermanência:

Ter atingido este nascimento humano não é bastante; nós podemos perder isto a qualquer mo-
mento por causa da morte. O tempo quando morte virá e as circunstâncias que trarão a morte
são totalmente incertas. Ninguém pode dizer, “eu viverei este ou aquele número de anos e
meses.” Quaisquer das circunstâncias cotidianas de nossa vida diária, como andar, comer, jogar,
cruzar um rio e assim sucessivamente, pode se mostrar ser a causa de nossa morte.

Impermanência não só afeta os seres vivos mas como também o universo exterior. O mundo
parece muito sólido a nós, mas ao término do kalpa será destruído por fogo e água. Ao longo das
estações do ano, pode ver a pessoa como as montanhas, florestas, e as várias características da
mudança de paisagem a cada dia, de mês a mês. Dentro de cada hora cotidiana, o tempo, a luz
- tudo muda. O rio que flui diante dos olhos da pessoa nunca é o mesmo, muda como cada mo-
mento passa. Nações são poderosas para um período da sua história e depois são conquistadas
por outras nações. Dentro do tempo de uma vida, pessoas podem ser uma vez muito ricas e
extremamente pobre e destituída de tudo. Assim, não há nenhuma certeza ou permanência a
qualquer aspecto do mundo fenomenal exterior.

Por que nós precisamos refletir inúmeras vezes sobre impermanência? Nós temos uma tendência
forte para pensar que nós e todas as condições nas quais nós estamos vivendo durarão, pensar
que há alguma permanência inerente nelas. Por causa disto, nós geramos apego muito forte a
fenômenos exteriores. Este é um engano. Se, ao invés, nós constantemente refletimos em im-
permanência, nós desenvolveremos um incentivo forte por voltar-nos ao Dharma. Nós constante-
mente devemos estar atentos que desde o momento mesmo que nascemos nós nos vimos mais e
mais próximos da morte. Não há nenhum modo para evitar a morte. Como diariamente isso
passa, nossas vidas estão correndo para isto. Quando o tempo da morte vem, até mesmo se a
pessoa for muito poderosa, não há nenhum modo para persuadir a morte para esperar. Até
mesmo se a pessoa for muito rica, a pessoa não pode suborná-la. Até mesmo se a pessoa for um
general poderoso, a pessoa não pode enviar um exército contra ela. Até mesmo se a pessoa for
muito bonita, a pessoa não pode seduzir morte. Não há nenhum modo da pessoa de poder parar
a morte.

No momento de morte, nada mais que o Dharma será de qualquer uso. De todos os medos en-
contrados nesta vida não há nenhum maior que a morte. Assim, para estar pronto para a morte,
nós não deveríamos esperar até o último momento para praticar o Dharma. Se nós quisermos
praticar o Dharma agora, nós podemos; mas na hora de morte, nós não seremos capazes para
isso. Nós seremos subjugados por sofrimento físico e angústia mental. Isso não é o tempo para
começar o pensamento de prática. Assim, da mesma maneira que uma pessoa inteligente plane-
ja o futuro à frente, nós deveríamos adquirir de pronto agora mesmo meios para enfrentar a
morte com a firmeza da prática madura. Nós não devemos desperdiçar um único momento,
como guerreiro com uma arma aderida no seu coração que sabe que só tem alguns momentos
para viver. Assim é agora, enquanto nós estamos com saúde boa e desfrutamos de todas nossas
faculdades físicas e mentais, que nós deveríamos praticar o Dharma. Nós não devemos adiar
isto, pensando, “eu praticarei algum tempo depois.” Nós temos que perceber a morte é um
evento muito assustador para esses que não estão preparados para isto. Nós não devemos pen-
sar, “eu tenho tantos anos à frente de mim “: a comida que nós há pouco comemos pode se
mostrar ser venenosa e nos causar morrer hoje à noite. Há muitos exemplos de causas inespera-
das de morte. Nós podemos vê-las ao redor de nós.

A impermanência pode ser achada em todos os aspectos da vida. Pessoas que alcançaram posi-
ções altas podem se achar logo em humildes; muitos desses que acumularam muito dinheiro
perderão isto depois - nenhum permanece rico sempre. Esses que formaram apegos fortes à

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família e amigos serão separados cedo ou tarde deles, alguns agora e todos eles na hora de
morte. Se nós estivermos atentos da ameaça constante da morte, nós não quereremos continuar
as atividades sem sentido das que nós nos ocupamos, assim distraidamente, dia depois após dia.

3) A contemplação de karma, a lei de causa e efeito:  


  
Se a morte fosse simplesmente como um consumo de fogo ou como água que seca, estaria bem.
Seria então de pequeno uso praticar o Dharma. Mas este não é o caso. Quando a mente e corpo
se separarem, o corpo é deixado para trás, mas a mente levará muitos mais renascimentos. Na-
quele ponto, a única coisa que determinará a direção que nossa existência levará é o equilíbrio
das ações positivas e negativas que nós cometemos no passado e embutimos em nossa consciên-
cia. Se ações negativas predominarem, nós experimentaremos o sofrimento de renascimento nos
mais baixos reinos. Se ações positivas predominarem, nós experimentaremos renascimento nos
estados mais altos de existência. Não está em nosso leito de morte ou no bardo que nós deverí-
amos começar a pensar nas ações positivas e negativas. Nós podemos muito bem reconhecer na-
quele momento que ações negativas são a causa de nosso sofrimento, e aquelas ações positivas
são o que nos conduziria à felicidade. Mas na hora de morte não há nada muito que nós podemos
fazer - nosso carma já foi construído.  
  
É agora, quando nós temos a liberdade para escolher entre o que nós deveríamos fazer e o que
nós não deveríamos fazer, que nós temos que considerar a lei de carma. Se nós pensamos que
nós podemos fazer que tudo que de bom ou ruim que nos agrada e que praticando um pequeno
Dharma nós seremos levados à Iluminação como se em um avião será é um engano sério.  
  
No bardo, até mesmo se nós lamentarmos todas nossas ações negativas, nós somos iguais a uma
pedra que foi lançada no ar; e só pode cair. Nós não podemos inverter o processo - o carma foi
acumulado. É tarde. Assim é agora que nós temos que ter uma discriminação boa reconhecendo
ações positivas e negativas. Até mesmo se uma ação positiva parecer insignificante, nós temos
que fazer isto. Até mesmo se uma ação negativa parecer pequena, nós temos que evitar isto.
Água que goteja por muito tempo pode encher uma bacia enorme; igualmente, toda ação tem
seu resultado. A pessoa nunca deveria pensar que uma ação secundária não deixa nenhum ras-
tro.  
  
Porém, até mesmo se nós nos ocupamos de ações negativas, nós não deveríamos pensar que elas
nos marcam para sempre. Qualquer peso de nossas ações negativas pode ser purificado. Não há
nada que não pode ser purificado. Assim nós temos que lamentar e temos que consertar todas
nossas ações negativas. Como dissemos, da mesma maneira que gotas pequenas de água podem
encher um recipiente enorme, ao longo de nossa vida diária nós temos que empreender constan-
temente juntar ações positivas por nosso corpo, fala e mente. Isto construirá uma acumulação
de mérito e virtude que nos ajudará quando enfrentar o medo de morte. A magnitude de ações
positivas e negativas não depende dos seus aspectos exteriores. É fácil de acumular grande car-
ma positivo ou grande carma negativo com uma ação pequena. Tudo depende de nossa intenção
ou atitude. Por exemplo, ajudar alguém de um modo pequeno, mas com grande bondade, acu-
mulará muito carma positivo. Igualmente, uma palavra simples é muito fácil dizer, mas se aque-
la palavra é, por exemplo, crítica de um Bodhisattva, acumule carma negativo ilimitado.  
  
A condição geral dos seres em samsara é ilusão, um estado que sempre produz sofrimento. Assim
se nós só há pouco deixarmos nossas ações negativas, então gradualmente sem os purificar, sem
confessar e os consertar, nós acumularemos carma negativo. Nós não poderemos receber as bên-
çãos do Buddhas e professores espirituais; nós não poderemos desenvolver experiência espiritual
e realização. Assim nós constantemente devemos estar atentos e atentos da diferença entre
virtuoso e ações não virtuosas, cultivando o anterior enquanto evitando o posterior.  
  

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Quando você acordar pela manhã, pense: “Eu tenho a boa fortuna de ter nascido como um ser
humano. Não só eu entrei na porta do Dharma, conheci um professor espiritual, e recebi as
instruções dele. Então hoje eu farei meu melhor de seguir o Dharma e praticar o que é positivo.
Isto que eu não só farei para minha própria causa, mas para o benefício de todos seres vivos sem
um “única exceção.”  
  
Quando estiver na hora para descansar pela noite, examine as ações, palavras e pensamentos
que você experimentou durante o dia. Se você fez algo positivo para você ou outros, você deve
se alegrar, deve dedicar o mérito a todos os seres sensíveis e deve pedir que por este mérito
eles possam todos atingir a Iluminação. Deseje que o próximo dia você possa cultivar até mesmo
ações mais virtuosas. Se você percebe que você entrou em ações negativas, pense: “Eu tenho
este nascimento humano precioso, eu conheci um professor, e ainda eu estou me comportando
deste modo.” Você tem que sentir forte pesar e determinação para não fazer tal equívoco nova-
mente.  
  
Adquirindo plena-atenção a pessoa constantemente precisa examinar as intenções de suas
ações. Seres ordinários que vão em volta do samsara nem mesmo pensam que suas ações ne-
gativas são negativas - que elas trarão conseqüências prejudiciais. Até mesmo se eles pensam
que por um tempo curto, eles não se lembram isto de, e quase nenhum deles coloca em ação os
meios para se opor a estas ações negativas. Esta é a mesma razão por que eles ficam em sam-
sara. Assim, a pessoa precisa de aguda e diligente plena-atenção das intenções das suas ações.
Precisamos, primeiro, nos lembrar claramente de quais ações deveriam ser evitadas e quais
deveriam ser levadas a cabo. E, segundo, observar se está agindo conforme o que a pessoa sabe
ser certo ou errado.
Para desenvolver plena-atenção diligente e firme, temos que perceber-nos em nossa condição,
nosso sofrimento em samsara, que não é o resultado de qualquer coisa mas só de nossas ações
negativas. Se nós não paramos estas ações negativas, mas continuamos da mesma maneira, nós
continuaremos experimentando sofrimento. Cultivando ações, palavras e pensamentos positivos,
nós estamos ganhando nossa própria felicidade. Se nós soubermos disto, assistiremos uma aten-
ção natural sobre nossa mente com uma diligência alerta.  
  
4) a contemplação do sofrimento:  
  
Qual é a razão de cultivar virtude e evitar a não-virtude? A natureza da condição de samsa-
ra ordinário nada mais é que sofrer. Isto ficará claro se a pessoa olhar para os vários reinos de
samsara. Nos reinos de inferno há sofrimento insuportável devido a calor ou frio; a causa deste
estado de ser é raiva e ódio. Os espíritos torturados fazem que nem mesmo ouçam falar por
muitos anos de água e comida; a causa deste estado é a ganância e avareza. Animais são cegos
ao caminho de liberação e não têm nenhum modo de reconhecer o que trará felicidade por eles
ou sofrer; animais domésticos são usados como escravos e matam-nos por sua carne e pele; a
causa deste estado é a estupidez, falta de discernimento entre virtude e não-virtude. Estes são
os três mais baixos reinos de samsara, cada uma de condição mais miserável.  
  
Também há os três reinos mais altos denominados - dos seres humanos, semi-deuses e deuses.
Seres humanos têm oito tipos diferentes de sofrer. Eles sofrem nascimento, doença, velhice e
morte. Eles sofrem ao encontrar os inimigos, separando-se de amigos, quando se encontram com
condições que eles não querem, e sendo separados das condições de eles gostam.  
  
Semi-deuses constantemente são atormentados por ciúme e hostilidade para os deuses, ou os
seres celestiais, porque a árvore-que-satisfaz-os-desejos está arraigada no seu reino deles mas
dão frutos no reino dos deuses. Quando os semi-deuses vêem os deuses que desfrutam desta
fruto, e também os lagos de ambrosia e todos os outros prazeres e perfeições que eles não po-
dem ter, eles se queimam com ciúme insuportável e tentam atacar e lutar contra os deuses, mas

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sempre são derrotados.  
  
Até mesmo os seres celestiais que parecem ter tudo que a pessoa poderia desejar - palácios
bonitos, jardins bonitos, florestas que encheram de flores e pássaros, companheiros bonitos, co-
mida deliciosa e assim sucessivamente - está longe de estar além do sofrimento. Depois de eles
desfrutar destes frutos de ações positivas secundárias e quando o carma deles for exausto, eles
terão novamente renascidos nos estados mais tristes de samsara.

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Vendo a Vacuidade Diretamente
Geshe Lobsang Chünzin

Nos ensinamentos buddhistas, ouvimos bastante sobre o Nirvana, mas como podemos saber exa-
tamente o que ele é e como atingi-lo? A palavra tibetana para Nirvana significa “ir além do so-
frimento” e acontece quando você elimina inteiramente todos os pensamentos ruins, ou aflições
mentais, de seu fluxo mental. Você só pode fazer isso de um modo, utilizando as realizações
ganhas no caminho da visão. Certas coisas acontecem nessa hora - no período imediatamente
anterior, durante e logo depois da percepção direta da vacuidade.

De acordo com o buddhismo, sua mente é sem início. Qualquer ponto na história passada de sua
mente que você possa apontar deve ter sido produzido por um instante de mente no momento
anterior a esse. Você não pode encontrar um ponto de partida para a sua mente porque isto leva
a mente a criar a mente. Gostaria de dizer que você pode pensar que sua mente é como um
longo talharim de spaghetti que nunca teve um começo e que nunca terá um fim.
Suas vidas passadas são infinitas e suas vidas futuras são numeradas até você se tornar um Bu-
ddha. Então você terminará o processo de renascimento, mas sua mente ainda continua para
sempre. Em todo o talharim de spaghetti do tempo infinito de sua mente, você vê a vacuidade
pela primeira vez. Até você vir a vacuidade diretamente, você é um ser comum, que sofre. E en-
tão, se você tiver visto a vacuidade diretamente, você é chamado Arya. A palavra Arya significa
superior, um tipo totalmente exaltado de ser, completamente diferente de um ser comum.

Quero falar sobre os momentos finais, pouco antes de você alcançar o caminho da visão. No ca-
minho da preparação, que é o caminho número dois dos cinco caminhos, você está obtendo uma
compreensão intelectual da vacuidade em preparação para ver a vacuidade diretamente. Há um
estágio muito importante do caminho da preparação, chamado chöchog. Chö significa dharma,
ou coisa, e chog significa “absoluto” ou “supremo”. Chöchog refere-se ao último momento de
uma pessoa que ainda é um ser comum.
Gostaria de descrever o que acontece no chöchog. Primeiro, você deve ter estado sob um curso
espiritual de estudo durante algum tempo. Sua mente foi preparada. Nesta vida você encontrou
um verdadeiro guia espiritual. Você o serviu e então obteve, karmicamente, exatamente o que
precisava dele. É assim que funciona, é um dar e receber. Você os tem servido com tudo o que
poderia dar, principalmente devoção. E eles o têm ensinado.

Você atravessa um curso em três estágios. O primeiro é a sabedoria que você obteve de um ser,
em muitas horas de estudo na sala de aula com o seu mestre. O segundo estágio é a contem-
plação, pensar sobre ela, trabalhar sobre ela em sua própria mente. A sabedoria que vem da
contemplação cresce a partir dos estudos. O estágio final é a sabedoria da meditação, e esta por
sua vez cresce a partir da sabedoria da contemplação.
Um dia, algo em sua compreensão intelectual engatilha o chöchog. Geralmente, é um assunto
que chamamos chi e jedrag. Chi significa qualidade, como por exemplo um carro. Este é um
ponto que não posso explicar muito. Você tem apenas de pensar. É algo que vem de sua parte.
Jedrag significa característica, Chevrolet por exemplo. E você tem de pensar sobre o relaciona-
mento entre o que chamamos de “carro” e o que chamamos de “Chevrolet”. Se você tem um
“Chevrolet”, você tem um “carro”.

Há quatro tipos de chi. O primeiro não é tão relevante e os últimos três são realmente rele-
vantes. Um é o rigchi. Rig significa tipo ou classe, e chi aqui se refere à qualidade. Carro é um
exemplo de rigchi. Um rigchi é uma qualidade com um monte de coisas que são características
dessa qualidade. No caso do carro, pode ser Chevrolet, Ford ou Toyota. Estes são chamados je-
drag - exemplos de um tipo geral. Então rigchi significa um tipo geral ou, mais corretamente, se
você pensar sobre isso cuidadosamente, uma qualidade.
Então há o drachi. Dra significa som ou nome. Chi significa geral e o que isto se refere. Suponha

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que você nunca tenha estado em Paris. Você nunca experienciou a Torre Eiffel diretamente. E eu
digo, “Torre Eiffel”. No instante em que digo isso, um tipo de imagem forma-se em sua mente.
Isso é o drachi, um chi ou imagem mental baseada apenas no nome de algo.

Então nós tempos o dünchi. Dün significa significado, mas aqui significa o objeto em si, em opo-
sição ao nome do objeto. Esta é a coisa real, ou a Torre Eiffel em si que você vê quando está de
pé bem na frente dela. Isso é dün. Chi significa uma imagem mental. Aqui o chi mais importan-
te, o crucial, é o dünchi: uma imagem mental de um objeto real.
Vou dar a você um possível cenário. Você tem realmente estudado duro, tem realmente feito
um bom guru yoga nesta vida - e, de fato, durante muitas vidas - e está diante do fogão pre-
parando uma xícara de chá para o seu mestre, por exemplo. É de manhã, digamos, oito horas.
Você colocou a água em um bule de alumínio sobre o fogão.
Você tem estudado o chi e o jedrag, e tem realmente pensado e meditado bastante sobre isso.
Você está lá de pé e subitamente realiza que não está olhando para um bule; você está olhando
para uma imagem mental de um bule. Por toda a sua vida você pensou que estava olhando para
um bule e subitamente, sob a influência de todos estes fatores - de servir ao mestre, de estudar
duro, de rezar pelas bênçãos dos mestres -, subitamente isto acontece. Você realiza que não
está olhando para um bule e que nunca esteve olhando para um bule. Você está olhando para
um dünchi do bule.

Você realiza que a única coisa que realmente viu de um bule foram alguns poucos vestígios de
sua parte frontal. Você vê um brilho prateado do lado direito, você vê uma pequena ponta curva
do lado esquerdo, você vê esse negócio preto e reto saindo do lado. Talvez você não veja mais
do que quatro ou cinco vestígios. Você definitivamente nunca viu a parte de trás do bule. Sua
mente está criando a imagem de um bule. Sua mente, devido à circunstâncias anteriores, devi-
do a milhões de anos de karma, está vendo-a com um bule.
Você acabou de perceber a verdade da originação dependente, de que cada objeto em sua
experiência normal é uma realidade enganosa. Esteve ao seu redor o tempo todo. Você nunca
viu um outro tipo de objeto, exceto as coisas que são a realidade enganosa. Esse é o seu mundo
todo, essas projeções. E você esteve acreditando nelas. Então isso é o chöchog. Esse é um está-
gio muito, muito importante.
Você termina de fazer o chá e vai ao templo fazer suas meditações matinais. Você se senta
em uma boa postura e entra em profunda meditação. Estamos vivendo no reino do desejo mas,
neste ponto, sua meditação prossegue tão profundamente que a sua mente entra no primeiro
nível de samadhi, que corresponde a algo no reino da forma. Então sua mente está numa área
totalmente diferente do universo. Esta é a única plataforma da qual você vê a vacuidade direta-
mente.

Você deve ter meditado regularmente para chegar nesse ponto, digamos uma a duas horas por
dia, todo dia, e sem incluir o tempo gasto para você ficar pronto, o tempo gasto pensando sobre
seu o café da manhã e sobre fazer os potes de oferenda de água; isso não conta. Se você não
tem praticado meditação de maneira muito regular, de uma a duas horas por dia, você não pode
alcançar esta plataforma. Se você nunca alcançar esta plataforma, é completamente impossível
que você veja a vacuidade diretamente.
Esse estado é uma meditação muito, muito profunda, onde, especificamente, nenhum dos cinco
objetos dos sentidos pode aparecer para você nesse momento. Então, devido à influência de
todas estas outras coisas - estudo, contemplação, meditação, treinamento nas escrituras, bom
ensinamento de um mestre real, servir o mestre, obter a bênção do mestre, ter a bênção de
muitos mestres durante toda a sua vida -, você vai para a percepção direta da vacuidade.
Como é isto? Quando tempo dura? Talvez dure de quinze a vinte minutos na primeira vez. Nes-
sa hora, você não pode fazer qualquer distinção entre você e o que você está vendo, entre o
sujeito e o objeto. É impossível. O sujeito é a realidade enganosa, o que chamamos realidade
convencional. E o objeto é a realidade última. Nesse momento você não pode ver qualquer coisa

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que não seja a realidade última [rigpa]. A única coisa que se apresenta para a sua consciência
mental - e todas as outras cinco são fechadas - é a vacuidade pura, a realidade última. Nada
mais está aparecendo para a sua mente nesse momento.
Isso é o que a não-dualidade realmente significa. Não significa que, de algo modo, todos os
sujeitos e objetos no mundo são o mesmo. Não haveria qualquer atingimento em borrar a distin-
ção entre sujeito e objeto tomando heroína ou alguma outra coisa deste gênero. Os sujeitos e
objetos são totalmente separados. Ver a vacuidade não é o processo de se deixar ser fundido no
mundo ou alguma coisa assim.

Em um sentido, não-dualidade significa que durante a percepção direta da vacuidade você não
pode estar consciente da distinção entre sujeito e objeto simplesmente porque um deles não é a
realidade última. Não é a vacuidade, é você, e você não é a vacuidade. O segundo significado da
vacuidade é que, em um sentido, todos os objetos e todos os sujeitos são totalmente iguais no
que são vazios, eles nunca foram outra coisa exceto as suas projeções. Isso pode ser dito sobre
qualquer mente subjetiva e pode ser dito sobre cada objeto no universo.
Durante a experiência você não está consciente da passagem do tempo porque isso não é vacui-
dade; isso é um objeto relativo. Você está lá e está em pura consciência direta da vacuidade, e
isso é tudo. Então a percepção direta da vacuidade acaba. Esse estado de mente que você teve
durante esses quinze ou vinte minutos é chamado nyamshag yeshe, o conhecimento da medita-
ção profunda. Essa é a primeira metade do caminho da visão.

Nada mais há que qualquer um possa dizer sobre isso. É isso que eles querem dizer quando
afirmam que a vacuidade é indescritível. Você não pode descrevê-la em termos de algo físico. É
sem cor, sem forma, clara, invisível a outros olhos. E isso é tudo que você pode dizer sobre ela.
Então você tem a sensação de descer dessa meditação e entrar em um estado chamado jetob
yeshe, o conhecimento que se obtém logo depois de ver a vacuidade diretamente. Esta é a se-
gunda metade do caminho da visão. Durante este período, que dura pelo resto do dia, você tem
dúzias de importantes realizações espirituais que nunca teria tido sem ver a vacuidade direta-
mente.

Essas experiências e realizações podem ser agrupadas em quatro partes. Estas podem ser cha-
madas de quatro verdades Arya, significando quatro grupos de coisas que alguém que acabou de
se tornar um Arya agora compreende diretamente como sendo verdadeiros. Você pode agrupar
todas as realizações que teve durante aproximadamente as doze horas seguintes em uma destas
quatro verdades Arya. Estas são coisas que apenas um Arya, uma pessoa que viu a vacuidade,
pode compreender diretamente.
1] - O primeiro grupo é a verdade Arya do sofrimento. Depois da sua primeira percepção direta
da vacuidade, você compreende verdadeiramente o que o sofrimento é, pela primeira vez. Você
compreende quanto sofrimento há. Esta caneta é sofrimento. Seu corpo é sofrimento. Os Esta-
dos Unidos são sofrimento. Praticamente cada pensamento é sofrimento. Todos os seus relacio-
namentos são sofrimento, a menos que sejam especialmente espirituais. O Arya vê a verdadeira
extensão do sofrimento pela primeira vez.
2] - A segunda verdade é a fonte do sofrimento, de onde todo este sofrimento veio. Basicamen-
te, qualquer coisa que é sofrimento também é uma fonte de sofrimento. Esta caneta é sofri-
mento e esta caneta também é a fonte do sofrimento. Sua cabeça é ambos, sua mente é ambos,
seus ouvidos são ambos.
3] - Então vem a verdade do fim do sofrimento. Esse novo Arya vê o fim do sofrimento direta-
mente. Eles ainda não o alcançaram, mas pelo menos podem vê-lo. Eles sabem quando o fim do
sofrimento virá e sabem como isso será.
4] - A quarta é a verdade do caminho. Este novo Arya compreende perfeitamente a verdade do
caminho, exatamente o que ele precisa fazer para se livrar do sofrimento. Ele percebe a verda-
de do caminho diretamente.
Estas são algumas realizações específicas que caem sob estas quatro categorias. Algumas delas

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ocorrem depois da sua experiência direta da vacuidade, algumas enquanto você ainda está sen-
tado em meditação, e algumas delas ocorrem depois, enquanto você está andando por aí.
Os Aryas têm uma experiência direta de sua morte vindoura e eles agem sobre isso pelo resto
de suas vidas. Eles não perdem tempo. Eles sabem que vão morrer. Eles vêem a própria morte
diretamente.
Durante a maioria das dez ou doze horas seguintes, você pode ler a mente dos outros pela pri-
meira vez. Você percebe o samsara na mente de outra pessoa diretamente. Até esse ponto,
você nunca realmente soube o que a mente de outra pessoa está pensando. Mas neste dia, você
poder ler as mentes das outras pessoas, e você está completamente consciente do sofrimento
que eles estão suportando.
Por exemplo, você pode estar com um negociante de carros, tentando vender um carro rapida-
mente porque você precisa de dinheiro nesse dia em particular. Você oferece a ele um carro
vermelho, muito bonito, que talvez custe três mil dólares. Para o negociante, você parece dis-
tante por causa do que estava acontecendo e ele decide em sua mente que pode tirar proveito
de você. Você pode ler os pensamentos dele, sabe que vai mentir para você, e então ele mente
para você. Ele diz, “Este carro custa dois mil dólares e eu vou dar a você dois mil dólares por
ele.” Você pode ler estes pensamentos na mente dele. Você está completamente consciente da
desordem e da agonia da mente samsárica da outra pessoa. Você pode ver isso.

Prosseguindo na causa do sofrimento - a principal causa é a ignorância. Neste dia, pela primeira
vez, vindo dessa percepção, você realiza que esta foi a primeira percepção correta que teve.
Em um minuto temos centenas de percepções. Cada uma delas, por toda a extensão de sua vida,
foi errônea.
Uma outra verdade relativa à verdade da causa do sofrimento que você compreende nesse dia
é que você nunca se encarregou de uma ação sem egoísmo. Não é o mesmo apego à auto-exis-
tência, mas esse apego a causa. Um resultado necessário de nosso apego é que você fica preo-
cupado apenas com você mesmo. Um ser humano normal não pode fazer um verdadeiro ato de
caridade. Mesmo que faça bons atos, você estará constantemente infectado pelo pensamento,
“O que há nisto para mim? Como eu olho para as pessoas? Eles estão conscientes da boa ação
que estou fazendo?” Esta é a condição humana e nesse dia, nesse momento, ela é deprimente.
Uma subcategoria desta verdade específica é que você nunca se engaja em um relacionamento
no samsara a menos que esteja obtendo algo dele. Não somos capazes de ser não-egoístas em
nossos relacionamentos. Uma pessoa no samsara não se engajará num relacionamento a menos
que esteja tirando proveito de algum modo. Estou descrevendo a nossa condição comum; todos
nós a temos. É um fato deprimente que você realiza no dia em que percebe a vacuidade direta-
mente.

Aqui está a parte boa. Acho que esta deve ser a experiência mais agradável do dia inteiro. Se
você estiver na trilha do bodhisattva, um praticante Mahayana, você percebe diretamente que
se tornará um Buddha, e você percebe exatamente quantas vidas isso demorará. É comum que
se leve mais sete vidas para de fato alcançar a iluminação depois de ter visto a vacuidade dire-
tamente.

Durante estas sete vidas, você nunca terá qualquer grande problema novamente. Você sempre
estará confortável. Você sempre estará entre as pessoas do mundo que, nesse planeta e nesse
momento, têm o lazer para estudar o Dharma. Você sempre estará cercado de bons professores,
bons pais. Você sempre irá a uma boa escola. Sua vida parecerá um encanto. Tudo será basica-
mente correto. Você ainda tem de envelhecer e morrer nestas vidas. Mas a vida em que você vir
a vacuidade diretamente será, como um todo, bem agradável. Você percebe isso diretamente.
Em nossa situação atual, se não tivermos visto a vacuidade diretamente, não poderemos provar
nem mesmo a existência de um Buddha. Vendo a vacuidade nesse dia, você terá visto o Dhar-
makaya do Buddha, e você saberá que encontrou um Buddha. A experiência nesse momento
é algo como o que você sempre pensou ser - antes de se tornar buddhista - um encontro com

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Deus. É um tipo de energia imensa, clara, poderosa, e você a contata diretamente. Você agora
confirmou a existência de um Buddha. Você encontrou o Buddha e sabe que encontrou o Buddha.
Nesse momento você compreende diretamente o que são os corpos físicos do Buddha. Agora as
pinturas e estátuas são algo bem diferente para você. Você realiza que eles representam o que
você viu e eles tomam um significado totalmente diferente. É a expressão física do Dharmakaya.
Alguém, em algum lugar, viu Tara e a pintaram. É assim que ela realmente se parecia. E então
alguém viu a imagem e a copiou, e outro a copiou. Definitivamente, se você voltar para trás, al-
guém viu Tara. Alguém teve a experiência da expressão do Dharmakaya. Então as imagens estão
representando o mais alto objeto do universo. Você não pôde realmente apreciar um pintura de
um Buddha até esse dia.

Você compreende o significado da prostração. Você compreende que se tivesse chocado com
o Dharmakaya, a reação imediata e natural a essa experiência seria se prostrar no chão. Você
realmente compreende a prostração pela primeira vez.
No primeiro instante, no primeiro micro-segundo da percepção direta da vacuidade, três coisas
já aconteceram. Você entrou no caminho da visão, você se tornou um Arya e, se tiver Bodhichit-
ta, você alcançou o primeiro estágio do Bodhisattva. Durante os minutos seguintes dessa experi-
ência, você tem uma experiência direta e poderosa da bodhichitta real.
É quase como uma sensação física de algum tipo de amor e cuidado pelos outros seres, vindo do
seu coração como um rio, como uma luz clara. Você sabe que passará o resto de sua vida servin-
do os seres sencientes; você está certo disso. Você sabe o que tem de fazer para servi-los e sabe
que sempre o fará desse momento em diante.

Você pode pensar que, nos anos seguintes a essa experiência, poderia começar a duvidar do que
aconteceu. Mas há uma certa percepção inegável, uma percepção absoluta e puramente correta
que você tem durante o jetob yeshe, o que acabou de acontecer com você foi absolutamente
verdadeiro. O que aconteceu com você foi puramente verdadeiro.
O que acontece então é um tipo de interesse. Você tem um uma realização direta e inegável de
que cada página das escrituras buddhistas, dos estágios do caminho e de todos os outros livros,
é total e absolutamente verdadeira, e de que este caminho é o caminho verdadeiro. Não estou
sendo sectarista; estou apenas falando de uma experiência real que você pode confirmar por
si mesmo. Você pode seguir este caminho e terá absolutamente os mesmos resultados, e todos
estes eventos acontecerão com você. Isso é absolutamente verdadeiro.

Então você adquire um tipo de mania de proteger os livros de buddhismo. Eles não devem desa-
parecer deste mundo. Eles são a perdida vacina secreta para as aflições mentais. Você sabe que
deve devotar suas vidas para assegurar que estes livros e ensinamentos conectados a eles nunca
sejam perdidos no mundo. Eles são todos absolutamente verdadeiros. E eles são realmente o
único caminho que leva para fora do sofrimento.
Você compreende nessa hora o significado do diamante como uma metáfora para a vacuidade.
Um diamante é a única coisa mais próxima do que você viu. Se você tiver um carro e nenhum
outro dinheiro, você pode pegá-lo, vendê-lo a alguém, comprar um diamante e oferecê-lo no
templo, em algum lugar onde alguém possa encontrá-lo, e não importaria se ninguém soubesse
disso.

O que acontece depois desse dia? O que você suporia fazer durante estas sete vidas? O quarto
caminho é chamado habituação. Significa acostumar-se a algo. O quarto caminho é usar o que
você viu e realizou, durante aproximadamente sete vidas e meia, para limpar o resto de suas
aflições mentais. Demora tudo isso para se acostumar totalmente com o que aconteceu e utili-
zar esse conhecimento em sua vida cotidiana para parar suas aflições mentais. A essência disso é
o processo do que acontece em sua vida diária, como quando o seu chefe grita com você, e você
usa a percepção da vacuidade para superar suas reações automáticas. Fazendo isto, você pode
quebrar o ciclo do samsara.

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As condições para a prática do Dharma serão absolutamente perfeitas para as próximas sete vi-
das. Como uma criança, você não lembra do que aconteceu, mas logo você já estará entenden-
do estas coisas. É como nas histórias da vida de Je Tsongkhapa, por exemplo. Eu não diria quatro
anos de idade, mas talvez dez ou quinze. Se você se livrar de suas aflições mentais, então você
alcança o Nirvana, e se você continuar, você alcança a iluminação. Esse é o processo do que
acontece após você perceber a vacuidade diretamente. No dia em que você a usar, na hora em
que você a vê, seu futuro torna-se previsível. Você está definitivamente no caminho para fora.
Dentro de um quantidade fixa de tempo, você se tornará um Buddha.

Uma vez que você tenha visto a vacuidade diretamente, alguém poderá perguntá-lo se as coisas
existem do modo como ele as vê. Você teria de dizer absolutamente não. Você ainda as vê como
auto-existentes? Absolutamente não, pois isso é um estado mental esquizofrênico. A partir do
momento em que você atinge a percepção direta da vacuidade, você sabe que o que os outros
estão vendo é errado. Mas você não acredita nisso. Você sabe que as percepções deles são dis-
torcidas.

Você também sabe que não pode pará-las bem agora. E, de fato, quando você parar a tendência
inerente de se apegar às coisas como auto-existentes, como não sendo apenas as suas proje-
ções, você alcançará o Nirvana. Essa é a última aflição mental que você tem de superar. Cada
um, até mesmo os animais, têm a tendência inerente de ver as coisas como auto-existentes. No
quarto caminho, o caminho da habituação, você ainda está vendo as coisas como auto-existen-
tes, mas você sabe que está errado e não acredita mais em si mesmo.
Isso é o que significa quando os buddhistas dizem que as coisas são uma ilusão. Esse é o único
significado da ilusão. Não significa que as coisas não existem. Especialmente não significa que
os atos bons e ruins são uma ilusão, que o sofrimento e o paraíso são uma ilusão e que então
eu posso fazer qualquer coisa que quiser. Significa que, como as coisas são uma ilusão, eu devo
ser bom. Esse é o único modo pelo qual você alcançará o Nirvana. O dia em que você for capaz
de usar os entendimentos - obtidos depois de ver a vacuidade - para superar a última das suas
aflições mentais será o dia em que você alcançará o Nirvana - e esta é de fato a definição tradi-
cional de Nirvana

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Como somos fisgados e como se soltar
Pema Chöndrön

Você está tentando tratar uma questão com seu colega de trabalho ou com sua companheira.
Num momento, o rosto dela está aberto, ela está sorrindo. No momento seguinte, uma nuvem
embaça seus olhos e seu queixo enrijece de tensão.

O que você está percebendo?

Alguém o critica. Criticam seu trabalho, sua aparência ou seu filho. Em momentos como esse, o
que você sente? Há um gosto familiar na sua boca, há um cheiro familiar. Ao se dar conta disso,
você sente que essa experiência vem acontecendo desde sempre.

A palavra Tibetana para isso é shenpa. Geralmente é traduzida como “apego”,


mas uma tradução mais descritiva poderia ser “fisgada”. Quando a shenpa nos fisga é como se
ficássemos “colados”. Poderíamos chamar de shenpa “esta sensação de “colamento”. É uma
experiência de todo dia. Mesmo um pontinho no seu pullover novo pode levá-lo a ela. Num nível
mais sutil, sentimos um aperto, uma tensão, uma sensação de fechamento. Em seguida, vem
uma vontade enorme de nos retirar, não queremos mais estar onde estamos.Essa é a qualida-
de da fisgada. Aquela sensação de aperto tem o poder de nos fisgar para a auto- depreciação,
culpa, raiva, ciúmes e outras emoções que levam a palavras e ações que acabam por nos enve-
nenar.

Lembra daquele conto de fadas em que sapos pulavam da boca da Princesa cada vez que ela
dizia coisas más? É como a sensação de ser fisgado. Contudo não paramos – não podemos parar
– porque ainda estamos habituados a associar o que quer que estejamos fazendo ao alívio do
nosso próprio desconforto. Essa é a síndrome da shenpa. A palavra “apego” não traduz comple-
tamente o que está acontecendo. É uma qualidade de experiência que não é fácil de descrever
mas que todo mundo conhece bem. Geralmente a shenpa é involuntária e vai direto à raiz do
por quê sofremos.

Alguém nos olha de certa maneira, ou ouvimos uma certa canção, sentimos um certo cheiro, en-
tramos em certo aposento e bum. A sensação não tem nada a ver com o presente, e apesar disso
ela está lá. Quando estivemos praticando reconhecer a shenpa em Gampo Abbey, descobrimos
que alguns de nós podiam senti-la até mesmo quando uma determinada pessoa simplesmente
sentava próximo de nós na mesa de jantar.

A shenpa floresce na insegurança motivada por vivermos num mundo que está sempre mudando.
Experimentamos essa insegurança como um fundo de leve desconforto e inquietação. Todos nós
queremos alguma espécie de alívio para esse desconforto, então nos voltamos para o que nos dá
prazer – comida, álcool, drogas, sexo, trabalho ou compras. Com moderação o que nos dá prazer
pode ser muito delicioso. Podemos apreciar seu sabor e sua presença em nossa vida. Mas quando
lhe atribuímos poder com a idéia de que nos trará conforto, removerá nossa inquietude, somos
fisgados.

Desse modo, também poderíamos chamar de shenpa o “impulso” – o impulso de fumar um ci-
garro, de comer demais, de tomar outro drinque, de saciar nossa dependência qualquer que seja
ela. Às vezes a shenpa é tão forte que sentimos vontade de morrer ao obter esse alivio de curto
prazo dos sintomas. O momento atrás do impulso é tão forte que nós nunca nos livramos do pa-
drão habitual de buscar o conforto no veneno. Este não necessariamente tem que envolver uma
substância; pode ser dizer coisas mesquinhas ou se aproximar de tudo com uma mente crítica.
Essa é a maior fisgada. Alguma coisa aciona o gatilho de um velho padrão que preferiríamos não
sentir, nos retesamos e engatamos em críticas e queixumes. Isso nos proporciona uma satisfação

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ofegante e uma sensação de controle que oferece alivio de curto prazo ao desconforto.

Aqueles de nós com dependências fortes sabem que trabalhar com padrões habituais começa
com a disposição de reconhecer completamente nosso impulso e em seguida disposição de não
atuar a partir dele. Esse não atuar é chamado abster-se. Tradicionalmente é conhecido como
renúncia. Não renunciamos ou nos abstemos da comida, do sexo, do trabalho ou de relacio-
namentos em si. Renunciamos e nos abstemos da shenpa. Quando falamos sobre abster-se da
shenpa, não estamos falando de tentar jogá-la fora; estamos falando de tentar ver a shenpa
claramente e experimentá-la. Se pudermos ver a shenpa exatamente quando começamos a nos
fechar, quando sentirmos o aperto, existe a possibilidade de agarrar o impulso de fazer a coisa
habitual e não fazê-la.

Sem a prática da meditação isso é quase impossível de fazer. Geralmente, não capturamos o
aperto até que tenhamos saciado o impulso de coçar nosso comichão de alguma maneira habi-
tual. E, a menos que equiparemos o abster-se com bondade amorosa e amizade para conosco,
abster-se dá a impressão de vestir uma camisa de força. Lutamos contra ela. A palavra Tibetana
para renúncia é shenlock, que significa virar a shenpa de cabeça para baixo, sacudindo-a.
Quando sentirmos o aperto, de alguma forma temos que saber como abrir o espaço sem sermos
fisgados para nosso padrão habitual.

Ao praticar com a shenpa, primeiro tentamos admiti-la. O melhor lugar para fazê-lo é na almo-
fada de meditação. A prática da meditação sentada nos ensina como nos abrir e relaxar para o
que quer que surja, sem escolher ou selecionar. Ela nos ensina a experimentar o desconforto, o
aperto, a coceira da shenpa. Treinamos em sentar quietos com nosso desejo de coçar. É assim
que aprendemos a interromper a reação em cadeia dos padrões habituais que de outra maneira
governarão nossas vidas. É assim que enfraquecemos os padrões que nos mantêm fisgados no
desconforto que nós confundimos com conforto. Rotulamos o rodopio “pensando” e voltamos
para o momento presente. Até mesmo na meditação experimentamos a shenpa.

Vamos supor, por exemplo que na meditação você se sentiu sereno e aberto. Os pensamentos
vierem e se foram mas não o fisgaram. Eram como nuvens no céu que se dissolviam quando você
os reconhecia. Você foi capaz de voltar ao momento sem uma sensação de luta. Em seguida
você é fisgado naquela experiência tão agradável: “Eu fiz certo, consegui acertar. É como tinha
que ser, é o modelo.” Ser apanhado dessa maneira constrói arrogância e no reverso dela constrói
pobreza, porque sua próxima sessão não será nada daquilo. Na verdade sua sessão”má” é muito
pior agora porque você foi fisgado na “boa”. Você sentou lá e foi discursivo: ficou obcecado por
alguma coisa em casa, no trabalho. Você se preocupou e se atormentou; foi apanhado com medo
ou raiva. No fim da sessão você se sentiu desanimado – foi “mau”, e só há você para culpar.

Há alguma coisa inerentemente errada ou certa na experiência da meditação?


Somente a shenpa. A shenpa que sentimos para a “boa” meditação nos fisga no que ela “deve”
ser e com isso somos conduzidos pela shenpa a como ela não “deve” ser. No entanto a medita-
ção é apenas o que ela é. Somos apanhados em nossa idéia dela: isso é a shenpa. Essa colada
é a raiz da shenpa. Nós a chamamos pegada do ego ou auto-absorção. Quando somos fisgados
na idéia da experiência má, a auto-absorção fica mais forte. É por isso que, como praticantes,
somos ensinados a não nos julgar, para não sermos apanhados no bom ou mau.

O que realmente precisamos fazer é tratar as coisas como elas são. Aprender a admitir a shenpa
nos ensina o significado de não estar apegado a esse mundo. Não estar apegado não tem nada a
ver com esse mundo. Tem a ver com a shenpa – sermos fisgados pelo que associamos com con-
forto. Tudo o que estamos tentando fazer é não sentir nosso desconforto. Mas quando fazemos
isso nunca chegamos à raiz da prática. A raiz é experimentar a coceira, assim como o impulso de
coçar e então não atuar sobre ele.

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Se estamos dispostos a praticar dessa maneira todo o tempo, o prajna começa a aparecer. Praj-
na é a visão clara. É a nossa inteligência inata, nossa sabedoria. Com o prajna, começamos a ver
claramente toda a reação em cadeia. À medida que praticarmos, a sabedoria se torna uma força
mais poderosa que a shenpa.
Por si só, ela tem o poder de interromper a reação em cadeia.

O prajna não está envolvido com o ego. Sua sabedoria se baseia na bondade fundamental, na
abertura, na equanimidade – que corta a auto-absorção. Com o prajna podemos ver o que o
espaço vai nos mostrar. Ação habitual, que está baseada no ego é exatamente o oposto – a com-
pulsão de preencher o espaço ao nosso estilo particular. Alguns de nós fechamos o espaço marte-
lando nossos mesmos pontos; outros tentando suavizar as águas.

Fomos ensinados que tudo que surge é fresco, a essência da realização. Esta é a visão básica.
Mas como ver tudo que surge como a essência da realização quando a realidade é que temos
um trabalho a fazer? A chave é olhar para dentro da shenpa. O trabalho que temos que fazer é
descobrir se estamos tensos, fisgados ou “excitados”. Essa é a essência da realização. Quanto
mais cedo captarmos isso, mais fácil será trabalhar com a shenpa, mas até mesmo captar isso
quando já estivermos excitados é bom. Às vezes temos que percorrer todo ciclo até que vejamos
o que estamos fazendo. O impulso é tão forte, a fisgada tão profunda, o padrão habitual tão
colado que tem vezes que não podemos fazer nada sobre isso.

Entretanto, há alguma coisa que podemos fazer na realidade. Podemos isentar na almofada de
meditação e repassar a história. Talvez comecemos lembrando a sensação de excitamento e
entremos em contato com ela. Olhamos claramente a shenpa em retrospecto; Também ajuda
muito ver a shenpa surgindo em habitozinhos, quando a fisgada ainda não é tão profunda.

Os budistas estão falando da shenpa quando dizem, “Não se deixe apanhar no contentamento:
observe a qualidade que está por trás - a colada, o desejo, o apego” . A meditação sentada nos
ensina a ver aquela tangente antes de cair nela. Ela basicamente se resume à instrução “rotule-
o pensando”. Treinar isso na almofada onde é relativamente fácil e agradável fazê-lo, é a ma-
neira de nos preparar para ficarmos quando estivermos excitados.

Em seguida podemos treinar em ver a shenpa onde quer que estejamos. Diga alguma coisa a
outra pessoa e talvez você sentirá aquela tensão. Em vez de ser apanhado numa história sobre
como você está certo ou como você está errado, tome isso como uma oportunidade de estar
presente com a qualidade da fisgada.
Use isso como uma oportunidade de estar com o aperto sem atuar sobre ele. Deixe o treinamen-
to ser a sua base.

Você também pode praticar reconhecendo a shenpa na natureza. Praticar se sentando quieto e
captando o momento em que se fecha. Ou praticar numa multidão, olhando uma pessoa de cada
vez. Quando você está em silêncio, o que o fisga é o diálogo mental. Você fala consigo mesmo
sobre maldade ou bondade: eu-mau ou eles-maus, isso-certo ou aquilo-errado. Simplesmente
veja isso como uma prática. Você ficará intrigado como involuntariamente se fechará e será fis-
gado de uma maneira ou de outra. Apenas continue rotulando aqueles pensamentos e volte para
a imediatez da sensação. É a maneira de não seguir a reação em cadeia.

Uma vez que estejamos conscientes da shenpa, começamos a notá-la em outras pessoas. Vemo-
las se fechando. Vemos que elas foram fisgadas e que nada irá penetrá-las agora. Naquele mo-
mento temos o prajna. A inteligência básica surge quando não somos apanhados escapando do
nosso próprio desconforto. Com o prajna podemos ver o que está acontecendo com os outros;
podemos ver quando eles estão sendo fisgados. Em seguida podemos dar algum espaço à situa-

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ção. Uma maneira de fazê-lo é abrindo o espaço no local através da meditação. Fique quieto e
coloque sua mente na respiração. Segure sua mente no lugar com grande abertura e curiosidade
para com essa pessoa. Fazer uma pergunta é outra maneira de criar espaço em volta daquela
sensação de colamento. Assim como adiar a discussão para outra hora.

No Mosteiro, temos muita sorte de todo mundo estar entusiasmado em trabalhar com a shenpa.
Muitas palavras que tenho tentado usar se tornaram munição para as pessoas usarem contra
elas próprias. Mas sentimos uma espécie de alegria trabalhando com a shenpa, talvez porque a
palavra não nos seja familiar. Podemos reconhecer o que está acontecendo com visão clara, sem
nos apontarmos. Como ninguém gosta particularmente de ter sua shenpa apontada, as pessoas
no Mosteiro combinaram, “Quando você me vir sendo fisgado, só puxe sua orelha e se eu o vir
sendo fisgado, farei o mesmo”. Ou se você o vir em você mesmo e eu não tiver captado, pelo
menos dê um sinalzinho de que talvez esta não seja a hora de continuarmos a discussão. É dessa
a maneira que estamos nos ajudando uns aos outros a cultivar prajna, visão clara.

Poderíamos pensar em todo esse processo em termos dos 4 Rs: reconhecer a shenpa, refrear
(abster-se) o coçar, relaxar no impulso que motiva o coçar e então resolver continuar inter-
rompendo nossos padrões habituais como esse pelo resto de nossas vidas. O que você faz quan-
do não faz a coisa habitual? Você se deixa ficar com seu impulso. É como você se põe mais em
contato com a avidez e com a vontade de fugir. Você relaxa nele. Em seguida, resolve continuar
praticando dessa maneira.

Trabalhar com a shenpa nos suaviza. Uma vez que vemos como somos fisgados e como somos
arrastados pelo momento não tem como ser arrogantes. O segredo é continuar vendo. Não dei-
xar que a suavidade e a humildade se transformem em auto-depreciação. É apenas uma outra
fisgada. Por virmos fortalecendo toda a situação habitual por um longo, longo tempo não pode-
mos espera desfazê-la do dia para a noite. Não é um assunto para um tiro só. É preciso bondade
amorosa para reconhecer; é preciso prática para abster-se; é preciso disposição para relaxar; é
preciso determinação para continuar treinando dessa maneira. Ajuda lembrar que podemos ex-
perimentar dois bilhões de espécies de coceiras ou sete quatrilhões de tipos de comichão, mas
só existe realmente uma única raiz da shenpa – a aderência do ego. Experimentamo-la como
aperto e auto-absorção.
Ela tem graus de intensidade. As ramificações shenpas são todos os nossos diferentes estilos de
coçar o comichão.

Recentemente vi um cartoon com três peixes nadando em volta de um anzol. Um peixe está
dizendo para o outro, “o segredo é não grudar”. É um cartoon shenpa:
o segredo é – não morda o anzol. Se nós pudermos nos apanhar no lugar onde o impulso de mor-
der é forte podemos, pelo menos, ter uma perspectiva maior do que está acontecendo. Prati-
cando dessa maneira, ganhamos confiança em nossa própria sabedoria. Isso começa a nos condu-
zir a um aspecto fundamental do nosso ser – amplidão, calor e espontaneidade.

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Guru Ioga
S.S. Penor Rinpoche

A Importância da Transmissão Oral

Independente de qual seja o nível particular de ensinamento ou prática da tradição budista que
estejamos discutindo, quer seja este hinayana, mahayana ou vajrayana, o processo de desenvol-
vimento espiritual baseia-se na confiança do estudante em um professor. Podemos chamar este
professor de lama, guru ou de qualquer outra coisa, porém, o ponto essencial é a existência de
uma transmissão oral que ocorre quando um professor ensina o estudante: este ouve os ensina-
mentos, assimila seus significados e os coloca em prática.
Há razão para dar-se ênfase à transmissão oral. Desde a época do Buda até os dias de hoje o
Budadarma foi sempre transmitido, e com isto se quer dizer que foi transmitido oralmente, de
forma a garantir a existência de uma tradição viva, imbuída com a bênção e o poder dos ensi-
namentos originais. A transmissão oral também previne que pretensos professores simplesmente
apareçam com suas próprias idéias. Ao invés disto, o professor passa adiante uma tradição com-
provada de ensinamentos.

Isto faz o Budadarma um tanto diferente dos outros tipos de aprendizado nos quais é possível às
pessoas inovar. Em tais domínios de aprendizado, o surgimento de novos sistemas de pensamen-
to ou a introdução de novas idéias pode ser apropriado. Porém, quando o assunto é o Budadar-
ma, cada ensinamento tem de estar conectado com os ensinamentos originais do Buda para que
seja um ensinamento válido. Os ensinamentos não podem ser algo que alguém simplesmente
esteja fazendo brotar de acordo com as próprias inclinações. O professor apenas passa adiante
os ensinamentos.
Da mesma forma, noutras classes de conhecimento humano, pode ser adequado apresentar a
informação da maneira mais divertida ou agradável possível. Mas, apesar de ser importante que
os ensinamentos do Darma sejam apresentados de um modo agradável de se ouvir, é ainda mais
importante que os ensinamentos transmitidos tenham o poder de abençoar e influenciar posi-
tivamente às pessoas que os escutam, não somente nesta vida, mas também em vidas futuras.
Portanto, mesmo que o ensino do Darma possa e deva ser elegante e bem-apresentado, mais
importante do que isto é a bênção da mensagem essencial.

As Qualidades do Lama

Os ensinamentos que conhecemos como budismo foram concedidos pela primeira vez pelo Buda
Sakyamuni. Estes ensinamentos mantiveram-se até os dias de hoje através de uma linhagem viva
de transmissão, através de pessoas que motivaram-se a seguir o exemplo do Buda, estudaram
este caminho e transmitiram-no a outros. Podemos reconhecer, em todas as várias tradições
budistas, incontáveis pessoas que, através do estudo e da contemplação, tornaram-se extrema-
mente eruditas e dotadas de poder espiritual e realização. Mas a razão pela qual eles ensinaram
e comprometeram-se a instruírem-se no Darma não foi a de condescenderem-se com o próprio
auto-engrandecimento. Não devemos instruirmo-nos no Darma apenas para ficarmos pensando
em nós mesmos como alguém muito erudito ou para obter algum status especial. Tampouco de-
veria-se ensinar aos outros do ponto de vista de um orgulho pessoal. O Darma mantém-se porque
traz benefícios aos que ouvem os ensinamentos. Esta é a motivação de ensinar.
A fim de tornar-se um autêntico professor da tradição, não basta apenas ler muitos livros e
tornar-se muito habilidoso nos ensinamentos, e a partir disso estabelecer-se como um profes-
sor. Melhor seria que o próprio professor, um indivíduo que tenha uma realização especial, desse
permissão para seu aluno ensinar. Também pode ocorrer o caso em que a pessoa seja agraciada
com uma visão da deidade escolhida, uma experiência na qual a própria deidade confere a bên-
ção e a autorização para ensinar.

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Portanto, não é simplesmente uma questão de uma pessoa comum desenvolver inteligência su-
ficiente para falar sobre o Darma habilidosamente. O benefício real dos ensinamentos não surge
através desse enfoque convencional, pois ele apenas fomenta o próprio orgulho e as emoções
perturbadoras. Neste enfoque, não surge nenhum benefício. Somente quando ensinar for um
gesto altruísta, motivado ao benefício dos outros, baseado numa transmissão autêntica, é que
poderemos realmente encontrar o benefício efetivo da propagação do Darma.

Se contarmos todos os ensinamentos do Buda, agregarmos os respectivos comentários feitos


pelos grandes mahasiddhas (os panditas eruditos indianos, tibetanos e de outras tradições bu-
distas), descobriríamos que é impossível para uma única pessoa tentar pô-los todos em prática.
Isto não quer dizer que haja qualquer aspecto nestes ensinamentos que seja de pouca valia ou
sem utilidade. Buda Sakyamuni girou a roda do Darma em três transmissões sucessivas durante
seu tempo neste mundo. Em termos de Vajrayana [a terceira destas transmissões], considerando
os milhares de volumes reconhecidos amplamente como Budadarma, incluindo as 84.000 compi-
lações de ensinamentos do Buda e os 6.400.000 textos específicos do tantra, torna-se óbvio que
uma única pessoa não poderia absorver e praticá-los todos.

Examinando o Professor

Isto nos remete ao tópico da guru ioga. Vejamos a etimologia da palavra tibetana ‘lama’. A pri-
meira sílaba, ‘la’, significa insuperável, e a segunda, ‘ma’, significa literalmente mãe. Isto quer
dizer que a atitude do professor é semelhante à de uma mãe com relação a seus filhos. Nisto
está implícito que este relacionamento com o lama é bastante diferente em termos das respon-
sabilidades das partes envolvidas. Vê-se também o potencial tremendo do estudante beneficiar-
se desta relação.
Este é o motivo da ênfase, desde o princípio do caminho do mantra secreto dos ensinamentos
vajrayana, num exame cuidadoso e mútuo entre o professor e o aluno. Deve surgir um processo
crítico através do qual ambos verifiquem um ao outro. Por exemplo, é dito nos tantras que se
um lama for ganancioso, ambicioso, sujeito a emoções perturbadoras, cheio de orgulho, inveja
ou competitividade, então não é adequado a um estudante depositar confiança neste professor,
não importando quem ele seja. O lama deve possuir as qualificações corretas, incluindo a quali-
dade da compaixão. Se o professor não possuir estas qualidades básicas, será muito difícil para
este lama transmita bênçãos adequadas ao estudante de forma que a relação entre lama e aluno
seja efetiva.

No exame das qualidades de um lama, talvez para uma pessoa comum seja difícil avaliar as
qualidades do fluxo mental dele, especialmente num primeiro encontro com o professor. Porém,
um fator crucial a ser considerado é a linhagem que o lama detém e se esta linhagem tem sido
mantida com pureza de samaya.
Não se pode determinar apenas através do grau de erudição de um professor se ele possui o tipo
de poder espiritual capaz de transmitir bênçãos verdadeiras. Se o fluxo mental do professor não
for motivado por uma qualidade altruísta e compassiva, a qualidade da bodhicitta, mas sim por
orgulho e emoções perturbadoras, então não há sequer possibilidade de começo de um relacio-
namento benéfico, mesmo se este professor seja muito erudito. Isto é assim porque a motivação
do professor não é apropriada.

Dessa forma, ao começar é importante que o aluno examine o professor que tem em vista. Uma
vez que o estudante tenha tomado a decisão de confiar em um determinado professor, não há
mais discussão. A decisão já foi feita. Deste ponto em diante é fundamental que o estudante
confie de todo o coração no professor. Se alguém realmente passou por este processo de exame
ao conferir as qualidades de seu professor e determinar se ele professor é apropriado para si,
então será efetivamente capaz de manter respeito e confiança neste professor.
Contanto que, após esta verificação cuidadosa, o estudante mantenha uma atitude de fé e devo-

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ção para com o lama escolhido, não haverá possibilidade de que não receba as bênçãos do Buda
diretamente desta linhagem viva. Isto é algo completamente infalível.

O Conto do Pastor-Lama

Certa vez havia no Tibete uma família de pastores nômades. Eles criavam e vendiam animais
para viver, não possuindo qualquer forma de instrução sobre o Darma. Engajavam-se em seus
trabalhos cotidianos de uma maneira cuja natureza era essencialmente mundana.
Um dos pastores contratados por esta família recebia como pagamento porções de comida para
levar o rebanho diariamente para o campo. Ele chegava na ribanceira de um rio e deixava o
rebanho pastando; ao meio-dia, sentava-se para tomar chá e almoçar. Neste local onde ele se
sentava, aflorava uma grande pedra. Todos os dias o pastor pegava os restos de comida e chá e
os colocava sobre a rocha. Ao fazer assim não estava motivado por qualquer consideração sobre
isto ser um ato bom ou mal. Apenas tinha o hábito vão de colocar os restos sobre a rocha.
Nesta pedra em especial havia três partes sobre as quais o pastor costumava jogar a comida. O
que não se sabia é que as rochas eram habitadas por alguns espíritos locais. Um destes era um
naga, o outro era um mara, e o terceiro era de uma classe conhecida como espíritos tsen. Estes
três espíritos não-humanos apreciavam muitíssimo as “oferendas” que aquela pessoa, aparente-
mente um praticante espiritualizado e consumado, dava-lhes diariamente. E os espíritos discu-
tiam entre si: “Pelo menos um de nós três deveria fazer algo em gratidão; quem?” e, ao conver-
sarem ficou decidido que o espírito mara seria o escolhido para auxiliar o pastor. Então o mara
entrou no corpo do rapaz, causando-lhe uma completa transformação. O pastor se tornou uma
pessoa realmente muito erudita e inteligente.

Quando voltou dos campos, era um homem mudado. Ao invés de apenas chegar em casa como
sempre chegava, logo começou a falar sobre o Darma; começou a ensinar. Com o passar do tem-
po, veio a ter milhares de estudantes. Era um professor espiritual tão impressionante que reuniu
à sua volta um vasto séquito de estudantes. Escreveu também muitos livros. Obteve uma repu-
tação ampla pela sua grande erudição sobre o Darma. Foi assim por muitos anos, sua fala crescia
continuamente.

O pastor-lama prosseguia suas atividades quando um outro lama, que viajava pela região, ouviu
falar sobre ele. O lama visitante possuia poderes psíquicos autênticos e sabia do fato de que o
pastor-lama não era alguém que realmente possuísse qualidades genuínas. Ele sabia que a habi-
lidade de ensinar do pastor-lama lhe havia sido transmitida pela possessão de um espírito mara.
Então o lama visitante pediu a um de seus monges atendentes: “Gostaria que você levasse este
incenso até onde o outro lama está ensinando, que o acendesse e espalhasse a fumaça no local,
de forma que tanto o lama quanto todos os alunos sintam o cheiro. Você faria isto para mim?”.
E o monge disse: “Pois não, sem problema.”, levou o incenso até lá e o queimou. Caminhou em
meio a toda a multidão de milhares de pessoas que escutavam o “mestre” pastor. Tão logo sen-
tiu a fumaça, o espírito mara abandonou seu. E o pobre pastor, sentado em seu trono, olhou ao
redor, para a grande multidão de pessoas, e disse: “Cadê minhas ovelhas?”.
A moral da estória é que mesmo um professor sendo inteligente, famoso e capaz de falar sobre
o Darma, isto não certifica sua autenticidade. Você necessita examinar claramente aquilo que
você está buscando em um professor.

Uma vez que você, como um aluno, tenha passado pelo processo de exame e chegado à deci-
são de que realmente quer confiar em um determinado professor, não há nenhum problema em
relacionar-se lealmente com o mestre, baseando-se em fé e em visão pura. Assim, ao ouvir os
ensinamentos deste professor, você estará completamente receptivo ao que ele tem para ofere-
cer.

Confiando no Professor

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Eis algumas perguntas importantes que você deveria propor a si mesmo: “Este meu professor, ou
professora, experimenta a liberdade do sofrimento e ilusão a fim de poder ser capaz de trans-
mitir esta mesma liberdade para mim? Ele está motivado por bodhicitta ou não? Este professor
realmente está realmente sendo compassivo ao se interessar por mim como seu aluno?”. En-
contramos dito em todos os ensinamentos dos sutras, tantras e, em especial, nos ensinamentos
mentais das escolas do Mahamudra e da Grande Perfeição, que é extremamente importante
examinar as qualidades de um lama antes de se tomar uma decisão sobre ele e lhe entregar a
confiança.

O ponto central do processo de exame não é julgar criticamente um professor no estilo de um


fórum público ou num sentido abstrato. Em vez disto consiste em avaliar o professor partindo
de um nível profundamente pessoal com o objetivo de determinar se este relacionamento será
benéfico ou não para você como aluno. Será que este professor possui mesmo qualidades e en-
sinamentos para oferecer de forma que você, ao recebê-los, beneficie-se deles? É uma questão
totalmente relativa ao seu próprio ponto de vista, sem nada a ver com uma perspectiva concei-
tual.

Confiar em um professor é absolutamente crucial para que o estudante receba a transmissão dos
ensinamentos de forma pura. Isto é particularmente verdadeiro com os ensinamentos da Grande
Perfeição. Você só pode receber a transmissão pura da Grande Perfeição ao vivo de um profes-
sor. Não há outra fonte de transmissão além do trabalho com um professor autêntico.
E, digo mais uma vez, é importante que o lama ou lamas nos quais você confia não sejam indi-
víduos motivados por desejos egoístas em prol de vantagens pessoais; que não sejam de forma
alguma trapaceiros ou charlatões; que a maneira com que falam os ensinamentos não seja con-
traditória ou contraproducente; que não sejam orgulhosos de suas próprias qualidades ou fiquem
constantemente falando sobre elas, nem as demonstrando de modo competitivo e por vaidade.
Qualquer uma das qualidades deste tipo tem de ser evitadas na busca por um professor.
Por outro lado, quando você se deparar com um lama ou professor cujo caráter seja realmen-
te muito nobre, que possua excelentes qualidades, que seja habilidoso e perspicaz no que diz
respeito à prática dos ensinamentos budistas em geral e do caminho Vajrayana em particular,
cujo fluxo mental seja motivado por bodhicitta, que seja extremamente amoroso e compassivo
ao lidar com os demais, e que tenha realizado a natureza fundamental dos fenômenos de forma
realmente autêntica e direta, quando encontrarmos alguém que corporifique todas estas quali-
dades, então teremos o caso ideal, podemos confiar neste professor. Esta pessoa encontra todas
as qualificações de um professor bom e autêntico.

Logo, quando falamos de uma pessoa que seja verdadeiramente um lama, não estamos simples-
mente falando de alguém que possua o título ou que seja considerado lama no sentido geral e
comum. Somente quando tratarmos de alguém que realmente possua estas qualidades autênti-
cas é que verdadeiramente estaremos falando de um lama qualificado e autêntico, noutras pa-
lavras, de uma pessoa na qual seja benéfico que depositar confiança. Sua prática e sua vivência
no Darma somente crescerão como resultado de uma conexão com alguém que seja realmente
merecedor do título “lama”.
Quando a atitude do aluno com relação ao seu lama for de tal fé e devoção que o estudante re-
almente veja seu professor como o verdadeiro Buda, ou a própria corporificação do darmakaya,
Vajradara, ou ainda, como a própria corporificação do seu yidam, quando o estudante possuir
confiança e fé completas, sem qualquer dúvida ou hesitação, então as bênçãos e qualidades da
forma, fala e mente iluminadas de todos os budas e bodhisattvas lhe serão transmitidas através
do lama.

Há também casos nos quais a pessoa se depara com um lama com o qual tem uma conexão há
muitas vidas. Uma indicação disto é que a simples menção do nome do professor lhe seja uma
experiência impressionante: cada fio de cabelo em seu corpo se arrepia. É algo que sucede de

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forma totalmente automática e não como uma experiência pensada.

Quando houver certeza em sua mente de que aquilo que você encontra e em que confia no seu
lama realmente é o Buda, ou o darmakaya Vajradara, ou Guru Rinpoche, e quando você rezar
com esta mesma certeza em sua mente, então você definitivamente receberá as bênçãos desta
conexão. Mas isto implica que você, como aluno, vigie também suas próprias atitudes para com
o professor e assegure-se de que seja sempre respeitoso e receptivo ao que o professor estiver
dizendo. Não ceda aos seus próprios hábitos comuns de orgulho e auto-engrandecimento, nem
menospreze de forma alguma a relação com o professor por contrariar o que ele disser ou tentar
malograr seus esforços. Toda e qualquer atitudes deste tipo tem de ser evitada, uma vez que
não sustentam nem a confiança nem o relacionamento aberto necessário para que as bênçãos
fluam de professor a aluno.

Nos tantras afirma-se repetidas vezes sobre a importância de confiar-se no lama como a fon-
te das bênçãos para a prática pessoal. Não importa qual seja a prece que o estudante oferece
ao lama, ou quão pequena e aparentemente insignificante ela possa ser, se ela for baseada em
confiança e fé completas do aluno pelo lama, as bênçãos do lama estarão sempre acessíveis
ao estudante. No “Tantra do Oceano de Estado Desperto Atemporal” é dito que é bem melhor
recitar uma pequena prece ao próprio lama com pureza de fé e devoção do que fazer centenas
de milhares de recitações de mantras de deidades. O efeito da oração é muito mais poderoso
quando esta for verdadeiramente uma expressão da própria fé e devoção no lama pessoal.

Quando uma conexão com o próprio lama estabelece-se com base em fé e devoção, há dife-
rentes formas de se depositar confiança nesta relação, e das quais vários tipos de realizações
podem surgir. Se um estudante pretende atingir a realização mais sublime da iluminação em si,
ele identifica o lama com Vajradara, o buda do darmakaya. Se estiver particularmente motiva-
do em desenvolver a mais profunda sabedoria, identifica o lama com Manjushri, o bodisatva da
sabedoria. Para incrementar seu próprio amor e compaixão, o aluno medita no lama como inse-
parável de Avalokitesvara, o bodisatva da compaixão. Para conquistar um poder espiritual maior,
focaliza-se o lama como inseparável de Vajrapani, o bodisatva do poder espiritual. Para superar
os vários tipos de medo e ansiedade, confia-se no lama como a própria corporificação da nobre
Tara. Para promover a própria longevidade, medita-se no lama como sendo inseparável de Ami-
tayus. Para superar doenças e enfermidades, medita-se no lama como o Buda da Medicina.

Para promover a própria riqueza e prosperidade, medita-se sobre o lama como inseparável de
Vaishravana, Dzambhala, ou qualquer uma das muitas deidades da prosperidade. A fim de puri-
ficar os efeitos das próprias ações prejudiciais e também os obscurecimentos do próprio corpo,
fala e mente, medita-se no lama como sendo inseparável da deidade Vajrasatva. Para fomentar
a própria glória, riqueza e as boas oportunidades, medita-se no lama como inseparável do Buda
Ratnasambhava, o Buda da família Ratna (jóia). Para fomentar o poder pessoal, isto é, as habi-
lidades de exercer uma influência poderosa e benéfica sobre o mundo, medita-se no lama como
inseparável de Amitaba ou de deidades tais como Kurukula. Se houver o desejo de desempenhar
as atividades iradas, medita-se no lama como inseparável de Vajrabhairava, ou de qualquer um
dos yidams mais terríveis. E quando se deseja adotar uma abordagem que combine todas estas
qualidades em uma única forma, medita-se no próprio lama como inseparável de Guru Rinpoche.
Em cada um destes casos, a atitude pessoal a ser tomada é a de ver que o próprio lama raiz é de
fato a corporificação de um destes aspectos iluminados do ser.

O Grande Mestre Padmasambhava

A abordagem universal que resume todos estes aspectos é a meditação sobre o lama pesso-
al como a própria corporificação de Guru Rinpoche. Guru Rinpoche, neste caso, não deve ser
encarado como uma figura histórica apenas, quer dizer, como um indivíduo que apareceu após o

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Buda Sakyamuni neste nosso tempo e espaço particular. A essência verdadeira de Guru Rinpoche
antecede Buda Sakyamuni em diversas eras. Este fluxo mental iluminado que é o fluxo mental
iluminado de Guru Rinpoche é a expressão da união da compaixão, bênçãos e sabedoria inatas
de incontáveis budas desde eras passadas sem princípio, todos concentram-se neste fluxo men-
tal único que é o fluxo mental do grande mestre Guru Rinpoche.

Quando consideramos o Budadarma como dividido em ensinamentos de sutras e tantras, os en-


sinamentos que hoje conhecemos como budismo são os que foram proferidos e ensinados pelo
Buda histórico, Sakyamuni. Num sentido amplo, contudo, os ensinamentos do Budadarma, e em
especial os ensinamentos do caminho do mantra secreto, não se limitam apenas à expressão
deste único buda. É com esta visão que podemos entender porque a atividade de Guru Rinpo-
che é considerada tão universal e tão abrangente. Onde quer que os ensinamentos do Vajraya-
na tenham sido dados no passado, ou estejam sendo dados, ou venham ainda a ser dados por
qualquer buda, onde quer que um professor espiritual esteja transmitindo estes ensinamentos,
a essência de Guru Rinpoche estará corporificada ali: naquele buda, naquele professor, naquele
lama. Em diversos reinos e diferentes universos, com nomes e formas variadas, as manifestações
de Guru Rinpoche apareceram e continuarão a aparecer em número incontável. Há uma grande
quantidade de referências na literatura tradicional atestando esta exibição multifacetada da
atividade de Guru Rinpoche.

Neste nosso tempo e espaço em particular, à medida que vivenciamos o legado do Buda Sakya-
muni como um dos mil budas que aparecerão durante esta boa era em que vivemos, todos estes
mil budas e toda a atividade destes mil budas, incluindo o próprio Buda Sakyamuni, são manifes-
tações de uma única fonte. Todos são aspectos diferentes da atividade que deriva de uma única
fonte de bênção e de uma única fonte de transmissão. Por todo este enorme universo e por toda
esta vasta extensão de tempo, as centenas de milhões de manifestações de budas e professores
que aparecem são manifestações da energia de Guru Rinpoche. Portanto, a expressão das bên-
çãos de Guru Rinpoche não pode ser limitada a um único cenário espaço-temporal, tais como
Índia e Tibete de determinadas épocas.

As narrativas sobre o nascimento milagroso de Guru Rinpoche na Índia e sua jornada ao Tibe-
te para levar os ensinamentos são apenas um aspecto pequeno da bênção e atividade que é
a totalidade de Guru Rinpoche. Até mesmo as narrativas que possuímos sobre a vida de Guru
Rinpoche não falam sobre um só personagem, mas de oito manifestações de Guru Rinpoche com
o objetivo de expressar a enorme esfera de ação das bênçãos e atividades de Guru Rinpoche.
Estas mesmas bênçãos e atividades continuam a se manifestar em todos os grandes professores e
mestres que forem emanações de Guru Rinpoche. Guru Rinpoche não está morto. Guru Rinpoche
nunca se foi. Guru Rinpoche continua a demonstrar esta atividade milagrosa para o benefício
dos seres, tanto agora quanto no futuro.
Nenhum ponto deste ensinamento está em contradição com os ensinamentos que foram transmi-
tidos pelo Buda Sakyamuni. A terceira giro da roda pelo Buda foram os ensinamentos que dizem
respeito à natureza definitiva da realidade, na qual encontra-se também o fundamento dos en-
sinamentos Vajrayana. Contudo, em nosso tempo e espaço especificamente, foi principalmente
através de Guru Rinpoche que estes ensinamentos do Vajrayana foram desenvolvidos e apresen-
tados.

Com nossas percepções ordinárias o que percebemos como o “fenômeno Buda Sakyamuni” é
uma pessoa que nasceu como um príncipe num país então ao norte da Índia, filho do rei Shudo-
dena com a rainha Mayadevi; alguém que cresceu, atingiu a iluminação, girou a roda do darma,
faleceu passando ao nirvana com seus restos sendo cremados e legando as relíquias que estão
conosco até hoje.
A essência de Guru Rinpoche é inata e imortal. Não é algo que possamos limitar a um ente que
veio a ser em um dado momento e deixou de existir noutro ponto do tempo. O corpo de Guru

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Rinpoche não é um corpo de carne e sangue. A presença de Guru Rinpoche não tem qualquer
base física. Está sempre presente. Sempre existiu e sempre será, pois não está sujeita às limita-
ções de qualquer forma corpórea. Há muitas ocasiões nas quais reis e ministros indianos tenta-
ram assassinar Guru Rinpoche. Numa destas, seu corpo foi atirado às chamas. Uma pessoa co-
mum teria morrido instantaneamente, mas Guru Rinpoche nunca foi fisicamente lesado de forma
alguma, seu corpo não era de uma natureza comum.

Na ocasião em que Guru Rinpoche chegou à Terra das Neves e o rei tibetano prostrou-se a ele,
o rei curvou-se para encostar sua cabeça naquilo que pensava ser o joelho de Guru Rinpoche
sentando à sua frente. Porém, sua cabeça atravessou o corpo de Guru Rinpoche e tocou o tapete
abaixo. Quando Guru Rinpoche partiu do Tibete para o reino dos demônios canibais, não morreu
de maneira comum, deixando o seu corpo. Ele partiu da terra do Tibete de um modo realmente
milagroso, em um evento testemunhado por todos os presentes naquela ocasião.
Contudo, já ouvi falar que há pessoas aqui no Ocidente cujo negócio é vender relíquias de Guru
Rinpoche! Dizem que estas são, por exemplo, os cabelos de Guru Rinpoche. Há um caso sobre
um terma revelado por Jatsön Nyingpo que é referido como o cabelo de Guru Rinpoche, mas ele
se parece mais a um filamento luminoso de arco-íris, não há de fato qualquer cabelo ali.
Meditar a respeito do próprio lama raiz como a corporificação real da essência e bênçãos de
Guru Rinpoche significa que qualquer prática que você empreenda, de qualquer deidade, ou
qualquer atividade que pretenda desenpenhar em sua prática, seja esta pacificadora, enrique-
cedora, magnetizadora ou irada, em qualquer um e em todos estes métodos, sua prática será
bem-sucedida e frutífera. Se você rezar a seu lama tendo-o como inseparável de Guru Rinpoche,
com uma mente plena de fé e devoção, então Guru Rinpoche nunca estará separado de você.

Quando fazemos prática de deidade, percebemos que surgem julgamentos em nossa, por exem-
plo, ‘esta deidade é melhor que aquela outra’ ou ‘esta deidade é mais poderosa’, e ainda ‘esta
bênção virá mais rapidamente através desta deidade’. Este tipo de pensamentos ordinário não
é realmente adequado quando estamos lidando com algo desta natureza. O único fator benéfico
é o interesse devocional e a fé presente na mente do aluno. Pode ocorrer que, em certas cir-
cunstâncias, sua fé em dada deidade seja mais forte, então é esta prática de deidade que lhe
será a mais efetiva. Contudo, isto não quer dizer que em um nível mais elevado exista qualquer
distinção que possa ser feita entre estes vários aspectos do ser iluminado. Todos surgem a partir
da vasta e única expansão de estado desperto atemporal como manifestações igualmente autên-
ticas de bênção e poder. Não existe hierarquia, por assim dizer, entre as deidades. Não é o caso
que umas sejam mais poderosas que outras, ou mais abençoadas e doadoras de benefícios que
outras. Pelo contrário, isto tem mais a ver com o seu grau de motivação, como praticante, para
atingir um determinado objetivo.

Se você quiser saber em que grau está recebendo as bênçãos de sua deidade ou de sua prática,
seria muito útil examinar o quanto você desenvolve fé e devoção para com o yidam e a prática.
Quanto mais dúvidas ou qualquer outra coisa que não seja genuína fé nutrirmos em nossas men-
te, sem mantermos firmes e lúcidos em nossa prática, nesta mesma medida estaremos confun-
dindo a nós próprios. Obscurecemos nossas próprias mentes com estas dúvidas, com hesitação e
a falta de certeza e confiança. É neste nível que podemos dizer que não há bênção na prática.
Não é porque a deidade não possua bênçãos. Não é porque o lama não possua bênçãos. Mas sim
porque o estudante está fechado a esta bênção pela própria dúvida e confusão.
Praticando Guru ioga
O método em si para a pratica da meditação de guru ioga consiste em visualizar-se a si próprio
na forma de uma deidade, neste caso, a deidade feminina Vajraioguine. Medite que no espaço
acima de sua cabeça, cerca de um cúbito (algo como a extensão de seu antebraço) acima, há
um assento formado por três flores de lótus sobrepostas: um lótus branco, outro vermelho e
outro azul escuro. Repousando sobre este triplo assento de lótus, você visualiza o disco plano da
lua-cheia [em pé]. E, sentado sobre o lótus, você medita a forma de Guru Rinpoche, consideran-

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do-o a essência de todas as bênçãos de todos os budas e bodisatvas unificada numa única for-
ma. Mesmo apesar da manifestação da forma de Guru Rinpoche possuir uma aparência específica
em termos de postura, gestos, ornamentos e vestimentas específicas, sua essência é inseparável
da essência do seu lama raiz. Rezar com esta convicção é a base da prática de guru ioga.

Esta forma de Guru Rinpoche em particular é de uma cor branca com um matiz avermelhado.
Possui uma face e duas mãos, seu semblante é descrito como semi-irado, no sentido de que é
basicamente uma expressão pacífica com uma pequena insinuação de ira, não chegando a ser
propriamente uma face irada. A forma de Guru Rinpoche possui as 32 marcas maiores e as 80
menores da perfeição física, de modo que não existe nada em sua forma que possa ser desagra-
dável, desproporcional, incompleto ou insatisfatório à mente da pessoa que a visualiza. O cabe-
lo da figura de Guru Rinpoche espalha-se pelos ombros e costas. Em sua cabeça, Guru Rinpoche
usa o chapéu lótus, que confere liberação a todos que o usarem.

Guru Rinpoche veste uma capa luxuosa chamado “Manto Real de Sawok”. A origem deste manto
refere-se a um evento particular que ocorreu quando Guru Rinpoche estava na área conhecida
atualmente como Tso Pema pelos tibetanos, ou Rewalsar para os indianos. O rei desta região
ofereceu seu próprio manto ao Guru Rinpoche. Em reconhecimento ao oferecimento do símbolo
de sua majestade deste rei mundano a Guru Rinpoche, a forma de Guru Rinpoche está vestida
deste manto externo. Guru Rinpoche também veste uma túnica monástica formal, emblema das
disciplinas do Hinayana. Está adornado com ornamentos de jóias tais como brincos, colar, brace-
letes e tornozeleiras. Sua mão direita segura um vajra de cinco raios à frente do centro cardía-
co. A mão esquerda está em seu colo no gesto do equilíbrio meditativo, segurando uma taça de
crânio preenchida com néctar, dentro da qual há um vaso cheio de néctar de imortalidade.
Na dobra do cotovelo esquerdo, Guru Rinpoche sustenta um tridente, que é uma referência ve-
lada ao princípio feminino, o aspecto de Vajraioguine. Várias consortes, tais como Yeshe Tsogyal
e Mandarava, são associadas a Guru Rinpoche. Uma vez que todas elas possuíam essencialmente
a mesma natureza de Vajraioguine, este é então o significado do tridente na dobra do cotovelo
esquerdo.

Quando encontramos referência ao yab yum (consortes masculino e feminino ou consortes pai e
mãe) aplicada às deidades, não devemos cometer o erro óbvio de presumir que isto tenha algo a
ver com macho e fêmea num contexto físico. As deidades não são seres masculinos e femininos,
mas sim energias masculinas e femininas. A imagem bipolar de masculino e feminino ilustra a
união primordial entre aparência (ou forma) e vacuidade. Uma das descrições para esta imagem
é que o aspecto masculino, o aspecto yab, refere-se à aparência fenomênica, enquanto que a
yum, o aspecto feminino, é a expressão da vacuidade. Assim, a maneira com a qual as deidades
manifestam-se é simplesmente uma expressão direta da natureza fundamental da realidade tal
como ela é.

A dakini Yeshe Tsogyal é famosa por ter sido a consorte tibetana de Guru Rinpoche, mas deve-
mos lembrar que sua função básica como consorte era a de reunir e codificar os ensinamentos
de Guru Rinpoche. O seu papel é diretamente análogo àquele que Ananda, o aluno de Buda,
desempenhou após a morte do Buda, a saber, a reunião os ensinamentos de Buda a fim de que
pudessem ser transmitidos às gerações futuras. Foi exatamente esta a função de Yeshe Tsogyal,
preservar, codificar, coletar e coligir os ensinamentos de Guru Rinpoche. Apesar da dakini Yeshe
Tsogyal ter aparecido na forma de uma mulher tibetana, sua essência última é a de uma dakini
de estado desperto atemporal. Sendo assim, não há contradição em sua manifestação desta es-
sência como uma mulher ou como um tridente apoiado na dobra do cotovelo esquerdo de Guru
Rinpoche.

Além disto você medita que a forma de Guru Rinpoche acima de sua cabeça está sentada na
postura vajra completa, com a canela esquerda sobre a cocha direita e a canela direita sobre

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a cocha esquerda. Medite que a forma está irradiando brilhantes raios de luz em todas as dire-
ções.

A ornamentação inexaurível da forma de Guru Rinpoche é a essência do princípio da sangha; a


ornamentação inexaurível de sua fala, o princípio do darma; e a de sua mente, o princípio de
Buda como fonte de refúgio. As qualidades de Guru Rinpoche corporificam o princípio da deida-
de escolhida do Vajrayana; sua atividade, as dakinis e darmapalas (os protetores do Darma). Em
resumo, aquilo que no começo aparentava ser simplesmente a forma de Guru Rinpoche é com-
preendido em um nível mais elevado como a própria essência de todos os budas, yidams, dakas
e dakinis, protetores do Darma e todo o vasto arranjo das três jóias e das três raízes, todos
resumidos dentro de uma única manifestação.

Não importa qual seja a deidade particular em que você esteja meditando em sua prática indi-
vidual nem a forma específica que você visualiza, o importante é que você visualize esta forma
como sendo aparência pura, sem qualquer natureza material ou corpórea. Você não está vi-
sualizando a deidade como um corpo de carne e sangue, mas sim, uma forma completamente
insubstancial, isto é, uma forma que não é nada além de aparência pura, sem qualquer solidez
ou substancialidade. Por exemplo, ao praticar ka-gye (“Os Oito Comandos para a Prática de
Sadhana”), se você estiver meditando sobre Vajrakilaya, Chemchog ou qualquer um dos herukas
principais deste ciclo, a meditação destas práticas mais extensas envolve a visualização básica
de sua forma como a forma da deidade, com mandalas completas de deidades aparecendo em
certos pontos de seu corpo, associadas com a concentração de energia sutil. Portanto, você não
visualiza uma forma que possua estrutura esquelética, sistemas circulatórios, digestivo ou mus-
cular. Nenhum destes elementos físicos ordinários faz parte da imagem.

Em nosso âmbito espaço-temporal, Guru Rinpoche é a fonte das linhagens que mantemos. Ape-
sar de a presença real de Guru Rinpoche não ser diretamente perceptível para nós, ainda assim
conectamo-nos com esta fonte por meio da linhagem ininterrupta que tem sido transmitida atra-
vés das gerações. Quando confiamos no lama como a própria corporificação de Guru Rinpoche e
como inseparável de Guru Rinpoche, conectamo-nos diretamente com esta fonte incessante que
chegou até nós através da história.
No pináculo do reino puro de Akanishta, Guru Rinpoche recebeu uma transmissão da dakini Le-
che Wangmo, a poderosa deusa da atividade. O processo pelo qual ele recebeu esta transmissão
foi através dela transformá-lo em uma sílaba semente hung, que ela engoliu. À medida que a
sílaba hung passava pelos chakras do corpo da dakini, ele recebia os quatro estágios de inicia-
ção: o do vaso, do corpo, do estado desperto de sabedoria e a quarta iniciação. Ela o expeliu
por meio do seu órgão secreto e ele reassumiu sua forma. Obviamente, este não é um processo
ordinário no qual ela tenha deglutido, digerido e excretado alguma coisa.

Este processo especial também encontra expressão nos muitos abhisekas, cerimônias de inicia-
ção realizadas pelos mestres vajra. Estas cerimônias incluem visualizações similares, nas quais
o aluno é transformado em uma sílaba, ingerido pelo mestre vajra, e retornado ao mundo nova-
mente, transformado na deidade. São processos através dos quais o mestre vajra, ao transmitir
a bênção, purifica o fluxo mental do estudante do efeito das ações danosas e de obscurecimen-
tos, e lhe transmite o poder espiritual da iniciação.
Uma vez que o estudante tenha sido gerado como a deidade pelo mestre vajra, mantém a iden-
tidade com a deidade escolhida pela duração da cerimônia de iniciação. O estudante reconhece
sua essência como sendo a própria essência daquela deidade manifestando-se naquela forma em
particular. A concepção que o estudante mantém de si próprio como a deidade é o samayasat-
tva, o aspecto de compromisso, o qual é imbuído pelo mestre vajra com o jnanasattva, o aspec-
to do estado desperto atemporal. O mestre vajra então prossegue com o uso de várias substân-
cias e artefatos, tais como o vaso e assim por diante, como símbolos que transmitem a bênção
final dos vários níveis de iniciação. É neste contexto que a verdadeira transmissão de poder e

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energia espirituais ocorre.

Esta é apenas uma expressão de um princípio muito maior. Quer estejamos envolvidos com as
atividades do Darma ou com um trabalho comum, nossa própria mente é o fator mais importan-
te, ou seja, a maneira como nossa mente está percebendo a situação, ou como relaciona-se com
as circunstâncias. Aqui, tanto o lama quanto o estudante tem uma responsabilidade: para que a
verdadeira transmissão ocorra, tanto a mentes do lama quanto a do estudante deveriam perce-
ber a situação de maneira apropriada. Somente então poderá haver de fato a transmissão autên-
tica das bênçãos em uma iniciação.

Retornando à meditação de guru ioga em si, tendo visualizado a forma de Guru Rinpoche como
a união de todos os budas e fontes de refúgio acima de sua cabeça, você medita que esta forma
está marcada em sua testa com uma sílaba om branca, na garganta com uma sílaba ah verme-
lha, no centro cardíaco com uma sílaba hung azul-escura, e no centro umbilical com uma sílaba
hri verde. Em acréscimo, você medita que sobre as palmas das mãos e solas dos pés da forma de
Guru Rinpoche estão as quatro sílabas ha ri ni sa. Raios de luz emanam destas sílabas em todas
as direções, invocando as bênçãos de todas as fontes de refúgio, que então retornam e são ab-
sorvidas na forma que está acima da cabeça. Com foco unidirecionado, você inicia a prática de
guru ioga em si, a qual envolve uma súplica ao lama e a recitação do vajra guru mantra, o man-
tra de Guru Rinpoche.

Prosseguindo com a parte principal da prática, você primeiro medita que da sílaba om branca no
centro da testa de Guru Rinpoche emana um raio de luz branco, como uma estrela cadente, que
entra em sua própria testa e preenche completamente seu corpo. A luz branca purifica-o em ní-
vel físico dos efeitos dos obscurecimentos e ações danosas, imbuindo sua forma com as bênçãos
da forma iluminada. Através de um processo similar, você medita que do centro laríngeo de Guru
Rinpoche, da sílaba ah vermelha, emana um raio de luz vermelho que entra pelo seu próprio
centro da garganta, purificando sua fala. Do centro cardíaco de Guru Rinpoche, da sílaba hung
azul-escura, emana um filete ou filamento de luz semelhante a um filete de fumaça de incenso,
que é absorvida em seu próprio centro cardíaco, purificando sua mente. Finalmente, você medi-
ta que de todos os centros da forma de Guru Rinpoche emanam raios de arco-íris luminosos com
as cinco cores, branco, vermelho, amarelo, verde e azul, todas as quais sendo absorvidas em
seus próprios chakras, purificando os derradeiros traços de obscurecimento e conferindo o quar-
to nível de iniciação. Assim, você recebe os quatro níveis de iniciação, do vaso, secreto, estado
desperto de sabedoria e a quarta iniciação. Isto estabelece o potencial da sua própria realiza-
ção, respectivamente, do nirmanakaya, do sambogakaya, do darmakaya e do svabavikakaya (a
totalidade dos três kayas).

Quando enfim chegar ao final da sessão, você medita que a forma de Guru Rinpoche acima de
sua cabeça se dissolve em luz. Esta luz é absorvida em você e neste ponto começa o estágio de
consumação sem-forma da prática. Você medita que a forma, fala e mente iluminadas de Guru
Rinpoche não são de maneira alguma separadas do seus próprios corpo, fala e mente. Ocorre
uma completa união não-dual. Você medita em um estado de mente sem-forma, sem qualquer
estrutura referencial ou elaboração conceitual, simplesmente permitindo que sua mente re-
pouse neste estado de união não-dual pelo maior tempo possível. Em seguida, você conclui com
preces de dedicação e aspiração.

Há uma grande quantidade de outros modos específicos nos quais a visualização da prática de
guru ioga é apresentada de acordo com linhagens, tradições e, até mesmo, situações específi-
cas. No entanto, os princípios gerais descritos nesta apresentação mantêm-se válidos em todos
os casos: você visualiza o lama acima da sua cabeça, etc. Neste caso em particular, você consi-
dera a forma de Guru Rinpoche como a forma que corporifica todas as fontes de refúgio. Nou-
tros sistemas de prática, você poderá ser instruído a visualizar uma grande multidão de fontes

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de refúgio, como uma grande assembléia, acima de sua cabeça. Ou também, você poderia ser
instruído a visualizar uma linhagem, com cada um dos personagens sobre o anterior, estenden-
do-se verticalmente para cima a partir do topo de sua cabeça. Há detalhes diferentes para as
visualizações específicas que dependem do sistema que estiver estudando, mas você deveria
entender que, a despeito das aparentes diferenças nos detalhes, a natureza essencial da prática
é a mesma em todos os casos.
Como eu já disse, as qualidades mais importantes para a mente dos alunos e que asseguram o
sucesso da prática são fé, devoção, confiança e visão pura. Se um estudante estiver realmente
disposto a se beneficiar de sua própria prática e da associação com o Darma, estas qualidades
são indispensáveis.

70
Guia para Meditação
Kalu Rinpoche

As quatro atenções

Livre do apego e de qualquer preocupação com o corpo, o praticante se retira para um local so-
litário para entregar-se à meditação. Esta repousa em primeiro lugar sobre as “quatro completas
atenções”:

a.. a completa atenção ao corpo;


b.. a completa atenção às sensações;
c.. a completa atenção à mente;
d.. a completa atenção aos fenômenos.

Pela prática dessas quatro atenções, a mente estabiliza-se. Elas são um equivalente do que
se chama a “pacificação mental” (sânsc. shamata, tib. shine). A mente é focalizada sobre um
único objeto, sem se deixar influenciar por nenhum pensamento, qualquer que seja, é claro,
por nenhuma emoção conflituosa. Dessa forma, ela permanece perfeitamente em repouso. A
primeira das quatro atenções completas é aquela voltada para o corpo. Baseia-se na assimilação
que fazemos de nossa pessoa ao nosso corpo. Nessa técnica, a mente é fixada sobre esse simples
sentimento de ser o corpo, sem acrescentar nenhum julgamento nem nenhuma apreciação do
tipo “Este corpo é uma boa coisa ou ele é uma coisa ruim; ele é agradável ou ele é doloroso; ele
tem boa saúde ou uma saúde ruim; ele existe ou ele não existe, etc.” Está-se somente presente
na impressão de se ter um corpo, sem nenhuma distração. Essa abordagem compreende numero-
sos métodos. Este é apenas um deles.

Através do corpo, sensações variadas são experimentadas: o frio ou o calor, a suavidade ou a


aspereza, etc. Quando, qualquer que seja a sensação sentida, ainda sem julgamento, a mente
permanece concentrada nela, sem distração, chegamos à segunda completa atenção.

A terceira atenção recai sobre as sensações da mente: a alegria ou o descontentamento, a felici-


dade ou o sofrimento, não importa qual tipo de movimento mental. Fica-se simplesmente pre-
sente a esses movimentos, sem desenvolver os pensamentos ou segui-los. Basta observá-los de
maneira neutra.

A atenção aos fenômenos, enfim, é praticada da mesma maneira, aplicando-se tanto às formas,
quanto ao sons, aos odores, etc. Quando, por exemplo, uma forma é percebida pelo olhar, não
se tenta desviar dela, também não se faz nenhum julgamento, nem nenhum comentário - “Isso
é bonito ou não é, eu a aprecio ou eu não a aprecio...” - mas deixa-se a mente colocada sobre
o objeto percebido, sem distração, simplesmente presente. O mesmo se faz com um som, um
odor ou qualquer objeto dos sentidos.

Nesse tipo de meditação, é preciso compreender que a noção de mente se aplica ao presente:
tudo o que já foi produzido na mente não está mais lá; passado e futuro não são reais. A mente
no presente não é marcada pelo tempo; ela também não tem nenhuma realidade material, nem
cor, nem forma, nem volume, etc. Nesse sentido, ela é a vacuidade na qual tendemos a perma-
necer plenamente.

As quatro renúncias justas

Depois de ter exercitado nessas quatro completas atenções, o praticante aborda as “quatro
renúncias justas”, que se situam no plano moral: por um lado, ele toma consciência dos atos ne-
gativos que já foram cometidos, rejeitando-os como nocivos, ao mesmo tempo que procura não

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mais cometê-los no futuro. Além disso, esforça-se para dar mais força às tendências positivas já
nascidas nele, assim como conquistar aquelas que ainda não possui.
Tornar-se o fogo

Um outro elemento desta abordagem é constituído pelos “quatro fundamentos dos prodígios”.
Por isso entende-se ter atingido tais capacidades de concentração que elas resultam na obten-
ção de poderes extraordinários. Aquele que, com o poder de suas capacidades, medida sobre o
elemento fogo, pode fazê-lo com uma tal potência que efetivamente sentirá o corpo como uma
chama; se ele medita sobre o elemento água, sentirá seu corpo como uma corrente de água. Ele
pode operar os mesmos prodígios concentrando-se sobre o vento ou sobre a terra. É por isso que
na história dos arhats e dos buddhas solitários do passado encontra-se um certo número de casos
em que, no momento da morte, eles se transformam em uma bola de fogo, em uma massa de
água ou ainda em um raio de luz.

Prática das quatro atenções

Para termos uma certa idéia desta abordagem de meditação, o melhor é praticarmos juntos as
quatro completas atenções que vimos anteriormente.

Em primeiro lugar, pratiquemos a “atenção ao corpo”. Tomamos consciência do pensamento:


“Eu sou o corpo”, isolando-o de todo contexto de apegos e de desejos que lhe é habituado asso-
ciado. Permanecemos sem outro pensamento e se ele aparecer, nós o cortamos imediatamente.
Mantemos uma presença no corpo ao qual nada acrescentamos, sem distração.

(meditação)

Tomemos, agora, “a atenção às sensações”. Pode ser uma sensação de frio ou de calor, uma
cãibra, uma dor em uma certa parte do corpo ou um comichão, uma sensação agradável ou de-
sagradável. Qualquer que seja a sensação sentida, a mente fica totalmente fixa nela, sem seguir
nenhum outro pensamento. Não se está então obrigado a se limitar a uma sensação: se uma
desaparece a outra surge, passamos de uma a outra. Não se procura selecionar uma sensação ou
outra, mas concentra-se naquela que é a mais forte: pode-se, por exemplo, sentir particular-
mente o calor, depois experimentar um comichão. Abandonamos então a primeira pela Segunda.

(meditação)

O terceiro tipo de completa atenção é “a atenção à mente”. Não se refere neste caso a um
objeto exterior, mas ao que se produz interiormente, a todas as expressões da mente, os pensa-
mentos, as emoções, as lembranças, etc. A meditação consiste simplesmente em estar conscien-
te dessas produções mentais sem entretanto considerar o seu conteúdo. Se a mente permanece
em um estado de repouso e paz, fica-se consciente desse estado sem fazer nada de particular.
Quando os pensamentos se manifestam, não se os encoraja, particularmente se eles são bons,
gerados, por exemplo, pela devoção ou a compaixão, do mesmo modo que não se procura afas-
tá-los se eles são negativos, provocados pela irritação, a cólera, o desejo, etc. Está-se somente
consciente do que se passa, seja para manter um pensamento, seja para interrompê-lo.

(meditação)

Enfim, o quarto modo de atenção é dirigido aos fenômenos exteriores, tais como nossos diferen-
tes sentidos os percebem. Na verdade, a totalidade do que permite a manifestação, a saber, a
mente que percebe, os órgãos dos sentidos e os objetos exteriores, tudo isso constitui os fenô-
menos. Nesse tipo de meditação, dirige-se a atenção para os objetos percebidos, sem acrescen-
tar nenhum julgamento. Durante os exercícios de meditação que fazemos agora escutamos, por

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exemplo, o barulho dos carros que chega da rua. Pode-se tomá-lo como objeto da atenção. Não
se pensa que se trata de um barulho agradável ou desagradável, que é inconveniente ou não.
Contenta-se em estar presente no barulho.

(meditação)

Vimos agora o conjunto dessas quatro completas atenções: ao corpo, às sensações, à mente, aos
fenômenos.

Nesses exercícios, o mais importante é a própria mente. Ainda uma vez, lembremo-nos que não
nos referimos aqui a alguma coisa limitada por uma forma, uma cor, um volume ou uma locali-
zação; não se pode, por exemplo, dizer: “Minha mente é alta ou baixa”; não são características
que lhe podem ser aplicadas. A mente é o que conhece, o que sente, o que produz os pensa-
mentos, as percepções e os sentimentos. Na meditação não nos preocupamos com os pensamen-
tos que já foram produzidos no passado, nem por aqueles que serão produzidos no futuro, mas
unicamente pelo presente da mente: esta não tem lados, frente e atrás, não tem limites, cor,
etc. Ela é vazia. Não é uma realidade que possa ser definida. Meditemos então, agora, permane-
cendo simplesmente na mente indefinível.

(meditação)

Essas meditações levam a uma mudança da percepção que temos de nós mesmos: nosso corpo é
visto como uma bolha na superfície da água, a palavra parece um eco sem realidade própria, e
os pensamentos parecem uma miragem. Quanto ao mundo exterior, aparece para nós como um
conjunto de condições nocivas à prática.

73
Prática na Vida Cotidiana
Lama Padma Samten

As práticas espirituais só adquirem seu sentido na vida cotidiana. A relação com nossos pais,
esposa, marido, filhos e colegas de trabalho, e também com os seres em todos os planos da
existência, material e sutil, isto é o termômetro da prática. Um sinal grave é o desinteresse e a
falta de compaixão. O isolamento e a prática formal são artificialidades – só se justificam pela
remoção de obstáculos que eventualmente proporcionem. Todas as construções espirituais, ain-
da que meritórias, são esponja, água e sabão, ou seja, dispensáveis ao final.

S.S.XIV Dalai Lama diz que todos os seres fazem prática espiritual, mesmo que não saibam, uma
vez que se movem buscando tanto a felicidade como a liberdade frente ao sofrimento, e lembra
que as religiões preenchem sua função justo por estarem voltadas a auxiliar os seres nisto.
Quando desejamos ter uma casa na praia, estamos também buscando felicidade. Ainda que nos
falte clareza quanto a isto, esta é a motivação verdadeira, o elemento mental que cria no nosso
desejo quanto à casa. Para buscar a felicidade, a casa de praia é uma boa opção?
Passar lá o fim de semana é ótimo, não há mácula nisso, mas quando chega o domingo, acaba.
A casa da praia nos traz um tipo de felicidade que necessita um certo esforço e trabalho para
acontecer, e o benefício é curto. No budismo, sentimos que trabalhos longos e felicidades curtas
não são muito interessantes, buscamos produzir felicidade de longo alcance. Alguém, por exem-
plo, que supere internamente o orgulho, imediatamente melhorará sua relação com a família e
com os amigos, nessa vida e nas que se seguirão e todos ao redor se beneficiam.

Há variados tipos de felicidade, por exemplo, a vaga em algum emprego. Neste caso nossa
felicidade implica na frustração dos outros (que não conseguirão), além do mais, tão logo come-
cemos a trabalhar, já surge a insatisfação e começamos a pensar nos feriados ou então quanto
tempo falta para nossa aposentadoria... Esse benefício de conseguir um “bom emprego” é muito
diferente do de superar um dos cinco venenos – orgulho, inveja e avareza, desejo e apego, igno-
rância, raiva. Veja bem, quando superamos a avareza, neste exato instante nos tornamos ricos.
Descobrimos uma fonte de satisfação permanente, e tudo que brota dessa fonte e que podemos
oferecer aos outros é motivo de alegria para nós. Quem dá alguma coisa nunca perde essa ale-
gria, já quem recebe, pode até esquecer.

1. Felicidade e motivação no budismo


A prática budista foca cuidadosamente a motivação. Recitar mantras ou entrar num templo sem
a motivação correta, envelhece a religião. A falha é nossa. Por que não olhamos as práticas com
o olho correto, não há benefícios, e nos tornamos surdos às palavras de sabedoria. Por outro
lado, a motivação de trazer benefícios aos outros tem o poder de transformar qualquer ação em
prática espiritual. É muito comum que as mães não tenham tempo para praticar formalmente,
mas com a motivação de ajudar seus filhos e sustentar a casa, tudo que elas fazem se transfor-
ma em prática espiritual.

Dependendo da motivação, em meio a suas atividades, a pessoa pode se sentir aprisionada ou


pode se sentir como um sol, irradiando benefícios. As situações externas são um espelho do que
temos internamente. Sempre podemos optar. Um dia vamos morrer, e isso não é propriamente
um momento feliz, mas mesmo nesse momento, nós podemos irradiar amor, compaixão, e equa-
nimidade para todos os seres.

Usualmente nosso carma nos conduz a ver tudo através dos cinco venenos, mas temos sempre
ao alcance os olhos dos Bodisatvas que tudo vêem com compaixão, amor, alegria e equanimida-
de – as quatro “qualidades incomensuráveis”. Utilizar esta capacidade de opção é que define a
prática espiritual budista.
Quando um filho morre, é um grande sofrimento, é um momento muito difícil, e só existe uma

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forma de produzir e receber benefícios: ter a percepção da natureza luminosa, divina, estável,
que é nossa identidade e que está além de qualquer transformação, além de nome e forma, de
vida e morte, de esperança e medo, de espaço e tempo. Desta experiência interna brotam natu-
ralmente as quatro qualidades incomensuráveis.

Chagdud Rinpoche diz que meditar uma hora por dia e ter vinte e três horas de más ações, maus
pensamentos, não adianta. É necessário praticar vinte e quatro horas por dia. A prática do coti-
diano é a base, a prática formal é complementar ao intensificar nossa qualidade de atenção nas
outras horas do dia.
As motivações podem ser classificadas como: mundanas, pré-budistas e budistas. Em todos os
três casos, os seres, sem exceção, buscam a felicidade e se afastar do sofrimento. Isso é uma
chave unificadora. Todos os seres, dos elefantes às pulgas, se movem nessa direção. Na nossa re-
lação com as pessoas é assim, mesmo as pessoas que nos agridem, querem felicidade e não que-
rem sofrimento. Se nos aproximamos com a intenção de prestar benefício, todos nos acolhem;
mas se nos aproximamos querendo sugar o que o outro tem, somos repelidos, não há dúvida. A
chave numa relação afetiva, ou com amigos, é a disposição de dar, e não a de receber. Todos
os mestres budistas falam isso. A origem do sofrimento é colocar a experiência de felicidade na
dependência de algo externo. Não há como escapar, com a flutuação do objeto, nossa felicidade
flutua junto.

O budismo é resumido pelas expressões “Buda, Darma e Sanga”, que são os “três refúgios”.
Cada um de nós é um buda, nossa natureza é perfeita. Nossa mente é um diamante, uma jóia,
mas por operarmos a partir de certos referenciais, não conseguimos manifestá-la de forma pura,
é como se o diamante estivesse coberto com barro.
O “Darma” são os ensinamentos do Buda, métodos de limpar o barro que envolve esse diaman-
te. Num sentido interno, Darma é a compreensão que brota da mente iluminada dentro de nós.
Quando repousamos sob a natureza do que é liberto, além do espaço e tempo, podemos olhar os
jogos livremente, sem flutuar.
“Sanga” é a comunidade daqueles que praticam, é onde nós praticamos a moralidade, que é se
mover sem causar malefícios e para o benefício dos outros. Com o tempo reconheceremos todos
os seres como a Sanga.
Moralidade e meditação vêm juntas. Se a pessoa pratica uma hora de meditação e vinte e três
horas de iniqüidades, não adianta. A meditação é inseparável do nosso próprio cotidiano, e da
motivação das nossas ações. Ela é que vai permitir transformar qualquer ação em prática espiri-
tual.

Nos portamos como mendigos, colocamos a felicidade como algo externo. Há nisso um carma
instantâneo: no momento em que se olha para fora em busca de felicidade, esquecemos que a
nossa natureza é uma jóia, e nos tornamos mendigos. É como se fossemos muito ricos, mas não
tomássemos consciência. Quando temos uma atitude de mendigos, nos relacionamos com os
outros buscando ganhar um pão velho de vez em quando. Uma pessoa entra numa situação e não
sabe como sair, e assim esquece a sua natureza luminosa básica. Dizemos que o budismo inteiro
é revelar esta natureza básica; isso não é uma teoria, é uma coisa prática. É como um carro que
está atolado, basta tirá-lo dali. E o ponto básico para fazer isso é a motivação, pois é ela que
inclui o aspecto sutil da energia da ação.

Já vimos que a motivação básica de todos os seres é buscar felicidade e se afastar do sofrimen-
to. Há, então uma harmonia, todos fazendo a mesma coisa. Ainda assim há diferenças, há a
felicidade permanente e as felicidades passageiras. A experiência de felicidade de um casamen-
to termina quando termina o casamento. Dentre as passageiras, podemos ter felicidades curtas
e longos pagamentos por elas, ou ter felicidades de média duração e longo sofrimento. Podemos
ter felicidades mais ou menos intensas; e podemos ter felicidades à custa de outros seres, como
no caso do churrasco. Mas há um tipo de felicidade que quando se obtém traz felicidade para

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nós e para todos os outros, instantaneamente, e não só isso, essa felicidade dura permanente-
mente.

Por exemplo, a pessoa se libera do orgulho; isso é bom para ela e para todos, permanentemen-
te. Ou então alguém se libera da raiva, isso é uma grande felicidade! Ela pode olhar com cari-
nho para os outros. É uma liberação, não termina; ela pode olhar os outros como pais, irmãos.
Liberar significa que as qualidades que brotam na liberação não são passíveis de perda. Existe
essa felicidade que é liberar as seis emoções perturbadoras. Nesse momento o mundo muda,
passa a ser uma fonte de felicidade radiante, que não está em dependência de fatores externos,
nem de objetos. É a felicidade permanente. As outras felicidades existem, não há dúvida. Há
as que se dão em dependência a objetos, as felicidades mundanas. Há felicidades que podemos
obter à custa dos outros, que perdem ou são prejudicados.

Existem tradições religiosas que usam a palavra Deus para seres que produzem benefícios para
uns e malefícios para outros. Temos que olhar com cuidado isso. Em primeiro lugar, não é Deus.
A natureza do absoluto não pode ser descrita por conceitos relativos. Mas há um tipo de seres,
em algumas religiões, que fazem isso. São seres que pertencem aos reinos de existência condi-
cionada, e têm o poder de produzir benefícios para alguns e malefícios para outros. Como nós,
eles têm uma natureza intrínseca perfeita, mas que está operando sob condições. Assim, ainda
que tenham poder, não têm sabedoria.

Não há benefício dual que seja permanente, mas nossos olhos estão perturbados e, quando nos
voltamos a esses seres poderosos, só pedimos coisas impermanentes. Isso aparentemente é reli-
gião, mas não é, embora lide com coisas sutis. No passado havia religiões de povos específicos,
onde se ensinava a destruir outros povos para benefício próprio. Esse tipo de crença ainda hoje
está por trás dos infindáveis conflitos e ódios entre nações e raças.
Parece que nossa felicidade material se dá dentro de um contexto onde é necessário esforço,
luta, mas essa visão é equivocada. Tudo se resolve com generosidade. A generosidade cria os
méritos que impedem a pessoa de viver uma situação de miséria. Se a pessoa se acha tão mise-
rável que não tem nada para oferecer, assim é que é. A situação imediatamente melhora quando
oferecer algo, nem que seja um sorriso, um olhar de carinho. No entanto, se a atitude mental é
a avidez, há um poço sem fundo, a pessoa sempre vai se sentir miserável. Com esse sentimento
de carência, só vê o que falta. A avidez é independente do quanto temos; é uma atitude mental.
Uma pessoa que vive em condições pobres mas é generosa, provavelmente não se sente pobre,
tem sempre algo a oferecer.

Um dos remédios do Buda para a transformação social é a tigela que segura na mão esquerda.
Ele e os monges ofereciam-na para ricos e pobres, dando a eles a oportunidade de gerarem
méritos. Mérito traz resultados imediatos: alimentar um cachorro traz imediata satisfação. Uma
mente miserável não oferece, pensa que vai faltar mais adiante. Estamos em meio a seres que
buscam a felicidade sugando os outros. A maneira de lidar com eles é desejar que se liberem
dessa condição de miserabilidade; se usarmos apenas a noção de justiça social, é impossível.

Entre as felicidades mundanas, que são finitas, algumas tem curta, média ou longa duração, mas
existe um aspecto que é comum: a felicidade mundana traz junto uma infelicidade potencial.
Por exemplo, a pessoa bebe, e depois se acidenta. Ter um filho é uma maravilha, mas ele tam-
bém é impermanente, se ele morre é um grande sofrimento. A gente se alegra porque comprou
um carro, depois se preocupa que não seja arranhado, roubado, etc.... É uma alegria em depen-
dência, portanto, sujeita à impermanência. Há situações onde a gente entra e depois, por pior
que seja, não consegue mais sair. Primeiro reza para conseguir, depois para se livrar...
Existe uma grande alteração de qualidade na nossa vida quando percebemos que, independen-
temente da situação objetiva externa, podemos dirigir nossos estados mentais na direção que
desejarmos. Focando a mente num estado mental específico a infelicidade cessa, e a felicidade

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surge. Por exemplo, ouvir música, acender incenso. Ainda que haja aí uma certa liberdade, não
é completa, pois tão logo a música e o incenso terminem, o estado de felicidade perde seu subs-
trato. No entanto, enquanto vivíamos aquele estado mental, estávamos tranqüilos.
Se temos um pouco mais de habilidade, podemos fazer relaxamento ou meditação de tranqui-
lização. Mas mesmo essas experiências têm início, meio e fim. Não podemos ficar relaxando o
tempo inteiro, e aí voltamos aos velhos conflitos de sempre. Vendo isso, queremos isolamento,
desejamos morar num ashram em meio à natureza, nos Himalaias. Olhamos ao redor e achamos
tudo muito terrível. Também a felicidade através de estados mentais particulares é finita.

Em geral, a nossa motivação está oculta. Ela tem o poder de transformar qualquer atividade em
atividade de mérito, e também o poder de estragar tudo. Se fazemos prática espiritual mas com
a motivação de ser melhor do que alguém, ou porque estamos numa disputa, a nossa mente está
imperfeita, mal colocada; mais adiante colheremos os frutos dessas ações, e diremos que esta
prática não funciona. Por outro lado, se a motivação é correta, podemos transformar toda nossa
atividade cotidiana em prática espiritual. A motivação é que definirá se a nossa vida funcionará,
se a nossa prática frutificará.
Já vimos que nossa motivação básica é buscar felicidade. Todos os seres se movem nessa mesma
direção, então podemos entendê-los. Não há atividades erradas. Todos buscamos, de uma forma
mais ou menos hábil, aproximar o que consideramos bom. Todas as religiões brotam disso. Como
se dá no budismo?
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2. Buda no país do Kalamas


Uma vez, o Buda Sakiamuni chegou ao país dos Kalamas. As pessoas logo se aproximaram e pe-
diram a ele que desse ensinamentos. Nesse momento alguém se levantou e disse “Senhor, mui-
tos mestres têm passado por nosso país, oferecendo-nos seus sábios ensinamentos. Porém, eles
sempre dizem ‘esqueçam o que vocês já ouviram antes, agora vou ensinar a verdade definitiva’.
Como, neste momento, devemos ouvir as suas palavras?” O Buda disse: “É muito simples. Ouçam
com cuidado, e testem. Experimentem em suas vidas; se esse ensinamento trouxer benefício,
sigam-no, diligentemente. Se não trouxer nenhum benefício, abandonem-no.”

E continuou o Buda: “Todos os seres buscam felicidade e querem se afastar do sofrimento. Se


usamos como método de buscar felicidade, por exemplo, matar outros seres, isso é interessan-
te?” Todos disseram, “não, não!” “E roubar, é um método para encontrar a felicidade?” Todos
repetiram “não, não!” E seguiu o Abençoado enumerando: conduta sexual inadequada, mentir,
criar discórdia, agredir com palavras, tomar o tempo dos outros com palavras inúteis, ter má
vontade com outros seres, dar conselhos que resultem em sofrimento aos outros, ser avarento. E
todos repetiram “não, não!” Assim todos concordaram que estas dez ações são fontes de sofri-
mento e não de felicidade e entenderam porque são chamadas de “as dez ações não-virtuosas”.
Buda então perguntou, “uma pessoa dominada pela ignorância, pode ser levada a matar?” To-
dos concordaram, “sim, sim, Abençoado!” Seguindo, perguntou, “uma pessoa dominada pela
ignorância, pode ser levada a roubar?” Todos concordaram novamente, e responderam “sim,
sim, Abençoado!” E seguiu o Abençoado enumerando as dez ações não-virtuosas e todos sempre
concordavam que a ignorância poderia causar cada uma das ações.

Depois o Abençoado tomou, a avareza e o ódio e perguntou se cada um poderia causar, uma à
uma, todas as dez ações não-virtuosas. À cada pergunta os Kalamas concordaram e responde-
ram, “sim, sim, Abençoado!” Ao final o Buda explicou: “esta é a razão pela qual a ignorância, a
avareza e o ódio são chamados de ‘os três venenos’: são a raiz de todos os sofrimentos”.
Causar mal aos outros talvez tenha um resultado de curta duração, mas as conseqüências dano-
sas são imediatas, de curta, média e longa duração. Não é que algum ser superior sinta-se afeta-
do, nós é que nos sentimos imediatamente afetados. As dez ações quando praticadas produzem
aparentes vantagens, mas acarretam infelicidades imediatas e de curta, média e longa duração,

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para quem a pratica e para as pessoas ao redor. Quando alguém chega a pensar “seria bom que
tal ser morresse” isso, em si mesmo, já é sofrimento. Curiosamente, todos os seres que estão
em situações de sofrimento tem todos os argumentos para justificar suas ações equivocadas e
não sair dali.

Quando a pessoa faz uma ação equivocada, não se dá conta, e pensa que é bom, que vai trazer
benefício para ela. Isto é o veneno da ignorância atuando. Não percebe que está construindo um
longo carma de sofrimento para si mesma. A ignorância é a geradora de emoções perturbadoras
subseqüentes: orgulho, inveja, apego, avareza e raiva. Essas seis emoções perturbadoras são
assim chamadas porque cada uma nos leva a cometer as dez ações não-virtuosas, construindo
longas infelicidades.

O que define a nossa prática espiritual é a motivação: superar as nossas próprias dificuldades e
sermos capaz de beneficiar os outros seres. Uma etapa disso é liberar as seis emoções pertur-
badoras. Se nos aproximamos com elas de qualquer prática espiritual, contaminamos tudo. Mas
se buscamos a melhor forma de trazer benefícios, relativos e absolutos, isso é prática espiritual
verdadeira, ou seja, transforma a nossa vida. É o que fazem os “bodisatvas”, seres que só se
movem impulsionados pelo desejo de beneficiar os outros. Eles não estão presos em jogos, têm
sabedoria. Nós construímos coisas duais e buscamos assim felicidade, mas eles sabem que tudo
que é construído, em uma semana, um mês, um ano, uma vida, se desmanchará.

Como vimos, existem as motivações, que levam a experiências de felicidade – ainda que im-
permanentes e dependentes de objetos – onde o grande segredo é a generosidade. Existem as
motivações e que vão trazer felicidades para uns e malefícios para outros, como as religiões de
povos. Há também as felicidades sutis, associadas à música, ao relaxamento, à meditação de
tranquilização. Todas estas motivação são pré-budistas, porque quando a impermanência vem e
a felicidade termina. O que o budismo tem a oferecer nesse contexto?

Percebemos que estamos aprisionados pelas seis emoções perturbadoras, que produzem dentro
de nós impulsos que não conseguimos controlar, e assim, praticamos as dez ações não-virtuosas,
incessantemente construindo sofrimentos imediatos e futuros. Se conseguimos liberar o orgulho,
todos os seres ao nosso redor se beneficiam, nossa relação com eles melhora. O mesmo com a
raiva, inveja, apego, ignorância, ou aquisitividade. No exato momento em que liberamos as seis
emoções perturbadoras, surge um tipo de felicidade que automaticamente beneficia a todos.
Não é um tipo de benefício que seja arrancado de alguém, ou algo que logo em seguida temos
que devolver; tampouco não é impermanente como o que podemos comprar ou fazer com nos-
so trabalho. É um benefício que está além de vida e morte, de espaço e tempo, de esperança
e medo. Ao reconhecer isso com o coração, surge a decisão forte e estável de nos libertarmos,
motivação indispensável para começar a receber os ensinamentos budistas.
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3. Três níveis de motivação


Há três níveis de motivação budista: no primeiro, estamos voltados a gerar méritos e obter uma
felicidade estável. Nesse nível estamos voltados a eliminar as seis emoções perturbadoras e
desenvolver as seis emoções positivas correspondentes. A contradição que surge nessa etapa é
que a pessoa tem o foco de atenção sobre si mesma. Como conseqüência, há um limite no que é
possível avançar. Praticando longamente nessa perspectiva, mais adiante ela se dá conta que o
Buda não falou apenas como se libertar do seu próprio sofrimento, mas, falou do universo e do
sofrimento dos outros seres. Assim, a maturidade do primeiro nível conduz ao reconhecimento
dos ensinamentos que falam da inseparatividade de todos os seres e de todas as coisas.
O segundo nível da motivação budista, que é baseado na compaixão começa nesse ponto. Tirar
o foco de si e colocar no outro. Através da compaixão exercitamos a capacidade de onisciência
da mente iluminada. Mesmo na nossa atual condição, operamos todo tempo a mente primordial,

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não há duas. A compaixão é a primeira das “quatro qualidades de valor incomensurável” descri-
tas pelo Buda, é o desejo que o outro se libere das suas dificuldades. Nesse nível, a prática de
todas as “quatro qualidades incomensuráveis” é fundamental.
O terceiro nível de motivação é a percepção de que o próprio local onde estamos e tudo que nos
rodeia é perfeito. É a prática da visão pura, o reconhecimento da natureza verdadeira de todas
as aparências.
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4. Examinando a forma de “ver”


Nesse momento é importante entender que o budismo visa trazer a superação das raízes do
sofrimento, e produzir as bases para a felicidade temporária e definitiva. Quando não temos sa-
bedoria, as coisas “ruins” têm nome e forma. O primeiro passo é descaracterizar isso. Por exem-
plo, a raiva não é apenas um fator “interno”, precisa de um panorama “externo” para surgir.
Não adianta criar internamente uma “tampa”, a raiva pode vir a explodir como uma panela de
pressão.

Na verdade, aquilo que focamos é inseparável dos nossos olhos. Esse é o ponto central no budis-
mo. Quando estamos envolvidos nos nossos sofrimentos, complicações, temos todo um contexto
que valida esse sofrimento. Há um panorama aonde isso acontece. Assim também com a felici-
dade.

Nós construímos a realidade, a paisagem que nos cerca, a partir do conteúdo do nosso coração.
No momento em que viajamos para “dentro” de nós mesmos e transformamos o conteúdo cár-
mico, todo o universo “externo” muda. Quando “somos” filhos, vemos nossos pais de um jeito, e
quando “somos” pais, os vemos de maneira inteiramente nova. É uma experiência surpreenden-
te olhar ao redor com olho livre.

Os seres que estão nos atacando são inseparáveis de nós, ou seja, os nossos olhos e corações os
constroem daquela forma, e eles se tornam inimigos ou não. Pensamos “a realidade da vida é
uma coisa, e se eu não for trouxa, faço isso ou aquilo”. Através da prática da meditação pode-
mos desarticular essa prisão automática aos aspectos sutis que provocam impulsos sob os quais
não temos controle e que nos conduzem a agir baseados nas seis emoções perturbadoras. Recu-
perando a estabilidade, como os mestres que se movem com sabedoria e liberdade em qualquer
circunstância, podemos prestar benefícios aos outros seres.

O que vemos é um espelho de nós. Esse é o primeiro ponto, é toda mágica do budismo. O que
pensamos que é a realidade externa, é na verdade reflexo no nosso ser cármico interno. Quan-
do mudamos o foco, o universo muda. Optamos por um aspecto interno e esse aspecto cria a
realidade ao nosso redor. Esse ponto é muito importante, principalmente nas nossas relações.
Você olha um quadro, onde tem um lindo pôr-do-sol, um barquinho, o lindo céu do fim de tarde,
cheio de tons suaves... Brota uma emoção na mente, apreciamos a paisagem do quadro. Mas
aonde, realmente, está o barco e o pôr-do-sol tão lindo que nos comove?
Hoje há aspectos que parecem bons, e amanhã não são mais. É a impermanência. Surpreenden-
temente ela atua com relação ao passado, também. No passado tínhamos um futuro, hoje temos
outro e no futuro será outro ainda. A impermanência toca passado, presente e futuro e nem
mesmo os cientistas escapam disso. Eles olham para o universo com suas teorias, e quando elas
mudam, o universo inteiro muda – mesmo seus universos são dependentes de crenças e suposi-
ções.

Mas com que olhos nós mesmos vemos as coisas? Tem dias que parece que está tudo torto. Quan-
do vocês tiverem essa experiência, experimentem sentar um pouco e respirar profundamente
uma vez, uma única vez. Tudo muda. É possível controlar, criar uma maneira positiva e agra-
dável de nos manifestar? Sim. O Buda um dia sentou debaixo de uma árvore, e invocou Mara (o

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senhor das ilusões), que o atacou de várias maneiras. No entanto, as flechas de Mara, ao aproxi-
marem-se do Buda, se transformavam em flores e perfume. O Buda desenvolveu esta habilidade
de olhar com liberdade as coisas, além das marcas mentais. O que não é construído, é chamado
“natureza de buda”; o que surge produzindo impulsos e nos faz ver as coisas de um jeito ou de
outro, é chamado “carma”. E o carma nos leva a agir. Ou não agir. É como por exemplo, decidir
fazer ginástica às 6h da manhã e não conseguir levantar da cama... A gente decide uma coisa,
mas o impulso surge por si mesmo de um lugar oculto que nem suspeitamos qual seja. E surge de
novo e de novo, é rebelde... No budismo isso é a manifestação do próprio carma. Nós não temos
liberdade frente ao carma, decidimos uma coisa, e, no entanto, a decisão em si não tem força.

Quando Sidarta Gautama se libertou de Mara, disse: “me libertei daqueles que foram meus
senhores por incontáveis vidas – as disposições mentais e os agregados”. Ele, por incontáveis
vidas, até atingir a iluminação, fez como nós fazemos hoje, olhou para suas disposições mentais
e agregados e pensou “isto sou eu. Ao final tornou-se o “buda”, que significa liberto.
Quando repousamos sob o quê é estável, podemos até dançar em meio às flutuações. Não é
que a vida mude propriamente, mas a maneira como olhamos é que determinará as coisas.
Assim mudamos a “sorte”. Isso é o refúgio no Buda. Há liberdade em meio às coisas do mundo,
em meio às confusões. É seguro como colo de mãe, ou de pai. Mas quando somos nós os pais
e mães, vamos para o colo de quem? Olhamos ao redor em busca desse colo. Essa natureza é
estável, existe a natureza do absoluto. O nome não importa, importa é que ela existe. Quando
a nossa compreensão brota disso, isso é o Darma. A nossa compreensão não é estável porque nós
trocamos de referenciais. Mas o Darma é essa sabedoria de estabilidade que brota dentro de nós
a partir da percepção de que a “realidade externa ao nosso redor” é, na verdade, um espelho
que reflete nossa mente cármica.

Quando enfrentamos diretamente os impulsos que nos conduzem para ações equivocadas ,
dizemos “quero vencê-los e me livrar disso”, mas o impulso é mais forte que a nossa decisão
e nos desgastamos. Existe uma história da mitologia grega que ilustra bem isso. Havia na anti-
güidade um gigante sanguinário, Anteu, que queria construir, com ossos humanos, um grande
templo em homenagem à sua mãe, Gea, a Terra. Um dos trabalhos de Hércules, o herói em luta
pela transcendência, era justamente derrotar Anteu. Quando se enfrentaram, as forças eram
equivalentes, mas após um tempo, Hércules começou a cansar, enquanto Anteu continuava em
pleno vigor. Nesse momento Palas Athena, protetora do Hércules, sussurrou-lhe que suspendesse
Anteu do solo. A força de Anteu vinha da Terra, sua mãe, a materialidade; no momento em que
ele perdeu o contato com sua fonte de força, o Hércules dominou-o facilmente. Analogamente,
Anteu personifica as seis emoções perturbadoras; elas tem boas razões de ser no nosso contexto,
surgem naturalmente e são bem aceitas. Por exemplo, fazemos um esforço egóico para obter
uma certa coisa, quando obtemos, ficamos orgulhosos, é natural. Quando disputamos uma vaga
com alguém, pensamos em pular na frente. Nós sempre desejamos algo, isso é ótimo. Se alguém
tenta invadir nosso território, nada mais normal que uma boa raiva. Esse aspecto “terra” é o
que nós faz sentir “vivos”, estamos completamente inseridos nele. Ir diretamente contra não
adianta, vamos cansar como Hércules cansou.

5. Iniciando transformações
Como suspender Anteu? Como produzir o enfraquecimento das seis emoções perturbadoras?
Os ensinamentos do Buda são como remédios, após a cura não são mais necessários. São um
dedo que aponta a lua: o dedo é para ser esquecido, basta a lua. É como pegar um ônibus até
Porto Alegre; quando chega lá você deixa o ônibus, não vai levar para casa. Esse ensinamento é
como um hospital, tão pronto você fica bom, sai de lá. É como esponja, água e sabão – quando
terminamos de lavar um prato, não deixamos resíduo deles.

Há um conjunto de ensinamentos tradicionais budistas que se chama “Os Pensamentos que


Transformam a Mente” cujo objetivo é justamente este: quebrar a magia poderosa que sustenta

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a paisagem onde as prisões, o carma, os venenos da mente são desejáveis, justificáveis, intensos
e naturalmente surgidos – é suspender Anteu. Quebra-se o encanto revelando nossa verdadeira
situação neste cosmos.

Em primeiro lugar, a motivação; fixamos concentradamente o objetivo de superar as nossas


próprias dificuldades e ser capaz de trazer benefícios não perecíveis aos outros seres. Depois o
primeiro pensamento, que é sobre o Lama. A cada geração seres estudam, ouvem, realizam e
transmitem esses ensinamentos que tem uma bênção própria porque são capazes de revelar a
nossa natureza luminosa e maravilhosa. Lembramos dessa ininterrupta linhagem de seres, que
por compaixão, dedicam suas vidas – uma após a outra – a transmitir esses ensinamentos que
permitem liberar o sofrimento. Então prestamos homenagem ao Lama.

A seguir há o pensamento sobre a preciosidade da vida humana. Existem seis reinos aonde nós
podemos ter renascimento, um deles é o reino humano. Cada reino tem um âmbito de experi-
ência específico, ainda assim podemos vivenciar em corpo humano – embora com muito menos
intensidade – as experiências dos seis reinos. Por exemplo, o reino dos infernos é vivido por nós
através da experiência de que todas as pessoas que nos cercam são ruins, o filho, o marido, o
chefe... Para todo lado que olhamos as coisas são difíceis e só há sofrimento. Através da raiva e
da aversão nos conectamos com esse reino. No reino dos seres famintos há uma experiência de
carência incessante, eles têm sempre muito pouco diante do que sentem que necessitam. Nos
conectamos a essa experiência através da avareza e aquisitividade. Assim como nos infernos, es-
ses seres também não praticam. Os seres nos infernos dizem: “estou sofrendo, tudo é horrível,
como eu vou praticar?” Os seres famintos dizem “eu preciso disso e disso, como posso prati-
car?”. Depois há o reino dos animais, eles não praticam porque tão logo eles estejam com suas
necessidades satisfeitas, de barriga cheia, dormem. Assim, também não ouvem o Darma.

Entre os reinos superiores, há os deuses. Não é o reino de Deus, mas dos deuses. No reino hu-
mano isso corresponde àqueles que andam de carro importado, jatinho, não tem problemas de
dinheiro, desfrutam de todas felicidades do mundo material. Os deuses tem corpos específicos
sutis, se deslocam no espaço, e produzem benefícios para os seres humanos em dificuldades. O
problema é que são benefícios condicionados, e não do tipo que produz liberação. Esse reino é o
que os seres humanos buscam em seus sonhos, é a sua perdição... Vivemos almejando chegar lá,
trabalhando para isso, ou sonhando com isso. Nos conectamos com esse reino através do orgu-
lho.

Já os semideuses tem poder, mas são competitivos e invejosos; passam o tempo todo combaten-
do. A conexão se dá através da inveja. Os deuses não praticam porque estão imersos em faci-
lidades e felicidades, então, por quê praticar? Os semideuses, como estão sempre guerreando,
também não têm tempo para praticar.
Os humanos têm maior vantagem. As nossas felicidades e sofrimentos não são tão duradouras. E
quando cruzamos de uma felicidade para uma infelicidade, buscamos os ensinamentos. Isso é a
vida humana comum. Ainda assim ela é muito rara. Se comparamos a nossa vida com outros se-
res, eles são muito mais numerosos. O corpo humano é raro e improvável. Como nós somos geri-
dos pelo carma, o nosso renascimento é construído pela nossa condição cármica. Nós não conse-
guimos dirigir esse processo. É como a tartaruga cega, que a cada cem anos vêm à superfície do
oceano, de águas revoltas, onde há um aro boiando. O renascimento humano é tão improvável
quanto esta tartaruga, justamente no momento em que sobe à superfície, conseguir colocar sua
cabeça dentro do aro que estava boiando.

A nossa condição humana hoje é favorável. Os seres humanos têm a possibilidade de praticar.
Temos a liberdade de olhar nossos impulsos e perceber aspectos mais sutis. Temos tempo livre.
Isso significa méritos. Já a “vida humana preciosa” tem características peculiares que transcen-
dem em muito a vida humana típica.

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Quando vivemos em épocas em que os seres de luz não se manifestam, nos sentimos perdidos e
a vida parece sem sentido. Na época atual os seres de sabedoria vieram; vieram e deram ensi-
namentos que foram guardados e transmitidos. Esses ensinamentos chegaram até nós e estamos
numa região aonde esses ensinamentos existem. Além disso, temos sensibilidade para ouvi-los.
Dizem que há uma vida humana preciosa quando, além desses fatores, estamos engajados em
transformar a nossa vida a partir dos ensinamentos dos seres de sabedoria. Se estivéssemos sob
domínio de seres negativos, ou se tivéssemos um modo de ação incorreta, não conseguiríamos
ouvir os ensinamentos. Se não estamos sob essas condições, isso completa as características da
vida humana preciosa. Se a vida humana é numerosa como as estrelas no céu noturno, a vida
humana preciosa é tão rara quanto estrelas que são vistas no céu diurno. A pessoa está engajada
em produzir benefícios para todos os seres.

O segundo pensamento é sobre a impermanência. Todas as coisas são impermanentes. Nós es-
tamos sempre buscando o que é estável, mas nos enganamos. Aonde estão os meus amigos –
inseparáveis – da escola? A gente nem sabe aonde eles estão hoje. Onde está a casa da nossa
infância? A nossa mãe, pai, irmãos? O primeiro namorado, que foi maravilhoso, mas sumiu. A
nossa experiência é de instabilidade e transformação constantes. Se diz no budismo que o pla-
neta terra vai desaparecer. O que dizer então das nossas pequenezas? Estamos aqui por um curto
espaço. Esse ensinamento vem para aprendermos a olhar com o olho correto à cada momento. O
olho incorreto é pensar que tudo é estável. Quando entendemos a preciosidade da nossa vida, e
a usamos para produzir benefícios aos outros seres, este é o sinal de que os ensinamentos pro-
duziram as transformações que buscávamos.

A seguir, o carma. Estamos sujeitos a impulsos internos com os quais não podemos lidar. Esses
impulsos produzem as dez ações não-virtuosas ou as correspondentes dez ações virtuosas. As
ações virtuosas vão produzir experiências favoráveis – isso também é carma, carma favorável ou
positivo, mérito. São experiências de felicidade condicionada.
O carma se manifesta em quatro níveis: imediato, a curto, médio e longo prazo. Por exemplo,
se desejamos que alguém morra, naquele exato instante estamos esquecidos da nossa condi-
ção búdica, luminosa, perfeita, e isso já é sofrimento. O de curto alcance, é que de novo e de
novo vemos a morte de alguém como solução para nossos problemas. O de médio alcance vai se
prolongar por essa vida e por outras: a pessoa não se sente digna, sente-se impura por dentro,
inferior, e tem uma marca de aversão pelos outros.

Pior que pensar é planejar como fazer. Aí a perturbação se intensifica. A pessoa vai ter senti-
mentos mais perturbadores, pode começar a ter pesadelos. Se fez isso e executou, a experiên-
cia que é muito intensa, vai haver uma intranquilidade muito grande. E se o ser morreu, é pior
ainda. Ela vai se sentir perseguida. Por um longo tempo vai sofrer. Então temos essas quatro eta-
pas cármicas que acompanham cada ação.

Nós temos uma multiplicidade de possibilidades tanto positivas quanto negativas. Tanto uma
quanto outra são condicionadas, podem flutuar, estamos sempre pulando de um ponto para ou-
tro. Estamos presos nisso, é automático. Esses impulsos estão a nosso serviço, mas quando eles
começam a andar por si, são carma. Temos vários mecanismos condicionados, o nosso cabelo
cresce, as unhas crescem, sem que a gente faça alguma coisa. E por causa do carma surge a eta-
pa seguinte, o quarto pensamento, que é o sofrimento. Sempre que operamos com referenciais
duais, o sofrimento é inevitável. Aí surge o pensamento final que é: eu gostaria de me liberar
disso, revelar minha natureza luminosa, usar de forma positiva as relações que estou vivendo,
beneficiar os seres.

Em meio às confusões do mundo e tendências cármicas, toda vitória que podemos ter é como
vitória no campo de futebol, frágil, impermanente. Agora mudamos, queremos descobrir a nossa

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natureza completa. Quando olhamos na vida, a nossa vontade de mudar é testada várias vezes,
isso é prática espiritual. Aí nossa paisagem ao redor se transforma de “samsara”, lugar de so-
frimento e enganos, em “terra pura”, que é onde praticamos, recebemos ensinamentos e nos
sentimos protegidos pelos seres de sabedoria.
Os budas olham o que chamamos de samsara e vêem a perfeição que ali existe. Somos como for-
migas num palácio, não conseguimos reconhecê-lo com nossos olhos de formiga. Há, então, uma
longa etapa de transformação dos nossos olhos, até que possamos reconhecê-lo. Em geral, não
conseguimos perceber o valor do benefício real que estamos recebendo.
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6. Ação positiva
Paralelamente ao processo de transformação das tendências cármicas, o Buda ensinou a prática
ininterrupta das “quatro qualidades incomensuráveis”, que são o método positivo de manifesta-
ção no cotidiano solucionando as confusões e conflitos.

A primeira é a compaixão, o desejo que os seres realizem sua natureza interna e se livrem de
suas complicações. Essencialmente é o desejo que o outro supere suas dificuldades e possa
melhorar. Atenção: compaixão é diferente de “pena”. Quando temos pena, estamos validando
a imagem que a pessoa faz de si mesmo, e justamente por isso ela está mal. Compaixão é reco-
nhecer no outro a sua natureza estável, perfeita, de luz, sua condição verdadeira, quebrando
o encanto dos jogos que estão produzindo as complicações. A segunda é o amor, o desejo que o
outro seja feliz, completamente. Não exclui ex-maridos, ex-esposas, ex-sócios... Depois a ale-
gria, a capacidade de se alegrar com as alegrias e vitórias dos outros, pequenas ou grandes. É
um poderoso antídoto contra a inveja. Finalmente a equanimidade: perceber as flutuações das
alegrias e tristezas da vida; num momento se tem uma grande alegria, em outro aquilo mesmo
vira uma grande tristeza. Surge uma serenidade estável frente a essas flutuações e uma fé per-
manente, inabalável na natureza de todos os Budas, que é a sua própria natureza.

O Buda ensinou também os meios de produzir felicidade nas relações humanas: casamento,
namoro, filhos, trabalho, estudo. Em primeiro lugar, ao invés de pensar “o quê vou obter do
outro”, pensar “o que posso oferecer”. Alegrar-se em oferecer! Se estamos na dependência do
comportamento do outro para obter felicidade, eventualmente pode até funcionar, mas quando
surgir a impermanência e o outro flutuar entramos em crise. S.S. XIV Dalai Lama, prêmio Nobel
da Paz, sempre brinca “que tipo de amor é o de vocês, aquele que só existe se o outro sorrir?”

Esse tipo de amor está baseado em quanto estamos recebendo e, por isso, é frágil.
Praticando assim, podemos usar a vida cotidiana como caminho espiritual, superando os confli-
tos internos e trazendo benefícios a todos os seres. Alegria!

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Superando Obstáculos na Meditação
Lama Padma Samten

Freqüentemente, ao buscar introduzir as práticas budistas, me vem à lembrança o momento em


que Buda atingiu a iluminação e Mara lhe disse: guarda isso para ti mesmo pois ninguém mais
poderá compreender. Vem à minha mente porque todo o método que utilizamos tem uma arma-
dilha junto, daí a dificuldade que Mara menciona. Quando se começa a falar sobre meditação é
bom que já se mencione isso porque todos os métodos têm obstáculos inerentes, nos emancipam
e nos trancam, e é preciso estar alerta desde o início.

Cada método espiritual produz alguma melhoria mas ao mesmo tempo oferece um obstáculo e
se ficarmos presos ao obstáculo, poderemos estacionar por vidas. A meditação está incluída nes-
ta situação, por exemplo, no Lankavatara Sutra o Buda diz que entre as maiores perturbações ao
caminho espiritual está diana, a meditação. Então diana libera e diana traz obstáculos.
Assim, é necessário que se tenha a perspectiva de quando diana é útil e quando é um obstáculo.
O Mestre Dogen, fundador do Sotozen, diz que é necessário livrar-se da própria meditação. As
diferentes tradições dizem isso de forma diferente. A perspectiva do Zen com respeito à medita-
ção é quase uma perspectiva Vajraiana: meditação no Zen é a prática da iluminação. Essa é uma
boa definição ou seja, nós não estamos praticando algo como caminho para chegar, ao final, em
algum lugar diferente – sentamos apenas para praticar a liberdade. Se não ocorre ainda a liber-
dade, seguimos perseverando, mas sempre dentro da noção de que o Zazen é a própria prática
da iluminação.

Os Outros Seres
No Zen o elemento de compaixão se introduz posteriormente de outra forma: quando sentamos
para meditar, o fazemos “junto com todos os seres”. A linguagem do Zen é assim. Para nós pode
parecer um pouco estranho porque, de modo convencional nunca se consegue compreender por
inteiro. Faz parte do método e da linguagem do zen a sofisticação de valorizar mais o paradoxal
do que a lógica comum da afirmação. Quando a afirmação produz conforto, acalma e tranqüili-
za, a pessoa estaciona; se a afirmação produz desconforto, a pessoa nunca consegue harmonizá-
la perfeitamente no contexto de seus conceitos e, assim, nunca se sentirá intelectualmente
pacificada, ficará instigada e não poderá estacionar. A linguagem em vez de legitimar visão
convencional, se torna algo que vai forçando a pessoa ir adiante e só no momento em que ela
atinge a realização interna do ensinamento é que se sentirá confortável.Não atingindo a reali-
zação interna, a linguagem não produzirá a ilusão de uma aparente compreensão. No zen este
método é muito natural, ainda que muito sofisticado. Então vem a afirmação: quando sentamos
em meditação, praticamos a iluminação, quando sentamos, sentamos com todos os seres.
Só o Buda é capaz de sentar com todos os seres. Nós dizemos que sentamos com todos os seres,
que somos inseparáveis de todos os seres mas o que é essa experiência de inseparatividade? Essa
experiência já é a iluminação.

Pensar e não-pensar
Como é que se pratica a meditação? Meditando além de pensar mas também além de não-pen-
sar. “Pensar além de pensar e não-pensar” é outra afirmação desconfortável. Não se diz para
pensar nisso ou naquilo, ou para não pensar, mas “pense além de pensar e não-pensar”, esta é
uma afirmação maravilhosa.

Com relação à realização, há outras afirmações maravilhosas. Se diz que um grande mestre
mandou um discípulo levar uma pergunta até um outro grande Mestre. A pergunta era assim: a
iluminação é possível? O grande mestre respondeu, “a iluminação é possível mas é fácil de se
enganar...” São afirmações muito importantes, nos trazem alguma coisa que aponta uma direção
mas não nos deixam repousar, não nos deixam confortáveis, são sutis, maravilhas da linguagem.

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Cuidados
Quando se começa a examinar a questão da meditação, temos que tomar precauções. Qual seria
o objetivo da meditação? A meditação é um método. O próprio Buda, no Lankavatara Sutra, diz:
há iogues que sentam, atingem a estabilidade e dizem “estou iluminado” mas tão pronto eles
abrem os olhos e restabelecem o contato com o mundo, os venenos da mente e as tendências
cármicas retornam por inteiro.Na verdade, hoje estamos entrando na descrição da meditação
pelo controle de qualidade, os obstáculos são apontados antes mesmo de falar da própria práti-
ca.
Isto é muito importante porque ajuda a purificar o primeiro obstáculo da meditação, sua miti-
ficação, ou seja, o obstáculo de produzir apego com relação à meditação.A falha da motivação
correta se manifesta como um impulso de buscar ascensão pessoal através da prática. Hakuin,
um dos maiores mestres Zen do Japão, por exemplo, teve uma experiência de loucura no meio
de sua prática, curou-se e descreveu-a depois. Toda a sua experiência de loucura originou-se
de sua vontade muito grande de avançar – esse era o seu problema. Ele praticou a meditação
focando koans, mas com uma motivação egóica – havia um eu praticando meditação e enquanto
havia este eu praticando intensificou-se a perspectiva dual, simbolizada na roda da vida pelo
porco – avidia. Imaginem um japonês determinado visualizando um porco; isso é devastador, é
uma energia de samurai... Ele colocou aquela intensidade toda na própria dualidade originando
uma cobra enorme – cobra é toda a atividade emocional de defesa, de dualidade e sai da boca
do porco. Assim Hakuin teve calores e frios, raiva, hostilidade, perdeu o balanço, teve terrores
diurnos e pesadelos noturnos, somatizou em distúrbios digestivos, dores de cabeça e exaustão
– sua perturbação durou dois anos. Sob as circunstâncias deste tipo de perturbação, a pessoa
vê tudo o que acontece consigo como originando-se da ação maligna de outros seres humanos e
demônios ou das circunstâncias externas – o medo é sua experiência básica. Este processo, de
forma mais ou menos intensa, pode se prolongar mesmo por vidas.Com respeito a meditação
silenciosa ou “iluminação silenciosa” ou “nada-fazer” como se chamava nos tempos de Hakuin,
sua experiência, enquanto jovem monge, foi de contínua apatia e depressão. Acho que não
existe nenhuma linhagem no budismo que privilegie tanto a meditação silenciosa quanto o Zen
por isto é importante, no contexto dos cuidados, lembrarmos sempre estas experiências. É um
grande mestre da meditação que alerta.

Estamos hoje começando pelo exame das dificuldades porque buscamos gerar antídotos aos obs-
táculos da meditação. Hakuin se vê livre dos problemas induzidos pela própria pratica e motiva-
ção equivocados através de uma prática semelhante a de Vajrasattva, como descrita no Dudjom
Tersar Nongdro, reorganizando sua motivação e canais de energia.

A Prática da Meditação
Qual o objetivo da prática da meditação? A prática da meditação tem várias etapas e cada etapa
tem um objetivo. Toda a prática dentro do budismo se centra na remoção de obstáculos, nunca
está na categoria de treinamento para obter uma habilidade; nós nunca vamos conseguir a ilu-
minação gerando habilidades, é preciso remover obstáculos. Isso é muito importante. Para mim
que venho do Zen, a compreensão disso foi um choque. Eu confundia o budismo inteiro com a
meditação silenciosa. Dentro do budismo tibetano vamos encontrar os mecanismos de liberação
sem a meditação silenciosa. Todas essas afirmações eu faço para que não se pense que a medi-
tação é algo a ser valorizado mais o do que outros dos muitos métodos de atingir a liberação.No
processo da meditação existem várias etapas, pois cada etapa provoca a remoção de certo tipo
de obstáculo, até que as últimas, que removem os obstáculos mais sutis.Começando no enfoque
da primeira volta do Darma, temos a prática de Shamata – meditação de tranqüilização. Nas
etapas mais sofisticadas do Vajraiana encontramos a meditação silenciosa dentro do Dzochen
e do Mahamudra. Olhando externamente, a postura de sentar é a mesma, mas internamente é
muito diferente.Shamata possibilita a prática de Vipassana e Vipassana vai possibilitando as ou-
tras formas de meditação. Cada uma das etapas é muito diferente da anterior, ainda que, exter-
namente, pareçam iguais. As etapas finais, as mais sutis, vão gerar a pós-meditação.A meditação

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é um método. Depois, mesmo praticando meditação abrem-se formas mais sofisticadas onde
não é mais necessário parar propriamente para meditar. Dentro do processo de parar e meditar
existem muitas instruções. Podemos começar com o método de tranqüilização. O Buda ensina as
quatro nobres verdades – a quarta nobre verdade é o nobre Caminho Óctuplo e no Nobre Cami-
nho Óctuplo as duas últimas instruções são Sama-sati e Sama-samadhi.”Sama” significa “a mais
elevada”. “Sati” é atenção.
Existe o Satipatana Sutra que é o ensinamento sobre a plena atenção, ele se refere exatamente
a prática de Sama-sati. Depois disso vem Sama-samadhi que conduz até a etapa final. Dentro
de Sama-sati existem muitas subdivisões e o mesmo acontece com sama-samadhi.Sama-sati vai
começar quando o Buda propõe às pessoas a prática da tranqüilização que é a primeira das eta-
pas e ela é colocada porque temos uma mente intranqüila. O que significa a intranqüilidade da
mente? A intranqüilidade da mente significa que quando focamos uma coisa, o fato de criarmos
uma discriminação, de reconhecer sensorialmente ou abstratamente um objeto, estimula a ma-
nifestação cármica de uma segunda imagem na mente, depois uma terceira imagem estimulada
pela segunda, e assim por diante, e nesta seqüência, em certo momento surge o impulso cár-
mico da ação. Ou seja, saímos pensando a partir do primeiro objeto e uma ação pode decorrer
naturalmente disso. Se a pessoa olhar na vitrine um quindim ela pode olhar de uma forma com-
pletamente livre ou pensar ... huumm, esse quindim sim; a pessoa já está ativando a sensação
de sabor do quindim e todas as marcas cármicas referentes a quindim se oferecem, só falta a
experiência sensorial. Quando a pessoa vive esta experiência, pode até salivar porque as marcas
cármicas vêm e os ventos e gotas correspondentes também surgem. Essa seqüência não precisa
acontecer – pode acontecer mas não necessariamente. Quando pensamos sobre as coisas signi-
fica que estamos experimentando, estamos passeando pelas marcas cármicas correspondentes;
na verdade estamos ativando os cinco skandas; estamos trabalhando na freqüência das formas
sólidas, rupa; reconhecemos a sensação, temos a percepção, surge a formação mental corres-
pondente, e surge vijnana que é o impulso de identificação pessoal correspondente ao quindim:
“eu” sou aquele que gosta de quindim. Em vista dessa legitimação toda a pessoa entra na con-
feitaria. Se não houver essa legitimação a pessoa não entra na confeitaria. Esse é um processo
que os publicitários aprendem... o método de induzir comportamentos. É necessário ativar os
cinco skandas, especialmente o quinto – vijnana – a pessoa diz, eu sou isto ou aquilo na referên-
cia ao objeto, ela se confessa, ela legitima. Há um grande mestre vajraiana, o Venerável Gya-
trul Rinpoche, que diz que o objeto e o observador correspondem à mesma experiência mental.
Isto é muito profundo.

Se examinamos a experiência sensorial visual vemos que produz a ativação dos cinco skandas
correspondentes ao objeto e a identificação com o objeto e, assim também, naturalmente, sur-
gem as marcas mentais e os skandas correspondentes a toda a experiência sensorial com respei-
to ao quindim. Quando surge essa experiência sensorial complexa, a pessoa sente uma alegria
correspondente. Para sustentar a experiência nada melhor que uma experiência sensorial, uma
vez que o estado mental se sustenta sem esforço enquanto se tem a experiência sensorial. Esse
é processo pelo qual nós somos pegos pelas novelas de televisão, pelos filmes, e é também a
forma pela qual erramos sem perceber. O processo de operação mental condicionada é sempre o
mesmo.

Méritos da Meditação
A meditação vai proporcionar o que? A estabilidade.Aquilo que nós chamamos de pensar, vague-
ar mentalmente é essencialmente isso; a gente contempla um objeto, esse objeto manifesta os
cinco skandas e na seqüência nós temos um passear por objetos tendo essas energias por foco.
Assim vamos girando na roda da vida. De um modo geral isso é a nossa ocupação mental. Então,
na meditação, o primeiro ponto é a tranqüilização, se não a desenvolvermos vamos simplesmen-
te sair pensando, nem é preciso sentar, a mente fica pensando e agindo. Pensar e agir é girar a
roda da vida, é o que estamos fazendo por vidas e vidas, desde tempos sem início.Olhando dessa
maneira, vamos entender a que o Buda se refere com a expressão “escuridão dos sentidos”.

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É uma experiência muito importante mas gravíssima porque quando abrimos os olhos estamos
imersos na escuridão dos sentidos e não nos damos conta.

Para nós a escuridão é falta de luz, se quando abrimos os olhos temos luz, porque chamamos
de escuridão? É escuridão porque existem os impulsos sensoriais – visuais, gustativos, olfativos,
tácteis, ou auditivos – sejam quais forem, que nos conectam aos pensamentos e nos fazem se-
guir sempre presos em um processo que obstrui a clareza ou liberdade da mente. O Buda diz que
quando interromper isso a pessoa abre os olhos e é como alguém que realmente abriu os olhos
e se move com uma clareza nunca experimentada. Antes disso tudo o que nós podemos pensar
durante uma vida inteira está inteiramente limitado às associações cármicas às marcas mentais.
Assim, vamos de uma marca para outra, em um movimento sempre presos a este processo, sem
esperança de liberação.

Serenidade Lúcida
O primeiro ponto da meditação é criar a possibilidade de não sair troteando atrás das marcas.
Então o Buda ensina, coluna ereta, os olhos abertos, as mãos no mudra da equanimidade, respi-
ração abdominal e “enquanto eu inspiro e expiro acalmo o corpo e a mente”.Essa é uma expe-
riência muito rara e dentro de nossa cultura não tem paralelo porque, na verdade, nós sempre
somos convidados a trocar de um tipo de excitação para outro até o ponto em que estamos
exaustos. Estamos fazendo uma coisa e começamos a fazer outra e assim nunca se tem o cultivo
do estado que é a serenidade lúcida, clara. Esta prática é absolutamente necessária. Na nossa
cultura quando interrompemos a excitação, sobrevêm a depressão e o torpor, é como se desco-
nhecêssemos a serenidade com lucidez.No caso das crianças nas escolas isso é uma infelicidade
porque eles nem bem apagaram uma excitação e já são arrastados para outra; são obrigados a
interromper a seqüência do que vem fazendo e começam outra e se não conseguem, são pres-
sionados e pressionados terminando por desenvolver sentimento de culpa. É uma espécie de
tortura.

Essa pratica de meditar é extremamente benfazeja: inspirar e expirar aclamando corpo e men-
te. O curioso disso é que ela é uma experiência mental completamente natural, ela existe desde
os tempos sem início mas não nos é apresentada; somos ensinados a ouvir música, a aprender
inglês, escrever, trabalhar com computador mas não somos ensinados a essa atividade mental
que é a atividade mental de tranqüilização e que tem o poder de potencializar todas as outras.
Quando praticamos a tranqüilização surge leveza, clareza, liberdade e energia que vamos utili-
zar ao retomar o foco da ação.

Somos e Não Somos o Corpo


Depois, o Buda nos convida a entrar numa segunda experiência: a contemplação das diversas
partes de nosso corpo, é uma experiência muito incrível que se aprofunda na medida em que
se adquire maior familiaridade com a prática..Olhamos internamente localizando os elementos
sólidos, líquidos, gasosos e calor. Existe um efeito maravilhoso de perceber a presença desses
elementos.A pessoa senta e contempla internamente os elementos sólidos, do topo da cabeça
aos pés. Quando contempla assim, acontece uma coisa inacreditável. Até então os elementos
sólidos eram nossa própria existência, nós mesmos, mas quando são contemplados, sendo identi-
ficados separadamente, desaparece o automatismo da identidade e a reação automática aos es-
tímulos. Mesmo o movimento dos ossos já não são mais o mesmo que antes, há uma estabilidade
e um não-movimento durante o próprio movimento. Desta estabilidade o corpo é contemplado
parte por parte. Uma consciência que nunca desenvolvemos.Depois é a contemplação dos ele-
mentos líquidos dentro do corpo, reconhecendo a mobilidade e flexibilidade. Após contempla-
se o elemento gasoso e depois o calor. Assim, olhamos um por um nossos elementos, o que vai
produzir uma consciência de liberdade. Praticando repetidamente, reconheceremos três fases:
ao iniciar a prática, focando o corpo, dizemos “eu sou isso”, mais adiante dizemos “eu não sou
isto”. Prosseguindo, chegamos finalmente a dizer “eu sou isso”, mas com uma consciência com-

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pletamente diferente.A contemplação como descrita não se dá através do desenvolvimento de
conceitos, mas pela familiaridade que proporciona com relação aos objetos da atenção. Mais
adiante focamos cada um dos sentidos e seus órgãos correspondentes, reconhecendo a ação dos
cinco skandas – a sensação de materialidade, rupa, a sensação de apego ou aversão que são os
vedanas, a sensação do surgimento dos objetos que é samjana, depois contemplamos as marcas
internas nossas que dão surgimento ao objeto, samskara, e finalmente, nosso surgimento insepa-
rável do objeto, vijnana.Assim, contemplando o que operamos de forma automática, compreen-
demos: sou isto, não sou isto, sou isto.

Esta prática pertence por inteiro a uma classe de meditação onde não há ainda a compreensão
da vacuidade, ou seja, estamos na primeira volta do Darma.
Existência e Não-existência

Tendo desenvolvido a tranqüilidade da mente e a capacidade de foco com sabedoria, temos os


instrumentos para meditar sobre o Sutra do Coração e a abordagem anterior vai modificar-se
radicalmente. Na meditação sobre o Sutra do Coração vamos perceber o sentido verdadeiro de
“bhava” a existência externa. Vamos perceber que toda existência tem por base os cinco skan-
das e, através da meditação no Sutra do Coração, veremos que todos os skandas são vacuidade,
possuem uma liberdade intrínseca.

O primeiro skanda é rupa. No sutra está: rupa é vacuidade, vacuidade é rupa, rupa nada mais é
do que vacuidade, vacuidade nada mais é do que rupa. O segundo é vedana: vedana é vacuida-
de, vacuidade é vedana, vedana nada mais é do que vacuidade, vacuidade nada mais é do que
vedana e assim nós vamos indo. Os objetos dos sentidos são isso, os órgãos dos sentidos, as sen-
sações correspondentes aos sentidos, nossa identidade, todos elas passam por essa experiência
e vamos meditando dessa maneira. Este é o início da segunda volta do Darma. Agora, como pode
alguém contemplar isso de um modo tão sutil assim? Forma é vacuidade: a pessoa pode ver isso
porque está tranqüila, já calmou os processos todos, onde ela pousa os olhos, a atenção se man-
tém e por isso ela pode focar algo que é muito sutil e ficar contemplando até que este aspecto
sutil se torne aparente. Antes da etapa inicial ela nunca conseguiria fazer isso, ela tem uma
sensação de urgência, acha que não está fazendo nada quando está sentada meditando. Quan-
do sua concentração se desenvolve e o sutra do Coração se torna uma experiência progressiva,
nesse ponto quando medita descobre-se atravessando vidas e livrando-se de muitas reencarna-
ções futuras. Isto tudo rapidamente, em vários episódios quase instantâneos. Esta sensação de
livrar-se do carma e condicionamentos durante a meditação surge porque, em um tempo como
15 minutos percebe que elimina uma vasta quantidade de ignorância, de respostas automáticas
que no processo normal precisariam vidas para serem eliminadas.

Quando nós não temos essa realização da tranqüilização e concentração, ao praticar meditação
pensamos que estamos perdendo tempo e que há coisas mais úteis, mais urgentes para fazer.
Com a realização do Sutra do Coração chega-se ao ponto que no Zen se chama “Tatata” e no
budismo vajraiana de “compreensão da perfeição de todas as coisas”.
No Zen nessa etapa surge a habilidade poética do haiku. A pessoa talvez vá compor muitos
versos. Com realização do Sutra do Coração a pessoa começa a olhar tudo na sua perfeição,
ela olha as coisas como surgindo de modo condicionado mas ainda manifestando uma perfeição
que é o próprio aparecimento daquele condicionamento; a pessoa não olha mais os condiciona-
mentos como algo que surgem de uma forma obscura, como intromissões vindas não se sabe da
onde.

O próprio surgimento dos obstáculos que seriam obstáculos, intromissões, ou sentidos auto-
máticos atribuídos às coisas, o próprio surgimento disso, é visto como uma maravilha, como a
manifestação da liberdade da mente. Então quando olhamos as flores, no início, dizemos “que
flores lindas”, mais adiante nos damos conta de que a própria beleza surge como uma experiên-

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cia condicionada e pensamos: “Como que eu posso estar no meio dessa névoa a terrível a ponto
de achar uma flor bonita? Existe uma atribuição de sentido, eu estou preso à roda da vida, não
tenho chance nenhuma; imagina, achar uma flor bonita.”

Neste ponto as pessoas dizem: “eu acho as flores bonitas e acho os rapazes bonitos, por isso
estou rodopiando há muitas vidas sem chance nenhuma, desenvolvi esta ligação e por ter essa
ligação não tenho chance”. E surge a rejeição ao mundo.
Depois, com o amadurecimento da realização do Sutra do Coração, surge uma terceira etapa
quando a pessoa olha o surgimento de uma ligação, reconhece como se dá e vê aquilo como uma
manifestação extraordinária, maravilhosa. É quando existe uma sensação de perfeição e de mi-
lagre. A pessoa sente-se surgindo conjuntamente ao objeto e reconhece a existência simultânea
de muitos universos e terras-de-buda onde inumeráveis bodisatvas prestam benefícios aos seres.
Essa experiência de milagre é também uma contemplação. Paramos e contemplamos o mila-
gre. Contemplamos etapa por etapa o Sutra do coração. Quando focamos a expressão “forma é
vacuidade”, vamos reconhecer: “estava preso, sempre pensei que forma fosse sólida, existente
em si mesma”. Quando se compreende que vacuidade é forma, há um “estalo” e compreende-
mos como é que surge o processo no qual as formas surgem como expressão mesma da liberda-
de.
Depois disso as formas começam a ficar mágicas, todas elas. Isso corresponde a compreensão do
espelho. Compreendemos o papel de nossa mente, como ela opera produzindo formas e ao mes-
mo tempo está livre de sua criação, assim como o espelho é livre da forma que manifesta.
Focando as quatro afirmações – forma é vazio, vazio é forma, forma nada mais é do que vazio,
vazio nada mais é do que forma – vemos que a analogia do espelho pode nos ajudar. Forma nada
mais é do que liberdade, a liberdade do espelho manifestar formas. Não há nenhuma forma den-
tro da forma no espelho; a vacuidade nada mais é do que a liberdade da mente em manifestar
formas. Cada uma dessas etapas corresponde a uma realização diferente e quando essas quatro
etapas estão presentes existe a compreensão do Sutra do coração e a compreensão de que não
existe caminho, velhice, decrepitude, realização, não-realização. Isso é o Sutra do Coração.

Os Bodisatvas-Mahasatvas são o que são por repousarem sobre essa compreensão, praticam isso
e se manifestam por esta própria liberdade.
Nesse ponto, especificamente no zen surgem os haikus. A pessoa olha para o pássaro que canta
num galho; não é um pássaro que canta num galho, é o extraordinário aparecimento mágico de
um pássaro que canta num galho. Um milagre. As menores coisas passam a ter um sentido ex-
traordinário. É o domínio, a percepção do processo da criação. Os versos do haiku descrevem a
criação. Cada haiku é de um mestre verdadeiro. A pessoa que não compreende a vacuidade e o
processo de surgimento inseparável, não tem como fazer haiku. O haiku mesmo é uma afirmação
de que forma é vacuidade e vacuidade é forma, é outro modo de dizer o Sutra do Coração.

No zen repousamos sobre a perfeição da vacuidade. No vajraiana repousamos sobre a perfeição


da forma. Mas forma é vacuidade, não há diferença e vacuidade é também forma. Não é neces-
sário esperar a ausência da forma ou pensar que a ausência de forma é melhor do que a forma.
Se temos consciência do que seja a forma, sabemos que a forma já inclui liberdade frente às
prisões da forma; existe uma perfeição na visão ou no surgimento da própria forma. Porque a
forma não seria perfeição se a forma é vacuidade e vacuidade é forma? A forma é perfeição, não
há nenhum problema. Existe a compreensão e liberação e a forma é liberdade e a liberdade é
forma mas há uma etapa onde naturalmente se escolhe a não-forma como liberdade. Isso não é
necessário; se houver a escolha da não-forma isso é um obstáculo. A perfeição da forma poten-
cializa enormemente a capacidade de ação compassiva. Essa é uma maravilha do vajraiana onde
a perfeição da forma permite o surgimento dos Yidans e também dos corpos de luz e de arco-
íris.

O Tokuda San esteve nesta sala várias vezes. Ele é um mestre sotozen, japonês de nascimento, e

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surgiu em Porto Alegre nos anos 60 quando ainda não tinha 30 anos. A história dele me emociona
porque ele era uma mestre que atingiu a realização no Zen ainda jovem e o mestre dele disse:
vai. Ele saiu com sua meditação pelo mundo e nada possuía que não a meditação. Ele chegou no
Brasil, no templo de São Paulo onde encontrou o reverendo Shingu e de lá foi para o Nordeste
e viajou por todo o Brasil. Se Porto Alegre hoje é uma espécie de capital budista, isto se deve a
sua influência, uma vez que sua presença-Darma criou a sensibilidade nas pessoas, possibilitan-
do seu interesse e decisão. Ele não sabia português mas sabia meditar e criou grupos em várias
cidades; lá pelas tantas apareceu aqui em Porto alegre. O Tokuda foi o primeiro mestre que
entrou nesta sala, e a inaugurou quando nós éramos praticantes Zen dando-lhe o nome de – San-
guen Dojo – e ao grupo. Toda a base inicial do Cebb vem a partir disso. Mesmo antes do contato
direto com ele, tivemos sua influência inspiradora através de pessoas que com ele tiveram con-
tato em épocas anteriores.

Fé e Moralidade—removendo obstáculos sutis


Há um ponto importante que a gente não se dá conta é que sem a prática de moralidade a
meditação não avança; quando alguém fala isso nós geralmente não acreditamos e pensamos
“agora já vem um mestre querendo fazer regras de moral”. A pessoa pensa, não importa o que
eu fiz antes, agora sento aqui e medito. Não é assim, porque num sentido sutil, o que acontece
é que a nossa meditação se dá fora do espaço e do tempo e as nossas ações também. Não impor-
ta se foram lá fora, se foi antes ou depois, não há separação possível – tirado o primeiro verniz,
acabou a separação.O que existe são condições mentais. Se a nossa ação que nós dizemos que
foi lá em outro momento produziu uma inserção num tipo de condição mental, naquela condição
mental a meditação é dificílima. Nós entramos na sala e pensamos, é um outro local, um outro
tempo. Isso é porque a gente não tem o olho para ver, nós estamos naquela condição mental. A
pessoa senta e pensa, lá fora matei um cachorro, bati não sei em que, isso não tem importân-
cia, agora eu sento e vou meditar. Não há como porque a perturbação da ação anterior está ali.

E nem é a perturbação da ação, é a condição mental correspondente à motivação que produ-


ziu a ação não-virtuosa.Uma boa coisa a fazer antes de começar a meditação é praticar alguns
serviços como limpeza de sala, aguar as plantas, etc. Isso nos cria méritos e então nos sentamos
com méritos. O mérito significa que a gente se coloca numa condição mental propícia.Procura-se
evitar especialmente as ações não-virtuosas porque essas ações quando praticadas tem um efei-
to de provocar em nós a sustentação cármica da condição mental que a produziu e que a legiti-
ma. No Vajraiana nomeamos de “demônios” a estas energias de ação e direcionamento mental.

Sob estas energias e motivações equivocadas rejeitamos a prática espiritual que pensamos ser
ilusória, irreal, uma basbaquice.Pode-se, também fazer ações virtuosas em outros lugares, não
precisa ser aqui no prédio. Entretanto, se nós viemos atropelando todos os cachorros, matando
os gatos pelo caminho, aí estacionamos e dissemos, bem, aqui é um lugar de prece, agora estou
no meu refúgio..., vamos ter problemas. O lugar de paz parece ser geográfico mas não é.Não
pensem que as práticas de meditação, sejam quais forem, se dêem em um lugar diferente da
prática do cotidiano. Todas as práticas e todas as ações se dão no local sutil onde também se
localiza o carma. O testemunho é direto e indelével.Dentro da motivação do reinos dos deuses
o que nós buscamos é controle e geramos fixações ou soluções aparentes que sustentam a feli-
cidade e garantem provisoriamente nossa liberdade frente ao sofrimento. Esta aparente esta-
bilidade pode durar 5, 10 anos ou mais. Durante este período a pessoa simplesmente rejeita as
oportunidades de avançar. São obstáculos sutis, que se interpõem e impedem o avanço, podendo
ocorrer mesmo com praticantes. A meditação pode localizar estas falhas e purificá-las, aceleran-
do a liberação.A purificação não é muito diferente da prática do cotidiano apenas que dentro da
meditação nós focamos isso. Com a mente centrada e focada, podemos acelerar a purificação e
a liberação. Tem até um truquizinho: no início e no final da meditação nós apelamos ao Buda di-
zendo de coração “por favor, me ajude, não me deixe vagueando, assim poderei ajudar melhor
os outros seres”. O resultado, não importa como, aparece. A tranqüilização e a fé sempre devem

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estar presentes.A motivação, a fé e a moralidade são indispensáveis. Não há outras alternativas.

O Buda é tão bondoso que dá critérios explícitos externos, por exemplo, não matar, não roubar,
não praticar sexualidade inadequada, não praticar as ações não-virtuosas de fala e de mente.
Se fazemos isso estamos criando não-virtudes. Se a pessoa tiver o olho que vê o carma, ela vê
carma crescer do lado, ela percebe na hora que fez uma ação não-virtuosa.

Quando a pessoa percebe o carma, usualmente ela tem também o poder de neutralizá-lo, mas
nem sempre. A pessoa pode também perceber o carma e não ter o poder de neutralizá-lo. Va-
mos supor um exemplo menos concreto do que comer um doce, a pessoa olhou com um olho
meio perturbado a alguém – perturbado pode ser tanto de aversão quando de atração ainda que,
de um modo geral, os olhos relacionados à atração não parecem perturbados..., já as rejeições
são mais fáceis de localizar...

Vamos supor que a pessoa desenvolveu um pensamento de aversão, o que é muito comum em
campanha eleitoral... O que acontece nesses casos? É impossível conversar bem com as outras
pessoas às quais geramos aversão, mesmo que se diga “são seres humanos”. A pessoa tem difi-
culdade de não operar com aversão. Quando a aversão surge, de uma forma velada que seja,
ela produz certos fluxos de pensamentos, aquilo perturba tudo. Pode acontecer de que a pessoa
gerou este carma não por bater ou falar mal mas apenas olhou com um certo olho de desagrado,
pensou de forma não-virtuosa.

Em decorrência ao carma assim criado, surgem complicações, mas de tal forma que a pessoa
acha que o outro é que é o problema. Pode levar um bom tempo para a pessoa se livrar disso.
Uma forma de enfrentar o problema é quando se sente o surgimento da aversão, dizer de cora-
ção, pedir, “por favor, que Tara, manifeste-se agora”. Isto traz resultados maravilhosos porque
mesmo que a pessoa sinta aversão, ela não dá guarida, ela irradia do coração dela em benefício
a outro ser e reconhece a fragilidade dele, reconhece a situação toda. Mesmo que pareça teóri-
co, de repente o outro sorri, ela sorri e tudo se desfaz.

Às vezes, parece que a virtude não é natural, é que a não-virtude surge por carma, de uma for-
ma aparentemente natural. Quando nós estamos no contexto da não-virtude a virtude se torna
estranha, incongruente. Aí o sentido da fé. Fé não exige congruência, apenas é.
O que se percebe é que a não-virtude brota dentro de uma paisagem. Talvez alguns anos depois
a pessoa vá perceber que aquela paisagem que provocou naturalmente aquela não-virtude era
frágil, era construída, artificialmente baseada em sentimentos e enganos. Assim, mais adiante
pode perceber que existe um substrato sutil além de todos esses processo e lá é que está a es-
tabilidade, a liberação da impermanência. Só então é que nós vamos compreender que a virtude
é que conduz à estabilidade e a não-virtude é uma tentativa desesperada, a qualquer custo, de
sustentar o que é insustentável, sustentar as circunstancias em meio à impermanência inevitá-
vel.

Quando a impermanência se manifesta de forma inevitável, é como se diz no Zen “quatro mon-
tanhas caem por cima” aí o carma nos pode fazer sacar as não-virtudes – as dez ações não-virtu-
osas – entretanto, puxamos as dez ações não-virtuosas e não funciona; mas se manifestarmos a
sabedoria as quatro montanhas desaparecem.
Por uma falta de treinamento da compreensão, brotam as ações não-virtuosas mas quem usa as
dez ações não-virtuosas para lutar contra as quatro montanhas está perdido, não vai livrar-se da
ameaça, apenas acelera o giro da roda da vida. Entretanto, se fizer brotar a sabedoria, tudo se
resolve. A sabedoria cura até mesmo a morte. A meditação é a fonte da sabedoria e a remoção
dos obstáculos sutis à sabedoria e, por isto, a base para a ação iluminada. Assim, meditação,
moralidade, fé, méritos e sabedoria transcendente são inseparáveis.

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Os 5 Skandas
Lama Norlha

Devido à importância prática da compreensão dos 5 Skandas – que constituem a nossa experi-
ência – os Editores solicitaram à Lama Norlha, diretor do Centro de Retiros de Kalu Rimpoche
em Nova York, para dar os ensinamentos sobre eles. Aqui Lama Norlha nos dá um relato conciso
sobre os Skandas, e oferece ensinamentos que sugerem como as informações podem ser usadas
na meditação.
No final do artigo existe um resumo esquemático dos Skandas, com a sua terminologia em Tibe-
tano.
Todos os ensinamentos apresentados pelo Buda nos Sutras, quer eles tratem da Base do Cami-
nho, do Próprio Caminho, ou dos Frutos do Caminho, todos eles podem estar subordinados ao
tema dos 5 Skandas. O estudo dos 5 Skandas é importante porque ele se relaciona diretamente
com a nossa tendência habitual de apego às coisas / experiências como realidade última.
Skanda, palavra sânscrita, significa monte ou agregado, e se refere aos objetos e estados men-
tais que compõem a nossa experiência. Eles são 5: Forma, Sensação, Percepção, Formação Men-
tal e Consciência.

FORMA - Rupa

O primeiro, FORMA, é um termo genérico que se refere às muitas coisas que podem ser perce-
bidas pelos olhos e outros sentidos físicos, quer eles estejam longe ou perto, sejam claros ou
indistintos, agradáveis ou desagradáveis; quer estejam no passado, no presente ou no futuro. As
formas são classificadas como Causais ou Resultantes (efeitos).
Dos quatro tipos de forma que servem como Causa, a primeira é a Terra, em seu mais amplo
sentido, como a base para todas as atividades.
O segundo é a Água, o agente de coesão que traz as coisas unidas.
O terceiro é o fogo, cuja característica básica é o calor: é o catalisador que faz as coisas amadu-
recerem.
O quarto é o Ar, que causa o movimento e a dispersão.
Quanto às formas resultantes, existem 11 tipos:
As primeiras 5, são as faculdades dos sentidos, formas capazes de perceber objetos sensoriais.
As 5 formas seguintes são os próprios objetos sensoriais. E a 11° forma é o tipo de forma que eu
explicarei mais adiante em detalhes.
A primeira forma é a faculdade da Visão (olhos), a qual torna os olhos capazes de perceber obje-
tos visuais. Ela é comparada à “Sarma”, uma certa flor azul com o miolo branco.
Então, há a forma que é a faculdade da Audição, a habilidade de ouvir. É comparada à protube-
rância da casca de um Vidoeiro.
A próxima é a faculdade do Olfato, o sentido do cheiro. É como um agrupamento de finos nós
de tanoeiros ocos por dentro.
Há a forma associada à língua, a faculdade do Paladar. Esta é como uma meia lua sobre a super-
fície da língua.
E finalmente há o tipo de forma que é a faculdade do Tato. Ela se assemelha à pele da rek na
jam, um pássaro na India que tem uma fina penugem cobrindo todas as partes do seu corpo.

O primeiro dos 5 Objetos Sensoriais é a forma como objeto do sentido da visão. Os objetos
visuais podem ser classificados de duas maneiras: pela cor e pela forma (contorno – shape).
Com referência à cores, quatro são básicas: vermelho, amarelo, azul e branco. Incluído entre
os fenômenos da cor estão: a poeira, fumaça, luz, sombra e névoa. Todas estas aparências são
modos de forma como cor. O brilho que pode ser visto entre o azul do céu e a superfície da terra
é também considerado um exemplo deste tipo de forma. Até o próprio céu, o qual não tem for-
ma, mas possui cor, é por isso também classificado como forma. Algumas cores são vistas como
agradáveis, algumas como desagradáveis e outras como neutras.

92
A outra maneira de perceber as formas visuais é com referência a sua própria forma (contornos)
– curto, comprido, largo, delgado, redondo, semi-circular, e assim por diante. Todas as dife-
rentes formas das aparências internas e externas com as quais nós estamos familiarizados são
permutações da categoria de Forma como Forma (contorno). Algumas formas são agradáveis,
algumas desagradáveis e outras neutras.

O segundo tipo de objeto sensorial é o Som, objetos percebidos pelo ouvido. Alguns sons são
produzidos pelo seres senscientes, humanos e animais, e podem ser sons vocais ou sons tais
como o estalar de dedos. Existem sons os quais não surgem das atividades dos seres senscientes,
tais como os sons da Terra, água, fogo, ventos ou rochas. Existem também sons produzidos pela
interação dos seres senscientes com objetos inanimados, tais como o bater de um tambor: o
tambor apenas produz som quando é tocado por um ser. Alguns sons expressam significados para
os seres, outros não, tal como os sons dos elementos. Entre os sons que expressam significa-
dos estão os nomes e palavra usadas para as coisas e seres de um modo geral. Existem também
nomes e conceitos usados por Seres Elevados para expressar inconcebíveis significados tais como
“Corpo de Buda”, “Reino de Buda” e assim por diante. Em geral, os sons podem ser agradáveis,
desagradáveis ou neutros.

A terceira categoria de objetos sensoriais é o Cheiro, em toda a sua grande variação. Os odores
podem ser agradáveis, desagradáveis ou neutros. Além disso, existem os cheiros inerentes, ou
seja, o cheiro natural de um objeto como a madeira de sândalo, por exemplo; e ainda os cheiros
compostos, como é o caso dos incensos.

A Quarta categoria é o Gosto, os objetos da língua. Existem 6 tipos básicos: doce, azedo, salga-
do, picante, amargo e adstringente. Pela mistura destes 6, surgem muitas sub-classificações. Em
geral nós dizemos que existem sabores deliciosos, ruins ou neutros.

A Quinta classe de objetos sensoriais é a Tátil, objetos sentidos pelo corpo. Estes podem ser
classificados como: sensações causais relacionadas aos 4 elementos, e 7 sensações resultantes:
macio, áspero, pesado, leve, apetite, sede, frio ( soft, rough, heavy, light, hunger, thirst, and
cold).
Existem muitos outros tipos de sensações táteis que o corpo pode experienciar, tais como sen-
sações de flexibilidade, rigidez, relaxamento, satisfação, sensações de doença, envelhecimento
e morte. Uma distinção a mais é feita entre objetos táteis que são externos ao corpo e aqueles
que internos.

A 11° classe de forma inclui, primeiramente, a “ forma atômica”, a qual, porém, é conhecida
apenas pela mente, sem poder ser vista. A seguir existe a forma “imaginada” tais como as ima-
gens refletidas e os sonhos. Existe também um tipo de forma visto pelo “poder da meditação”,
em Samadhi. Existem os objetos criados pelo “simples poder da mente”. No estado da Ilumina-
ção, compreende-se que em realidade os 4 elementos podem ser criados, tais como aqueles nos
reinos de Buda. Uma outra instância deste 11° tipo é a “forma que não pode ser conhecida pela
aparência”. Isto é dito quando da Tomada de Votos. A partir do momento em que o voto é feito,
até o momento em que é quebrado ou abandonado, um tipo especial de forma está envolvido.
Imagine um monge que tenha feito votos, mas que não está usando nenhum tipo de roupa mo-
nástica. Olhando para ele nós não podemos ver que ele é um monge e que fez os votos. Mesmo
que os seus votos não tenham sido quebrados, nem assim nós podemos vê-los, mas continua
existindo a forma imperceptível dos votos, os quais não podem ser conhecidos por sua aparên-
cia.
Votos também incluem votos de maldade. Se alguém diz: “Eu pagarei a você uma certa quanti-
dade de dinheiro se você matar... assim e assim”, e você promete cometer o assassinato, você
neste momento fez votos. Até você realmente cometer o crime, você está sustentando os votos.
O tipo de forma que é gerado pela tomada de votos, sejam bons ou ruins, é inconcebivelmente

93
efetivo e extremamente poderoso. Mesmo durante o sono, ou quando a mente vagueia e você
parece ter esquecido deles, os votos continuam existindo. Mas uma vez tomada a decisão cons-
ciente de não mais manter os votos, e não seguir mais o plano, então a “forma” dos votos é
destruída.
Portanto, ser cauteloso quanto às ações virtuosas e as não-virtuosas é de grande benefício, uma
vez que tais ações são cruciais para se manter os votos. Basicamente, esta forma é classificada
como forma porque sua substância afeta o corpo e a fala.
O conjunto de átomos do corpo e fala podem também indiretamente comunicar conhecimen-
to para os outro. Como num paralelo: se alguns seixos são arranjados de tal forma para criar o
desenho de um cavalo, mesmo que não haja nenhum cavalo presente, nós vemos um cavalo, e
reagimos de acordo. Nós vemos o cavalo em vez daquilo que o comunica, no caso, os seixos.
Os dez tipos de forma (os cinco sentidos e seus objetos) podem também ser discutidos em ter-
mos de suas variadas classes de tamanho. Trabalhando de forma ascendente desde a (“most mi-
nut”) a mais remota partícula, sete das quais fazem um “minut” partícula, e assim por diante,
nós chegamos sucessivamente a partículas com nomes como ferro, água, coelho, vaca, oxigênio,
raio de luz (equivalente a uma partícula de poeira sob a luz do sol). Algumas unidades maiores
são “finger joint”, 24 das quais fazem um “côvado”, 4 dos quais fazem uma braça (fathom?) –
bowspan?; 500 bowspan fazem um ‘earshot”, 8 dos quais fazem um yojana.

O que nós discutimos até aqui está relacionado com os 3 reinos de Samsara (o do desejo, o da
forma e o da não forma). Dentro do Reino do Desejo existem todas as 5 faculdades dos sentidos
e todos os seus 5 objetos. No entanto, no Reino dos deuses superiores não há ouvido e o “ouvir”,
porque os deuses são capazes de perceber de forma análoga os sons sem aquele sentido em par-
ticular. Então, no reino dos deuses existem apenas 8 tipos de forma. Na medida em que a pessoa
progride através do poder da meditação dentro do Reino da Forma e da Não Forma, ela percebe
menos e menos os órgãos do sentidos e os objetos sensoriais.

SENSAÇÃO – Vedana

O segundo Skanda é a sensação. Existem 3 tipos básicos de sensações físicas: prazer, dor e sen-
sação neutra. As sensações mentais podem ser agradáveis ou dolorosas. A sensação mental neu-
tra, ou sentimento de equanimidade, não é diferente da sensação física neutra. Em todas elas
existem 5 tipos de sensações.
Os 5 órgãos (olhos, ouvidos, nariz, língua, pele e mente) experienciam prazer, dor e sensações
neutras. Multiplicando os 6 órgãos pelas 3 sensações, nós podemos listar 18 tipos de sensações.
A forma mais simples de classificação envolve duas categorias: física (os sentidos) e sensações
mentais. Ainda, as sensações podem ser distintas se elas estiverem relacionadas a coisas mate-
riais, ou a desejos independentes de objetos materiais.
Existem várias intensidades de sensação. Algumas são óbvias e claramente sentidas, outras não.
Suponhamos que alguém está sentado e escrevendo e tem uma outra caneta sobre uma mesa
próxima. O escritor está envolvido em seu trabalho e quando alguém vem e pega a caneta ele vê
a caneta sendo levada, mas não registra. Mas se mais tarde ele perguntar: O que aconteceu com
a caneta, ele se dará conta de repente de que alguém a levou: a sensação visual prévia é pro-
cessada apenas neste momento, ou seja, algum tempo depois de ocorrido o fato.
A razão pela qual nós descrevemos este Skanda ou qualquer um dos 5 Skandas é para que você
saiba o que eles são, e possa reconhecer e compreender as funções da mente. Ninguém deveria
tentar eliminá-los. A essência da sensação é impermanente. Então a essência da felicidade e
do sofrimento é impermanente. Sem saber disso, nós desenvolvemos apego. Apegados às suas
realidades, nossas tendências se tornam baseadas na esperança de sensações de prazer. Qual-
quer sensação, boa ou ruim, é impermanente. Se a condição natural das sensações é realmente
compreendida como impermanente, então o apego é em parte abandonado. Por causa disso o
sofrimento por apego à realidade diminui.

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PERCEPÇÃO – Samjana

O terceiro Skanda é a percepção, é o desejo pelas características, o que é sinônimo do apego à


Samsara como sendo real e permanente.
Logo que a sensação surge, em seu primeiro instante, não existe necessariamente esse desejo
ou apego aos 6 sentidos (incluindo a mente) e aos seus objetos correspondentes (os objetos da
mente incluem imagens, memórias, pensamentos e conceitos abstratos). A própria sensação é
muito direta, diretamente experienciada. É num segundo momento que surge o desejo pelo ob-
jeto. Este desejo é o 3° Skanda.
Existem dois aspectos deste 3° Skanda. O 1° é o desejo pelas características do objeto, que é
a identificação do objeto, tal como quando alguém diz, por exemplo: “Este é amarelo. Este é
vermelho. Este é branco.” O 2° aspecto é o desejo pelas características em termos conceituais.
Isto envolve a diferenciação de um objeto dos demais, como quando alguém diz: “Este é um
homem. Esta é uma mulher”. Alguém pode apreender um objeto através do seu símbolo, ou por
outro lado, entender o que um objeto é pelas suas características sem sequer saber seu nome.
A percepção é classificada de acordo com o seu alcance. Por exemplo, se a habilidade de al-
guém para reconhecer está limitada aos 6 tipos de seres no Reino dos Desejos, considera-se uma
percepção bastante limitada. Aqueles, que através da compreensão podem abranger os Reinos
da Forma e da Não Forma com seus sentidos, já são considerados por sua ampla percepção.
Finalmente, há a percepção imensurável, que começa com o “espaço infinito” e se estende por
todo o caminho até a percepção de Budha, o qual reconhece todas as situações nos 6 Reinos sem
nenhuma limitação. O conhecimento do Budha percebe todos os detalhes de cada ser senscien-
te, incluindo seus pensamentos e vidas passadas.

FORMAÇÃO MENTAL – Samskara

O quarto Skanda se relaciona ao tipo de atividade que é desenvolvida pela mente. De uma forma
geral, ela se refere a pensamentos. Neste Skanda, existem 51 tipos de estados mentais ou even-
tos mentais. Estes estados podem ser virtuosos, não virtuosos e assim por diante.
O primeiro grupo dos 51, consiste de 5 estados mentais invasivos. Estes se apresentam não im-
portando o tipo de atividade com a qual a mente esteja envolvida.
A primeira é a INTENÇÃO, movimento em direção a um objeto, quando primeiro alguém pensa:
“ Eu irei. Eu vou dormir. Eu vou olhar. Eu vou cheirar. Eu vou conceber uma idéia”. Qualquer
faculdade que estiver envolvida, a intenção se move através de um ou mais dos 6 sentidos.
A Segunda é a CONCENTRAÇÃO, a mente com um determinado foco, deseja uma imagem ou
conceito.
A próxima é o CONTATO, a ligação da mente com o seu objeto, o que evita outros pensamentos
que possam perturbar o processo de cognição. Os últimos dois, são os próprios 2 Skandas des-
critos anteriormente, SENSAÇÃO e PERCEPÇÃO. Estes 5 eventos mentais estão invariavelmente
presentes em qualquer tipo de pensar.

Os próximos 5 estados mentais são DETERMINANTES com relação ao objeto focado: RESOLUÇÃO,
INTERESSE, LEMBRANÇA, SAMADHI E SABEDORIA.
O primeiro, Resolução, realiza a função de dirigir diligentemente os esforços para alcançar
qualquer intenção desejada. Em qualquer curso de ações, virtuosas ou não virtuosas, se você
tem uma poderosa resolução, a sua diligência será poderosa também. O segundo determinante,
Interesse, mantém-se firme a uma coisa ou trabalha em particular a seu modo, não permitindo
que a mente seja tomada por nada mais, nem sequer por um segundo.
LEMBRANÇAS, o terceiro determinante, evita que a mente se distraia ou esqueça o propósito do
momento.
SAMADHI, o quarto, é a mente focada em algo, examinando. Sua função é dar suporte... (suport
knowing).
SABEDORIA, o quinto, é a abertura e desenvolvimento completo da compreensão de todos os

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fenômenos examinados.

Os 10 fatores mentais que nós consideramos até aqui, no 4° Skanda – os 5 invasivos e os 5 que
definem e determinam o objeto, são similares um ao outro, mas cada um realiza uma diferente
função. Eles podem ser difíceis de distinguir, mas se você investigar bem a sua própria mente,
você pode entendê-los mesmo quando eles aparecem juntos, simultaneamente, como acontece
em certos tipos de atividade mental. A diferença entre concentração e contato, por exemplo,
está entre dois aspectos de um mesmo estágio da mente: foco em uma imagem ou conceito, e o
não surgimento de outros pensamentos. Por um lado todos esses 10 são o mesmo – como função
de uma mesma mente. Os 5 estados invasivos são apresentados da mesma forma em cada ação
mental, enquanto que os 5 eventos mentais determinantes irão variar grandemente em intensi-
dade dependendo do poder que o objeto tem na mente. Por exemplo, seja num trabalho qual-
quer ou na prática do Dharma, se a motivação e o interesse são poderosos, então muito pode ser
realizado. Se eles são fracos, não muito será realizado. Se a resolução de alguém é boa, quando
alguém pensa “Isto é verdade, isto é excelente” ele estará hábil a realizar tal coisa. Se alguém
pensa que seu objetivo é pobre, então apenas dificuldades surgirão.

Onze eventos mentais virtuosos formam um outro grupo dentro do quarto Skanda. O primeiro
deles é a FÈ, a qual pode ser ainda divida em 3 tipos.
A primeira é a Fé pelo Medo (ansiedade): você compreende que nos reinos dos infernos de Sam-
sara e em qualquer um dos lugares onde estão os 6 tipos de seres há apenas sofrimento, então
você deseja ardentemente pela liberação, tal como renascer no Reino de Buda, como Dewa-
chen. Compreendendo que as ações virtuosas são a causa da felicidade nos Reinos Superiores,
e as ações não virtuosas são a causa do sofrimento nos reinos inferiores, surge uma grande
confiança na lei de causa e efeito, a qual é chamada então Fé por Confiança. Quando a pessoa
compreende que as Três Jóias são infalíveis, e nunca a causa de sofrimento, e que Elas benefi-
ciam muitos seres e são inconcebivelmente excelentes, então surge a Fé por Lucidez.

O próximo estado mental virtuoso é a ATENÇÃO, onde você entende que o que é necessário
evitar são as ações negativas e praticar ações virtuosas. Você põe em prática a atenção e a
consciência (mindfulness) para praticar virtudes e evitar ações negativas. Todos os Lama dizem
que isso é muito importante, e realiza a função de habilitar o indivíduo a atingir a perfeição em
ambos, Samsara e Nirvana.
Outra qualidade virtuosa é o TREINAMENTO CUIDADOSO (thorough training). Resulta do treina-
mento em “shi nay” e habilita o indivíduo a usar seu corpo e mente para a virtude e subjugar as
influências negativas.
A próxima é a EQUANIMIDADE – você não está tomado pelas emoções aflitivas tais como o dese-
jo, raiva ou ignorância, mas em vez disso, permanece no estado natural da mente. Quando esta
mente quieta está presente, as emoções aflitivas não podem surgir.
Um SENSO DE ADEQUAÇÃO, é um aspecto virtual da mente que faz com que a pessoa evite
cometer muitas das ações não virtuosas. Isto envolve a compreensão de que certas ações não
são boas em termos do padrão da própria pessoa ou daqueles do Dharma. Serve como base para
impedir uma conduta imperfeita através de votos.
O próximo é a CONSIDERAÇÃO, o que faz com que a pessoa evite ações que são consideradas
negativas pelas outras ou por padrões da comunidade (wordly). Isto serve como base para recor-
dar a bondade de nossos pais ou qualquer outro ser, e nos induz a agir de forma semelhante com
os outros. Estes últimos dois, adequação e consideração, trabalham juntos e são muito impor-
tantes. Adequação se refere a nós mesmos; não significa que você esteja envergonhado de você
mesmo, mas ao contrário, que você não é o tipo de pessoa que faz coisas sem pensar em seus
efeitos. Através da consideração, nós também nos tornamos atentos àquilo que os outros pensa-
rão de nós, e nós passamos a nos preocupar mais pelos outros.
O próximo é o DESAPEGO, o atributo mental de desembaraço, liberação da pessoa do sentimen-
to de apego à existência e às coisas em Samsara. Isto evita que a pessoa se envolva em uma

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conduta incorreta.
AUSÊNCIA DE RAIVA, é o estado do ser sem hostilidade contra qualquer ser sensciente ou a qual-
quer condição que produza sofrimento. Isto faz com que a pessoa apenas se alegre e não se
envolva em ações nocivas.
AUSÊNCIA DE IGNORÂNCIA, é a compreensão do significado das coisas através do discernimento
sem ignorância. Devido a isso a pessoa se abstém de cometer enganos.
E então, existe a AUSÊNCIA COMPLETA DE MALDADE, que é a compaixão sem raiva, rancor. A pes-
soa não vê os outros como inimigos, então ela não quer feri-los ou prejudicá-los. Ao invés disso,
ela sente compaixão pelos outros seres, sem qualquer desprezo.
Finalmente, o 11° estado mental virtuoso é a DILIGÊNCIA, é a pessoa envolvendo-se em ações
virtuosas com manifesta alegria. Através dela, a pessoa pode realizar completamente interesses
virtuosos.

Das 51 formações mentais, nós já discutimos as primeiras 21, as quais incluem as 5 invasivas, as
5 determinantes e as 11 virtuosas.
Agora nós iremos considerar os 26 não virtuosos estados mentais. Existem 6 emoções aflitivas
“raízes” e 20 complementares.
Das 6 aflições raízes apenas 5 são aflições emocionais, enquanto que a Sexta, que é a “Visão”, a
qual é dividida em 5 partes, foi incluída nesta categoria com propósitos didáticos.

A razão de toda emoção aflitiva é a IGNORÂNCIA. Ignorância aqui significa o não conhecimento
das relações de “causa e efeito”, o verdadeiro significado e caminho da Prática de acordo com
as Três Jóias Preciosas. A não compreensão disso é a razão ou base de todas as emoções aflitivas.
A ignorância em si não é capaz de realizar nenhuma função. Ela obscurece a compreensão das
ações e seus resultados – ações virtuosas conduzem à felicidade e as não virtuosas ao sofrimen-
to: obscurece a compreensão das Quatro Nobres Verdades, da Verdade Relativa e da Verdade
Absoluta, e as Qualidades Perfeitas das Três Jóias. Obscurece a compreensão da Impermanência
e mudança. Por causa de tudo isso, todas as outras aflições surgem.
A Segunda emoção aflitiva é o DESEJO, que é a cobiça, ganância pelos agregados deterioráveis
dos Três Reinos. Produz o sofrimento da existência e os 6 tipos de seres senscientes da Roda da
Vida em Samsara. Surge da Ignorância. Existem dois tipos de Desejo. Um é o Desejo do Desejo,
um desejo pelas coisas reais entre os Três Reinos de Samsara. Nos dois reinos superiores, o Reino
da Forma e o Reinos da Não Forma, não há este desejo manifesto, mas há o Desejo pela Exis-
tência. Os deuses superiores tal como “espaço infinito”, a “consciência infinita”, etc., são fruto
de grandes méritos obtidos através de Samadi, mas devido ao apego a um “eu” ainda existente,
aqueles Deuses não deixaram a existência em Samsara.
A terceira emoção aflitiva é a RAIVA. Raiva é o desejo implacável de machucar, prejudicar os
outros. É impossível ser feliz enquanto estamos com raiva, por isso a raiva é tida como a origem
da infelicidade.
A Quarta emoção aflitiva básica é o ORGULHO, uma atitude de inflamada superioridade suporta-
da por visões mundanas. É o pensamento “Eu sou demais”, “Eu sou um ser superior”, “Eu tenho
grandes qualidades”, “Eu estou em excelente estado”. Existem 7 tipos de orgulho. O orgulho nos
faz perder o respeito pelos outros e nos torna infelizes.
A Quinta emoção é a DÚVIDA, duas mentes concebendo o significado do que é verdadeiro. A pes-
soa não está certa de que o Dharma seja realmente verdadeiro. Ela pensa, “Isto não é verdade”,
“Isto não é bom”. A ignorância é muito forte e confiar se torna impossível. A pessoa se torna
incapaz de praticar ações virtuosas e usualmente é atraída em direção à ações negativas.

A Sexta é a VISÃO. Aqui nós chamamos visões negativas as visões baseadas em emoções aflitivas.
Existem “visões” sem qualquer emoção aflitiva, a qual é considerada a “Visão Perfeita”.
Mas todas as visões que nós estamos discutindo são “visões equivocadas”.
Existem 5 tipos de visões equivocadas.
A primeira é a “Visão baseada nos agregados deterioráveis”, a forte crença na realidade última

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dos 5 Skandas, na existência inerente de todas as coisas. Esta visão se torna a base para todas as
visões equivocadas.
A Segunda é a “Visão que se estabelece em posições extremas”; esta é a visão em que o “EU”
ou os Skandas existem permanentemente (Eternalismo) ou que eles não existem definitivamente
(Niilismo). Ambas as visões bloqueiam a certeza no Caminho do Meio - A visão última.
A terceira é a “Visão Contrária”, a qual nega aquilo que é real, tal como a verdade do Karma,
causa e efeito, e as Três Jóias. Qualquer um que tenha esta visão não está inclinado à prática de
ações virtuosas.
Isto completa as 3 visões negativas. Então existem as duas formas de visões em que “tomamos
uma verdade como última” – tomar uma visão como verdade última e tomar a conduta baseada
nesta visão como verdade última.
A primeira delas, a 4ª das visões equivocadas, é a atitude de “tomar uma visão equivocada como
a melhor”. Neste caso, nós estamos completamente convencidos de que uma visão, por exem-
plo, como a negação do Dharma, é verdadeira, boa, perfeita e nós não olhamos para qualquer
outra possibilidade. Uma vez que tudo o que diz respeito ao corpo e à fala é uma projeção da
mente, nós precisamos examinar, sempre, com clareza a validade da nossa visão e não aceitá-la
sem questionamento.
A segunda delas é “tomar a nossa própria moralidade e conduta como supremas”. Isto significa
tomar a moralidade e conduta que não conduzem à liberação. Este tipo de visão não traz be-
nefícios nem para a pessoa e nem para os outros. A pessoa considera a sua visão como sendo a
melhor e as outras disciplinas morais como sendo falsas e ruins.
Por causa destas duas – tomar a própria visão como suprema e tomar a própria moralidade e
conduta com supremas – envolve o apego aos 5 Skandas, eles são como uma corda que prende a
pessoa firmemente. Toda atividade é exaustiva e estéril. Mesmo se uma atividade é investida de
muita energia, ela é sem significado. Estas 5 visões não são os meios para a liberação de Samsa-
ra e ainda não são o caminho verdadeiro.
De acordo com os ensinamentos de Buda, para determinar se uma visão é verdadeira ou não,
real ou não, você precisa examinar sua própria mente. A pessoa deve atingir a liberação no
Dharma por ela mesma. Por isso, você deve decidir por você mesmo se uma visão conduz à
liberação ou não. Quando isto acontece, então você também compreenderá o que é realmente
positivo para você mesmo e para os outros, tanto agora como no futuro. Em resumo, você deve
sempre usar a sua própria inteligência para investigar estas questões, investigar por você mes-
mo. Se você não faz isso constantemente, mas meramente se apega a uma visão, você nunca
poderá atingir a liberação de Samsara.
Fundamentalmente, os ensinamentos de Buda são a prática da Virtude e o abandono da Não-Vir-
tude. Usando a sua própria inteligência para examinar o que é certo e o que é errado, e desen-
volver esta compreensão através da experiência, isto produzirá a Fé Confiante.
Nós temos um corpo humano e por causa disso, um professor – um Lama, amigo virtuoso – é
necessário para explicar a mente de forma que você compreenda – em termos humanos – e para
guiá-lo. Mas você sempre tem que decidir por você mesmo se o que o professor fala é verdade
ou não, e se realmente funciona ou não: se será de benefício, então, quem será beneficiado,
como será beneficiado, e quando. Você precisa sempre examinar tais questões, porque se você
apenas ouve o professor e concorda automaticamente apenas porque são as palavras dele, então
você não está sendo diferente de um animal. Você deve usar a sua inteligência para compreen-
der a verdade.
Uma vez que você compreendeu bem o significado e a natureza das coisas e tomou a decisão do
que é verdadeiro, você deveria ter confiança. Não há necessidade de dúvida e mais atividades.
Quando você está envolvido na prática do Darma ou num Trabalho do Darma não é um processo
instantâneo, onde você faz alguma coisa e tem um resultado imediato. Você deve olhar a situ-
ação em sua totalidade: que trabalho foi feito antes e que tipo de frutos vieram, quê gênero
ou resultado vem do aperfeiçoamento pessoal. Por exemplo: no caso de Milarepa, um grande
Siddha Tibetano, e muito outros como ele, nós precisamos considerar que tipo de trabalho foi
feito antes, que tipo de trabalho foi feito durante, que experiências ocorreram, que tipo de

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benefícios para os outros houve, e que tipo de experiência houve na hora da morte.
A prática do Darma deve ser considerada a partir de uma perspectiva muito ampla. Por isso,
examinar as características da visão é muito importante.
Finalmente, existem várias formas de diferenciar os tipos de visão: uma, é a “Visão Inata”, na-
turalmente presente, tal como a visão dos agregados baseada numa existência inerente e nos 5
Skandas; a outra é a “Visão Adquirida” através da investigação ou instrução de um professor tal
com os dois tipos de visão em que se “toma algo como verdade suprema”.
Ações baseadas em visões adquiridas são facilmente abandonadas, mas as ações baseadas nas
visões inatas são muito mais difíceis de serem deixadas. De acordo com os ensinamentos de
Buda, as 114 visões adquiridas são abandonadas através da compreensão das coisas e desenvol-
vendo segurança. As 360 inatas, apenas a meditação pode dissolver.

A primeira da 20 emoções aflitivas complementares é a IRA, uma raiva interna que foi alimenta-
da através do tempo e prepara a pessoa realmente para prejudicar outros seres através de ações
como bater em alguém.
A Segunda, MALÍCIA, é uma variação da raiva interna. Neste caso a intenção de prejudicar al-
guém se tornou muito poderosa e contínua. Você não se desvencilha dela e ela o faz implacável.
A terceira é a FÚRIA. Quando as causas de ambas, ira e malícia se tornam insuportáveis você as
demonstra – sua face se põe vermelha, sua fala se torna áspera e as palavras severas.
A Quarta é a VINGANÇA, outro tipo de raiva interna, que não é expressa. É a ausência de amor
e compaixão. Externamente você pode aparentar gentil mas por dentro você deseja revanche.
Vingança causa o desprezo pelo outros.
A Quinta é a INVEJA. A inveja também é classificada como um tipo de raiva interna. É causada
pelo apego à aquisitividade e honra. Você não suporta que os outros possuam qualidades ou
coisas boas. A inveja agita sobremaneira sua mente e estando tão infeliz, você nunca a deixará
descansar, se acalmar. A Inveja origina raiva, e faz com que você perca muito dos méritos que
você pode ter acumulado previamente.
Então vem a Sexta, que é a MENTIRA. Estando apegado à aquisitividade e à honra, você esconde
seus erros. Constantemente fazendo isso, você estará se envolvendo em desonestidades. A men-
tira é classificada como uma combinação de desejo, raiva e ignorância (estupidez). Ela se torna
um obstáculo para se receber instruções de um mestre.
A sétima é a Hipocrisia. Com o objetivo de obter posses ou respeito você pretende ter qualida-
des que na verdade você não tem. Por causa dessas qualidades que não existem, você se envol-
ve em mentiras. Isto é classificado como apego e ignorância, e faz com que você adote meios de
vida equivocados.
A oitava aflição é a INCONVENIÊNCIA. É completamente carente de senso de adequação. Aqui o
padrão da pessoa não inclui a abstinência de ações negativas. A falta de vergonha é classificada
como a combinação dos três venenos e acompanha todas as raízes e ramificações de emoções
aflitivas.
A nona é a DESCONSIDERAÇÃO. Você não evita ações negativas no que diz respeito aos outros.
Também se manifesta como ingratidão pelas boas coisas que os outros fizeram por você, como
o seus pais ou o Lama. Enquanto que a inconveniência diz respeito a você mesmo, a desconsi-
deração diz respeito aos outros. Também é classificada como uma combinação dos 3 venenos e
acompanha todas as aflições.
Então temos a OCULTAÇÃO. Isto esconde seus erros para que você não seja repreendido pelos
outros. É classificado como uma mistura de apego e estupidez e faz com que a pessoa não sinta
remorso.
A próxima aflição é a GANÂNCIA. É causada pelo desejo. Ganância é um intenso apego às posses,
e faz com que a pessoa queira cada vez mais. É como Buda disse: “Onde existe grande poder,
existe grande maldade, onde existe grande riqueza, existe grande ganância”.
A 12ª das aflições complementares é a VAIDADE, um tipo de orgulho. A pessoa está apegada a si
mesmo e delicia-se com sua beleza, saúde, juventude, qualidades, etc. É como estar intoxicado
de si mesmo.

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A 13ª, AUSÊNCIA DE FÉ. Este é o tipo de ignorância que faz com que uma pessoa não se interesse
por nenhum objetivo que seja perfeito – a prática da Verdade e o Darma – e assim a pessoa não
realiza nada por ela mesma e pelos outros.
A 14ª é a PREGUIÇA. Estando apegado ao prazer resultante das ações negativas, a pessoa não
sente prazer em praticar a Virtude e pensa: “É muito difícil para o meu corpo e para minha saú-
de”. Porque isso vai contra a diligência e a pessoa não realiza nada.
A 15ª, a NEGLIGÊNCIA, vem dos 3 venenos e da preguiça: você perde a habilidade de distinguir
entre o que é bom e o que é mau, e por isso não consegue adotar ações virtuosas e evitar as
negativas. Esta ausência de discernimento vai em oposição à “Atenção”, ao cuidado.
A próxima das aflições é o ESQUICIMENTO: você não consegue lembrar claramente dos objetivos
virtuosos. Você vem inteiramente sob a influência de outra emoções, e a mente se torna distraí-
da. Este tipo de esquecimento ocorre principalmente durante a prática do Darma, por exemplo,
quando você está tomando refúgio ou fazendo os votos de Bodichita e não é capaz de concentrar
a sua mente no que você está fazendo, ou no significado do que está fazendo.
A 17ª é a FALTA DE CONCIÊNCIA. Significa uma “Sabedoria Distraída”, porque mesmo que você
tenha compreendido quais são as coisas apropriadas a serem feitas e até compreendido porque
elas são corretas, as suas emoções aflitivas o impedem de fazer tais coisas. Você não consegue
conduzir seu corpo, fala e mente da forma como gostaria na hora em que se faz necessário. Isto
causa faltas morais.
Existe a aflição chamada OBTUSIDADE, que é na verdade uma forma de ignorância. É um estado
no qual o corpo e a mente se sentem muito pesados e você não é capaz de visualizar claramente
ou se concentrar. Isto o faz vulnerável a muitas emoções aflitivas.
A 18ª é a IMPETUOSIDADE que vem do desejo. Você deseja certas coisas, e a sua mente corre
atrás delas; você não é capaz de permanecer num estado de serenidade. É uma forte tendência,
o que é um obstáculo para a meditação “Shi Nay”.
Finalmente, a DISTRAÇÃO. É classificada como consistindo de 3 venenos. Aqui, a mente está
constantemente vagueando em diferentes direções e não consegue se fixar em nenhum objetivo
de virtude. Existem muitos tipos de “distração” – interna, externa e assim por diante.

Nós discutimos até aqui as 5 emoções invasivas, as 5 determinantes, as 11 virtuosas, as 6 emo-


ções aflitivas raízes, e as 20 complementares: ao total 47 foram consideradas.
As 4 restantes são os “Quatro Estados Variados”, os quais podem ser virtuosos ou não-virtuosos.
O primeiro é o SONO, classificado como obtusidade, onde todo o campo dos sentidos está dese-
nhado. O fato de serem meritórios ou não-meritórios é determinado pelo nosso estado mental
quando estamos caindo no sono. Isto pode afetar os sonhos que virão. Se a pessoa está treinada
em virtude, então estas tendências aparecerão no estado de sono. Da mesma forma, se uma
pessoa na maior parte das vezes favorece as emoções aflitivas, os seus sonhos refletirão isso.
O segundo é o REMOROSO. É a infelicidade sobre algo que você fez anteriormente. Por que isso
quebra a sua concentração, é um obstáculo para a aquietação da mente. Porém, remorso é um
elemento de confissão. Para que a confissão tenha um significado efetivo de purificação das
ações não-virtuosas, deve haver o remorso como ação prévia. Aqui o remorso funciona como
uma tendência virtuosa.
O terceiro é a INVESTIGAÇÃO. Contando com a intenção e com a sabedoria, é o processo descri-
tivo da mente que procura um objetivo. Quando a forma está distante dos limites dos sentidos,
você é capaz de identificá-la de forma aproximada. Vendo um ser sensciente a uma longa dis-
tância você especula, “É uma vaca”, “É um cavalo”, mas você não pode distinguir.
Finalmente, AVALIAÇÃO. Dependendo da intenção e sabedoria, você é capaz de discriminar as
diferenças de um objeto em particular. É uma análise mental refinada. Por exemplo, você não
deveria apenas compreender um objeto por ser um vaso, mas também por ele ser novo, sem
rachaduras, etc.
Por esses 4 estados estarem na dependência de pensamentos específicos ou concepções envolvi-
das, sejam eles mesmos virtuosos, não-virtuosos e neutros, eles são chamados de “Quatro Variá-
veis”.

100
Isto completa nossa discussão sobre os 51 estados mentais do 4° Skanda.

CONSCIÊNCIA – Vijnana

O 5° Skanda, Consciência, tem como características “clareza” e “conhecimento”. A Consciência


é dividida dentro de 6 tipos que correspondem às 6 faculdades sensoriais. Dessa forma, existe a
consciência da Visão, do Olfato, da Audição, do Paladar, do Corpo e da Mente. Aqui nós conside-
ramos a mente como um “sentido” porque ela pode recordar eventos passados e perceber vários
objetos mentais. Através dos 6 tipos de consciência, uma pessoa pode conhecer distintamente a
natureza e as características de um fenômeno.
Com o suporte das faculdades sensoriais, a inteligência correspondente surge. No primeiro ins-
tante do contato o sentido que estiver sendo usado apreende o objeto, ainda que a faculdade
ela mesma, não seja capaz de conhecer seu objeto. Esta é a função da consciência: reconhecer
o objeto no momento seguinte após o contato ter ocorrido. Sem as faculdades sensoriais não há
como haver consciência. Mas é a consciência que faz na verdade o trabalho. Por isso é que cha-
mamos, por exemplo, “consciência da visão”. Por “consciência da visão” nós compreendemos a
inteligência básica, a qual reconhece um objeto percebido pelos olhos. Cada consciência res-
ponde apenas à faculdade e ao objeto correspondentes. Não é um processo ilimitado. Por exem-
plo, quando a consciência da visão reconhece seu objeto num segundo instante, a consciência
da audição é bloqueada, e assim por diante.
Depois do primeiro momento de contato entre o som e o ouvido no instante seguinte a consci-
ência da audição toma conhecimento da percepção do som, seja bom ou ruim, qualquer que
seja. Quando por meio do nariz, ocorre o contato com um odor, a inteligência básica se apode-
ra do objeto e o reconhece num segundo moment, é a consciência olfativa. Da mesma forma,
depois do contato entre a língua e um objeto que tenha gosto, a consciência correspondente no
momento seguinte o “tomará” e o reconhecerá. Assim também com o corpo: depois de haver o
contato com o corpo, a consciência saberá no momento seguinte se a sensação foi agradável ou
desagradável, e assim por diante. Finalmente, depois que a faculdade mental percebe um fenô-
meno mental, a inteligência básica é capaz de tomar o evento e compreendê-lo. Ela pode reco-
nhecer qualquer situação da mente – felicidade, sofrimento e assim por diante.
Na tradição Hinayana, apenas as 6 consciências estão presentes. De acordo com os Sutras e Co-
mentários da Escola Mahayana (The mind-only), existem 8 tipos de consciência. Suportadas pela
Consciência Básica a mente confusa postula a visão de “Eu”, Orgulho, Apego ao “EU” e Ignorân-
cia. A mente com estas 4 emoções aflitivas é conhecida como a “Mente Emocionalmente Aflita”
e é a 7ª Consciência. Com exceção daqueles que tenham realizado os Estágios de um Bodisatva
ou a Verdade da Cessação ou o Caminho do “No more learning”, todos os seres têm esse tipo de
Consciência.
Finalmente, a 8ª Consciência é a Consciência Básica. Ela é chamada assim porque ela é a base,
o solo que guarda as sementes – os Skandas, Ayatanas, Dhatus, e assim por diante. Na Lumino-
sidade, a base da mente, ocorrem todos os 6 Reinos, objetos externos, os corpos que hoje nós
habitamos. Todas as sementes Cármicas por aflorarem nestes Reinos são sustentadas pela Cons-
ciência Básica e então é chamada de “Tomada de Consciência”. Todos esses diferentes lugares,
corpos e objetos são como imagens de um sonho, ou imagens refletidas num espelho. Ainda que
eles sejam “mera aparência”, sem qualquer realidade última, eles são plantados através do
hábito e sustentados pela Consciência Básica. Por isso é também dito como “Consciência em
Amadurecimento”.
De modo geral, os diferentes termos “sem”, “yi” e “nam she” tem a mesma referência. Mas
mais especificamente “sem” tem a conotação de consciência básica, e “yi” a consciência emo-
cionalmente aflita, enquanto que “nam she” se refere ao conjunto das 6 Consciências.
Isto conclui a nossa discussão sobre os 5 Skandas, aos quais estão subordinados todos os fenôme-
nos compostos. A razão para se estudar os 5 Skandas é destruir o nosso forte apego a estes Skan-
das como uma realidade última. Nós temos a tendência de identificar um ou outro dos 5 Skandas
como algo que nós somos – minha forma física, minhas sensações e assim por diante. Para possi-

101
bilitar a erradicação disso, todos os elementos que constituem os 5 Skandas foram enumerados.
No treinamento do caminho Mahayana a pessoa trabalha para eliminar o apego ao corpo, fala e
mente. Mesmo que a gente pense: “Este é o meu corpo, minha fala e minha mente”, eles não
são; tais pensamentos são apenas obscurecimentos. Compreendendo isso a pessoa examina tam-
bém as aflições emocionais e o funcionamento de todos os 51 Estados Mentais. Aqui, a pessoa
na verdade observa a mente para ver que tipo de pensamentos virtuosos e que tipo de pensa-
mentos não-vituosos ocorrem. Porque a compreensão do funcionamento da consciência é crucial
para a prática da meditação, é importante aprender a terminologia dos Skandas.
Na Escola Vajrayana, no Caminho do Método, existe um desenvolvimento mais extenso do con-
ceito dos 5 Skandas, isto é, da sua transformação. Aqui, uma vez que você tenha compreendido
os Skandas, você pode começar a considerar como aqueles fatores podem aparecer em qual-
quer uma das formas, puras ou impuras. Desde que este é o passo do método, a preocupação do
indivíduo é como transformá-los. Se você consegue reconhecer os 5 Skandas, isso faz com que
a transformação seja mais fácil. Os Skandas impuros se transformam de forma equivalente em
seus aspectos puros nas 5 Famílias de Buda. Mas é importante compreender o que os 5 Skandas
são e como eles realmente operam, para ser possível ver como eles se manifestam como os 5
Budas. Por exemplo, alguns dos ornamentos usados pelas Deidades correspondem às 51 Forma-
ções Mentais. Se você não sabe o que estas formações são, você não poderá compreender o que
os símbolos puros que adornam os Ydans e Budas representam. Então através da investigação
dos 5 Skandas, a compreensão do Dharma pela pessoa, especialmente do Mantrayana Secreto,
irá gradualmente se aperfeiçoando.

102
Distorção
Dzongsar Khyentse Rinpoche

Dzongsar Jamyang Khyentse convida os ocidentais para reconhecer a distorção que nós ocasio-
nalmente causamos para o estudo do budismo através de nossa arrogância cultural, do engano
do ego, e de nossa ingênua ignorância. O transplante bem sucedido da tão sutil e desafiadora
prática do budismo, ele disse, depende de um estudo perfeito e de um claro reconhecimento de
nossos padrões habituais.

Transplantar qualquer coisa para um cultura estrangeira é um processo difícil no qual corrompe
o que está sendo importado. O budismo não é uma exceção; de fato, entre as diferentes merca-
dorias dessas importações, o dharma é talvez o mais inclinado para essa corrupção.

Inicialmente, para entender o dharma apenas em um nível intelectual, não é sempre muito tão
simples. E uma vez que temos algum entendimento, para coloca-lo em prática, é ainda mais
sutil, porque isso requer nossa ida além de nossos padrões habituais. Intelectualmente, nós de-
vemos reconhecer como nosso hábitos mentais limitado tem produzido nosso próprio sofrimento
cíclico, mas ao mesmo tempo nós provavelmente ficamos com medo de nos entregar com todo o
coração no processo de liberação desses nossos hábitos.

Isso é a esperança do ego. Até mesmo se nós pensamos que nós queremos praticar o caminho
budista, para abrirmos mão da escalada do ego não é fácil, e nós poderemos muito bem acabar
com uma versão do ego para um pseudo dharma que irá apenas trazer mais sofrimento ao invés
de liberação.

Por essa razão, muitos professores orientais são muito céticos sobre esportarem o dharma para o
mundo ocidental, sentindo que os ocidentais carecem do refinamento e coragem para entender
e praticar corretamente o dharma de Buda. Pelo contrário existem alguns professores que ten-
tam da melhor maneira trabalhar na transmissão do dharma para o ocidente.

É importante relembrar que o processo completo do plantio do dharma não pode ser feito den-
tro de uma única geração. Não é um processo simples, e da mesma maneira quando o budismo
foi levado da Índia para o Tibet, isso sem dúvida levará tempo. Existem enormes diferenças
entre as atitudes e entre as interpretações de fenômenos similares. É fácil de esquecer que tais
supostas noções universais como o "ego" "liberdade" "igualdade" "poder", e o significado de "gê-
nero" e "segredo" são tudo construções culturalmente específicas e que se diferem radicalmente
quando vistas através de diferentes perspectivas. A insinuações que cercam um determinado
assunto em uma cultura provavelmente podem não ter ocorridos com aqueles da outra cultura,
onde o hábito em questão é tido como apenas uma condição.

Em anos recentes existiram inúmeros críticos tanto dos ensinamentos budistas e de certos pro-
fessores budistas. Infelizmente, isso freqüentemente revela um grave nível de ignorância sobre
o assunto em questão. Muitos lamas tibetanos adotam a atitude do "isso não tem importância",
porque eles genuinamente não se ligam para esses tipos de ataques. Eu acho que a perspectiva
de vários lamas é mais vasta do que tentar manter um caminho dos últimos gostos e desgostos
da instável mente moderna. Outros lamas tibetanos adotam a atitude de que
os ocidentais são meramente observadores das vitrines espirituais, dizendo para os jovens lamas
como eu para adotarem suas atitudes, "Viu, nós te avisamos! Eles não estão aqui para o dharma,
para eles nós somos apenas mera curiosidade." Na tentativa de adotar uma boa motivação, eu
gostaria de propor algumas perspectivas alternativas.

Certas críticas ao budismo atualmente aumentam minha devoção aos ensinamentos e aos meus
professores, pois eu sinto que o dharma desafia qualquer crítica. Mas eu também sinto que algu-

103
mas dessas críticas podem ter o efeito de causar certos danos. É bem possível que muitos seres
que tem a conexão com o dharma ainda para amadurecer, possam colocar em risco sua oportu-
nidade de conexão por causa desses tipos de artigos. Em nossas vidas nós encontramos inúme-
ros obstáculos e circunstâncias de dificuldade. Mas o pior obstáculo possível é impedir-se de se
engajar em um caminho autêntico para a iluminação.

Nessa geração, onde as pessoas ingenuamente aceitam conclusões baseadas em artigos daqueles
que tentando prevenir os perigos do relacionamento guru-discípulo, tais críticas podem resultar
em uma trágica destruição da única chance de muitas pessoas para a liberação do oceano de so-
frimento. Nos sutras, é declarado que alguém que regozija mesmo que momentaneamente sobre
alguma coisa que conduz a tal perca de oportunidade, não irá encontrar o caminho da ilumina-
ção por centenas de vidas.

Geralmente, eu acho que quando nós queremos expor uma falha ou oferecer uma opinião, dois
atributos são necessários: saber o assunto perfeitamente, e não ter as mesmas falhas de quem
se está criticando. De outra forma, seria como o provérbio tibetanos diz, "Um macaco que ri
do rabo do outro macaco." Não deveríamos nos esquecer que como seres humanos, nós somos
vítimas das interpretações de nossas mentes limitadas. Nós não deveríamos dar tanta autoridade
para nosso ponto de vista limitado: nossas interpretações e perspectivas pessoais são limitadas e
quase sempre derivadas de nossos próprios medos, expectativas e ignorância.

Seria um grande divertimento para muitos sábios das escolas tibetanas se fosse possível uma
demonstração das escritas de alguns escritores ocidentais que sejam ligados a tais assuntos
como budismo ou gurus. Seria como imaginar um velho lama tibetano lendo Romeo e Julieta de
Shakespeare ou ouvindo uma bela ópera. Ele iria provavelmente acharia o livro não muito inte-
ressante e a ópera como algo parecido a um gato sendo despelado vivo!

É melhor não distorcer as coisas com nossas interpretações limitadas, mas se nós temos que fa-
zer isso, então ao menos nós deveríamos ser mais atentos de quanto poderosa e unilateral nos-
sas interpretações podem se tornar. Por exemplo, eu poderia declarar todos os tipos de coisas
sobre a maneira que os ocidentais se aproximam do estudo das culturas ocidentais. Eu poderia
facilmente declarar uma interpretação, que possivelmente aparecerá inteiramente válida, para
declarar que o sistema conceitual ocidental origina-se de uma atitude básica de arrogância na
maneira em que eles controem a sí próprios e os outros.

Em quase todos os departamentos nas universidades ocidentais que alegam ensinar o budismo,
os professores usualmente tem que esconder o fato do que se sucedeu para eles mesmo terem
se tornado budistas. Os professores de matemática escondem o fato de que eles acreditam na
lógica da matemática? Os acadêmicos ocidentais precisam ser mais questionadores sobre suas
próprias inclinações rígidas que os impedem de serem capazes de apreciar uma outra perspecti-
va. Eu acho muito doloroso a atitude imperialista que isola por arrogância um aspecto da cultura
oriental, analisa de uma distância cuidadosa, prepara e esteriliza para ajustar na agenda oci-
dental, e então talvez conclui-se que ela está agora adequado para o consumo.

Outro exemplo da hipocrisia que envolve esse tipo de atitude é a "benevolência" ocidental que
deseja "libertar" as mulheres orientais do controle cruel do que eles imaginam ser uma tirania
opressiva de um sistema misógino(N.T: que tem aversão da mulher), relembrando os missioná-
rios ocidentais quando queriam que os nativos adotassem a moral e os valores do cristianismo.
No ocidente, entre outras coisas, as mulheres são fotografadas nuas e essas fotos são publicadas
em revistas. Muitas outras culturas iriam considerar isso excessivamente vergonhoso, da mesma
maneira que uma tremenda exploração e opressão da mulher. Então do ponto de vista deles, a
crítica ocidental para com outra cultura por sua submissão da mulher é um assunto totalmente
controverso.

104
Certamente nenhuma cultura deveria exigir uma profunda apreciação e entendimento necessá-
rio para produzir uma completa e justificável crítica sobre um importante aspecto de uma outra
cultura (especialmente quando o assunto é tão sofisticado e complexo como o budismo), sem
que tenha a humildade de fazer uma tentativa primorosa e aprender profundamente sobre esse
assunto e sobre os próprios termos dessa cultura.

Às vezes o que talvez ajude os ocidentais a desenvolverem um maior respeito e apreciação pelo
oriente é lembrar que a 3.000 anos atrás, quando o oriente estava florescente com a filosofia,
arte, línguas e medicina, as nações ocidentais nativas não tinham sequer a idéia de escovar seus
próprios dentes! E em muitas perspectivas culturais, a tão falada ciência ocidental e tecnologia
realmente não tem feito muito exceto acabar com os recursos naturais. Idéias como a demo-
cracia e o capitalismo, tão como a igualdade e os direitos humanos, podem ser percebidos de
terem falhados miseravelmente no ocidente, e não são nada mais do que novos dogmas.

Eu acho difícil de ver uma vantagem de incorporar esses sistemas ocidentais limitados com a
aproximação do dharma. Isso certamente não criará a extraordinária realização que o príncipe
Siddharta alcançou abaixo da árvore Bodhi a 2.500 anos atrás. O ocidente pode analisar e cri-
ticar a cultura tibetana, mas eu ficaria muito agradecido se eles pudessem ter a humildade e o
respeito de deixarem os ensinamentos do Siddharta de lado, ou ao menos estudar e praticar a
fundo antes de se posicionarem como autoridades.

Se as pessoas podessem colocar algum esforço para serem seres respeitosos e com mentes
abertas, haveria muito conhecimento disponível que poderiam liberar eles de todos os tipos de
sofrimento e confusões. Foi somente agora que eu cheguei a perceber o significativo do respeito
que os tradutores tibetanos e eruditos do passado tinham em relação à Índia, por sua fonte de
dharma e de sabedoria. Ao invés de serem críticos ou até mesmo ressentidos por suas procu-
ras, eles a chamavam de "A Sublime Terra da Índia." Esse é um tipo de atitude bem diferente da
mentalidade de shopping ocidental a qual se observa o dharma como sendo uma mercadoria e
nosso próprio envolvimento como sendo um investimento egoístico onde se quer apenas o que se
encaixa bem com nossas expectativas habituais e rejeitando o que não achamos imediatamente
gratificante.

Isso não é dizer que os ocidentais não deveriam ser críticos com os ensinamentos budistas. Pelo
contrário, como o senhor Buda disse, "Sem fundir, bater, pesar e polir a substância amarela,
nunca saberão se ela é ouro. Da mesma forma que sem analisar, alguém não deveria aceitar o
dharma como sendo verdadeiro e válido." Análises lógicas sempre foram encorajadas nas tradi-
ções budistas, e o budismo sempre tem contestado a promoção da fé cega.

A diferença situa-se em um atitude que você toma em relação à crítica. No processo de analisar
a "substância amarela" o analista não tem apenas que manter uma mente receptiva, mas tam-
bém reconhecer que ele ou ela talvez não tenha uma sabedoria adequada sobre a matéria em
assunto. Esse é o ponto chave da análise. De outra maneira nós estaríamos apenas procurando
confirmações sobre aquilo que nós já acreditamos. Ser cético e procurar por falhas são duas coi-
sas completamente diferentes.

Agora aqui está a diferença entre essas duas atitudes mais obvias e mais importantes, e quando
isso vem para criticar o mestre no budismo vajrayana. Infelizmente, o mestre é o mais impor-
tante na prática vajrayana. Entretanto, todos os grandes mestres e ensinamentos repetidamente
dizem que alguém tem que ser experiente na checagem do lama antes de aceita-lo como seu
mestre. Nós temos essas opção e nós deveríamos tomar vantagem dela. É vital estudar os ensi-
namentos extensivamente com o preceito de estar preparado para se entregar a um professor.
De fato, algumas escrituras do vajrayana mencionam que alguém deveria checar o potencial de
um professor por doze anos antes de tornar seu aluno.

105
Entretanto, acho que também é importante lembrar que o budismo não é só o vajrayana. Há
outros caminhos como o therevada, que tem como fundação todos os caminhos budistas. É um
caminho claro que não esbarra em todos os tipos de experiências/expectativas místicas. O que
algumas vezes parece acontecer é que as pessoas querem praticar o vajrayana porque eles o
vêem como sendo algo exótico, quando de fato seria melhor a simplicidade e a sanidade do the-
revada.

No vajrayana, com o preceito de permitir que o mestre nos ajude e trabalhe com nossas preocu-
pações dualísticas egocentradas, nós supomos pensar que o mestre não é nada diferente em sa-
bedoria do que o próprio Buda. Essa é a mais alta forma de treinamento da mente. Nós estamos
literalmente fazendo um herói fora de um alguém que, porque ele vê nosso potencial, não há
a fraqueza a respeito de desafiar ou até mesmo abusar de nossas mentes limitadas de hábitos
padrões. É um método muito radical, difícil e revolucionário. De um ponto de vista convencio-
nal, ou sobre o ponto de vista egocentrado, a difícil idéia do relacionamento mestre-aluno é
algo quase como criminoso. Apesar disso, o ponto a ser relembrado é que o único propósito da
existência do mestre é de funcionar como um meio hábil para combater os hábitos de conceitu-
alizações dualísticas, e para combater os enganos e a teimosia do apego do ego. É por isso que o
guru é uma manifestação viva dos ensinamentos.

É preciso que seja enfatizado que é nossa percepção do mestre que o permiti de funcionar como
sendo uma manifestação do dharma. Primeiramente nós vemos o guru como sendo uma pessoa
comum, e então de acordo que nossas práticas se desenvolve, nós começamos a ver o guru
mais como um ser iluminado, até que finalmente nós aprendemos a reconhecer o guru como
sendo nada mais do que uma manifestação externa de nossa própria mente iluminada ou búdica.
De uma maneira sutil, é quase que irrelevante se o guru é iluminado ou não. O relacionamento
mestre-aluno não é sobre divinizar o mestre, mas fornecer uma oportunidade de liberar nossas
percepções confusas da realidade.

Olhando do ponto de vista do mestre, se alguém assume a função de um professor sem ter a
capacidade, a negatividade de sua decepção obviamente irá ficar dentro de seu próprio fluxo de
consciência. É importante entender que a não ser que um lama seja completamente iluminado,
ele ou ela devem carregar a sobrecarga do que eles fazem. Obviamente se ele é um ser ilumina-
do, ele não tem nenhum karma, mas se não for, as conseqüências de suas atitudes irão retornar
à ele; suas ações são suas responsabilidades. Do ponto de vista dos estudantes, se nós o esco-
lhemos como nosso professor, nós deveríamos apenas aprendercom ele, de acordo com qualquer
caminho que nós escolhemos seguir.

O princípio do guru e da devoção é muito mais complicado do que criar um modelo exemplar e
assim endeusar ele ou ela. Devoção, quando você realmente analisa, não é nada mais do que
acreditar na lógica da causa e do efeito. Se você cozinha um ovo, coloca ele na água fervendo,
você acredita que o ovo irá ficar cozido. Essa confiança é a devoção. Não é uma fé cega ou uma
insistência no ilógico. O Buda disse, "Não conte com o indivíduo, conte com os ensinamentos."
Mesmo assim parece que nós, apesar de tudo, decidimos continuar julgando os professores indi-
vidualmente sem lembrar da ampla perspectiva e contexto do propósito dos ensinamentos.

Um assunto que pode parecer controverso, e que tem atraído grande quantidade de atenção, é
que no vajrayana os prazeres como o sexo não são rejeitados como sendo uma ameaça para uma
prática espiritual, mas pelo contrário, ele é usada para fortalecer as purificações espirituais. En-
quanto isso pode soar maravilhosamente bom, é importante relembrar que tais práticas reque-
rem intensos estudos e práticas dos fundamentos de base, pois quando vistas de uma maneira
superficial, é facilmente interpretada de modo incorreto.

Os simbolismos masculino-feminino do vajrayana não são a respeito de sexo. A prática somente

106
pode existir em um contexto da visão correta entre a integração da compaixão com a sabedoria.
Fora disso, como o caminho tântrico trabalha em um nível pessoal e não-conceitual, não é
possível fazer julgamentos sobre um praticante. O tantra transcede completamente a idéia con-
vencional de um homem e uma mulher tendo uma relação sexual. Ele é a respeito de trabalhar
com os fenômenos para trazer realizações extraordinárias de vacuidade e bodhichitta, com o
preceito de liberar todos os seres sensientes do samsara. Esperar de um yogue ou de uma yogui-
ne, a qual estão aspirando de irem além dos chauvinismos de uma mente confusa, se preocupar
com as questões sexualmente corretas é visto como um absurdo em um contexto de uma visão
tão grandiosa.

Mesmo assim para muitos noviços ocidentais, certas tradições tibetanas parecem ser muito
perturbadas, e aparentemente sendo sexistas ou machistas. A visão ocidental sobre os relaciona-
mentos sexuais dão ênfase na "igualdade", apesar disso essa é uma grande diferença do signifi-
cado de igualdade no budismo vajrayana. Enquanto a igualdade no ocidente se sustenta na troca
de regulamentos, no budismo vajrayana, igualdade é ir além da "entranças" ou da dualidade em
relação a tudo.

Se ainda existir resíduos de dualidade, então por definição não pode haver igualdade. Eu acredi-
to que igualdade social entre homem e mulher é menos importante do que realizar a igualdade
entre o samsara e o nirvana o qual, apesar de tudo, é o único verdadeiro caminho para produzir
um entendimento genuíno de igualdade. Dessa forma o entendimento de igualdade no budismo
vajrayana é ligado a um nível muito profundo.

A noção de igualdade é um pouco recente no ocidente, e por causa disso existe uma certa rígida
e fanática fixação para um caminho específico o qual deveria ser praticado. No budismo vajraya-
na, pelo contrário, há uma tremenda apreciação do feminino, bem como uma forte ênfase na
igualdade de todos os seres. Isso provavelmente, de qualquer forma, não é evidente para al-
guém que não consegue ver além do sistema ocidental contemporâneo. Como resultado, quando
mulheres ocidentais tem um relacionamento com um lama tibetano, algumas provavelmente
ficarão frustradas quando suas expectativas culturais não são atendidas.

Se alguém imaginar que se pode ter um amor prazeroso e correspondido com um Rinpoche, esse
alguém não poderia estar mais enganado. Alguns Rinpoches, aqueles conhecidos como grandes
professores, seriam por definição o pior dos amantes, do ponto de vista do ego. Se alguém se
aproxima de um grande mestre como uma intenção de ser gratificado e desejando uma relação
de cooperação, divertimentos mútuos etc., então não apenas do ponto de vista do ego, mas do
ponto de vista mundano, esse tipo de pessoa seria uma péssima escolha. Eles provavelmente não
irão trazer flores ou oferecer um convite para um belo jantar.

De qualquer forma, se alguém vai para estudar sob um mestre com a intenção de obter a ilumi-
nação, esse alguém deve estar presumido de estar pronto para abrir mão do seu ego. Você não
vai para a Índia estudar com um venerável mestre tibetano com a expectativa de que ele
irá comportar-se de acordo com seus próprios padrões. É injusto pedir para alguém de te livrar
da delusão, e depois criticar ele ou ela por ir contra seu ego. Eu não estou escrevendo isso com
a preocupação de que se ninguém defender os lamas tibetanos eles irão perder sua populari-
dade. É necessário de um tremendo empenho para convencer o mundo sobre as armadilhas do
dharma e sobre os defeitos dos mestres, sem dizer que isso seria muito masoquista por parte de
quem tem a falta de sorte de poder apreciar o dharma e os abusados professores loucos que irão
fazer questão de tratar mal cada centímetro de seu ego. Essas pobres almas eventualmente irão
morrer com a experiência forte de ego e de confusão.

Eu sei que haverá uma grande quantidade de pessoas que irão descordar da maioria das coisas
que eu disse. Como da mesma maneira que eu coloquei minhas interpretações, da mesma ma-

107
neira existem pessoas que irão colocar a suas. Eu tenho encontrado com grandes professores os
quais eu admiro de forma imensa e ainda que eu tenha sido um maldito bajulador, eu rezo para
que eu continue a apreciar a companhia desses mestres. De outra maneira, pessoas certamente
tem outras idéias e são felizes com elas. Minha prática tem com devoção o caminho budista;
outros podem duvidar do caminho budista. Mas como Dharmakirti disse, no final das contas nós
devemos abandonar o caminho. Então eu espero que no fim nós nos encontremos em um lugar
onde não teremos mais nada para discutir.

A natureza última da mente, vacuidade permeada de vivacidade,


Me disseram que isso é o verdadeiro Buda.
Reconhecendo que isso deverá me ajudar
Não se aprisionar em pensamentos hierárquicos.

A natureza última da mente, pertence ao aspecto da vacuidade,


Me disseram que isso é o verdadeiro Dharma.
Reconhecendo que isso deverá me ajudar
Não se aprisionar em pensamentos politicamente corretos.

A natureza última da mente, que é um aspecto vívido,


Me disseram que é a verdadeira Sangha
Reconhecendo que isso deverá me ajudar
Não se aprisionar em pensamentos de direitos idênticos.

Alguém não pode dissociar vacuidade da vivacidade.


Essa inseparabilidade me disseram que é o Guru.
Reconhecendo que isso deverá me ajudar
Não se aprisionar em dependência com lamas chauvinistas.

Essa natureza da mente nunca foi manchada por dualidade,


Essa imaculação me disseram que é a deidade.
Reconhecendo que isso deverá me ajudar
Não se aprisionar com categorias dependentes de "gênero" ou "cultura."

Essa natureza da mente é espontaneamente presente.


Essa espontaneidade me disseram que é o aspecto da dakini.
Reconhecendo que isso deverá me ajudar
Não se aprisionar com o medo de ser solicitado.

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Extraindo a Essência Vital
Dudjom Rinpoche

Introdução

Prostro-me com reverência e tomo refúgio aos pés do sublime e glorioso Guru, cuja bondade é
incomparável. Abençoe meus discípulos e a mim, para que realizações inequívocas do caminho
profundo possam despontar rapidamente em nossos fluxos mentais, e para que possamos alcan-
çar a cidadela primordial nesta mesma vida.
Existem três tópicos gerais nesta apresentação clara das orientações para a prática da secretís-
sima Grande Perfeição, consistindo no treinamento essencial para um retiro nas montanhas. Isto
proporciona um ponto de entrada para aqueles indivíduos afortunados cujas preces anteriores e
seu carma residual e puro se encontram unidos; para aqueles que apresentam de coração uma
confiança no profundo e secreto Darma da Grande Perfeição e no Guru que o revela; e para
aqueles que estão devotados a levar esta prática à sua culminância. Estes são os três tópicos
gerais a serem compreendidos: (i) a preparação: como cortar as amarras do apego e do desejo,
direcionar sua mente para o Darma e purificar seu fluxo mental; (II) a prática principal: como
eliminar visões errôneas em relação à visão, à meditação e à conduta, e, então, como ingressar
no caminho da prática; (III) a prática pós-meditativa: como sustentar seus compromissos e vo-
tos, e como fazer com que todas as suas atividades desta vida sejam incorporadas ao Darma.

I. A Preparação

Agora irei falar um pouco sobre o primeiro tópico. Ai de nós! Desde o princípio, esta nossa
mente, a qual é tanto consciente quanto confusa, surgiu simultaneamente com Samantabadra.
Porém, Samantabadra é livre por conhecer sua própria natureza, enquanto nós, seres sencien-
tes, vagamos infinitamente no ciclo da existência por não termos a mesma compreensão. Nós já
tivemos incontáveis encarnações dentre os seis tipos de existência, e tudo que fizemos até agora
tem se mostrado sem sentido. Agora, uma vez dentre uma centena de vezes, nesta ocasião em
que assumimos uma forma humana, se falharmos em alcançar os meios para evitar o renasci-
mento no ciclo da existência e os reinos miseráveis, após morrermos não haverá certeza sobre o
lugar em que iremos renascer. Onde quer que renasçamos dentre os seis tipos de seres não há
nada além de sofrimento. Não é o suficiente ter obtido esta forma humana, e visto que o mo-
mento da morte é incerto devemos praticar o Darma verdadeiro agora mesmo. Para não sentir-
mos remorso no momento da morte e não ficarmos envergonhados de nós mesmos, devemos agir
como o venerável Milarepa, que declarou:

Nesta minha tradição do Darma,


Ninguém sentirá vergonha de si mesmo.

Para que nossa prática do Darma nos leve ao caminho, não é o suficiente manter uma fachada
externa do Darma. Ao invés disso devemos cortar todas as amarras das atividades e prazeres que
nos limitam a esta vida. Se não nos afastarmos deles, mesmo se ingressarmos no caminho do
Darma com uma atitude simplesmente hesitante, e se estivermos apegados à nossa terra natal,
posses, parentes, amigos e assim por diante, devido à conjunção desta mente de apego, agindo
como a causa primária, com os objetos de apego agindo como condições contribuintes, Mara
criará obstáculos, nós nos misturaremos novamente com as pessoas mundanas e nosso destino se
desviará.
Portanto, sacrificando nossa preocupação com comida, roupas e conversas, e abandonando o
apego aos oito darmas mundanos, deveríamos direcionar nossas mentes unifocadamente para o
Darma, como fez Gyhalwa Yang Gönpa, que declarou:

Em isolamento, com a consciência da morte penetrando o coração,

109
O iniciado, que renuncia completamente ao apego,
Define as fronteiras de seu retiro ao renunciar às preocupações desta vida;
E sua mente não se encontra com as oito preocupações mundanas.

De outra forma, o Darma que está misturado com as oito preocupações mundanas é como comer
um alimento envenenado. Portanto, tomem muito cuidado!
Estas oito preocupações se resumem a esperança e medo, os quais se referem, basicamente, a
apego e aversão. Apego e aversão internos tomam externamente a forma dos demônios Gyalpo
e Senmo. Assim, enquanto nossas mentes não estiverem livres de apego e aversão nunca estare-
mos livres de Gyalpo e Senmo, e não haverá fim para os obstáculos. Portanto, devemos examinar
repetidamente nossas mentes para verificar se em nossos pensamentos mais íntimos existe qual-
quer apego egoísta às oito preocupações mundanas, e devemos ser cuidadosos para nos livrar
destas falhas. Se estivermos presos a estas oito preocupações fingindo praticar o Darma, adquirir
coisas de tal forma enganosa constitui um modo de vida incorreto. De acordo com o aforismo
“Deixando sua terra natal para trás metade do Darma está realizado”, volte suas costas à terra
natal e viaje para terras estrangeiras.
Afaste-se de seus amigos e parentes de forma gentil e não ouça aqueles que procuram dissu-
adi-lo de praticar o Darma. Livre-se de suas posses e viva de quaisquer esmolas que cheguem
a você. Reconheça todas as coisas desejáveis como obstáculos conectados aos maus hábitos,
desenvolva desinteresse por eles. Caso você não se satisfaça com uma pequena quantidade de
tais coisas como posses materiais, então se você obtiver uma coisa irá desejar duas; e enquanto
isto continuar será fácil para os maras diabólicos das coisas prazerosas o prenderem. Quaisquer
coisas boas ou más que as pessoas digam não as aceite ou se entregue à esperança e ao medo, à
aceitação ou à rejeição. Ao invés disso, deixe-as dizer o que quiserem, como se elas estivessem
falando sobre alguém que já se foi e está morto.
Ninguém além de um guru qualificado pode oferecer bons conselhos – nem mesmo seus pais –
portanto, assuma a responsabilidade por si mesmo e não entregue as rédeas da situação para
qualquer outra pessoa. Externamente mantendo uma natureza bondosa, saiba como envolver-se
harmoniosamente com os outros sem exageros. Se alguém – forte ou fraco – tornar-se um obs-
táculo real para a sua prática, você não deve se deixar mover por ele, como se você fosse uma
rocha de ferro puxada por uma echarpe de seda. Não será adequado agir com um caráter fraco,
voltando sua cabeça para qualquer direção em que o vento sopre, como a grama em um desfila-
deiro nas montanhas. Em qualquer prática, desde o momento em que você a inicie até alcançar
sua culminância – mesmo que relâmpagos caiam sobre você, que um lago se levante por baixo,
ou que rochas caiam de todos os lados – vá até o final, mantendo sua promessa de agir de acor-
do com os seus compromissos, mesmo sob o risco de sua própria vida. Desde o início estabeleça
gradualmente sua rotina para os momentos de prática, sono e refeições corretas, e assim por
diante, sem se deixar levar por maus hábitos. Além do mais, seja sua prática elaborada ou sim-
ples, não a deixe se tornar esporádica, mas sustente-a de forma regular e estável, sem deixar
espaço para aquilo que é ordinário nem por um instante.
Quando no retiro, sele a entrada de sua caverna com barro, ou mesmo que não faça isto, não se
encontre face-a-face com outras pessoas, não fale com outros ou os espione. Pacifique comple-
tamente todos os pensamentos vagueantes de sua mente incansável, então expire o ar residual
e adote adequadamente os elementos essenciais da postura. A mente deve descansar na lucidez
e permanecer firme, sem oscilar nem por um instante, como uma estaca fincada no solo. Todos
os sinais e qualidades da prática surgirão rapidamente por se ter sustentado um retiro rigoroso
externa, interna e secretamente. Se você pensar “Agora seria importante encontrar e conversar
com alguém, mas farei um retiro rigoroso mais tarde”, com o tempo a energia de sua prática irá
declinar, tornando-se mais e mais frouxa. Assim, se você tomar desde o início a firme decisão
de permanecer sentado, sua prática se tornará mais e mais rigorosa e não será arrastada pelos
obstáculos.
Apesar de existirem muitas descrições das características dos lugares adequados para a prática,
em geral é melhor praticar em regiões agradáveis abençoadas pelos mestres do passado, tais

110
como Guru Rinpoche – em uma região que não esteja nas mãos de pessoas que quebraram seus
compromissos, que seja remota e onde provisões possam ser facilmente obtidas. Devido à fácil
conjunção de condições afortunadas em cemitérios, lugares assombrados e outras áreas habi-
tadas por espíritos malévolos, praticar em tais lugares fortalecerá sua meditação se você for
capaz disto. Mas se você não for, encontrará muitos obstáculos. Quando sua realização se torna
vasta, todas as circunstâncias desfavoráveis surgem como ajuda; assim, quando isto acontece, é
especialmente útil engajar-se em práticas secretas em lugares como os cemitérios. Rejeite cons-
tantemente todas as distrações externas e internas, pois permanecer em inatividade é o verda-
deiro isolamento.
No que se refere à própria prática de purificação de seu fluxo mental, esforce-se até ganhar ex-
periência em cada uma das práticas comuns dos quatro pensamentos que transformam a mente,
e nas práticas incomuns de refúgio, bodicita, purificação de obscurecimentos e acumulação de
méritos, como elas são ensinadas nos manuais de meditação. De modo especial, você deveria
dedicar-se à guru yoga como a força vital de sua prática. Se você não o fizer, o progresso na me-
ditação será lento, e mesmo quando ocorra algum desenvolvimento os obstáculos irão aparecer,
e não será possível o surgimento de realizações em seu fluxo mental. Portanto, como resultado
da oferenda de preces de súplica com devoção fervorosa e descomplicada, após algum tempo
insights do fluxo mental do guru serão transferidos para você; e realizações extraordinárias,
inexprimíveis surgirão, certamente, de dentro de seu próprio ser. O Lama Zhang Rinpoche de-
clarou, “Existem muitos que cultivam a imobilidade, experiências, samadhi e assim por diante,
mas é raro que surjam realizações internas devido às bênçãos do guru, que resultam do poder
da devoção e da reverência”.
Portanto, o nascimento da compreensão da Grande Perfeição em seu fluxo mental depende das
práticas preliminares, e é por isto que Jé Drigung afirmou:

Em outros Darmas a prática principal é considerada profunda,


Mas aqui, nós consideramos as práticas preliminares profundas.

II. A Prática Principal


 
No que concerne à prática principal sobre como eliminar conceitos errôneos sobre a visão, a me-
ditação e a conduta, e, então, entrar no caminho da prática, eu irei primeiramente descrever a
visão a partir da qual a natureza da existência pode ser entendida. A sua própria mente é a na-
tureza última da existência. Ao determinar sua natureza como lucidez, livre de todas as carac-
terísticas artificiais fabricadas pelo intelecto convencional, a sabedoria primordial surge como
consciência autogerada de forma direta. Inefável, impossível de ser indicada por analogias, ela
não se corrompe pelo samsara ou se aperfeiçoa com o nirvana. Não-nascida, incessante, não-li-
berada, não-deludida, e nem existente nem não-existente, ela não tem limitações e nem cai em
nenhum extremo. Em resumo, ela nunca se estabeleceu como uma entidade substancial imbuída
de características elaboradas, e assim, sua natureza é primordialmente pura, grande vacuida-
de que tudo permeia. A partir de seu brilho interno vazio e livre de obstruções, os oceanos dos
reinos do samsara e do nirvana surgem naturalmente, como o sol e seus raios; portanto, não é
um vazio “em branco”, mas sua natureza é consciência primordial, originando a grande e espon-
tânea presença de qualidades virtuosas.
Assim, esta sabedoria primordial, na qual vacuidade e aparência se encontram unidas, é a natu-
reza dos três kayas; e reconhecer autenticamente a natureza de ser deste modo primordial de
existência é chamado de “a visão que transcende o intelecto da Grande Perfeição”. O grande
mestre Padmasambhava declarou, “O darmakaya, que transcende o intelecto, é a talidade.”
Que maravilhoso que tenhamos diretamente em nossas mãos a mente de Samantabadra! Isto é a
culminância de todas as oitenta e quatro mil coleções de ensinamentos do Jina e a essência dos
seis milhões e quatrocentos mil tantras da Grande Perfeição. Não há nem mesmo uma polega-
da para caminhar além disso. O significado absoluto de todos os Darmas deveria ser averiguado

111
desta forma.
Assim, ao eliminar completamente todas as dúvidas e conceitos errôneos internos sobre esta vi-
são, a sustentação contínua desta visão é chamada de “meditação”. Além deste estado, todas as
meditações que possuem um objeto são meditações conceituais criadas pelo intelecto, e assim,
não iremos fazer nada desta forma. Sem se desviar da firmeza desta visão, deixe todas as suas
cinco consciências sensoriais se posicionarem em seu estado natural e permaneça relaxado. Não
medite deliberadamente sobre “isto” ou “aquilo”, pois se você estiver meditando, isto é o seu
intelecto.
Portanto, não tenha nada em que meditar. Não se deixe distrair, nem por um instante. Se você
estiver distraído de sua própria natureza, esta é a verdadeira delusão, assim, não se deixe dis-
trair. Quaisquer pensamentos que surjam, deixe-os surgirem. Não os siga ou os impeça. O que
deveria ser feito? Quaisquer aparências de objetos que surjam, assim como uma criança olhando
para um templo, ao deixá-los permanecerem frescos, sem se apegar a eles, todos os fenômenos
permanecem exatamente onde estão. Seus aspectos não se deterioram, suas cores não mudam e
seu brilho não desaparece. Apesar de surgirem eles não estão contaminados por pensamentos de
desejo e apego, todas as aparências e estados de consciência se apresentam diretamente como
luminosos, vazios, consciência primordial.
De modo geral as pessoas com inteligência inferior ficam confusas com o grande número de ensi-
namentos apresentados como muito profundos e vastos. Assim, para mostrar o significado essen-
cial que emerge de todos eles, durante o intervalo de tempo quando os pensamentos passados
já cessaram e os pensamentos do futuro ainda não surgiram, não há uma consciência fresca do
presente – uma consciência clara e despida que nunca se modificou, nem por um instante? Oh, é
simplesmente esta a forma pela qual a sabedoria primordial se apresenta. Então, não permane-
cendo para sempre neste estado, repentinamente não surge um pensamento involuntário? Esta
é uma manifestação da própria sabedoria primordial. Entretanto, se você não o reconhecer tão
logo ele surja, uma série de pensamentos involuntários irá fluir, e esta cadeia de delusão é a
raiz do samsara. Simplesmente reconhecendo os pensamentos tão logo eles surjam irá liberá-los
em sua própria natureza, sem dar seguimento a eles. Ao se posicionar desta forma, quaisquer
pensamentos involuntários que surjam serão liberados espontaneamente na expansão da cons-
ciência prístina, o darmakaya. A prática principal que une a visão e a meditação do estágio do
“cortar através” (breakthrough) é apenas esta.
Prahevajra declarou:

Quando surge a sabedoria primordial, repentinamente,
Do espaço absoluto primordialmente puro –
Como encontrar uma jóia nas profundezas do oceano –
Este é o darmakaya, que não foi modificado ou criado por ninguém.
Você deveria tomar isto em seu coração e meditar sem distrações, dia e noite.

Portanto, não deixe a vacuidade permanecer como um objeto de compreensão intelectual, mas
transforme-a em sabedoria primordial.
No que se refere a como fortalecer a meditação com a conduta e ingressar no caminho da práti-
ca – acima de tudo, conforme afirmado anteriormente, sem cessar nem por um instante de ver
o seu guru como um verdadeiro buda, rezando das profundezas de seu coração, isto é chamado
de “a panacéia universal da pura devoção”. Não há nada mais efetivo para dissipar obstáculos e
fortalecer sua prática do que isto. Você irá seguir por todos os caminhos com grande energia.
           
Em relação aos obstáculos à meditação, se a indiferença e o tédio se estabelecerem, desperte
sua consciência lúcida. Quando houver dispersão e excitação relaxe sua consciência internamen-
te. Não restrinja continuamente os seus pensamentos agitados sobre si mesmo como meditante
com uma atenção mental deliberadamente forçada. Ao invés disso, com a atenção mental de
simplesmente não se esquecer de reconhecer sua própria natureza, pratique continuamente em
todos os momentos durante as atividades de comer, deitar e caminhar, tanto durante quanto

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depois das sessões de meditação. Quaisquer alegrias, tristezas, pensamentos aflitivos, e assim
por diante que surjam – sem esperança ou medo, aceitação ou rejeição – não combata quaisquer
deles com antídotos e assim por diante. Quaisquer sentimentos de alegria e tristeza que possam
se apresentar, deixe-os em sua própria natureza: nus, vívidos e claros. Para qualquer coisa que
ocorra, só há este ponto vital, portanto não se complique com um monte de idéias! Não é neces-
sário meditar separadamente sobre a vacuidade como antídoto para os pensamentos negativos e
aflições mentais. Tão logo você reconheça as negatividades com sabedoria primordial, elas irão
se liberar por si mesmas, como o desenrolar dos nós de uma cobra. É comum encontrar pessoas
que sabem como falar sobre este significado último, secreto, da essência vajra de clara luz; mas
sem saber como colocá-lo em prática, suas palavras são como a recitação de um papagaio. Nós
temos um mérito extraordinariamente grande!
           
Ainda há mais coisas a serem consideradas cuidadosamente e compreendidas. Desde vidas sem
início até agora, nossos inimigos mortais que nos aprisionaram no samsara são o apreendedor e o
objeto apreendido reificados. Devido à bondade do guru, ao sermos introduzidos ao darmakaya
que reside em nosso interior, os dois acima citados desaparecem sem deixar rastros, como uma
pena queimada no fogo. Isto não deixa seus corações alegres? Agora que você recebeu estas
orientações profundas sobre este caminho rápido, se você não as colocar em prática, isto seria
como colocar uma jóia que realiza desejos na boca de um cadáver – que perda! Pratique de for-
ma que seu coração não apodreça!
           
Os iniciantes descobrirão que sua atenção mental é levada por correntes de pensamentos nega-
tivos, resultando em alguns poucos pensamentos sutis que passam despercebidos. Depois de um
tempo, quando a presença mental retornar, o arrependimento surge com o pensamento, “Estive
distraído.” Porém, neste momento, sem fazer nada como interromper o curso dos pensamen-
tos de remorso por estar distraído, é o bastante simplesmente sustentar a corrente de atenção
mental clara que retornou, e acomodá-la naturalmente diante destes pensamentos.
Normalmente se diz que não se deveria rejeitar pensamentos, mas encará-los como darmakaya.
Entretanto, até que o poder do insight contemplativo se manifeste completamente, se você per-
manecer em uma quiescência vazia enquanto dá expressão a pensamentos sobre o darmakaya,
há o perigo de cair em uma equanimidade eticamente neutra, sem ser capaz de discernir qual-
quer coisa. Assim, nos estágios iniciais, observe fixamente quaisquer pensamentos involuntários
que surjam, sem investigá-los ou analisá-los de qualquer forma. Como um homem velho obser-
vando as crianças brincarem descanse na natureza que reconhece os pensamentos sem atribuir
qualquer importância a eles. Se você repousar desta forma irá naturalmente posicionar-se em
um estado crescente e não-conceitual de tranqüilidade; e quando este estado repentinamente
e espontaneamente implodir, neste exato momento a consciência primordial nua, brilhante, que
transcende a mente, irá surgir.
Neste caminho é inevitável que este estado esteja misturado com experiências de alegria, lumi-
nosidade, ou não-conceitualidade; mas se você não se apegar a elas como fins em si mesmas, ou
sentir qualquer traço de desejo, orgulho, esperança ou medo delas, isto irá impedir que você se
desvie do caminho. É importante que você evite distrações e medite com uma atenção mental
unifocada e vigilante. Se você cair na prática esporádica e conhecimento teórico, você se sen-
tirá especial pela sua quiescência superficial; e, sem ter esclarecido completamente suas ex-
periências, você se tornará simplesmente leviano, o que não será benéfico. A Grande Perfeição
declara, “Compreensão teórica é como um remendo, pois irá cair”, e “experiências meditativas
são como a névoa, pois elas desaparecem”. É assim que grandes meditantes se desviam devido
a pequenas circunstâncias boas ou ruins e se perdem nelas. Mesmo que a meditação penetre em
seu fluxo mental, se você não meditar continuamente as instruções profundas permanecerão em
seus livros, e sua mente, seu Darma e sua prática irão se enfraquecer, de forma que a meditação
autêntica nunca surgirá. Velhos meditantes, que ainda são noviços na prática, correm o risco de
morrer com suas cabeças incrustadas no sal, portanto eles deveriam ficar atentos!
Ao familiarizar-se com esta prática por um longo tempo, em algum momento devido à sua fer-

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vente devoção ou outras circunstâncias, as experiências se transformarão em realizações, e
você enxergará de forma nua e vívida a sabedoria primordial. Como se fosse removido um pano
de sua cabeça você se sentirá expansivo e equânime. Isto é chamado de “o ponto mais impor-
tante de ver aquilo que não era visto”. Deste momento em diante, os pensamentos surgirão
como meditação, e tranqüilidade e movimento serão liberados simultaneamente. De início,
liberar os pensamentos ao reconhecê-los é como encontrar alguém que você já conhece. Neste
momento, os pensamentos se liberam como o desenrolar dos nós de uma cobra. Finalmente,
os pensamentos são liberados sem causar qualquer bem ou mal, como um ladrão em uma casa
vazia. Estas três fases ocorrem seqüencialmente, e surge uma forte convicção de que todos os
fenômenos são criações de sua própria consciência. Você será movido por ondas de vacuidade
e compaixão, a preferência pelo samsara ou nirvana irá cessar, e você realizará a ausência de
distinções entre o que é bom e o que é mau em relação aos budas e aos seres sencientes. O que
quer que você faça sua mente nunca oscilará da alegria do estado da verdadeira realidade, as-
sim você repousará continuamente dia e noite em uma expansão aberta. Como A Grande Perfei-
ção declara, “A realização é imutável como o espaço.”
Tal iogue se manifesta em uma forma humana ordinária, mas sua mente reside na sabedoria
livre de esforços do darmakaya, permitindo que ele progrida sem ações ao longo dos níveis e
caminhos dos bodisatvas. Finalmente, sua mente e os fenômenos se extinguem, como o espaço
dentro de um pote, seu corpo se dissolve em partículas minúsculas, e sua mente se dissolve na
verdadeira realidade. Isto se chama “repousar no espaço interno luminoso absoluto da base pri-
mordial como o corpo vaso juvenil.”
Oh, esta é a culminância de visão, meditação e conduta, e é assim chamada de “realização da
fruição que não deve ser alcançada”. Além disso, os estágios das experiências meditativas e re-
alizações podem ocorrer em uma seqüência determinada, ou sem qualquer ordem determinada,
ou todos de uma vez, de acordo com as capacidades específicas dos diferentes indivíduos. Mas,
no momento da fruição, não há diferenças.

III. A Prática Pós-meditativa

Em relação à prática pós-meditativa de como manter seus compromissos e votos e como fazer
com que todas as suas atividades desta vida sejam incorporadas ao Darma, mesmo que você se
esforce nas práticas de visão, meditação e conduta, se, entretanto, não for hábil nos métodos
de prática entre sessões, seus votos e compromissos irão degenerar. Se isto acontecer, num cur-
to prazo haverá interferências e obstáculos ao progresso nos estágios e caminhos dos bodisatvas;
e, finalmente, você cairá definitivamente no inferno de Avici. Assim, é importante que, moni-
torando constantemente seu comportamento com atenção mental e introspecção, você não se
engane sobre o que deve ser seguido e o que deve ser rejeitado. Como o Grande Mestre Padma-
sambhava declarou:

Em geral, apesar de minha visão ser mais elevada do que o céu,


Minha conduta em relação às causas e seus efeitos é mais refinada do que a fari
nha de cevada.

          
Portanto, evite uma atitude casual e grosseira, e comporte-se com cuidado em termos de causa
e efeito. Mantenha seus compromissos e siga precisamente seus votos, e você não será conta-
minado pelas máculas das falhas e quebras de compromisso. Apesar de existirem muitos tipos
de compromissos do Mantra Secreto, todos eles se resumem nos compromissos do corpo, fala e
mente do guru. Diz-se que se você olhar para seu guru como uma pessoa ordinária mesmo por
um instante, isto irá atrasar a sua realização de sidis por meses e anos. Por quê? Este é um pon-
to vital, como se diz:
           
Para os portadores do vajra, diz-se que os sidis se seguem de acordo com o mestre.

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Portanto, seja você quem for, até que você aceite alguém como seu guru você estará só. Mas, a
partir do momento em que você se devotar a um guru e se conectar a ele através de iniciações
e instruções orais, então você não tem mais o direito de não manter seus compromissos. Quando
da conclusão das quatro iniciações, você se prostrou diante do guru como o principal da manda-
la e fez os votos:

De agora em diante, eu me ofereço


A você como servo.
Peço que você me aceite como discípulo,
E faça uso até mesmo da menor parte de mim.

Com este juramento, não importa quão grandioso e nobre você possa ser, você não jurou com-
prometimento com o guru? Da mesma forma, com o voto, “Para qualquer comando do mestre,
eu farei tudo que você disser” – deste momento em diante, você tem o direito de não fazer o
que ele disser? Se você não cumprir este juramento, mesmo que este não seja um rótulo agradá-
vel, você só poderá ser chamado de um “infrator de compromissos”.

Além disso, em lugar algum se diz que você deve manter seus compromissos de forma perfei-
ta com grandes gurus que possuem muitos seguidores, riqueza, poder e prosperidade, mas que
não deve fazer o mesmo com gurus menos importantes que não têm um status elevado e vivem
como mendigos. Seja como for, você deveria compreender os pontos cruciais das vantagens e
riscos de tal relação, pois não é possível ser obtuso como um velho cavalo. Portanto, considere
cuidadosamente se a necessidade de manter os votos é para o bem do guru ou para seu próprio
bem, como se você estivesse moendo substâncias medicinais. Se for para o bem do guru, você
pode deixá-los de lado hoje mesmo. Mas se não for, não há sentido em derrubar cinzas em sua
própria cabeça.
Em geral, os votos para com seus amigos espirituais consistem em olhar positivamente para to-
dos que ingressaram pela porta dos ensinamentos do Buda e de praticar a percepção pura deles.
Evite todas as tendências e críticas em relação às escolas filosóficas. Em particular, todos aque-
les que têm o mesmo guru e pertencem à mesma mandala são irmãos e amigos vajra; assim,
renuncie a atitudes como desdém, competitividade, inveja e enganos, e traga-os com carinho
em seu coração.
           
Todos os seres sencientes, sem exceção, já foram nossos queridos pais. Como é triste que eles
estejam atormentados pelas terríveis misérias do ciclo infinito da existência. Se eu não os prote-
ger, quem o fará? Incapaz de suportar este pensamento, treine sua mente no cultivo da compai-
xão. Através de seu corpo, fala e mente, faça tudo que puder para gerar benefícios, e dedique a
virtude para o benefício dos outros.
Em todos os momentos há apenas três coisas a serem consideradas: o Darma, o guru e os seres
sencientes; assim, não deixe suas intenções e ações se desviarem disto. Não compita ou entre
em conflito com aqueles que vestem as roupas e os títulos de praticantes realizados e monges;
ao contrário, guarde suas palavras para você mesmo e controle sua própria mente. Isto é da
maior importância, portanto não seja um idiota.

Se você pensa apenas sobre seu bem-estar nas suas vidas futuras, então você pertence àqueles
que devem praticar o que chamamos de “Darma”. Se você deposita suas esperanças e medos nas
virtudes que outras pessoas possam realizar por você após sua morte, então será difícil extrair
qualquer benefício delas. Portanto, volte sua mente para o interior, mantenha-a lá, e com um
sentimento profundo de renúncia mantenha-se firme aplicando a atenção mental, aspiração
e grande entusiasmo para saturar sua vida com a prática espiritual. Tome os pontos vitais da
prática principal da visão profunda e da meditação, e, entre as sessões de meditação formais
mantenha seus compromissos e comporte-se de forma a não violar o que deve e o que não deve
ser feito com relação aos seus votos. Como resultado, as qualidades virtuosas surgirão inevita-

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velmente de seu interior, pois a Grande Perfeição é um caminho para a iluminação para aqueles
que cometeram ações muito negativas.

Devido à profundidade e ao poder da Grande Perfeição ela traz consigo obstáculos, assim como
um grande lucro vem acompanhado de grande risco. Isto acontece porque todo o carma ne-
gativo acumulado no passado será desperto pelo poder destas instruções, e isso se manifesta
externamente como interferências demoníacas e aparições. No local onde você pratica deuses e
demônios podem mostrar suas formas, chamá-lo pelo nome e disfarçar-se como seu guru, fazen-
do profecias. Diversas aparições terríveis podem surgir em sua imaginação ou em seus sonhos,
e na verdade é bastante possível que você possa estar sujeito a surras, roubos, doenças e assim
por diante. Psicologicamente você pode inexplicavelmente experimentar uma forte sensação de
tristeza e miséria que irão fazê-lo querer chorar. Você pode experimentar fortes aflições men-
tais, e seu senso de devoção, bodicita e compaixão podem declinar. Pensamentos involuntários
podem surgir como seus inimigos, quase enlouquecendo-o. Palavras benéficas podem ser mal in-
terpretadas e, perdendo o desejo de permanecer em retiro, você pode sentir que está abando-
nando seus votos. Você pode experimentar visões falsas sobre seu guru, dúvidas sobre o Darma,
e assim por diante. Além disso, você pode sofrer acusações falsas e ter uma má reputação, seus
amigos podem se tornar inimigos e assim por diante. Diversas circunstâncias externas e internas
indesejáveis podem também surgir.

Oh, estas são indicações de erupções, e assim, reconheça-as! Esta é a demarcação entre van-
tagem e perigo. Se você abraçar estes obstáculos através dos pontos críticos da prática, eles
se transformarão em sidis. Se você cair sob sua influência eles se tornarão impedimentos. Com
a pureza dos votos e com devoção e coração invariáveis confie seu coração e sua mente ao seu
guru, e reze sinceramente para ele com confiança no que quer que ele possa fazer. Ao enfrentar
circunstâncias desfavoráveis como algo desejável, e ao esforçar-se diligentemente em sua prá-
tica, finalmente a realidade substancial destas circunstâncias se dissolverá naturalmente, e elas
fortalecerão sua prática. As aparições desaparecerão como névoa e você terá uma confiança
ainda maior em seu guru e em sua orientação do que antes. De agora em diante você encontrará
a fortaleza para aceitar tais erupções de forma imperturbável. Oh, esta é uma indicação de que
elas estão chegando ao fim, pois ao transformar tais circunstâncias em caminho as condições
para seu fim são geradas. A la la, é isto que nós, velhos pais, desejamos! Desenvolva coragem
e não aja como um chacal que se aproxima de um cadáver humano, desejando devorá-lo, mas
com os quadris tremendo de medo.

Aqueles que possuem pouco mérito, compromissos e votos frouxos, visões obviamente falsas,
uma hoste de dúvidas, e que fazem grandes promessas, mas cuja prática é fraca – tais pessoas,
com corações que cheiram como flatulência – estes solicitam instruções de seus gurus apenas
para deixá-las em suas estantes. Ao fixarem-se em condições desfavoráveis, e então ruminá-las,
eles são facilmente desviados pelos maras, que os levam pelos caminhos para os estados miserá-
veis de existência. Que tristeza! Reze para seu guru que isso não aconteça.
Apesar de ser relativamente fácil que circunstâncias desfavoráveis surjam como caminho, é
muito difícil que condições favoráveis o façam. Mesmo que você se orgulhe de seu alto nível de
realização, se você devotar-se a alcançar um status elevado nesta vida você corre o perigo de
se tornar um servo do mara das distrações Devaputra, assim seja muito cuidadoso. Entenda que
este é o teste que determina se os grandes meditantes vão adiante ou caem. Até que o poder
das qualidades de suas realizações internas esteja aperfeiçoado é inadequado contar a todos
que quiserem ouvir sobre suas experiências meditativas, portanto fique quieto. Além disso, sem
se vangloriar sobre os muitos meses ou anos que você passou em retiro, devote-se à prática por
toda a sua vida. Não se engane com sua conversa sobre a vacuidade de modo que você possa
deixar de lado a importância das ações virtuosas no contexto convencional de causa e efeito.

Não permaneça em lugares muito povoados para conseguir provisões através da realização de

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rituais para subjugar demônios e assim por diante. Reduza as atividades sem objetivo, conversa
desnecessária, e pensamentos inúteis ao mínimo. Não engane os outros com ações incompatí-
veis com o Darma, tais como fingimento e fraude. Não se envolva com modos de vida incorretos
fazendo pedidos indiretos, bajulação, e assim por diante, devido à necessidade de coisas dese-
jáveis. Não siga a companhia de amigos não-virtuosos, cujas visões e condutas são incompatíveis
com a sua, revele suas próprias falhas e não fale sobre as falhas ocultas dos outros. Todos os
tipos de fumo são como armadilhas de demônios perjuros, assim evite-os sinceramente. Apesar
de o álcool ser usado como uma substância de compromisso, não o beba tolamente até o ponto
de intoxicação. Sem fazer discriminações, tome todos com os quais você tem boas ou más rela-
ções no caminho – incluindo aqueles que o servem fielmente assim como aqueles que desconfiam
de você, que o ofendem ou que o tratam mal – e cuide de todos com preces puras.

Em todos os momentos mantenha internamente seu ânimo elevado, sem se deixar abater, e
externamente mantenha as suas ações sem alarde. Vista roupas muito velhas. Estime todos os
seres, incluindo os bons, os maus e os medíocres. Viva frugalmente e mantenha-se em eremi-
térios nas montanhas. Tenha como seu ideal a vida de um mendigo. Siga as histórias dos sidas
do passado. Sem culpar seu carma passado pratique o Darma de forma tão pura quanto puder.
Sem culpar circunstâncias temporárias permaneça firme diante do que quer que se apresente.
Em resumo, com sua mente como testemunha, una sua vida com o Darma, de forma que quando
você morrer você não deixe nada sem fazer e não tenha vergonha de si mesmo. O ponto vital de
todas as práticas se encontra aqui.

Quando chegar o momento de sua morte renuncie a todas as posses mundanas, sem se apegar
nem mesmo a uma agulha. Diante da morte, os melhores praticantes sentem-se exultantes, os
medianos não têm medo da morte, e os piores não têm arrependimento, mesmo que estejam
morrendo. Se a clara luz da realização brilhar continuamente, dia e noite, você não passará pelo
estado intermediário, e apenas seu corpo sera destruído. Por outro lado, se você tiver confiança
de que será liberado no estado intermediário, o que quer que faça estará bem. Se não, tendo
ganho alguma experiência no treinamento de transferência de consciência, coloque-o em práti-
ca quando chegar o momento, e transfira sua consciência para o campo búdico de sua escolha.
Lá, você irá avançar ao longo dos bhumis e caminhos dos bodisatvas e alcançará a iluminação.

Esta nossa preciosa linhagem não é apenas uma velha história do passado, pois mesmo hoje exis-
tem aqueles que atingem o mais elevado estado de realização seguindo o caminho do “cortar
através” e do “saltar diretamente”; e seus corpos materiais se dissolvem em uma massa de luz
de arco-íris.
Não jogue fora esta jóia e procure uma jóia menor. Você é extremamente afortunado por ter
encontrado tais instruções práticas, que são como o sangue do coração das dakinis. Mantenha
seu ânimo elevado e medite com alegria! Discípulos, cuidem deste texto como a jóia de seus
corações, e grandes benefícios surgirão.

Tendo como causa primária a prática de retiros na montanha dos meditantes de Ogmin Pema Öling, e como causa
secundária o pedido do praticante diligente Rigzang Dorje, que possui a jóia da fé inabalável e da devoção, isto foi
dito por Jigdral Yeshe Dorje, como orientações diretas do coração para a prática. Possa isto ser a causa da podero-
sa emergência da consciência primordial da realização nos fluxos mentais dos seres afortunados!

117
Ati: A Essência mais Íntima
Jigme Lingpa

[Junto com o Mahamudra, o Ati é considerado pelos budistas tibetanos o ensinanento supremo,
a culminação do caminho espiritual. Este “yana imperial”, conhecido no Tibete como dzogchen,
“a grande perfeição”, foi levado para o Tibete no século VIII por dois grandes mestres indianos,
o Siddha Padmasambhava e o pandita Vimalamitra. No século XIV os múltiplos aspectos e níveis
da doutrina do Ati foram reformulados por Longchen Rabjam, cuja percepção se dizia igualar-
se à de Buda. O grande vidhyadhara (‘detentor da visão’) Jigme Lingpa (1730-1798) foi a figura
principal da linhagem Ati destes últimos séculos. Ele teve três visões nas quais recebeu a trans-
missão do Ati diretamente do próprio Longchen Rabjam. Depois disso escreveu muitos comen-
tários dos principais textos de Longchen Rabjam, nos quais condensou e tornou a sistematizar a
tradição do Ati, dando-lhe a forma que tem hoje.

Na visão do Ati tudo é completo e impecável como está. Tudo que acontece é demonstração da
mente de sabedoria primordial e não se separa dela. Essa percepção primordial é o terreno de
onde surgem tanto a confusão quanto o esclarecimento e no qual ambos se desvanecem.
A natureza dessa percepção é o vazio profundo e brilhante e é ainda mais fundamental do que
a condição de Buda, tendo em vista que não tem propensão nem mesmo para a iluminação.
Ati é considerado o “veículo sem esforço”, porque o que a mente faz naturalmente (desde que
não seja desviada para nenhuma particularidade) reside na visão profunda do Ati, que não é
diferente da iluminação propriamente dita. Mas o leitor não deve pensar que isso significa que
o caminho espiritual, com todas as suas disciplinas, é supérfluo, e que basta descansar e ficar
esperando pela iluminação. A inércia do Ati é um exercício perfeito de simplicidade, de ver
constantemente dentro das complexidades da mente a essência da própria percepção, radiante
e desvinculada. No trecho introdutório curto que apresentamos abaixo, Jigme Lingpa nos dá
uma impressão vigorosa do Ati, aqui chamado Maha-Ati (‘Grande Ati’), além de indicar algumas
das inúmeras ciladas que o cercam.]

ESTE É O RUGIDO DO LEÃO que domina as extravagantes confusões e equívocos dos meditado-
res que abandonaram os vínculos materialistas para meditar na Essência Mais Íntima.
O Maha-Ati está além das concepções e transcende tanto apego quanto desapego; é a própria
essência da visão intuitiva transcendental. Este é o estado imutável de ausência de meditação,
no qual existe atenção, mas não existe apego. Entendendo isto, presto uma homenagem eterna
ao Maha-Ati, com grande simplicidade:
“Aqui está a essência profunda do tantra do Maha-Ati, O núcleo mais profundo dos ensinamentos
de Padmakara a força vital das dakinis.
É o ensinamento supremo dos nove veículos. Só pode ser transmitido por um guru da linhagem
da mente, e não através de meras palavras.
Apesar disso, escrevi isto em proveito dos grandes meditadores que devotam-se ao ensinamento
supremo.

Este ensinamento foi retirado do tesouro do Dharmadhatu e não surge de apego a teorias e abs-
trações filosóficas.”
Primeiro o discípulo tem de encontrar um guru completo com o qual teve uma boa ligação cár-
mica. O mestre precisa ser detentor da transmissão da linhagem da mente. O discípulo precisa
ter devoção e fé sinceras, que possibilitam a transmissão do mestre.
O Maha-Ati é da maior simplicidade. É o que é. Não consegue ser demonstrado por analogia;
nada pode obstruí-lo. Não tem limitação e transcende todos os extremos. É a realidade nítida,
que não muda de forma ou coloração. Quando nos identificamos com este estado, até o desejo
de meditar se dissolve; somos libertados das cadeias de meditação e das filosofias e teorias de
mundo e surge em nosso íntimo plena convicção. O pensador desertou. Já não existe nenhuma
vantagem a ser adquirida com pensamentos ‘bons’, nem nenhum prejuízo a sofrer com pensa-

118
mentos ‘maus’. Os pensamentos neutros já não nos conseguem enganar. Nos unificamos com o
insight transcendental e com o espaço infinito. Então encontramos sinais de progresso no cami-
nho. Já não existe questão alguma de confusões ou equívocos acontecendo ao redor.
Esse ensinamento é o rei dos yanas, mas podemos classificar seus meditadores; há os que são
muito receptivos a ele, os que são menos receptivos e os que a ele são avessos. Os discípulos
mais receptivos são difíceis de encontrar e às vezes acontece do aluno e o mestre não serem
capazes de manter um verdadeiro ponto de encontro. Neste caso, nada se concretiza e podem
surgir equívocos no que se refere à natureza do Maha-Ati.
Os menos receptivos começam estudando a teoria e gradualmente desenvolvem a sensibilidade
e o verdadeiro entendimento. Hoje em dia muitas pessoas consideram a teoria como se fosse
a meditação. A meditação dessas pessoas pode ser clara e desprovida de pensamentos e talvez
seja relaxante e agradável, mas é apenas a vivência temporária do êxtase. Estas pessoas acre-
ditam que isso é meditação e que ninguém sabe mais do que elas, e pensam: “Cheguei a este
entendimento” e ficam orgulhosas de si mesmas. Assim, se não há nenhum mestre competente,
o que vivenciam é apenas teórico. Como é dito nos textos do Maha-Ati, “a teoria é como um
remendo num casaco: um dia vai cair”. Geralmente as pessoas procuram fazer distinção entre
‘bons’ e ‘maus’ pensamentos, como se tentassem separar leite de água. É bastante difícil acei-
tar as experiências negativas da vida, mas ainda mais difícil é encarar as experiências positivas
como parte do caminho. Até as pessoas que afirmam ter chegado ao estágio mais elevado de
realização estão completamente envolvidas com a fama e com preocupações mundanas. São
atacadas pelo devaputra, a força maligna que provoca a atração para os objetos dos sentidos.
Isso significa que ainda não realizaram a liberação do Eu dos seis sentidos. Essas pessoas consi-
deram a fama uma coisa muito extraordinária e miraculosa. Isso é como afirmar que um corvo
é branco. Mas aquele que se dedica inteiramente à prática do Dharma sem se preocupar com a
fama e com a glória mundanas não deve ficar satisfeito demais consigo mesmo por ter chegado
a um certo desenvolvimento na meditação. Deve praticar a ioga do guru nos quatro períodos do
dia a fim de receber as bênçãos do guru e fundir a própria mente com a dele, abrindo o olho do
discernimento. Tendo passado por essa experiência, não convém descartá-la. Daí por diante o
iogue deve, ele próprio, se dedicar a essa prática com perseverança infatigável. Subseqüente-
mente ele sentirá o vazio de forma mais tranqüila ou vivenciará uma clareza e discernimento
maiores. Ou ainda, talvez comece a perceber os defeitos dos pensamentos discursivos e com isso
desenvolver a sabedoria da discriminação. Alguns indivíduos são capazes de usar tanto os pen-
samentos como a ausência de pensamentos como meditação, mas é preciso ter em mente que o
que percebe o que está acontecendo é sempre o pulso firme do ego.
Cuidado com o obstáculo sutil que é tentar analisar o que vivenciamos. Isso é um grande peri-
go. É muito cedo para colocar o rótulo de dharmakaya em todos os pensamentos. O remédio é a
sabedoria atemporal, que é imutável e infalível. Uma vez libertado da servidão da especulação
filosófica, o meditador desenvolve uma consciência penetrante em sua prática. Se analisar o
que vivenciou na meditação e na pós-meditação, perde-se e comete muitos erros. Se deixar de
entender essas deficiências, nunca conseguirá atingir o estado desperto atemporal, que está
além de qualquer conceitualização desse ou de outro tipo. Terá apenas uma visão conceitual e
niilista de vazio, que é a característica dos yanas menos importantes.
Também é um erro considerar o vazio uma miragem, como se fosse apenas uma combinação de
percepções vívidas com o nada. Isso é que vivenciamos com os tantras menos importantes, o
que poderia ser induzido pela prática do mantra svobhava. E é um erro também, analogamente,
tento aquietado os pensamentos discursivos, descuidar da lucidez e considerar a mente apenas
um espaço em branco. Vivenciar o verdadeiro insight é perceber simultaneamente a quietude e
os pensamentos ativos. Segundo o ensinamento do Maha-Ati, a meditação consiste em ver tudo o
que surge na mente, seja o que for, e simplesmente permanecer no estado desperto atemporal.
Permanecer neste estado após a meditação chama-se “experiência pós-meditativa”.
É um erro tentar concentrar-se no vazio e depois de meditar considerar intelectualmente tudo
como uma miragem. Insight primordial é o estado que não é influenciado pela vegetação ras-
teira dos pensamentos, por assim dizer. É um erro permanecer prevenido contra a mente que

119
divaga, bem como tentar aprisionar a mente na prática ascética de suprimir pensamentos.
Talvez algumas pessoas interpretem mal a palavra “atemporal” e suponham que se refere a
todo e qualquer pensamento que esteja na mente no momento. É preciso entender “atemporal”
como o discernimento primordial que já descrevemos.
O estado de ausência de meditação nasce no coração quando já não se distingue mais meditação
de ausência de meditação e não se sente mais necessidade de mudar ou prolongar o estado de
meditação. Há uma alegria que invade tudo e está isenta de todo tipo de dúvidas. Isso é muito
diferente da mera alegria dos prazeres sensuais e da mera felicidade.
Quando falamos em ‘lucidez’ ou ‘claridade’ estamos nos referindo ao estado isento de indolên-
cia ou lentidão. Essa claridade é inseparável da energia pura e brilha desimpedida. É um erro
igualar claridade com percepção de pensamentos e com as cores e formas dos fenômenos exter-
nos.
Quando os pensamentos estão ausentes, o meditar está imerso no espaço do chamado ‘não
pensamento’, que é a ausência de pensamentos. Ausência de pensamentos não significa incons-
ciência, nem sono, nem recuo dos sentidos; significa simplesmente não se deixar influenciar
pelo conflito. Os três sinais de meditação (claridade, alegria e ausência de pensamentos) podem
ocorrer naturalmente quando se está meditando, mas se o meditador fizer algum esforço para
criá-los, permanece na experiência cíclica do samsara.
Existem quatro visões errôneas do vazio. É um erro imaginar que o vazio seja meramente a
ausência de conteúdos sem perceber o amplo espaço da atemporalidade. É um erro buscar a
natureza de Buda em fontes externas sem perceber que a atemporalidade não conhece nenhum
caminho e nenhum resultado. É um erro tentar introduzir algum remédio para os pensamentos
sem perceber que os pensamentos são vazios por natureza e que sempre é possível libertar-se,
como uma cobra se desenrolando. Também é um erro manter uma visão niilista dizendo que não
há mais nada senão o vácuo, nenhuma causa e efeito do carma e nenhum meditador nem medi-
tação, e ao mesmo tempo deixando de vivenciar o vazio além das concepções. Quem já obteve
lampejos de percepção deve conhecer estes perigos e precisa entendê-los detalhadamente. É
fácil teorizar e falar com eloqüência a respeito do vazio, mas o meditador pode ainda não ser
capaz de lidar com certas situações. Um texto do Maha-Ati diz, “A percepção temporária é como
uma névoa que com certeza desaparecerá”. Os meditadores que não estudam esses perigos
jamais obtém coisa alguma ao fazer um retiro rigoroso, ou refrear a mente à força, ao fazer
visualizações, ao recitar mantras ou praticar hatha ioga. Como está dito no Phagpa Düdpa Sutra,
“O bodisatva que não conhece o verdadeiro significado da solidão, mesmo que medite durante
muitos anos num vale remoto cheio de cobras venenosas, a mil quilômetros da habitação mais
próxima, desenvolverá um orgulho arrogante”.

Se o meditador é capaz de usar como caminho tudo que lhe acontece na vida, seja o que for,
seu corpo passa a ser uma cabana de retiro. Ele não precisa aumentar o número de anos que
passou meditando e não entra em pânico quando surgem pensamentos ‘chocantes’. Sua consci-
ência continua firme como a de um velho observando uma criança brincar. Como diz um texto do
Maha-Ati, “a realização absoluta é como o espaço imutável”.
O iogue do Maha-Ati pode parecer uma pessoa comum, mas sempre mantém sua atenção no
estado desperto atemporal. Não tem necessidade de livros porque encara os fenômenos aparen-
tes e toda a existência como se fossem a mandala do guru. Para ele não existe especulação em
relação aos estágios do caminho. Seus atos são espontâneos, por isso beneficiam todos os seres
sencientes. Quando seu corpo morre, sua consciência se identifica com o dharmakaya do mesmo
modo que o ar dentro de um vaso se funde com o ambiente quando o vaso quebra.

120
Jóia-Coração dos Afortunados, Introdução ao Dzogchen, a Grande Perfeição
Dudjom Rinpoche

Homenagem a meu professor!


O Grande Mestre de Oddiyana disse certa vez:
Não investigue a raiz das coisas,
Investigue a raiz da Mente!
Quando a raiz da mente for encontrada,
Conhecerás uma coisa apenas,
ainda assim todas as outras serão liberadas.
Mas caso falhares em encontrar a raiz da Mente,
Conhecerás tudo mas não compreenderás nada.

Quando começares a meditar sobre a mente, senta com o corpo reto, permitindo que a respira-
ção venha e vá naturalmente, e com os olhos nem fechados nem muito abertos, olha no espaço
a tua frente. Pensa contigo que é pelo bem de todos os seres que foram tuas mães que observa-
rás o Estado Desperto, a face de Samantabhadra. Reza fortemente a teu professor raiz insepará-
vel de Padmasambhava, o Guru de Oddiyana, e mescla tua mente com a dele, repousando num
estado meditativo equilibrado.

Uma vez tendo assim repousado, porém, não permanecerás por muito tempo neste estado des-
perto vazio e claro. Tua mente começará a movimentar-se e tornar-se-á agitada. Ela vai pular
e correr para cá, para lá e por todos os lados, como um macaco. O que estarás experimentando
neste momento não é a natureza da mente, mas apenas pensamentos. Se ficares com eles e
seguí-los, descobrir-te-ás lembrando todo tipo de coisas, pensando sobre todo tipo de necessi-
dades, planejando todo tipo de atividades. É precisamente este tipo de atividade mental que no
passado sugou-te para o negro oceano do samsara. E não há dúvida que fará o mesmo no futuro.
Seria melhor que pudesses cortar completamente esta interminável ilusão negra de teus pensa-
mentos!

Agora, suponhamos que tenhas sido capaz de quebrar tua cadeia de pensamentos, como é o
estado desperto? É vazio, límpido, belíssimo, leve, livre, alegre! Não é algo amarrado ou demar-
cado pelos próprios atributos. Não há nada em todo o samsara ou nirvana que ele não abarque.
Dos tempos sem princípio, nos é inato; nunca estivemos sem ele, ainda assim está completa-
mente além dos limites de ação, esforço e imaginação.

Mas como é, perguntas, reconhecer o estado desperto, a face de rigpa? Bem, apesar de poderes
experimentá-la, simplesmente não conseguirias descrevê-la. Seria como um mudo tentando
descrever seus sonhos! É impossível distinguir entre ti mesmo repousando no estado desperto e
o estado desperto que estás experimentando. Quando repousas bem naturalmente, desnudo, no
ilimitado estado desperto, todos estes pensamentos rápidos, persistentes, que não ficam quietos
sequer por um instante – todas estas memórias, todos estes planos que causam tantos problemas
– perdem seu poder. Desaparecem no amplo céu sem nuvens do estado desperto. Despedaçam-
se, destroem-se, desaparecem. Toda a força que têm é perdida no estado desperto.

Tens de fato este estado desperto em ti. É a sabedoria límpida, desnuda, do dharmakaya. Mas
quem pode apresentar-te a ela? A partir de onde a perceberia? Do que deverias ter certeza? Para
começar, é teu professor que te revela o estado desperto. E quando o reconheces por ti mes-
mo, é que és apresentado a tua própria natureza. Então, com a compreensão de que todas as
aparências tanto do samsara quanto do nirvana são apenas a manifestação do teu próprio esta-
do desperto, permaneça apenas no estado desperto. Assim como as ondas que sobem do mar e
então retornam a ele, todos os pensamentos retornam para o estado desperto. Esteja certo de
sua dissolução, e como resultado encontrar-te-ás num estado profundamente destituído tanto

121
de meditador quanto de algo a ser meditado – completamente além da mente que medita.

“Ah, nesse caso,” poderias pensar, “não há necessidade de meditar.” Bem, posso assegurar-te
que de fato há uma necessidade! O mero reconhecimento do estado desperto não o liberta-
rá. Por vidas desde os tempos sem princípio tens estado envolvido em crenças falsas e hábitos
deludidos. Desde então até agora passou cada instante da tua vida como o escravo miserável e
patético de teus pensamentos! E quando morreres, não é nem um pouco certo para onde irás.
Seguirás teu carma, e terás que sofrer. Esta é a razão pela qual tens que meditar, continuamen-
te preservando o estado desperto a que fostes apresentado. O onisciente Longchenpa disse:
“Podes reconhecer tua própria natureza, mas se não meditares e acostumar-te a ela, serás como
um bebê abandonado no campo de batalha: serás carregado pelo inimigo, teus próprios pensa-
mentos!” Em termos gerais, meditar significa familiarizar-se com o estado de repousar na natu-
reza ilimitada primordial, através de estar espontaneamente, naturalmente, incessantemente
presente. Significa acostumar-se a deixar o estado desperto completamente só, despido de toda
a distração e apego.

Agora, como nos acostumamos a permanecer na natureza da mente? Quando os pensamentos


vierem enquanto estiveres meditando, deixe-os vir; não há necessidade de considerá-los teus
inimigos. Quando surgirem, relaxe no seu surgimento. Por outro lado, se não surgirem, não fique
nervosamente divagando se surgirão. Apenas repouse em sua ausência. Se, durante a medita-
ção, grandes e bem-definidos pensamentos repentinamente surgirem, é fácil reconhecê-los. Mas
quando suaves movimentos sutis ocorrem, é difícil perceber que estão ali até que seja tarde
demais. Isto é o que chamamos namtok wogyu, as correntes sutis de divagação mental. Este é o
ladrão da meditação, portanto é importante manter uma vigilância cuidadosa. Se consegues per-
manecer constantemente presente, tanto na meditação quanto depois, quando estás comendo,
dormindo, caminhando ou sentado, então é isto; conseguistes!

O Grande Mestre Guru Rinpoche disse:


Centenas de coisas podem ser explicadas, milhares descritas
Mas uma coisa apenas deverias reconhecer.
Conhece esta única coisa e tudo é liberado -
Permanece na tua natureza intrínseca. Estejas presente!

Também diz-se que se não meditares, não atingirás a certeza; se meditares, a atingirás. Mas que
tipo de certeza? Se meditares com um esforço cheio de júbilo, sinais aparecerão revelando que
acostumaras-te a permanecer em tua natureza. Aquele violento apego claustrofóbico que tens
aos fenômenos, experimentados de forma dualista, gradualmente se soltará, e tua obsessão com
a felicidade e o sofrimento, medos e esperanças, etc. vagarosamente enfraquecerão. Tua de-
voção ao professor e uma confiança sincera em suas instruções crescerão. Depois de um tempo,
tuas atitudes tensas e dualistas evaporarão e chegarás ao ponto onde ouro e pedras, comida e
nojeira, deuses e demônios, virtude e não-virtude serão para ti a mesma coisa – não saberás dis-
tinguir entre o céu e o inferno! Mas enquanto isto, até que alcances este ponto (enquanto ainda
estiveres preso nas experiências da percepção dualista), a virtude e a não-virtude, os campos-
de-budas e os infernos, a felicidade e a dor, as ações e seus resultados – tudo isto será realidade
para ti. Como o Grande Guru disse, “Minha visão é mais elevada do que o céu, mas minha aten-
ção às ações e seus resultados é mais fina do que a farinha.”

Então não saias por aí dizendo que és um meditante Dzogchen enquanto não passas de um pana-
ca arrotador e peidorreiro!

É essencial que tenhas uma fundação estável de devoção pura e samaya, juntamente com um
forte esforço jubiloso que seja bem equilibrado, nem muito solto nem muito tenso. Se és capaz
de meditar, completamente abandonando as atividades e preocupações desta vida, é certo que

122
atingirás as qualidades extraordinárias do caminho profundo do Dzogchen. Porque esperar as
vidas futuras? Podes conquistar a cidadela primordial agora mesmo, no presente.

Este conselho é o próprio sangue do meu coração. Mantenha-o bem e nunca o esqueça!

123
Iluminação da Sabedoria Primordial
Comentário Oral do Venerável Gyatrul Rinpoche
ao texto raiz de S.S. Dudjom Rinpoche

Introdução

O tema que estamos começando a discutir concerne a uma combinação de tópicos que é muito
rara. Os tópicos são a união de mahamudra e mahasandhi quando aplicadas à prática conhecida
como meditação shamatha ou quiescência. Estas instruções piedosas foram condensadas em um
manual que foi escrito por S.S. Dudjom Rinpoche, um dos maiores eruditos budistas de todos os
tempos. Devido a sua grande erudição, ele teve a habilidade única de condensar este tipo de
material em instruções práticas, abrangentes e curtas, que são tão diretas quanto profundas.
Parece apropriado oferecer este ensinamento a vocês, neste momento, e, por favor, compreen-
dam de que se trata de algo muito precioso e raro.
Apesar deste tema ser a essência do pináculo do caminho budista, é importante entender que
precisa ser precedido por uma base. Você não pode esperar atingir algo tão profundo se não
tiver uma base ou uma fundação. É necessário que haja um caminho de entrada antes de você
poder penetrar em uma construção; antes de chegar ou ponto mais elevado você terá que pisar
sobre os degraus precedentes.

A Fundação

Um dos pontos principais de contemplação ao estabelecer a fundação é a consideração da nossa


condição enquanto seres sensoriais existindo em uma roda de nascimento e morte. Este estado
de existência cíclica que vocês estão enquanto seres humanos é apenas uma das seis classes de
existência. Apesar de serem incapazes de perceber os reinos mais elevados dos deuses, vocês
podem ver o reino dos animais como uma parte integrante de nosso próprio reino humano. Vocês
podem ver claramente como os animais passam por sofrimentos devido à suas várias limitações e
ao tratamento que lhe é imposto pelos seres humanos. Os seres humanos em conjunto têm que
suportar os quatro grandes rios de nascimento, doença, envelhecimento e morte. Talvez seja
mesmo difícil acreditar em outros âmbitos de existência. Enquanto budistas, devemos confiar
nas palavras do Iluminado, o próprio Senhor Buda, que, tendo por base seu próprio despertar,
proferiu seu primeiro discurso sobre o tema das quatro nobres verdades baseado em sua própria
experiência e sabedoria onisciente. Uma vez que a condição da existência cíclica é por natureza
a do sofrimento, em qualquer dos seis reinos em que vocês nasçam, inevitavelmente experimen-
tarão sofrimento em lugar de felicidade.
Os diferentes estados de renascimento e circunstâncias que os seres nas seis classes experimen-
tam são totalmente dependentes das acumulações cármicas, a lei infalível de causa e efeito.
As ações do passado produzem como resultado a definição do futuro local de renascimento e
as circunstâncias associadas a ele. Falando de modo geral, a causa do renascimento nos dois
reinos dos deuses é a acumulação de carma negativo motivado por orgulho, arrogância, inveja,
ou agressão. Por causa disso, circunstâncias do renascimento são a guerra constante, competi-
tividade e, no caso dos deuses de longa vida, uma vida cheia de felicidades e prazeres até que
o carma seja exaurido. Sete dias antes dos deuses passarem deste âmbito, eles percebem seu
futuro local de renascimento, nos reinos inferiores. Neste momento eles já não têm mais poder
para reverter seu carma porque o seu tempo como deuses terminou e um novo mérito não foi
acumulado. À medida em que tudo a sua volta começa a murchar e morrer, eles sofrem tremen-
damente porque consumiram todo seu bom carma ao ponto de não terem o suficiente para tal
tipo de renascimento novamente. Como seres humanos, vocês sofrem no momento do nascimen-
to, quando estão doentes, quando envelhecem e, é claro, no momen­to da morte. Os animais
sofrem agressões e maus tratos e das necessidades para sua sobrevivência. Os espíritos famintos
sofrem intensa sede e fome, os seres dos infernos de intenso calor e frio.
Entre os seres dessas seis classes de renascimento, aqueles no âmbito humano experenciam a

124
menor quantidade de sofrimento. Entretanto, os seres humanos, para realmente serem capazes
de praticar o Darma, precisam nascer com liberdades e dotes. Apenas possuir um corpo humano
não é suficiente, você precisa de um nascimento humano precioso. Você precisa ter os dotes e
liberdades, tais como os seus sentidos intactos e o nascimento em um país onde você possa ouvir
o Darma, onde possa realmente praticar, onde possa encontrar com professores espirituais com-
passivos, e assim por diante. É essencial que você tenha estas liberdades; de outra forma não
surgirá a oportunidade para atingir a liberação da existência cíclica.
Com essas liberdades e dotes, vocês estão em uma posição de atingir a liberdade ou a felicidade
permanente e derradeira neste mesmo corpo, nesta mesma vida. Por outro lado, se você usar de
forma incorreta tal oportunidade, por meio deste mesmo corpo você pode acumular carma que
produza o resultado do renascimento inferior.

Como é então que vocês devem seguir o caminho para a liberdade final? Deve ser feito de acor-
do com o exemplo que o Buda Sakiamuni deu a vocês. Reconhecendo sua preciosa oportunidade,
este renascimento humano precioso tão difícil de obter, vocês então seguem o caminho como
a primeira prioridade em suas vidas e atingem o resultado que desejam realizar. Desta forma
vocês se tornam como os grandes bodisatvas ou mestres realizados, sejam homens ou mulhe-
res, a quem vocês admiram. De fato, eles não são diferentes de você. A oportunidade que vocês
têm neste exato momento é a mesma oportunidade que eles tiveram. A diferença é que eles
praticaram o pleno potencial de sua oportunidade até atingirem a meta final. Vocês não devem
se ver como diferentes dos maiores mestres ou bodisatvas do passado. Não há de fato qualquer
diferença. Eles foram seres humanos com um renascimento precioso exatamente como vocês.
Contemplar o sofrimento da existência cíclica e o renascimento humano precioso que é tão difí-
cil de obter inspira a vocês para usufruírem esta rara e preciosa oportunidade, ainda que seja a
contemplação da impermanência que verdadeiramente os motive para começar imediatamente
a praticar.

Uma vez que vocês não podem garantir quão longa será sua vida, vocês não têm ideia de por
quanto tempo este nascimento humano precioso será seu. Devido ao fato de que seus nascimen-
tos na existência cíclica resultam de sua acumulação cármica, vocês começam a compreender
que realizando este potencial, devem utilizá-lo imediatamente. Vocês também começam a
compreender que é extremamente difícil sair de samsara sem alguém que os guie. Até este mo-
mento vocês não tiveram sucesso em atingir a liberação sem um guia. É muito importante que
encontrem um professor espiritual que seja qualificado e tenha o desejo de ajudá-los a atingir a
liberdade.

De acordo com o budismo, o melhor guia espiritual é o Buda como o professor, o Darma como
o caminho, e a Sanga como os melhores companheiros espirituais para ajudá-los a percorrer o
caminho. To­das as escolas de budismo tomam refúgio na Três Jóias como as fontes externas de
refúgio. À me­di­da em que vocês vão mais profundamente no caminho, o refúgio se torna mais
interno. De acordo com as escolas Hinaiana e Mahaiana, o refúgio é sempre tomado no Buda,
Darma e Sanga. Quando você entra no Vajraiana, ou mantra secreto, ainda que o refúgio seja
tomado no Buda, Darma e Sanga, de acordo com o nível de entendimento da prática, o refúgio
é também tomado no Lama (professor es­pi­ri­tual), no Yidam (deidade de meditação) e na Dakini
(princípio feminino de consciência iluminada).

À medida em que a compreensão desse refúgio interno se aprofunda (de acordo com a prática
de Maha Yoga), o refúgio é então tomado em nossos canais, energias vitais e fluídos essenciais
(de acordo com o tantra mãe Anu Yoga). À medida em que este processo se aprofunda e se torna
mais interno (de acordo com Ati Yoga ou o veículo da Grande Perfeição), o refúgio é tomado di-
retamente em sua essência da mente, que é vazia; em sua natureza que é radiantemente lumi-
nosa; e em sua qualidade, que é compassiva sem qualquer obstrução.
Porque estes diferentes aspectos de tomar refúgio são necessários? Porque trata-se de um de-

125
senvolvimento que se dá naturalmente. À medida em que a visão de nossa própria natureza
como um buda se aprofunda, nossas qualidades mais internas surgem espontaneamente, como
uma criança que cresce. Quando você entra no caminho espiritual, no início seu foco é mais ex-
terno. Isto é natural porque enquanto iniciantes vocês devem se relacionar desta forma.

Gradualmente, quando começam a aprofundar, o foco torna-se mais interno e menos ênfase é
colocada nos objetos que existem fora de nós. Inicialmente, os objetos são nossos guias e então,
lentamente, lentamente vocês começam a ver que, de fato, é nossa natureza verdadeira o nosso
guia. No início você deseja emular seus guias, mas eventualmente você reconhece que, de fato,
é sua própria natureza. Passo a passo seu foco move-se do externo ao interno à medida em que
passa a entender que as Três Jóias são os canais, energias e fluídos, e, similarmente, os canais,
energias e fluídos são a manifestação da essência, natureza e qualidades da mente.

Muitas vezes a religião budista é vista como um caminho de adoração de ídolos por causa do
estilo forte da expressão externa das fontes de refúgio. Tal devoção é necessária enquanto
houver a consciência dual. Devido ao nosso hábito de dualidade e apego, é necessário cultuar
ou venerar nossos objetos de refúgio como externos a nós mesmos. Particularmente, nas escolas
budistas inferiores, é essencial. Por exemplo, enquanto um feto, durante nove meses no ventre,
você está totalmente dependente de sua mãe e após nascer está ainda dependente de sua mãe.
Quando cresce e começa a amadurecer, você torna-se dependente de seus professores e, even-
tualmente, de você mesmo. O que você está fazendo é desenvolver estas qualidades dentro de
você mesmo. Você não pode esperar que sua mãe ou seu professor cuidem de tudo por você pelo
resto de sua vida.

No caminho espiritual, o que se trilha internamente, apesar de parecer inicialmente que há um


foco externo, eventualmente você reconhece que todas as qualidades devem surgir e ser de-
senvolvidas de dentro. Devido à bondade de seus pais e à bondade de seus professores, você é
capaz de compreender seu próprio potencial. Quando isto se aplica ao objetivo de liberação ou
iluminação, vocês devem reconhecer que a iluminação já é sua própria natureza. É a verdadeira
essência de sua própria natureza, como o sol. Similarmente, a experiência da existência cíclica
ocorre devido à sua própria percepção confusa e aflições mentais. A mente que atingirá a ilumi-
nação é a mesma mente que criou este estado de confusão. Todas as imagens dos budas, tankas
de deidades de meditação, todas as mandalas, estátuas, e assim por diante são usadas como
suporte através do qual a verdadeira natureza da mente pode ser atingida.

Por exemplo, se você deseja cultivar um jardim de flores ou mesmo uma única flor, você precisa
ter água, solo apropriado e fertilizante. Entretanto não é a água e o fertilizante que produzem
a flor; é a semente, a essência, que tem o potencial de tornar-se uma flor. Da mesma forma, sua
própria mente, a natureza de sua mente, tem o potencial tanto de criar samsara, como fez, ou
de estabelecer a liberação, a liberdade total de toda dor e sofrimento. Entretanto, ela precisa
apoio. Da mesma forma que uma flor precisa água e fertilizante, a mente necessita o apoio de
um professor espiritual e pratica no caminho para manter-se em contato e vivenciar sua nature-
za verdadeira.

Uma vez que a compreensão da liberação tenha sido estabelecida, há dois métodos de aproxi-
mar-se dela. Vocês podem aproximar-se de acordo com o caminho Hinaiana, através do qual
você deseja atingir a liberdade apenas para você mesmo, ou de acordo com o caminho Mahaia-
na, no qual você deseja atingir a liberação para propiciar a liberação de todos os outros seres.
Este último é, de fato, a melhor abordagem, porque inclui todos os seres vivos. Até este mo-
mento seu foco tem estado a desejar atingir apenas os seus próprios fins, sempre fazendo coisas
com a motivação de auto-interesse. Devido a isso, vocês estão ainda em samsara, ainda sujeitos
ao sofrimento, ainda cheios de descontentamentos. Isto surge devido à preocupação apenas
com vocês mesmos. Os budas de bodisatvas abandonaram o conceito de um eu e substituíram o

126
auto-interesse pelo interesse pelos outros; eles sempre focam o que podem fazer pelos outros.
Sempre pensam, “o que posso eu fazer pelos outros? O que posso fazer para servi-los?” Tendo
isto por força motivadora, a liberação da ligação ao sofrimento é facilmente atingida. Este é um
ponto muito importante a considerar. Enquanto vocês discriminam e apegam-se a si mesmos,
vocês mantém-se em samsara; mas se puderem reverter este foco e acalentar o trabalho para o
benefício dos outros, este é o caminho pelo qual a liberação é atingida.
Desenvolver o desejo de liberar ou iluminar todos os seres vivos é o estágio inicial do desenvolvi-
mento de bodicita, o despertar da mente. Com tal desejo, você necessita desenvolver as qua-
lidades incomensuráveis de imparcialidade, amor, compaixão, e alegria e simpatia por todos os
seres e suas ações. Uma vez que estes quatro incomensuráveis foram desenvolvidos, você está
pronto para praticar bodicita, engajando-se nas seis perfeições.
Esta foi uma breve abordagem do significado e importância das contemplações preliminares,
bem como dos aspectos básicos de tomar refúgio e da geração de bodicita. Estas práticas são
pré-requisitos essenciais para a prática de quiescência que é o tema principal de nossa aborda-
gem.

Quiescência

Qual é o benefício de repousar pacificamente, permitindo que a mente permaneça estável, em


um estado natural de imobilidade? Até que você seja capaz de desenvolver a quiescência, não
será capaz de controlar ou suprimir os impulsos mentais confusos. Eles continuarão a surgir e
controlar a mente. A única forma de lidar com eles e por um fim nisso é atingir a quiescência.

Uma vez que seja atingida, todas as outras qualidades espirituais surgirão desta base, tais como
conhecimento transcendental, clarividência, a habilidade de ver a mente dos outros, recordar
o passado, e assim por diante. Estas são qualidades mundanas que surgem no caminho mas são
desenvolvidas apenas após a mente ser capaz de repousar pacificamente. Qualidades tais como
consciência aguçada e clarividência precisam ser desenvolvidas, porque é através delas que
alguém se torna capaz de compreender e vivenciar a natureza fundamental da mente. Como
é dito no Bhodhicaryavatara, um dos mais importantes textos mahaiana, “tendo desenvolvido
entusiasmo desta forma, eu concentro a minha mente; pois aquele cuja mente é desatenta, está
sujeito às aflições mentais”.

Um indivíduo que seja capaz de praticar quiescência não mais será dominado pelo apego às
atividades ordinárias ou contato com pessoas mundanas. A mente automaticamente afasta-se
do apego e atração à existência cíclica, porque a quiescência é a experiência de contentamento
mental e êxtase que é muito mais sublime do que as atrações ordinárias que surgem da percep-
ção confusa. Quando a mente está em paz, pode ser dirigida para concentrar-se por períodos
indefinidos de tempo. A quiescência destroi a delusão porque as aflições mentais não surgem
quando alguém esteja vivenciando a equanimidade da concentração unifocada.

As pessoas que atingiram a quiescência naturalmente experimentam compaixão na medida em


que se dão conta das condições a que as outras pessoas estão submetidas. A compaixão pura sur-
ge quando elas começam a perceber claramente a natureza da vacuidade em todos os aspectos
da realidade. Estas são apenas algumas das qualidades ensinadas pelo Buda que resultam direta-
mente da vivência da quiescência.

A quiescência é a preparação e base da prática principal que é o cultivo da sabedoria primordial


da intuição. Estas duas formas de meditação são complementares. O sucesso que uma tem em
desenvolver a intuição está em dependência do sucesso que se tenha em desenvolver a quies-
cência. Se vocês forem capazes de desenvolver a quiescência somente até certo grau, então
sua experiência de intuição será limitada. Entretanto, se vocês tiverem um sucesso completo
em desenvolver a quiescência, então também serão capazes de desenvolver de forma perfeita a

127
intuição. Isso ocorrendo, é o mesmo que dizer que a iluminação completa será atingida.

Agora, para atingir a quiescência, inicialmente você deveria tentar praticar em um lugar que
seja isolado, quieto e confortável. É importante sentir-se confortável e contente no lugar que
você escolher para meditar. Após conseguir uma almofada confortável, assuma uma postura bem
reta. A postura de sete pontos do Buda Vairocana é ideal. Assegure-se de que a espinha este-
ja ereta. Se está sentando em uma posição de pernas cruzadas, então a melhor posição é a de
lótus completa. Se for incapaz de sentar em lótus completo, então sente em uma posição de
pernas cruzadas e eleve seu assento um pouco de tal forma que sua coluna fique ereta. Outra
possibilidade é sentar em uma cadeira com a coluna ereta. Mantendo sua coluna reta, incline
um pouco a sua cabeça e faça com que sua mirada se dê por cima da ponta de seu nariz. Faça
com que a ponta de sua língua toque levemente o céu da boca, de forma natural de tal forma
que a boca nem fique fechada nem muito aberta. Os braços e mãos devem cair pelo lado do
corpo. Se estiver sentando com as pernas cruzadas, as mãos podem ser colocadas a direita sobre
a esquerda em seu colo. Se estiver sobre uma cadeira, deixe-as pender naturalmente.
A posição do corpo ao sentar é muito importante, do mesmo modo a posição da fala. Faça que a
fala seja o silêncio  sem falar, nem fazer ruídos, apenas a respiração natural. Nada há a fazer
que permanecer calmo e natural.
A posição da mente é evitar buscar eventos do passado, antecipar eventos futuros, e controlar
ou compelir o momento presente. Apenas permita-se repousar em um estado natural e descom-
primido. O que quer que surja deixa-se aparecer sem quaisquer alterações ou ajustes.

Métodos de prática

“Permitir que sua mente repouse sobre o estado natural” é mais fácil dito do que feito. A razão
principal para isso é porque, desde incontáveis vidas passadas até agora vocês desenvolveram
instintos habituais, impressões mentais que tornam suas mentes caóticas e cheias incontáveis
variedades de proliferações conceituais. Para atingir a paz, vocês precisam empregar técnicas.
Isto não significa que vocês devam tentar controlar pensamentos por relembrar, antecipar ou
alterar a experiência. Mas, em lugar disso, no início vocês deveriam tentar colocar a mente
sobre um objeto, de tal forma que a mente ganhe foco e se acalme. O uso de objetos sobre os
quais se coloca a mente corresponde aos três kaias. O primeiro passo é o método nirmanakaia
e é acompanhado pelo uso de uma imagem do Buda Sakiamuni manifestando-se como o buda
nirmanakaia (corporificação de uma manifestação intencional). Uma imagem do Buda Sakiamuni
é colocada em frente, de tal forma que sua visão caia naturalmente sobre ela.

O segundo passo é o método sambogakaia, praticado pelo uso de uma imagem de Vajrasatva
manifestando-se como o buda sambogakaia (corporificação da completa felicidade). O terceiro
passo, o método darmakaia, é atingido visualizando uma imagem de Vajradhara no centro do
coração. Uma vez que a quiescência seja atingida nesses três estágios, você está pronto para
começar a prática de quiescência sem qualquer elaboração.
Se você não possui qualquer dessas imagens do Buda, a prática ainda assim pode ser feita. Você
pode usar uma pedra, um pedaço de pau, uma flor, ou algo natural que seja encontrado no
ambiente e não tenha custo. Simplesmente pratique com o objeto colocado diretamente a sua
frente, como faria com as imagens. Idealmente o objeto deveria ter em torno de quatro dedos
de altura. A mente deve manter-se unifocada sobre ele sem qualquer distração. Uma vez fitando
sem distração a estátua ou o objeto, observe o que sua mente faz enquanto você tenta foca-lo.
Não deve haver qualquer tentativa de gerar uma visualização como você faria em uma prática
do estágio de geração. Você simplesmente olha a imagem com uma concentração unifocada,
nada mais.

Quando você pratica por períodos maiores de tempo, pode vir a sentir sonolência e perda de
interesse na mente. Quando isso começa a acontecer  e isso é uma reação comum  você deve

128
endireitar seu corpo, reajustar sua posição, e mover seu olhar para a parte mais alta da imagem
que esteja focando. Se, em lugar disso, você perceber que a mente começa ficar mais caótica,
com uma abundância de pen­sa­men­tos, então deveria baixar o olhar para o centro nervoso do
umbigo do Buda, ou ao assento, ou à parte inferior do objeto, tentando relaxar. Se a mente se
torna caótica, é porque há esforço em demasia. Se não há reações extremas e as coisas vão indo
bem, então mantenha sua visão no centro nervoso do coração da imagem.

Este estágio da prática pode ser mantido por um tempo tão longo quanto necessário para que
você se torne capaz de manter a concentração por períodos longos sem a distração de pensa-
mentos perturbadores.
Quando estiver cansado de usar objetos ou imagens, então não pense em nada; apenas mante-
nha-se na natureza da mente, sem qualquer foco ou pensamento de passado, esperança com
relação ao futuro ou tensão com o presente. Apenas mantenha-se no estado natural da mente
como ele mesmo é. Se for capaz de manter a quiescência quando não há elaboração ou foco,
isto é bom. O método ensinado no texto raiz é usar uma sílaba semente. Aqui a sílaba HUM é
visualizada no centro do coração e tem o tamanho aproximado da unha do dedo polegar, e é de
cor vermelha. Quando você se torna consciente do HUM, não deveria apropriar-se mentalmente
dela, especialmente no ponto em que observa seu tamanho, cor e outros detalhes de suas carac-
terísticas. Em lugar disso, você deveria simplesmente reconhecer a presença do HUM, deixando-
o lá.

Ao final, se você perceber que está um pouco distraído e que necessita de outra técnica, nova-
mente pode focar um objeto no espaço em frente. Permita que seu olhar e sua mente fundam-
se com o objeto, seja ele uma pedra, um pedaço de pau, ou uma flor. Seus olhos não devem
ficar mudando de um lado para outro  de fato, suas pálpebras nem devem mover-se.

Seja o que for que esteja focando, sua mente deve estar lá, não apenas a percepção visual. Com
sua mente você deve reconhecê-lo, e não devem ocorrer outras distrações. Após praticar desta
forma mesmo que por um período curto, no início você se distrairá; cansará. Começará a agitar-
se, terá sono e perderá o foco. Ambas são distrações. O que fazer? Você deve gritar “Pêh” para
cortar as distrações e colocar sua mente e visão de volta ao trilho correto. Você pode endirei-
tar seu corpo novamente e elevar seu olhar. Se estiver muitos pensamentos de distração, pode
tomar tais pensamentos de distração e justamente usá-los como objeto de meditação. Neste
ponto na prática, você pode de fato tomar o pensamento que você estava contendo e força-lo
dentro do objeto que esteja focando no espaço em frente a você, para trazer sua atenção de
volta ao objeto.

Da mesma forma que você pode ser distraído por diferentes pensamentos, você pode também
ser distraído por outras experiências sensoriais, como o som. Quando ouve um som, se é agradá-
vel a você, em lugar de acompanhá-lo devido a sua atração, reconheça que sua natureza é vazia
e faça-o dissolver-se na natureza do vazio, mantendo sua meditação. Se é desagradável, não há
diferença do agradável. Sua mente pode também ser distraída por um cheiro, por um toque ou
por uma sensação. Tão pronto puder, perceba que você se distraiu por esta experiência senso-
rial. Perceba que esta experiência tem a natureza da vacuidade. Dissolva-a em sua origem de
vacuidade e retorne a sua meditação.

Quando for capaz de lidar com algumas destas distrações mais concretas, lentamente, lenta-
mente através de sua prática, você começará a se tornar consciente de pensamentos discursivos
que nunca tinha percebido antes. As distrações óbvias terão já aparecido, desde o início; mas
então aqueles pensamentos que você nunca havia se dado conta, que você não lembra de jamais
ter visto emergir, novas memórias e eventos anteriormente nunca recordados emergirão. De
fato, você pode sentir que esteja perdendo sua mente.
Um aspecto importante para lembrar é que estes novos pensamentos discursivos não são novos.

129
São muito velhos. Sua mente é como água turva que estava agitada, de tal forma que o bar-
ro e a areia que não se depositam no fundo, afloram à superfície. Quando a mente começa a
acalmar-se, como o barro que naturalmente deposita-se sobre o fundo, você se torna capaz de
observar o que nunca viu antes. De fato, estas características de sua delusão sempre estiveram
lá e devem também ser trabalhadas.

Quando estes pensamentos surgem, não importa se eles pareçam bons ou maus. A este nível de
prática não existe diferença entre bons e maus pensamentos. Pensamentos são pensamentos. O
que você precisa fazer é reconhecê-los como formações mentais que estão surgindo, e tão pron-
to você identificá-los com indiferença, eles se dissolverão. Após praticar assim algum tempo,
certamente começará a experimentar felicidade física e mental ao ponto onde não vai querer
mais sair da sua almofada. A meditação será muito mais confortável do que quer que venha a
fazer no resto do tempo. Você terá o desejo de ficar praticando indefinidamente.

Neste ponto, há duas experiências que surgem durante a quiescência. A primeira, a de felicida-
de física e mental junto com o desejo de não mais interromper a meditação. Esta experiência é
ainda impura. Aqui, em sua meditação, você pode não mais experenciar os campos sensoriais de
forma, som, visão, sabor, e tato. É algo como entrar em um sono profundo. Você realmente não
sabe o que se passa ao redor, não ouve, não vê, não sente, não percebe cheiros ou sabores, etc.

Quando volta da meditação, é similar ao despertar de um sono muito profundo. Você não sabe
o que aconteceu ou como passou o tempo. Esta é a experiência de quiescência impura, porque
você é incapaz de relembrar o que acontece durante a experiência. É quase como se a mente
entrasse em um estado de ausência. Isto nem é liberação nem o resultado derradeiro. É, no
entanto, um estágio na experiência. Porque? Porque é um sinal de que você começou a atingir
a quiescência e que a mente é capaz de manter-se imóvel por um certo tempo sem a perturba-
ção das aflições mentais. Se você apegar-se a isso como a experiência final, terá renascimento
novamente na exis­tência cíclica. Sem apego você deve ir adiante em sua prática, há muito mais
por vir.

Quiescência Pura

A quiescência pura é o próximo passo na experiência de permanecer em um estado de concen-


tração unifocada por um tempo indefinido. Há aqui uma tremenda claridade. Ainda que a mente
esteja imóvel, é lúcida e clara. Há uma lembrança completa da experiência de toda a medita-
ção e do período pós-meditativo.
Durante o estágio inicial da quiescência impura, os oito estados cognitivos1 estão obstruídos du-
rante a meditação. À medida em que avançamos em direção à experiência de quiescência pura,
a claridade se torna desobstruída uma vez que as experiências sensoriais funcionam normalmen-
te ainda que a mente nunca flutue da absorção unifocada.

Durante a meditação há a liberdade de permanecer na experiência de concentração unifo­cada


o tempo todo e em qualquer circuns­tância. A conclusão da meditação formal não constituiria na
finalização da quiescência porque o poder do estado de lucidez2 permearia a experiência pós-
meditativa das atividades diárias.
Quanto tempo leva para chegar-se à pura quies­cência? Este tipo de experiência vem como resul-
tado de um tremendo esforço na prática. Não é um resultado que venha facilmente ou rapida-
mente.

Outros benefícios desta realização incluem relaxamento físico e mental; e, uma vez que não há
distração, a prática pode ser sustentada indefinidamente. Agora, quando você pratica, tanto o
corpo como a mente se cansam; e, à medida em que você fica desconfortável, você liga algo
mais para mudar a experiência de desconforto. Ao chegar ao nível de pura quiescência, o corpo

130
e a mente estão sempre em estado de conforto. Entretanto, se a mente se apega à experiência
de sentir bem estar físico e mental, então, tal mente de apego começará a produzir as causas
de renascimento no reino do desejo, trazendo-o de volta novamente à existência cíclica. É ne-
cessário que nunca haja apego à qualquer experiência.

Geralmente você deveria manter na mente que, quando sua prática de meditação começar a
aprofundar-se, há três experiências que ocorrerão. A primeira é bem estar3, a segunda é clare-
za, e a terceira é a experiência de ausência de pensamentos. Quando tiver estas experiências,
se você ligar-se à elas pensando que, de algum modo atingiu o resultado derradeiro, então es-
tará novamente produzindo causas para renascimento em samsara. Não confunda estas experi-
ências com o resultado final de iluminação. Se apegar-se ao bem estar, estará estabelecendo as
causas para o renascimento no reino do desejo. Se apegar-se à luminosidade ou claridade, isto
estabelece as causas para o renascimento no reino da forma. Apego à ausência de pensamen-
tos estabelece as causas para o renascimento no reino dos deuses sem forma. Estes são os três
reinos (desejo, forma e não-forma) da existência cíclica dentro do qual as seis classes de seres
se debatem. Através da meditação você pode de fato produzir as causas para o renascimento
nestes três âmbitos de existência caso não seja cuidadoso.

Esta é uma explicação concisa de como praticar para atingir a quiescência que inclui instruções
sobre o que evitar enquanto praticando. Se for capaz de praticar com sucesso, irá atingir a
quiescência por períodos prolongados de tempo e meditar com claridade, preparando-se então
para a segunda fase, a prática principal de cultivar a sabedoria primordial da intuição.

Sabedoria primordial

Os ensinamentos e práticas para desenvolver a sabedoria primordial da intuição têm duas abor-
dagens. A primeira abordagem é o treinamento escolástico, para assegurar-se da natureza de
vacuidade da mente. Aqui, a vacuidade é divisada através da investigação analítica, eventu-
almente provando que ela é desprovida de uma existência inerente verdadeira. Esta visão da
vacuidade está baseada na compreensão intelectual. A segunda abordagem é chegar à natureza
da vacuidade através da profundidade de sua própria prática. Esta visão da vacuidade está base-
ada na realização interna. Se alguém é capaz de abarcar a vacuidade pela segunda abordagem,
então a primeira é desnecessária.

Se você deseja trilhar a primeira abordagem através do treinamento escolástico e então aplicá-
lo praticamente à meditação, este é o meio superior e a forma pela qual muitos grandes prati-
cantes enfocaram seu caminho. Entretanto, nos tempos atuais, vocês deveriam considerar que
vocês podem não vir a ter muitos anos para praticar, uma vez que o momento da morte é incer-
to. Além disso, com estilos de vida tão intensos, são poucas as oportunidades para meditar. Pode
ser melhor engajar-se diretamente na prática, para atingir os objetivos mais prontamente.
Nos dias atuais parece que quase cada um está mais interessado em técnicas tipo pressionar
botões, que trabalham de forma rápida, trazendo resultados instantâneos. Naturalmente todos
desejam resultados os mais rápidos. Se você pensar que pode encontrar uma experiência tipo
apertar botões no caminho espiritual, isso significa que você deve praticar e meditar, não ape-
nas ouvir os ensinamentos, não apenas pensar sobre eles depois, mas sentar e realmente prati-
car. Frequentemente as pessoas apenas ouvem o Darma, pensam ocasionalmente no que ouvi-
ram, e não praticam. Como podem ocorrer resultados se não há prática?

É através da experiência de intuição4 que a natureza primordial da mente é atingida. Há quatro


estágios para este desenvolvimento. O primeiro é atingir a con­fian­ça na visão; o segundo, expe-
rimentar a meditação. A meditação precisa ser prati­ca­da; não pode ser apenas um tema inte-
lectual. De outra forma seria como um re­men­do que é colocado sobre um buraco para cobri-lo.
Algum tempo depois cairá fora. A compreensão intelectual é impermanente e sujeita a mudan-

131
ça. A realização atin­gida através da meditação é permanente. O terceiro é manter a con­tinuida­
de do comportamento nas atividades diárias da vida, e o quarto é chegar ao resultado final.

1. Confiança na visão
(dos quatro estágios, para chegar à natureza primordial, aqui o primeiro)

Primeiro, atingir a confiança na visão, este estágio tem três partes:


a)Reconhecer a natureza dos objetos que são vistos como externos;
b)localizar a experiência da natureza da mente, o discriminador interno;
c)estabelecer a visão da natureza da realidade.

Estabelecer a natureza dos objetos que são vistos como sendo externos, envolve a consciência
de como a mente vê objetos externos como realmente existentes. Isto refere-se a todas as apa-
rências que são percebidas como separadas do observador. Todas estas aparências são vistas pela
mente subjetiva como verdadeiramente existentes. Devido a isto, muitos eruditos reduzirão
as aparências à partículas atômicas e após ao nada, assim vindo a crêr que tal natureza care-
ce de uma existência verdadeira. De acordo com este sistema, os fenômenos objetivos surgem
da mente e existem na mente de quem os discrimina. Apesar de você pensar que as aparências
objetivas realmente existam, o mundo animado e inanimado não existiria se não fosse a men-
te. Não reconhecendo a natureza da mente e deixando-a na experiência de percepção confusa,
você realmente sente que as aparências objetivas são verdadeiras exatamente como são per-
cebidas. Torna-se, então, muito difícil aceitar que as apa­rên­cias objetivas não têm existência
verdadeira, inerente, e são criadas pela mente.

O primeiro problema é que sua mente está na experiência de percepção confusa. O segundo é a
verdade da impermanência, na qual nada há que a mente perceba, incluindo a sim mesma, que
seja permanente e que possa ser tida como verdadeira e real. Uma vez que tudo está sujeito a
mudança, isto implica que não há uma existência inerente verdadeira, uma vez que a natureza
dos fenômenos é impermanente. O sonho que você teve na última noite não é mais verdadeiro
hoje. No momento em que você sonhava, parecia muito verdadeiro, muito real. Onde está ago-
ra? O que aconteceu?

Para dar uma outra analogia, um mágico competente na manipulação das aparências é capaz de
criar uma ilusão ótica por meio do uso de substâncias e mantras, tudo isso é feito mesmo que
durante o tempo todo ele saiba que as aparências que cria não são reais. Aqueles que vêem a
aparência mágica, pensam que é real. Talvez um elefante, um tigre ou um pássaro surjam do
chapéu e, sendo percebidos, são vistos como reais; entretanto, o mágico sabe que são mera
ilusão.

Similarmente, todas as aparências objetivas nada mais são que rótulos mentais. Você pode dizer,
“isto é uma mesa”, aquilo é uma casa”. Cada um desses objetos tem seu nome porque parece a
você como sendo tal objeto. Portanto, você tem um rótulo para ele. Em verdade, sua natureza é
ilusória e ele realmente não existe mais do que a aparência ilusória que um mágico cria. Portan-
to, você tem que ter a confiança na consciência  de sabedoria primordial  da natureza ilusó-
ria de todas as aparências. Através disso você é capaz de estabelecer a natureza dos objetos que
são vistos como sendo externos.

2. Experimentar a meditação
(dos quatro estágios, para chegar à natureza primordial, este é o segundo)

Isto conduz você ao segundo estágio na prática do desenvolvimento da intuição, que é estabe-
lecer a natureza da mente como o discriminador interno. O criador das aparências objetivas é o
sujeito, a própria mente. Se tentar localizar a mente, poderá você encontrar seu lugar? Poderá

132
determinar suas características? Podemos determinar se ela é substancial ou tangível? De acordo
com muitos sistemas de pensamento budistas, há técnicas incontáveis que podem ser emprega-
das para descobrir a origem da mente buscando determinar se verdadeiramente existe ou não.
Para engajar-se na prática formal, primeiro de tudo você deve sentar na correta posição de
meditação. Deixe que a fala mantenha-se silenciosa e respire naturalmente. Não force a mente
fazendo-a muito tensa ou demasiadamente frouxa, apenas mantenha-se relaxado em sua própria
natureza pura da consciência.

Algumas vezes quando você senta, dois processos podem ocorrer a você: o de apreender a men-
te e o de apreender o discriminador. Se perceber isso, então faça que o discriminador olhe para
a mente discriminativa, o que é como olhar a própria face diretamente sem nenhum intermedi-
ário. Quando você começa a praticar assim, você começa a dar-se conta de que o discriminador
e a mente apreendedora não são separados. Então você compreende que o objeto sendo discri-
minado pelo discriminador e a mente que o apreende são indivisíveis, correspondem à mesma
experiência. Assim, você pode vir a ver que o objeto e o sujeito, o apego e a ligação, não são
mais duais. Isto é uma única experiência, a natureza da mente, livre de quaisquer limitações
provindas da atividade mental condicionada. O que acontece, então, se nem há objeto e nem
sujeito?
O que temos então? Tudo o que você tem é a experiência de sua própria natureza búdica inata.
Nos estágios iniciais da prática, você experenciará este estado livre de dualidade por um instan-
te fugaz. Em um segundo momento a discriminação dualística e o apego retornam. Atualmente
há muitos praticantes que usam uma grande parcela de tempo sentados em meditação silencio-
sa. Se você sabe como praticar os estágios de desenvolvimento e de fruição e, de fato estabele-
ceu a confiança na visão, sendo portanto capaz de assegurar-se da natureza da vacuidade, então
a prática mais longa de meditação silenciosa pode ser extremamente iluminadora. Entretanto,
se você não tem experiência e apenas senta silenciosamente em meio a conceitos turbulentos e
distrações mentais, isto é apenas perda de tempo.

Durante a experiência de não-dualidade, permita-se permanecer no frescor da experiência,


sem alterações conduzidas. Um praticante com inteligência superior será capaz de permanecer
nesta experiência de consciência intrínseca indefinidamente. No início, é difícil permanecer
muito tempo. Esta experiência é, entretanto, idêntica à experiência que você tem entre dois
pensamentos. Quando o primeiro termina e o segundo começa, o fresco momento entre eles é
idêntico à experiência de consciên­cia intrínseca. A razão pela qual não está consciente disso é
que você tem tantos pensamentos surgindo tão prontamente que o momento entre eles não é
percebido.

Pode que você pense que o momento entre os pensamentos seja um apagamento semelhante à
experiência de quiescência impura. Na experiência do momento entre os pensamentos, todos os
oito estados cognitivos estão funcionando normalmente. A mente é luminosamente clara e capaz
de reconhecer qualquer coisa, ainda assim totalmente livre de dualidade porque não há a pre-
sença de formações de pensamento ou atividade mental deludida. Se você entendeu isso, signi-
fica que você teve um relance da experiência geral da consciência intrínseca.

Porque, então, vocês enquanto indivíduos comuns têm tanta dificuldade de reconhecer esta ex-
periência geral de sua própria natureza primordial de sabedoria? Isto se dá devido à intensidade
dos hábitos com respeito à dualidade e aos pensamentos discursivos. Devido a isto você é derro-
tado vez após vez, por suas próprias conceitualizações. Adicionalmente, no passado você ouviu
instruções sobre a natureza da mente, mas falhou na prática. Então, que método pode você em-
pregar uma vez que você é tão distraído por sua própria mente? O método é tentar encontrar a
fonte da mente, o criador dos pensamentos discursivos, a causa raiz de todos os seus problemas.
Você já deu-se conta do fato que os conceitos surgem da mente. Agora, você deve perceber
onde a mente se origina, onde ela existe, e onde finalmente cessa. Similarmente, tente enten-

133
der onde os pensamentos discursivos se originam, onde existem e onde cessam.
Onde a experiência de iluminação se origina, existe, e cessa? Quem sente felicidade e sofrimen-
to? Se chegar à conclusão de que é a mente que usufrui a iluminação e samsara, então, onde a
mente se origina, existe e cessa? É tangível ou não? É sem forma?

Se você determinar que a mente tem uma forma, então você deveria tentar determinar qual sua
forma e cor. Se é tangível, deve possuir algumas características. Se você pensar que é sem qual-
quer existência substancial, então deveria tentar examinar que experiência é esta. É essencial
ter um professor espiritual que já tenha realizado a natureza da mente para ajudá-lo acurada-
mente a passar por esta experiência. Um professor espiritual qualificado a este nível de prática
é alguém que atingiu a natureza da mente. No Tibete há muitos exemplos onde discípulos foram
enganados por professores que não tinham realização. À este nível de prática existem muitos
perigos e armadilhas.

Se, por meio de seu processo de exame, você for totalmente incapaz de encontrar a mente e o
que você encontrou em lugar dela é como o âmbito do próprio espaço  ainda que seja incapaz
de expressar isso, então está na trilha certa. Entretanto, esta experiência de vacuidade não é
a negação de tudo, não é cair no niilismo, ou pensar que nada existe. É uma experiência que é
muito aberta; e, no interior desta espacialidade, existem muitas, muitas possibilidades. É im-
portante ser muito cuidadoso com respeito à profundidade desses ensinamentos. Se tomá-los
literalmente, sem qualquer experiência meditativa, há o perigo de tornar-se confuso com res-
peito à realidade e perder sua sanidade. Esta é a razão pela qual é importante receber ensina-
mentos sob a proteção de um professor qualificado de acordo com a tradição. Por esta tradição,
a iluminação pode ser atingida em um corpo e em uma vida, porque estes ensinamentos têm o
poder de estabelecer os praticantes no estado de liberação onde há uma liberdade perfeita de
todos os traços da percepção confusa. Reconhecer a natureza da mente é realmente o ponto de
compaixão de todo o caminho; entretanto isto também pode ser perigoso se você não se aproxi-
ma de forma cuidadosa e correta.

No que diz respeito ao desenvolvimento da confiança na visão, o terceiro passo é abarcar a visão
da natureza da realidade. De acordo com este tesouro redescoberto pela emanação irada de
Guru Rinpoche, Dorje Drolö, a luminosidade aberta é a natureza de Dorje Drolö. Isto se refere à
natureza da mente de todos os Budas, que é a natureza de todas as deidades de meditação, de
todos os lamas, dakinis, e verdadeiros objetos de refúgio. Para realizar tal natureza, você não
necessita buscar em qualquer outro lugar especial que não dentro de você mesmo. Tal natureza
é a essência de sua mente e é a experiência auto-originada. Realizar isso pervasivamente abarca
tudo que constitua samsara e nirvana. A mente de todos os budas, nossa própria natureza inata,
é a experiência da sabedoria primordial, livre da dualidade, luminosamente clara, desobstruída
em sua compaixão.

Após você ter atingido a confiança na visão, você pode então focar a prática de meditação como
aprofundamento da visão. Repousar livre de pensamentos do passa­do, presente, ou futuro, posi-
cionado na consciência fresca e não intermediada é tam­bém chamado de meditação. Esta expe-
riência aberta, luminosa, que é a natureza auto-originadora da mente de cada um, não necessi-
ta ser buscada como uma experiência meditativa separada. Você não necessita pensar que está
tentando criar uma experiência artificial. É simplesmente reconhecer e manter-se diretamente
introduzido em sua própria natureza.

Este é o significado do darmakaia (corpo­rifica­ção da realidade última). Além do mais, nesta


experiência darmakaia, as percepções sensuais estão presentes e são simplesmente observadas
imparcialmente, sem qualquer discriminação dualística ou apego. Esta abertura é luminosamen-
te clara e abarca a tudo, sem sofrimento, porque não há dualidade. Não podendo beneficiar, não
pode prejudicar. Vai além do âmbito do benefício ou prejuízo, aceitação ou rejeição. Você não

134
mais precisa pensar: “Oh, eu não posso fazer isto; eu não devo fazer aquilo.”

3. Sustentar o comportamento nas atividades diárias da vida


(dos quatro estágios, para chegar à natureza primordial, este é o terceiro)

O terceiro passo é manter a continuidade do nosso comportamento. A conduta deve ser seme-
lhante à meditação, e a meditação deve ser como a visão. Cada um contém o outro. Usualmente
você considera que conduta é a experiência pós-meditativa, que ocorre após a sessão formal.

Sustentar a continuidade é integrar visão, meditação e conduta de modo indivisível.


Uma vez que o equilíbrio meditativo é manter-se simplesmente na consciência intrínseca, aber-
ta, não intermediada, totalmente luminosa e relaxada, quando você chega a esta experiência,
deve perceber que todas as aparências e experiências são como uma manifestação ilusória da
natureza da consciência intrínseca. Todas as formas são vistas como uma divindade de medita-
ção, manifestação divina. Você pode ouvir a essência de todos os sons como sendo a do mantra.
Todos os pensamentos são compreendidos como a atuação da consciência pura. Você pode tam-
bém considerar que as aparências na vida diária são como um sonho, uma ilusão, sem verdadei-
ra existência inerente.

A este nível de prática, não há distinção entre meditação e conduta. A experiência meditativa
pode ser mantida na forma como se percebe as aparências da vida diária e dirige a pessoa. Isto
significa que os pensamentos discursivos seriam utilizados como a aparência do caminho, em lu-
gar de um obstáculo. Quando discriminação e apego cessam, os pensamentos surgem como uma
ilusão, para adornar o caminho.

Se, talvez, você ainda pensar que um pensamento discursivo está causando dano, trazendo dor
ou problema, apenas entre nele e veja que é vazio por natureza, e ele se dissolverá. Se seguir o
pensamento e permiti-lo controlar a mente, terá perdido a visão. Por outro lado, se você absor-
ver o pensamento, verá que a natureza dele é vazia e ele se dissolverá, como as ondas que se
elevam do oceano e desaparecem de volta no próprio oceano. Nada há de errado com o surgi-
mento de um pensamento discursivo, quando você percebe que ele surge da consciência pura e
dissolve-se de volta na consciência pura.

Quando você for hábil para reconhecer que os pensamentos discursivos nada mais são que a ma-
nifestação da própria consciência intrínseca, que são vazios e sem existência inerente verdadei-
ra, você os deixará passar e dissolver-se de volta em sua fonte vazia. Em resumo, você precisa
ser cuidadoso, nesta prática de conduta como caminho, para não ser perturbado pelas distra-
ções e dominado por seus hábitos à discriminação e apego. Como praticante, sua prática deveria
ser como um rio que flui  incessante e estável.

4. Fruição
(dos quatro estágios, para chegar à natureza primordial, este é o final)

A quarta e última etapa é o modo pelo qual a fruição é atingida. A fruição é o reconhecimento
de nossa própria natureza da consciência intrínseca, originalmente pura, livre de confusão. Esta
experiência que é o resultado de visão, meditação, e conduta, é a experiência de iluminação ou
liberdade última da confusão da natureza da existência cíclica. Se sua prática é forte, então,
mesmo antes de sua morte, ao realizar esta natureza e manifestá-la de acordo com estes quatro
estágios, você estará liberado. Não sendo assim, a liberação ocorrerá no momento da sua morte
ou no estado do bardo. Por meio das bênçãos da realização desta prática, é certo que a libera-
ção ocorrerá durante um destes períodos.

É imperativo ter uma forte fé em seu professor raiz, aquele que o introduz à natureza da men-

135
te, de tal forma que você possa reconhecer a sua própria natureza. Estas são as instruções
piedosas para o sucesso nesta prática. O resultado final de quiescência, intuição da sabedoria
primordial, mahamudra e mahasandhi, nada mais são do que isto.

136
Roteiro do 21 Ítens
Lama Padma Samten

LUCIDEZ!

A lucidez pode ser atingida em qualquer condição, assim usamos o silêncio como apoio para
atingi-la.
Quando, por exemplo, recitamos o texto da Grande Nuvens de Bênçãos a lucidez brota como
num Tsog, brota da sensorialidade a partir dos sentidos físicos operando; porém, esta instrução
de prática do silêncio é muito útil, muito favorável e podemos avançar a partir deste ponto.
Quando estivermos em silêncio devemos passar por todos os itens abaixo descritos, usando o
método do Pensar, Contemplar e Repousar, esta é a porta de saída de Samsara.

ITEM 1. MOTIVAÇÃO – Refúgio Bodicitta, Chuva de Bênçãos.

“Eu quero me livrar para produzir benefícios aos seres. A motivação surge como um mun
do; todos estão nessa mandala ampla.”
Contemplamos:
Estamos diante do sofrimento (o lago – água e lodo: todo o samsara);
Aspiramos nascer sobre o Lótus por compaixão – vemos o Guru Rinpoche Vivo.
Yeshe Tsogyal representa a experiência sensorial – o mundo. Significa a inseparatividade
nossa do universo.
Motivação vajra: já estamos num ambiente favorável, a mente já entende o que tem de
fazer.
Guru Rinpoche tem o vajra na mão direita – lucidez; tem uma taça de
Crânio na mão esquerda – mente, e um vaso – darmakaya, vacuidade.
Sedas e ornamentos – múltiplas sabedorias.
Olhamos o que é relativo e reconhecemos o Ilimitado em toda construção – Suprema Feli
cidade Sublime.
”Eles me fitam...” – entramos na prática.

A melhor motivação é sempre a nível de paisagem. Se estamos em uma casa e descobrimos que
ela está queimando, não é necessário grandes explicações para saber que devemos saltar pela
porta ou pela janela e sair correndo! Isso é paisagem. Se estivermos ao nível de mente, devería-
mos dizer assim: nós deveríamos sair pela porta ou pela janela, as opções são tais portas ou tais
janelas. Tem menos força do que descobrirmos que a casa está em chamas. Se estamos ao nível
de energia, pensamos em como expiramos e inspiramos, em como organizamos nossa energia
para então sairmos pela janela ou pela porta. Ao nível de corpo também, nós temos uma instru-
ção: primeiros colocamos um pé na frente, depois o outro, primeiro uma mão para trás, depois
uma mão para frente, e nos deslocamos. Agora, se descobrirmos que a casa está em chamas, nós
abandonamos tudo isso e saímos correndo do jeito que dá! Por isso, vou explicar a motivação ao
nível de paisagem, e, neste momento, vamos esquecer as outras.

Ao nível de paisagem é assim: a casa está realmente em chamas! A Primeira Nobre Verdade fala
exatamente sobre isso, a existência do sofrimento e da impermanência, no final de um certo
tempo não sobra nada, queima tudo. Estamos em um ambiente onde mesmo nossas coisas mais
próximas queimam, não há nada que não queime. Há também o sofrimento do sofrimento, que
é quando a chama encosta, dói. O sofrimento maior não dói tanto na hora, é o sofrimento que
toca a tudo e a todos, é o sofrimento pervasivo, que ocorre pela própria fragilidade de nossa
vida e nossas identidades, nos montamos de modo frágil, é inevitável que isso desabe. Este é o
ambiente da Roda da Vida; não é o mundo, mas um tipo de visão sobre.
Imaginem um lago, preenchido pela água (as lágrimas dos seres, manifestação desses três níveis
de sofrimento). Quando refletimos sobre as causas desse sofrimento, encontramos os três vene-

137
nos, os seis reinos, as seis emoções perturbadoras, os doze elos da originação interdependente.

Dentro desse lago, a parte debaixo do lago é o lodo, que pode ser descrito pelos três venenos
da mente, pelos seis reinos ou pelos 12 elos. Estamos imersos nisso, no lodo. Muito importante
compreendermos que há esse lodo e que há essas lágrimas, isso é a compreensão do mundo ao
nosso redor. Ainda que estejamos numa linda manhã de sol, com as árvores todas floridas e per-
fumadas, num tempo não muito distante todas essas plantas vão desaparecer, e isso vai sendo
constantemente consumido pelo fogo da existência.
Milagrosamente, do centro deste lago, nasce uma flor de lótus que simboliza a cura para essa
dor, para esse incêndio. O mundo inteiro é visto como o lago e o lodo, e a flor de lótus simboliza
o caminho da superação desta situação, são os ensinamentos que levam a liberação. É necessá-
rio que nós já tenhamos refletido bastante sobre isso, pois às vezes surgem reflexos coloridos no
lago, a gente mergulha ali e é também muito interessante, ficamos um pouco fascinados pelo
aspecto multicolorido da água e os doze elos. A lucidez manifestada pela flor de lótus é o pró-
prio Buda, Guru Rinpoche sentado sobre ela. O lodo e o sofrimento podem ser superados. Guru
Rinpoche é inseparável da consorte, do mundo físico, de tudo aquilo que diz respeito aos cinco
sentidos. Se tomarmos o exemplo de Guru Rinpoche, nós não precisamos nos retirar do mundo,
essa é a motivação Bodicita, a motivação Mahayana, a motivação de beneficiarmos todos aque-
les com que estamos em contato.

ITEM 2. SHAMATA IMPURA

Interrompemos a operacionalidade comum do mundo, funcionando dentro de nós, e sentamos.


Vamos praticar a liberdade de não precisar ficar respondendo a um fluxo. Então respiramos!!!
É a primeira forma de contermos nossos impulsos cármicos; se não conseguirmos barrá-los, fica-
mos presos neste processo incessante da Roda da Vida, ficamos chamando esses impulsos de “eu
mesmo”, ainda que estes impulsos sejam contraditórios. Procuramos focar a respiração, e ver
nosso corpo se energizando pela própria respiração. Procurem localizar o que faz os olhos brilha-
rem. Isso é a energia, o foco da meditação é esse. De resto, procurar manter o corpo relaxado.
Esta shamata é impura pois tem niroda, se mergulharem nessa meditação, talvez esqueçam do
que ocorre no mundo ao redor. Se vemos uma coisa, deixamos de ver outra. Mas é uma medi-
tação muito importante, é a primeira forma na qual vamos conter a ação de Samsara. O mais
importante não é teorizar sobre isso, mas praticar, experienciar.

ITEM 3. SHAMATA PURA

Fazemos o mesmo que em shamata impura, mantemos esse brilho no olho e no corpo, mas agora
aproveitamos nossos olhos e ouvidos para vasculhar ao redor. Não que vamos buscar isso, sim-
plesmente nos mantemos abertos ao que ocorre no mundo externo e não respondemos. Percebe-
mos o que é a mente dependente dos sentidos: se a mente está ligada ao olhos, ela está presa
a uma sala, se ela segue o sentido auditivo ela vai longe. Com os olhos, por exemplo, não vejo
os carros, mas eu ouço, e minha mente vai atrás. Vamos ficar em silêncio, ouvir o que está ao
redor, olhar o que surge internamente, os pensamentos, e contemplar a transitoriedade deles.
São como riscos numa superfície de água, tão pronto eles vem, eles vão. Essência da prática de
Shamata é não responder.

ITEM 4. METABHAVANA

O que vemos nos seres não é o que está ali, propriamente, mas sim as marcas da nossa própria
mente. Metabhavana altera nossa capacidade de olhar para o mundo ao redor, ela nos coloca
positivos mesmo quando o outro está negativo. Não se trata de analisar se o que o outro está
fazendo é negativo ou não, simplesmente aspiramos a liberação dele. Não basta apenas medi-
tarmos, ainda que tenhamos a habilidade de shamata, quando saímos e andamos pelo mundo, as

138
coisas vem até nós, e nós então aspiramos a felicidade e a liberação de todos os seres. Fazemos
uma listinha de seres que encontramos regularmente e recitamos para eles.

1 – Que o “ser” seja feliz;


2 – Que ele se afaste do sofrimento;
3 – Que ele encontre as causas da felicidade;
4 – Que se afaste das causas do sofrimento;
5 – Que ele atinja a liberação de todo o carma,negatividade e ignorância;
6 – Que ele veja tudo com lucidez instantânea;
7 – Que ele verdadeiramente desenvolva a capacidade de trazer benefícios aos outros
seres;
8 – E que encontre nisso as causas da sua energia e felicidade.

ITEM 5. PRAJNAPARAMITA - Purificação dos enganos cognitivos.

*Coemergência / vacuidade dos 5 skandas:


.Olhamos as várias coisas (darmas) em todas as direções, vendo surgir o fora inseparável com
o que surge dentro (coemergência).Trabalhamos na superação da noção de que a realidade é
externa e fixa..Diante das coisas podemos ver o surgimento da realidade sem a prisão que aquilo
pode proporcionar.
Êxtase / Alegria:
Substituímos a vacuidade pela noção de encantamento, alegria. Há alegria e brilho diante das
coisas. Escapamos dos termos filosóficos e olhamos a brincadeira. Nosso olhar é lúdico. O aspec-
to do sorrir é a liberação do skanda. “Diante da experiência (darma) e do surgimento da energia
associada à forma... sensação... percepção,etc, vazia e luminosa, eu sorrio”. “Diante da energia
dinâmica da forma vazia e luminosa, eu sorrio.” (vemos isso para cada um dos cinco skandas).
“Eu sorrio diante da identidade luminosa e vazia de mim mesmo, diante da forma luminosa e
vazia desta sala...etc”

PRAJNAPARAMITA - Nos ajuda a compreender o aspecto luminoso da realidade e, ao compreen-


dermos isso, podemos usá-lo num sentido positivo. Vamos analisar os 5 skandas (rupa, vedana,
samjana, samskara e vijnana). Na literatura pré-budista, os 5 skandas são apresentados como
a base da substancialidade da existência, são vistos nestas escolas como as evidências de nossa
existência. O budismo vai na direção oposta, mostrando justamente a vacuidade dos 5 skandas.

A compreensão do primeiro dos 5 skandas, rupa, como externo a nós é a compreensão que vem
da ignorância, de avydia. Pegamos o exemplo de um templo: ele parece que vêm das paredes,
dos objetos que possui internamente. Porém, as pessoas que o construíram passo a passo não
viam dessa forma, elas tinham a sensação de estarem construindo vigas, paredes, colocando
ferros. O templo brota por co-emergência, a pessoa tem um templo dentro, olha e diz: “oh!!”.
Através da co-emergência explicamos o fenômeno do surgimento do templo, e por conseqüência
do mundo ao nosso redor. Quando entendemos o significado da palavra co-emergência compre-
endemos que não há um templo no templo, e isto está correto, mas isto seria um extremo. Há
também o outro extremo, e este extremo seria “há um templo no templo”. As duas percepções
co-existem: ao mesmo tempo que não há o templo no templo, há o templo no templo. Isso cor-
responde ao Caminho do Meio. Não dizemos as coisas definitivamente. Esta compreensão onde
o templo não está nem num extremo nem no outro, isso é o Caminho do Meio, Madhyamika. O
Buda introduz Madhyamika, Nagarjuna introduz Madhyamika, todo o budismo tibetano contem-
pla isso. Quando olhamos as formas, podemos dizer: a forma tem a vacuidade dela, ela é vazia
dela mesma, mas a forma existe porque ela é luminosa. O templo só existe pela luminosidade, e
não de modo objetivo, pois as paredes poderiam produzir qualquer outra coisa. O aspecto má-
gico do templo é produzido pela luminosidade. Porém, enquanto falo tudo isso para vocês, isso
é mente; mas quando entramos no templo há também o aspecto de energia presente: a pessoa

139
diz “oh!”. É a energia se manifestando. O fato de olharmos o templo, vazio / luminoso, provoca
uma mudança na nossa energia. Então sorrimos, pois é a própria energia do samsara, mas não
é mais a energia do samsara quando olhamos com estes olhos, é a energia da Sabedoria Primor-
dial, e sorrimos para ela pois é o sorriso que irá nos libertar da forma e da energia correspon-
dente. O sorriso significa que percebemos a magia daquilo e podemos seguir, ou não. Este é o
mecanismo de contemplação do primeiro dos 5 skandas:

1 – Puxamos a forma;
2 – Contemplamos a co-emergência (inseparável de quem olha);
3 – Contemplamos o aspecto vazio (não tem aquilo dentro);
4 – Percebemos o aspecto luminoso (tem aquilo dentro);
5 – Contemplamos aspecto vazio / luminoso;
6 – Contemplamos a energia que se movimenta em nós;
7 – Contemplamos a magia disso tudo;
8 – Sorrimos! É assim que o Samsara nos pega!
“Diante da energia, que brota da forma vazia e luminosa, eu sorrio”

A liberação ocorre pelo riso e não pela seriedade, não pela dinamite, não pela vacuidade, nós
não temos que destruir o mundo. Nós sorrimos para ele. Como alguém que repentinamente se
vê de forma mais ampla do que se via. O samsara não é negativo, o samsara é lúdico. Nós sofre-
mos dentro do samsara como as crianças também sofrem, por coisas muito simples. Nossa dor
em samsara está ligada a energia; nós não só não vemos a energia como tomamos a obediência
àquela energia como nosso refúgio fundamental. A única forma de superarmos isso é compreen-
dermos este processo e sorrirmos! Essa energia é o sangue do samsara, é o que o movimenta.
Precisamos não só entender o samsara, mas temos de absolver o samsara, liberá-lo, iluminá-lo.
Prajnaparamita nos ajuda a compreendermos o aspecto xamânico da realidade.

ITEM 6. REPOUSO NA PRESENÇA

6 Repousar na presença da natureza última

Usufruímos da liberdade natural: a) repousamos na vastidão ilimitada, atemporal, não geográfi-


ca, incessante da liberdade natural; b) temos a capacidade de acionar essa liberdade natural. É
o poder de usufruir e de direcionar a liberdade natural.

A)Liberdade em meio a shamata


Partindo de shamata pura, contemplamos o espaço da liberdade natural.
Não procuramos nada, apenas: i) reconhecemos o espaço ilimitado de possibilidades, lenço,
clara luz mãe. ii) reconhecemos que é vivo, manifesta energia dinâmica. iii) reconhecemos a
condição de lucidez primordial que brota da própria dimensão de onde as coisas surgem e desa-
parecem. iv) reconhecemos a compaixão primordial.

B)Luminosidade em meio a shamata


Novamente partindo de shamata pura contemplamos o espaço da liberdade natural. Desde este
espaço observo o brilho, a energia que nos permite produzir a experiência do que é criado. Essa
energia, por exemplo, produz uma parede antes de ela ser construída. Todas as coisas ganham
nascimento desse mesmo modo através desse brilho.
As coisas que são construídas precisam desse surgimento sutil.
Elas surgem e cessam, são como bolhas cósmicas.

C)Liberdade em meio a ação


No lugar de partimos de shamata pura como nas partes A e B, partimos de uma condição onde a
mente discriminativa comum esteja operando.

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Estamos agora em meio a experiência dos cinco skandas (forma, sensação, percepção, formação
mental e consciência). E meio a experiência da consciência discriminativa comum (namparshe-
pa) reconhecemos a presença contemplando os itens i, ii, iii e iv da parte A anterior.
Reconhecemos que, mesmo diante das formas condicionadas, seguimos vendo o espaço infinito.
A forma não nos tira a visão da possibilidade do espaço ilimitado. Mesmo sem partir do silêncio e
concentração de shamata a presença segue.

D) Luminosidade em meio a ação


Em meio à ação da consciência comum (namparshepa), contemplamos a possibilidade da cons-
trução luminosa. Contemplamos o fato de que temos o potencial para produção das experiências
condicionadas que estamos percebendo.
Percebemos que a luminosidade segue presente como o potencial ativo que podemos acionar
para produzir significados e aparências mesmo em meio à ação comum.

Notas:
1)      Não se trata aqui de idéias ou conceitos, reflexões sobre liberdade e luminosidade, mas
que, em meio a ação vemos o princípio de liberdade e luminosidade possibilitando a própria
ação. Veja isso.
2)      Mil sóis! Luminosidade manifestando tudo nos três tempos! Veja isso!
3)      Nada fora da experiência de luminosidade e liberdade! Aqui reconhecemos a mandala
natural incessante, a natureza vajra indestrutível onde tudo (e nós também) se manifesta sem
a necessidade de controle, esforço, disciplina.

7 Lung do elemento éter do bodisatva

Nosso surgimento comum enquanto ser senciente ou enquanto bodisatva se dá por “lung”. Os
cinco lungs correspondentes aos cinco elementos (éter, ar, fogo, água e terra) dão nascimento,
vida e sustentação a todos os seres.
Partindo de shamata pura contemplamos a presença enquanto compaixão primordial. Olhamos
para os seres e vemos sua prisão no samsara e a dor inevitável disso. Ao mesmo tempo reconhe-
cemos a liberdade natural de todos os seres e seu potencial de liberação. Então vemos surgir
dentro de nós o elemento éter, um brilho nos olhos, seguido de um impulso, uma energia, uma
eletricidade de socorrer os seres seja onde eles estiverem. Surge o elemento éter do bodisatva.

8 Lung do elemento ar do bodisatva

Quando surge o elemento éter, vemos na seqüência o surgimento do impulso de respirar, é o sur-
gimento do lung do elemento ar do bodisatva. A partir da manifestação do elemento éter, sur-
ge o elemento ar do bodisatva e assim respiramos sem esforço, aprumamos o corpo. A energia
(lung) do elemento ar do bodisatva se manifesta vibrante e naturalmente presente.

9 Lung do elemento fogo do bodisatva

Como decorrência do lung do elemento ar, o corpo se aquece, evidenciando a presença do lung
do elemento fogo do bodisatva.

10 Lung do elemento água do bodisatva

Havendo o elemento fogo, observe, surge o impulso de mover-se: o lung do elemento água do
bodisatva está presente.

11 Lung do elemento terra do bodisatva

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Agora veja, quando o movimento se dá, surge vigor no corpo, o lung do elemento terra do bodi-
satva está presente. Há firmeza no corpo.
Para os bodisatvas, o elemento terra é a afirmação do seu interesse em trazer benefício a todos
os seres. É o elemento que estrutura todos os anteriores.

Conclusão: com os cinco elementos passamos a manifestar nosso próprio corpo a partir do lung
do bodisatva. Estamos na mandala do bodisatva onde a energia, ação e visão de mundo elevada
são naturais. Tudo que olhamos, vemos a partir da presença, sabedoria primordial, sem perder a
capacidade da compreensão convencional. Movimentamos-nos compassivamente, com propósito,
expansão, energia, flexibilidade e força em meio ao mundo.

ITEM 12. SABEDORIA DO ESPELHO –BUDA AKSHOBYA: COR AZUL

Quando olhamos para um espelho, não o vemos, mas sim imagens refletidas, reflexos de ações.
A imagem é limpa, sem distorções. Ao olharmos os seres, não confundimos o outro com o con-
teúdo (aquilo que o espelho reflete incessantemente, sob formas diversas), mas visualizamos a
pureza da natureza última. Nossa mente é como um espelho: não muda, só as imagens e formas
refletidas. Sabedoria do espelho: reflete incessantemente os fenômenos, mas não se apega a
eles. Assim deveríamos agir.
DAMOS NASCIMENTO – Capacidade de acolher os seres do jeito que eles chegam.Aquele ser não é
aquilo. Aspiramos que se livre.
Então agimos com : compaixão, amor, alegria, equanimidade, generosidade, moralidade,paz,
energia constante, concentração, sabedoria

ITEM 13. SABEDORIA DA IGUALDADE - BUDA RATNASAMBHAVA: COR AMARELA

A base da noção de onisciência do Buda: se colocar no lugar do outro e operar a partir daí.
Visualizar as dificuldades de se imaginar no contexto onde os seres estão. Conseguindo isso, ver
se há o lung de vendo os outros seres em dificuldade, ver se brota uma energia na qual nos faz
movimentar-nos em direção do outro. Não pertence aos seres ou a um indivíduo, é uma inteli-
gência do Buda que pode ser acessada, tem vida própria.
Capacidade de olhar os outros seres e ver surgir um interesse genuíno em facilitar, promover ou
amparar as qualidades positivas que encontramos neles. Cuidar deles ou cuidar de nós passa a
significar a mesma coisa.
Então agimos com : compaixão, amor, alegria, equanimidade, generosidade, moralidade,paz,
energia constante, concentração, sabedoria.

ITEM 14. SABEDOIA DISCRIMINATIVA– BUDA AMITHABA: COR VERMELHA

Todos os ensinamentos do budismo, as quatro nobres verdades e do nobre caminho de oito


passos. É a inteligência que olha para o samsara e nos permite manter lucidez e serenidade em
meio a roda da vida. É o Buda que possui uma terra pura. Amitabha significa a purificação de to-
das as marcas karmicas do samsara que vendo tudo como impermanente, faz brotar o lung para
superar a existência cíclica.
Ajudamos com visão lúcida.Direcionamos o outro, damos um eixo positivo, enxergando a partir
da 4 Nobres Verdades e do Nobre Caminho Óctuplo.
Então agimos com : compaixão, amor, alegria, equanimidade, generosidade, moralidade,paz,
energia constante, concentração, sabedoria;

ITEM 15. SABEDORIA DA CAUSALIDADE – BUDA AMOGHASIDDHI- COR VERDE

Sempre que faço alguma coisa, isso tem uma conseqüência. Ensinamento de como cuidar de
nossas ações e colher resultados positivos, brotando um lung verdadeiro de superar as estruturas

142
karmicas. Esforço de olhar para dentro dos karmas e dissolvê-los. Visualizar o modo como Guru
Yoga produz a dissolução das emoções negativas e aflições e utilizar a sabedoria última para a
purificação.
Nossa capacidade de intervir, quer o outro ache aquilo bom ou não. Ação necessária. Capacida-
de de atravessar a barreira (o que é agradável e o que é desagradável) e fazer o que precisa ser
feito.
Então agimos com : compaixão, amor, alegria, equanimidade, generosidade, moralidade,paz,
energia constante, concentração, sabedoria.

ITEM 16. SABEDORIA DE DARMATA- BUDA VAIROCHANA: COR BRANCA

Vai falar sobre a natureza última quando sentamos; abandonamos todos os apegos, identidades
e repousamos na nossa natureza última. Verificar se o lung do estado meditativo, que sustenta a
meditação, está presente. Contemplamos esse lung e o sustentamos.
Nossa capacidade de fazer o outro reconhecer sua Verdadeira Natureza. Proporcionar ao outro
ver também com lucidez, ultrapassar a ignorância do samsara, a visão condicionada.
Então agimos com : compaixão, amor, alegria, equanimidade, generosidade, moralidade,paz,
energia constante, concentração, sabedoria.

ITEM 17. VAJRASATVA : A NATURAL PERFEIÇÃO DE TODAS AS COISAS

Tudo aquilo que criamos dentro de nós mesmos (sofrimentos, aflições, emoções negativas) refle-
tem uma natureza última que produz todas estas experiências. Os objetos e os pensamentos são
dotados de uma energia dinâmica que aparentemente nos exigem responsividade. Tudo no mun-
do externo (imagens, experiências, objetos) transmitem energias, lungs, que são naturalmente
puros por virem da natureza última. Não importa o conteúdo, pois este somos nós que criamos
com nossa mente discriminativa: os fenômenos são puros por manifestarem a natureza última.
Sabedoria de Vajrasatva permite trabalhar a natureza última em todos os fenômenos.
Olhamos para todas as coisas e vemos a Natural Perfeição delas.
Então agimos com : compaixão, amor, alegria, equanimidade, generosidade, moralidade,paz,
energia constante, concentração, sabedoria.

AS QUATRO CONFIANÇAS - OS QUATRO PODERES

ITEM 18. VERDADE

Sobre todos os pontos anteriores. Esta é a abordagem mais sofisticada do Buda. É preciso medi-
tar sobre isso para manter vivo estes princípios. É a culminância dos itens anteriores que con-
templamos com todo cuidado.É como as coisas verdadeiramente são, é o que precisamos ter em
mente quando andamos no mundo. É nossa prática;aquilo que vamos fazer no mundo.
O poder da verdade significa que não estamos presos, que temos uma Natureza Livre, além de
vida e de morte, e que as prisões se constroem de forma artificial. Temos isso vivo dentro de
nós.

ITEM 19. CORAGEM

Viver no mundo a partir da Verdade e de todos os elementos aqui citados. Contemplamos tudo
com cuidado, vemos que tudo é verdade, e assumimos com coragem. Tomamos a verdade como
ponto principal, e com coragem vamos simplesmente nos movimentar assim. Temos obstáculos
e outras situações difíceis, vamos precisar de coragem. Vemos as coisas como elas são e agimos
com lucidez. Manifestarmos coragem não é rompermos com as pessoas, etc. Estaremos nos mes-
mos lugares, só que de outro jeito

143
ITEM 20. PACIÊNCIA

Primeiramente, conosco mesmos. Estamos enraizados no samsara. Não cultivar a culpa é a base
da confissão suprema. Lei do esforço: fazemos algum esforço: nem pouco, nem muito. O Uni-
verso se move e nos ajustamos a ele do melhor modo a segui-lo. Existem coisas que a gente não
consegue por força própria: é necessário um espaço para o céu se mover.
Paciência conosco e com os seres, porque não temos a perfeição. Vamos falhar, certamente.
Precisamos de paciência para que a situação não surja para nós como um poste (tensão). A si-
tuação deve surgir como um vento que movimenta nosso cata-vento, que bem posicionado, gira
sempre numa posição positiva.
Não precisamos de resultado rápido, precisamos é de lucidez.

ITEM 21. PERSEVERANÇA

Temos paciência, não desistimos com as dificuldades, e seguimos em frente.


Ainda que tenhamos falhas, não vamos nos culpar ou desanimar, ou desistir. Vamos seguir per-
severantes para atingir a realização disso. Não desistimos, apesar de ainda fazermos as coisas
erradas. Mantemos o propósito. Continuamos na posição correta do cata-vento, ou ajustando-a.
Não desistimos dessa posição. Ajustamos até que aquilo funcione. Não introduzimos a dúvida
com respeito ao item verdade. Não abandonamos a compreensão.

144
Uma Introdução ao Bardo
S.S. Dudjom Rinpoche

Diz-se que toda a doutrina do Buda poderia ser sintetizada no ensinamento dos seis bardos. O
Darma do Buda é vasto e profundo e as muitas abordagens dos vários veículos e ciclos de ensi-
namentos abrangem uma inconcebível riqueza de instrução. Para aqueles que desejam atingir a
cidadela primordial da condição de Buda no curso de uma única vida humana, a prática destes
ensinamentos é apresentada dentro da abordagem dos seis bardos.

O que, portanto, é um bardo? Um bardo é um estado que nem é aqui e nem lá. Por definição
é algo que começa no meio, um estado intermediário. Os seis bardos são: (1) o bardo natural
da presente vida; (2) o bardo alucinatório do sonho; (3) o bardo da absorção meditativa; (4) o
doloroso bardo do morrer; (5) o bardo luminoso da realidade última; e (6) o bardo cármico do
ressurgimento.

1. O bardo natural da vida presente

O bardo natural da vida presente cobre o período entre o nascimento e a morte. Neste momen-
to, portanto, todos estamos no bardo da presente vida. Como está presente nos ensinamentos,
“Kyema! Agora que estou no bardo da minha vida presente, deixarei de ser preguiçoso, pois
nesta vida não há tempo a perder!” Esta é a nossa presente condição. Deveríamos pensar cui-
dadosamente e perguntar a nós mesmos quantos anos já passaram desde que nós nascemos e
quantos anos mais ainda teremos. A vida é extremamente impermanente; ninguém escapará da
morte. Enquanto estamos nesta situação, desperdiçamos nossa existência inutilmente, jogando
fora nosso tempo com preguiça e distrações. A vida segue seu curso e seu ímpeto eventualmente
se exaure; neste ponto todas as atividades terminam e nada mais pode ser feito.

Por isto se diz que deveríamos evitar cair sob o domínio da indolência e distração. Em lugar dis-
so, deveríamos praticar o Darma que é a única coisa que pode nos ajudar no momento da morte.
Apesar de sermos incapazes de praticar tudo, deveríamos praticar tanto quanto possível, saben-
do que o modo como vivermos agora pode exercer uma influência positiva nas condições da pró-
xima vida. Tanto quanto possível, portanto, deveríamos evitar mesmo uma única ação negativa
e nunca deveríamos perder a oportunidade de realizar mesmo que a menor ação positiva. Uma
vez que nada é garantido, diz-se que deveríamos nos conduzir de forma a nada termos para nos
arrepender, mesmo que venhamos a morrer amanhã. Este, então, é o primeiro bardo, o bardo da
vida presente.

2. O bardo alucinante do sonho

O bardo do estado de sonho cobre o período desde o momento em que adormecemos até o
momento em que acordamos na manhã seguinte. Este período é semelhante à morte, a duração
temporal é a única diferença. Durante o sono as cinco percepções de forma, som, cheiro, sabor,
e contato se deslocam para o interior de alaya. Pode-se dizer que elas desmaiam para dentro de
alaya, e, de fato, dormir é semelhante a morrer. No início os sonhos não aparecem, há apenas
uma escuridão densa enquanto a pessoa afunda-se inconsciente em alaya.

Depois, os padrões de apego e percepção ressurgem estimulados pela energia cármica da igno-
rância1. Como resultado disso, os objetos dos sentidos (forma, som, cheiro, sabor e contato)
manifestam-se novamente no estado de sonho. Estas aparências, estes objetos de sonho, não
estão, naturalmente, presentes dentro de nós. Por outro lado, a consciência não se move em
direção a coisas externas. Ela se mantém dentro e suas percepções são imaginárias e deludidas.
Esta é a razão de chamarmos este estado de bardo alucinatório. No estado de sonho noturno, a
percepção está sujeita a delusão do mesmo modo que durante o dia. Apenas que neste estado

145
de sonho noturno a consciência vagueia através das formas, sons, cheiros, sabores e contato – e
vagueia também por todas as percepções experimentadas durante o dia, apenas que agora elas
são ainda mais alucinadas. Quando a pessoa adormecida sonha, vê apenas delusões e fantasias.

De fato, os ensinamentos dizem que nós mesmos somos como ilusões e sonhos. Naturalmente,
pensamos que um sonho é algo irreal quando comparado com a vida do estado acordado, a qual
pensamos verdadeira. Para os Budas, entretanto, os sonhos e as percepções da vida estão em pé
de igualdade. Nenhuma delas corresponde à realidade. Ambas são falsas: flutuantes, imperma-
nentes, enganadoras – nada mais do que isto. Se olharmos para todas as coisas que já fizemos
e experimentamos desde o tempo de nosso nascimento até o momento presente, onde estão
elas? Nada há para ser encontrado. Tudo se foi; tudo está em fluxo constante. Isto é obviamente
verdadeiro, mas é algo que habitualmente nos escapa. Nós constantemente nos relacionamos
com as nossas percepções como se fossem realidades permanentes, pensando, “isto sou eu, isto
é meu”. Mas os ensinamentos nos falam que isto tudo é um erro, e este erro é o que verdadeira-
mente nos leva a vaguear em samsara.

Venha o que vier, é justo com as nossas percepções alucinadas de sonho que temos que traba-
lhar. Durante o dia deveríamos rezar para o Lama e para as Três Jóias, e à noite, deveríamos nos
esforçar para reconhecer nossos sonhos como as alucinações que são. Deveríamos ser capazes de
transformar nossos sonhos; precisamos praticar o Darma mesmo quando dormindo. Necessitamos
ganhar esta habilidade porque se tivermos sucesso, seremos capazes de reconhecer a unidade
das percepções do estado acordado com as percepções dos sonhos sem encontrar distinções
entre elas e nossa prática se tornará muito mais profunda. Os ensinamentos especificam que
esta prática é um modo extremamente efetivo de lidar com a experiência de impermanência e,
igualmente, com todos os outros obstáculos.

3. O bardo da absorção meditativa

O bardo da absorção meditativa pode ser descrito como o período de tempo em que passamos
no equilíbrio meditativo. Termina quando saímos deste estado. Chama-se bardo porque não é
semelhante a nossa torrente de pensamentos deludidos e nem é semelhante à percepção fe-
nomênica como experimentada no curso da vida. É um período de estabilidade meditativa, um
estado de concentração tão fresco e impoluto com o céu. É como o oceano imóvel no qual não
há ondas. É impossível permanecer neste estado quando a mente está cheia de pensamentos
(apropriadamente comparados a um bando de ladrões), ou mesmo quando se está ocupado com
correntes mentais subconscientes mais sutis, misturadas e compactadas umas com as outras
como fios de um tecido. A meditação estável não é possível nestas circunstâncias. Os ensinamen-
tos dizem que os meditantes não podem cair sob o domínio de seus pensamentos, que são com-
parados a ladrões. Eles deveriam, em lugar disso, manter uma diligência imperturbável, profun-
da e poderosa, com a qual podem evitar que sua concentração se desfaça.

O bardo do sonho e o bardo da absorção meditativa são subdivisões do bardo da vida presente.
O bardo da vida presente naturalmente inclui nossa prática. Mesmo que seja intermitente, é ne-
cessariamente realizada dentro da abordagem de nossa existência presente. É apenas aqui que
podemos meditar.

4. O doloroso bardo do morrer

É perfeitamente possível que de um dia para outro venhamos a descobrir que estamos sofrendo
de uma doença fatal. Quando todas as cerimônias e preces de longa vida provarem-se inefetivas
e a morte for certa, finalmente virá a clareza de que nada do que fizemos na vida foi de algum
uso efetivo. Deixaremos tudo para traz. Mesmo que tenhamos uma pilha de riquezas tão elevada
como o monte Meru, não poderemos leva-la conosco. Nem mesmo uma agulha e linha! Chegou

146
a hora de ir, mesmo este corpo que amamos tanto será abandonado. O que poderemos levar
conosco? Apenas nosso carma positivo e negativo. As ações que acumulamos serão nossas únicas
companhias.

Entretanto, vamos supor que colocamos as instruções em prática e treinamos a transferência de


consciência. Se tivermos ganhado proficiência e se pudermos morrer sem um traço de remor-
so, teremos feito realmente um grande favor a nós mesmos. Uma pessoa que diz, “irei para tal
ou qual terra pura de Buda”, e de fato vai, é um praticante perfeito. Olhemos isto de frente:
praticamos o Darma porque o necessitaremos no momento da morte. Esta é a razão pela qual os
ensinamentos enfatizam a importância de compreender o que acontece quando morremos.

Diz-se que mesmo para uma pessoa comum, o momento da morte é crucial. É o momento quan-
do deveremos rezar ao Lama e às Três Jóias. Deveríamos cortar todas as amarras que nos atam
às nossas posses – nossa casa e tudo mais. Pois isto é que nos puxa. Deveríamos também fazer
oferendas de nossas posses às Três Jóias rezando para que não tenhamos que passar por uma
morte dolorosa e difícil e sofrer após nos reinos inferiores.

Se tivermos treinado suficientemente na transferência de consciência e se formos capazes de


aplicar esta técnica quando o momento da morte chegar e então transferir com sucesso nossa
consciência – esta é a melhor situação entre todas. Mas se não pudermos fazer isto, talvez um
lama ou algum de nossos irmãos ou irmãs vajra que esteja conosco e saiba como isto é feito,
possa fazer a transferência de consciência por nós. A consciência deveria ser transferida para
uma terra pura tão logo a respiração se interrompa. De qualquer modo, é importante planejar
isto e ficarmos prontos para quando o momento crucial chegar e não termos necessidade de
ficar com medo. Não é necessário lembrar que a preparação tem que ser feita agora, durante o
bardo da vida presente.

O que acontece quando morremos? Começando no momento da concepção física, o momento


em que nossos pais se uniram, nosso corpo passa a tomar consistência a partir da essência dos
cinco elementos. É um encontro de elementos como o calor, a energia, os canais sutis e assim
por diante. Quando morremos, estes cinco elementos gradualmente se separam e se dissolvem
um no outro. Quando a dissolução é completa, nossa respiração externa cessa e nossos pulsos
internos são reabsorvidos. A essência branca que recebemos de nosso pai e está localizada no
cérebro, e a essência vermelha, recebida de nossa mãe e localizada na região do umbigo, se
encontram no centro cardíaco e se misturam. Só então a mente deixa o corpo.

Neste ponto, no caso dos que não têm experiência de prática, a mente cai em um prolongado
estado de inconsciência. Mas para os que são mestres realizados ou experientes meditantes, a
consciência, após dois minutos aproximadamente, dissolve-se no espaço, e o espaço dissolve-se
na luminosidade. Qual é o fruto da meditação para aqueles que praticaram? É justamente esta
dissolução na luminosidade que é pura e sem máculas como o céu. Isto ocorre quando o pulso
interno cessa. Se uma pessoa atingiu a estabilidade no reconhecimento da luminosidade durante
a meditação, então tão pronto a experiência de espaço sem máculas aparece, ocorre o assim
chamado encontro das luminosidades da mãe e do filho, espaço e lucidez. Isto é a liberação.
Na essência, isto é o que os lamas e meditantes que a praticam referem como “repousar em
thuktam”, ou meditação no momento da morte. Thuktam nada mais é do que isto. As luminosi-
dades mãe e filho se fundem; e ganha-se a estabilidade das etapas de criação e perfeição. Isto é
liberação.

5. O bardo luminoso da realidade última

Se não tivermos praticado, desmaiamos quando a experiência de escuridão surge apenas para
retornarmos quase imediatamente em meio a percepções assustadoras as quais são referidas

147
como o quinto bardo, o bardo da realidade última. Neste ponto, as deidades pacíficas e iradas
aparecem. Elas estão implícitas e presentes em nossa consciência, de Samantabadra aos Budas
das cinco famílias e às oito manifestações de Guru Rinpoche. Sua aparência é acompanhada com
sons e luzes assustadores. Neste ponto, as pessoas que não estão familiarizadas com a prática se
aterrorizam. Tão pronto o medo as domina, estas manifestações da consciência se dissolvem e
desaparecem.

Eu gostaria de dizer algumas palavras que tanto valem para o bardo do morrer como para o bar-
do da realidade última. Após os cinco elementos separarem-se e dissolverem-se, a consciência
se dissolve no espaço, desmaiando no estado de alaya. Após, a luminosidade é vista. É como o
espaço puro e imaculado. Se não tivermos experiência de meditação, não reconheceremos esta
luminosidade. Não reconhecida, esta experiência não permanecerá por muito tempo. Entretan-
to, se tivermos experiência com a concentração da mente, as duas luminosidades, mãe e filho se
fundirão.

Antes um pouco do início do processo da morte, antes que se inicie a gradual dissolução dos
elementos, o mais importante é estar perfeitamente consciente de que você está de fato no
processo da morte. Você precisa cortar todo apego às coisas desta vida. Quando a morte chegar,
você deveria rezar para as Três Jóias, pois não há qualquer esperança que não elas, você deve-
ria também invocar seu professor raiz, pois ele ou ela é de algum modo mais acessível à você.
Quando tudo está dito e feito, seu professor raiz é a corporificação disso. Reze a seu professor,
sua verdadeira deidade Yidam, quando dos perigosos desfiladeiros do Bardo. Confesse todas as
ações negativas que você tenha cometido durante sua vida e reze concentradamente a seu pro-
fessor, pedindo para ser conduzido a uma terra pura de Buda imediatamente após a sua morte.
Diz-se que este tipo de prece focada e sem distração, com esta aspiração constantemente pre-
sente em sua mente, é de fato a precondição para ser conduzido a uma terra pura.

Além do mais, quando alguém doente está morrendo, seu professor ou seus filhos Darma (cujo
samaya não esteja corrompido e com quem ele tenha uma relação harmoniosa) deveriam re-
lembrá-lo que os elementos estão se dissolvendo como de fato está ocorrendo. Eles deveriam
rezar e recitar, invocando o professor. Estas aspirações – de ser liberado do perigo dos caminhos
tortuosos do Bardo – será de grande ajuda. Quando um inválido cai, outras pessoas o socorrem
e levantam. Do mesmo modo, os amigos Darma podem ser de grande ajuda; eles podem guiar a
pessoa que está morrendo e rezar por ela. Isto é muito benéfico.

Diz-se que os Budas são dotados de grande compaixão e se alguém os invoca pelo nome (imacu-
lado Ratnashikhin, protetor Amitaba, Buda Sakiamuni, e assim por diante), os sofrimentos dos
reinos inferiores são dissolvidos tão pronto seus nomes são pronunciados. Do mesmo modo, se a
pessoa que está morrendo for capaz de rezar adequadamente, os Budas evitarão que ela entre
no caminho que conduz aos reinos inferiores simplesmente devido ao fato de que seus nomes fo-
ram pronunciados. Isto é, portanto, extremamente útil. A prece é como se fosse nosso ajudante
e nossa guarda pessoal no período da morte. É de grande importância e benefício.

Primeiro de tudo a pessoa no processo da morte cai em um estado de ausência e inconsciência.


Quando a consciência se manifesta novamente, a luminosidade aparece e, se não for reconheci-
da, se vai e as visões do bardo da realidade última começam a aparecer. É quando as deidades
pacíficas e iradas com seus sons aterradores e luzes surgem e também as visões de encruzilhadas
que conduzem a terríveis precipícios. Se não houver o reconhecimento de que estes sons incrí-
veis e os raios de luz nada mais são do que projeções da própria mente, nada que não apenas
o poder criativo da lucidez da consciência, então surgirá um terror intenso. As visões ocorrem,
o medo surge, e então as visões esvaecem e somem. Neste ponto a consciência deixa o corpo,
saindo pela abertura correspondente à experiência.

148
6. O bardo cármico do ressurgimento

Neste ponto ocorre a separação entre a mente o corpo. Uma vez que a mente é agora indepen-
dente do corpo, está sem suporte físico. O corpo material grosseiro se foi, há apenas um corpo
sutil composto de luz. Este corpo sutil carece das substâncias essenciais recebidas do pai e mãe,
e, conseqüentemente a pessoa falecida não tem mais a percepção da luz do sol e da lua. Entre-
tanto, há um tipo de brilho luminescente, uma energia mental, emitida pelo corpo de luz. Isto
cria na pessoa a impressão que é possível ver seu próprio caminho. Adicionalmente, todos os
seres que estão vagueando no bardo do ressurgimento podem ver e ouvir uns aos outros. Outro
aspecto deste bardo é que tão pronto a consciência aspire estar em algum lugar, instantanea-
mente surgirá neste exato lugar. Os únicos lugares fechados são o ventre de sua futura mãe e
Vajrasana, o lugar sagrado onde todos os Budas atingem a iluminação. O corpo de bardo é um
“corpo mental”, e esta é a razão pela qual ele se apresenta em um lugar no instante mesmo em
que pensar nele.

A mente da pessoa falecida também possui uma certa clarividência, ainda que dotada das co-
res das perturbações cármicas. Ela sabe o que os outros estão pensando. Uma pessoa que tenha
morrido recentemente pode perceber como os outros estão usando as posses que ela acumulou
no curso de sua vida, o que eles estão pensando, e como eles estão fazendo as práticas de acu-
mulação de méritos e dedicando para seu benefício. Os vivos não vêem os mortos, mas os mor-
tos vêem os vivos. Os seres no bardo se agrupam e sofrem das sensações de fome e sede, calor e
frio. Eles experimentam sofrimento intenso enquanto vagueiam no estado intermediário.

Aqueles que de fato vagueiam no bardo são os que falharam em praticar muitas virtudes em
suas vidas, mas ao mesmo tempo não acumularam muitos sofrimentos. Os seres que cometeram
muitas negatividades não experimentarão o bardo do ressurgimento. Tão pronto eles morrerem
e fecharem seus olhos, instantaneamente surgirão nos reinos inferiores. De outro lado, aqueles
que acumularam muitos méritos se transferirão imediatamente para as terras puras. Em geral,
uma vez que pessoas como nós, nem são grandes pecadores e nem grande santos, teremos que
passar pela experiência do bardo do ressurgimento e isto nada mais é do que sofrimento. Por ou-
tro lado, os mortos podem ser protegidos dos horrores do bardo e atingir a liberação. Isto acon-
tece caso a pessoa tenha realizado muitas ações meritórias, tenha feito oferendas às Três Jóias,
tenha praticado caridade com os pobres, e assim por diante; e se outros tenham construído a
mandala das deidades pacíficas e iradas e realizado o ritual no qual tenha sido queimado um
papel com o nome da pessoa falecida, e se a iniciação tenha sido dada (conduzindo a consciên-
cia da pessoa falecida a destinos mais elevados). Este conjunto de medidas é como se um grupo
de pessoas corresse ao mesmo tempo para agarrar o outro, evitando que caia em um precipício.
Esta é a razão pela qual se diz que devemos dedicar muitas ações positivas aos mortos.

Durante os primeiros vinte e um dias após o evento da morte, os mortos têm os mesmos tipos de
percepções que tiveram durante a vida. Têm a sensação de possuírem o mesmo corpo e mente
como antes, e percebem os mesmos ambientes que experimentaram durante a vida. Após, eles
começam a ter percepções relacionadas ao lugar onde eles tomarão renascimento na próxima
vida. Esta é a razão pela qual se diz que o período de quarenta e nove dias – particularmente as
primeiras três semanas – é extremamente importante. Durante este período, se muitos méritos
forem acumulados por outras pessoas em proveito do falecido, se diz que mesmo se a pessoa em
questão estiver se dirigindo aos reinos inferiores, a compaixão das Três Jóias pode conduzi-la
a um destino mais elevado. Após tal período, entretanto, seu carma a conduzirá para os reinos
inferiores e, mesmo que a compaixão das Três Jóias permaneça inalterada, não terá o poder de
conduzi-la a um destino mais elevado até que o carma negativo seja exaurido.

Esta, então, é uma explicação da importância de acumular uma grande quantidade de mérito
para proveito dos seres falecidos. As pessoas que vivem suas vidas ligadas ao Darma e estejam

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acostumados a fazer as práticas, reconhecem quando estão no bardo do ressurgimento e que
morreram. Eles compreendem onde estão, relembram seu professor e sua deidade Yidam. Ao
invoca-los concentradamente, renascem nas terras puras de Sukhavati, Abhirati, ou na Gloriosa
Montanha Cor de Cobre.

Para um lama realizado é também possível invocar a consciência do bardo para seu nome escrito
em um papel e revelar a esta consciência o verdadeiro caminho. Ao dar ensinamentos e inicia-
ções, o lama pode mostrar a estes seres o caminho das terras puras dos Budas, ou pelo menos
levar a consciência do bardo a um novo renascimento humano.

Tudo depende do carma, aspiração e da devoção do falecido. De todos os bardos, o mais crucial
é o bardo da vida presente. Por isto é agora, no bardo da vida presente que precisamos agir e
praticar corretamente, de tal forma que não tenhamos no futuro que vaguear por outros bardos.

A sadana do Grande Compassivo é a verdadeira essência de todos os sutras e tantras. Guru Rin-
poche destilou-a como um método pelo qual os discípulos que tenham conexão com ela serão
capazes de tomar renascimento em Sukhavati. Subseqüentemente ele ocultou-a como terma e
foi o Vidyadhara Dudul Dorje, o prévio Dudjom, que a revelou.

Nós podemos dizer que a suprema fonte originadora de todos os ensinamentos de todos os Budas
é o Buda Samantabadra ou Amitaba (que de fato são idênticos). Nunca agitando a pacífica am-
plidão de sua mente, o Buda Amitaba olha com compaixão incessante a todos os seres dos seis
reinos. Da radiância de seu amor surge Avalokitesvara, o Grande Compassivo. Avalokitesvara ou
Tcherenzig é a corporificação espontânea da fala compassiva de todos os Budas. Na presença de
Amitaba ele fez a promessa de não entrar na iluminação final e permanecer como um bodisatva.
Ele prometeu, em outras palavras, que seguiria ajudando os seres até que as últimas profunde-
zas de samsara fossem sacudidas e esvaziadas de seres. Daquele momento em diante, com gran-
de compaixão, ele conduziu os seres aos três âmbitos de Sukhavati, a terra pura de Amitaba.

Há a lenda de que houve um momento quando ele pensou que tinha completado sua tarefa e
mirou ao redor e, naquele mesmo instante verificou que havia exatamente o mesmo número
de seres – nem mais e nem menos – como havia antes. Percebendo que os seres de samsara não
haviam diminuído, ele deprimiu-se e refletiu consigo mesmo, “nunca chegará o momento em
que concluirei a tarefa de levar todos os seres para as terras puras”. Assim seu voto de bodicita
falhou. Sua cabeça rompeu-se em onze pedaços e seu corpo dividiu-se em mil fragmentos. Neste
exato momento o Buda Amitaba apareceu e disse: “Filho da minha linhagem, você corrompeu
seu voto de bodicita? Reassuma-o e esforce-se pelo benefício dos seres como no passado!”
Dizendo isto, ele abençoou a cabeça fraturada e os mil pedaços de seu corpo. Avalokitesvara
levantou-se novamente, agora com onze cabeças e com um corpo dotado de mil braços e olhos
para trabalhar pelo benefício dos seres. Graças a sua aspiração iluminada, seus mil braços ema-
naram um milhar de reis Chakravartin, e de seus mil olhos apareceram os mil budas deste kalpa
afortunado. Todos estes mil budas se manifestarão inteiramente devido à compaixão de Avaloki-
tesvara.

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ESSÊNCIA DA ABENÇOADA PRAJNAPARAMITA
comentários por Lama Padma Samten

Ma-sam-diê-me-she-rab-pa-rol-tchin
Inconcebível, inexprimível, Prajnaparamita
Perfeição que está por detrás das formas e dos conceitos; opera de modo não causal para des-
montar as fixações. Sabedoria que “desata os nós” não é baseada em conceitos, não está cons-
truindo mundos. Por isso Inconcebível, inexprimível.

Ma-ke-mi-gak Nam-ka-hi-uh-ôh-ni
Não-nascida, incessante, por natureza semelhante ao céu.
Não-nascida: base que permite liberar os “nós” é anterior aos “nós”, pois é dela que estes sur-
gem. Nascer significa “dar forma”, portanto “não nascido” é igual a não ter forma.
Incessante: além do tempo, pois aquilo que é ligado ao tempo é construído, causal.
Natureza semelhante ao céu: livre, sem predisposições.

So-so-ran-rik Ye-she-tiô-iul-uá
Experenciada pela cognição discriminativa prístina da consciência autoreflexiva.
Surgimento do observador que contempla a natureza última de todos os fenômenos.
Auto-reflexiva: condição natural da Sabedoria Primordial.

Tu-sum Gyal-uê Yum-lá Tshá-sá-lô


Mãe de todos os vitoriosos dos três tempos, a você presto homenagem!
É desta compreensão que surgem os Budas e Bodisatvas.

Dja-kar-kê-tú Bha-ga-va-ti Prajna-pa-ra-mi-ta Hri-da-ya


Phe-kê-tuh Tshom-dem-dê-ma She-rab-kie-pa-ro-tu-tim-pe-nim-pô
O Abençoado Coração da Sabedoria Transcendental

Tshom-dem-dê-ma She-rab-kie-pa-ro-tú-tim-pá La-tshá-sá-lô


Homenagem à Bhagavati Prajnaparamita!

Assim eu ouvi.
Uma vez o Abençoado estava residindo em Rajagriha, na
montanha do Pico dos Abutres, junto com ele estava um grande grupo da Sanga dos Monges
e da Sanga dos Bodisatvas. Em dado momento, o Abençoado entrou no samadi que examina
os diferentes tipos de Darma, chamado “profunda iluminação”. E, ao mesmo tempo, o nobre
Avalokitesvara, o Bodisatva-Mahasatva, enquanto praticava a profunda Prajnaparamita, viu
que os cinco skandas eram vazios por natureza.
O Buda, repousando em Yeshe (Sabedoria Primordial, identidade completa com a unidade indife-
renciada que a tudo permeia) olha para o mundo a partir de Sherab (cognição discriminativa) e
contempla os cinco skandas, de onde advém todo o sofrimento.
Com o apoio da estabilidade do Buda, Avalokitesvara (mente de compaixão, Nirmanakaya) fitou
o mundo condicionado e assim, da unidade entre a espacialidade da mente Darmakaia do Buda
com as limitações do mundo condicionado magicamente surgido, brota a mente Prajna.

Tal mente vê a forma pela qual as individualidades surgem e, mesmo assim, são sustentadas
pelo fluxo luminoso operando sob condições, carecendo de natureza própria. Avalokitesvara
percebe que tais individualidades não têm existência própria, são inseparáveis de quem as vê,
surgem por relação, são construídas e reconstruídas a cada momento.

Então, pelo poder do Buda, o venerável Sariputra disse ao nobre Avalokitesvara, o Bodisatva-
Mahasatva:

151
Aqui, “pelo poder do Buda”, refere a pureza da motivação deSariputra, além dos interesses da
roda da vida.

– “Como deveria proceder o filho ou a filha de nobres qualidades que quisesse praticar a
profunda Prajnaparamita”? Por ter sido perguntado desta forma, o nobre Avalokitesvara, o
Bodisatva-Mahasatva, disse ao venerável Sariputra:
– “Oh Sariputra, um filho ou uma filha de nobres qualidades que desejasse praticar a pro-
funda Prajnaparamita deveria ver assim: todos os cinco skandas têm a natureza da vacuida-
de.
Os “objetos concretos”, (shiki), encontram na forma “rupa” sua concretitude. Mas forma é va-
cuidade, não tem solidez, nem existência em si mesma, nem permanência. Do mesmo modo que
“rupa”, os demais skandas sensação (vedana), percepção (samjana), formação mental (samska-
ra) e consciência (vijnana) têm a vacuidade por base, e não alguma natureza própria.

Forma é vazio, vazio é forma. Forma nada mais é do que vazio, vazio nada mais é do que
forma.
“Forma é vazio” denota co-emergência de observador e observado (objeto). Forma não é algo
concreto, mas algo a mais que adicionamos aos substratos. Possuímos apenas “substratos” ao
andarmos no mundo que, pela co-emergência, passam a ganhar as formas com as quais nos rela-
cionamos. Entendendo como as formas surgem, podemos liberá-las de nossas prisões.
Co-emergência: quando um mesmo fenômeno é interno ou externo, não sabemos dizer se é um
ou outro. Não são dois, mas um conjunto. E as formas surgem exatamente deste espaço de pos-
sibilidades infinito, o “espaço básico dos fenômenos”, aqui entendido como o vazio.
1 – Puxamos a forma;
2 – Contemplamos a co-emergência (inseparável de quem olha);
3 – Contemplamos o aspecto vazio (não tem aquilo dentro);
4 – Percebemos o aspecto luminoso (tem aquilo dentro);
5 – Contemplamos aspecto vazio / luminoso;
6 – Contemplamos a energia que se movimenta em nós;
7 – Contemplamos a magia disso tudo;
8 – Sorrimos! É assim que o Samsara nos pega!

Pode-se resumir do seguinte modo: “Diante da energia, que brota da forma vazia e luminosa, eu
sorrio!”

Do mesmo modo, sensação, percepção, formação mental e consciência são todos vacuidade.
Dentro da “forma” não há forma. Sensação (Vedana – gostar ou não gostar) é forma. Percepção
(operação da mente ligada aos sentidos físicos), formação mental (Samskara – nossos carmas e
hábitos mentais) e consciência (Vijnana – nossas identidades) também são formas. Os skandas
são construídos pela liberdade.

Assim Sariputra, todos os darmas são vacuidade. Não têm características. São não nascidos e
não cessam. Nem impuros e nem livres da impureza. Nem decrescem e nem crescem.
Darmas são todas as experiências do mundo, e são “vacuidade” por manifestarem os cinco skan-
das, não tem características próprias.

Portanto Sariputra, a vacuidade não tem forma, nem sensação, nem percepção, nem forma-
ção mental, nem consciência.
“Portanto” representa o 8º passo do Nobre Caminho, onde contemplamos a natureza de liberda-
de: lá não tem formas, nem sensações, nem os Doze Elos, nem as Quatro Nobres Verdades.
Na vacuidade não há nem mesmo a Iluminação. Não há natureza própria nos sete aspectos:
características, nascimento, cessação, impureza e pureza, decréscimo e acréscimo. São todos
surgidos pela co-emergência.

152
Não tem olhos, ouvidos, nariz, língua, corpo e mente. Não tem aparência, som, cheiro, sa-
bor, tato e objetos da mente. Não tem os elementos de consciência relacionados aos olhos,
e aos demais sentidos físicos, e não tem mente ou elemento de consciência da mente.
Não há natureza própria nos dezoito datus: olhos, ouvidos, nariz, língua, corpo, aparência, som,
cheiro, sabor, tato, consciência relacionada aos olhos, consciência relacionada aos ouvidos,
consciência relacionada ao nariz, consciência relacionada ao paladar; consciência relacionada
ao tato, mente, objeto da mente e elemento de consciência da mente.

Não tem ignorância, nem extinção da ignorância, nem os elos subseqüentes até velhice e
morte, e a extinção da velhice e morte.
Base da ignorância é um “eu” que reflete sobre algo separado, externo, criando categorias,
julgamentos, discriminações.

Do mesmo modo, não há sofrimento, ou origem do sofrimento, ou extinção do sofrimento.


Ultrapassamos a aparente de solidez dos cinco skandas, as causas de nosso sofrimento e existên-
cia. Nem caminho, nem sabedoria, nem realização e nem não realização.

Portanto Sariputra, uma vez que os Bodisatvas não têm nada para atingir, eles se manifestam
através da confiança no Prajnaparamita.
Confiança no Prajnaparamita = confiança naquilo que sempre foi, não há como perder. A vacui-
dade presente naturalmente. Uma vez que não há obscuridades mentais, não há medos.

Transcendendo completamente as visões falsas, atingem o derradeiro nirvana. Todos os Bu-


das dos três tempos, por repousarem na Prajnaparamita, atingem completamente a ilumina-
ção perfeita e insuperável.
Portanto, o mantra da Prajnaparamita, o mantra da grande lucidez, é o mantra insuperável,
o mantra que torna igual o que é desigual, o mantra que pacifica por inteiro todo o sofri-
mento.
O mantra deve ser usado para evocar o princípio ativo (Sabedoria Primordial) e não meramen-
te para dissolver obstáculos. Fazer isso é o Caminho do Ouvinte. Evocar a Natureza Última é a
abordagem Mantrayana.

Uma vez que não produz enganos, deveria ser reconhecido como verdadeiro. O mantra da
Prajnaparamita é recitado assim:

TADYATHA OM GATE GATE PARAGATE PARASAMGATE BODHI SVAHA

Sariputra, É desta forma que o Bodisatva-Mahasatva deveria treinar-se na profunda Prajna-


paramita.”

Então, o Abençoado retornou de seu samadi e louvou o nobre Avalokitesvara, o Bodisatva-


Mahasatva, dizendo:
– “Muito bom, muito bom! Oh filho de nobres qualidades. Assim é! Assim é! É exatamente
como ensinou. Deve-se praticar a profunda Prajnaparamita! Todos os Tatagatas irão felici-
tar!”.

Quando o Abençoado pronunciou estas palavras, o venerável Sariputra e o nobre Avalokites-


vara, o Bodisatva-Mahasatva, junto com toda a Assembléia e todo o mundo com seus deuses,
humanos, asuras e gandarvas todos se alegraram, louvando o que o Abençoado havia dito.

Isto conclui o “Sutra do Coração da Prajnaparamita”.

153
TREINANDO NO PRAJNAPARAMITA

Prajnaparamita é um método de olhar todas as categorias que consideramos fixas, pois nos rela-
cionamos com as formas e não com os substratos. Um mesmo substrato adquire muitas formas,
por isso forma é vacuidade. Forma é mágica. Onde quer que olhamos, nos relacionamos com
formas, todas elas construídas, impermanentes.

A liberação ocorre pelo riso e não pela seriedade, não pela dinamite, não pela vacuidade, nós
não temos que destruir o mundo. Nós sorrimos para ele.

Como alguém que repentinamente se vê de forma mais ampla do que se via. O samsara não é
negativo, o samsara é lúdico. Nós sofremos dentro do samsara como as crianças também sofrem,
por coisas muito simples. Nossa dor em samsara está ligada a energia; nós não só não vemos a
energia como tomamos a obediência àquela energia como nosso refúgio fundamental. A única
forma de superarmos isso é compreendermos este processo e sorrirmos!

Essa energia é o sangue do samsara, é o que o movimenta. Precisamos não só entender o


samsara, mas temos de absolver o samsara, liberá-lo, iluminá-lo. Prajnaparamita nos ajuda a
compreendermos o aspecto xamânico da realidade.

Pensar, contemplar e repousar sobre formas, sensações, percepções, formações mentais e cons-
ciências vendo todos eles como formas, sempre em transformação. Geramos o olho do Prajnapa-
ramita. Trazer exemplos de nossas vidas.

Abordagem Tantrayana: como são os cinco skandas?

1. (...) é vazio, vazio é (...)


2. Vazio nada mais é do que (...), (...) nada mais é do que vazio.
3. Sob quais condições surge (...)?
4. Que qualidades manifestam (...)?
5. Que fatores ao serem modificados, mudam (...)?
6. A existência de (...) surge pelos sentidos, e/ou por contato sensorial indireto, e/ou pela
predisposição mental, e/ou pela menção verbal. Outros meios?
7. Sendo (...) vacuidade, significa que (...) não existe? Não é real? Não é reprodutível? Não há
ciência possível sobre ele? É ilusório? A realidade de (...) é “real”, mas não estamos aprisiona-
dos! Há liberdade!

154
Buscando Ponto Último
Lama Padma Samten

1. A Mandala Última

Abra os olhos devagar e veja


A realidade Vajra inteira diante de você
Respire devagar, sem esforço
Nada a ser sustentado,
Nada a ser visto ou criado.
Naturalmente presente
Apenas veja, suavemente.

Quando se perder,
É na realidade Vajra que estará
Não há dois lugares,
Apenas esse.
Sem esforço,
Mandala natural. Veja!

Corpo, energia, mente


Paisagem, Mandala, céu
Natureza Vajra tudo abarca
Sem esforço
Sem tempo
Não é necessário obter algo,
Nem fixar-se. Veja!

O deslocar-se causal
Por dentro da presença Vajra
Torna existente
O que é apenas Vajra
Contemple isso.

O deslocar-se causal
É o deslocar-se Vajra
Não há como perder-se
Ainda assim surge um mundo
Com significado causal,
Fixado a isso
Operamos a realidade Vajra
E não vemos seus atributos completos,
E perdemos a capacidade de ver Vajra

Nem um, nem outro


Nem entre, nem meio
Natureza Primordial - Guru Absoluto
Mãe do Samara Vajra
Mãe do Nirvana Vajra
Nada a fazer...
Não perca o Espetáculo!

155
2. Mandala do Lótus

Hum!
Intenção iluminada de Guru Rinpoche
Emanção da Intenção Iluminada de Kuntuzampo
Mãe da Terra Pura da Mandala do Lótus
Emaho!

Nem puro, nem impuro,


Mandala da compaixão
Pela intenção iluminada de Guru Rinpoche
Cada elemento da Roda da Vida
Visto como gerado dos 12 elos
Transforma-se, dá origem
A um elemento puro na Mandala da compaixão
Obstrutores se tornam
Protetores do Darma
Demônios em servos obedientes
Emaho!

Manter a visão
É reconhecer a Mandala Natural
Emanando Samsara e Mandala do Lótus
Ver em cada manifestação 12 elos
Manifestação da Mandala
Cada ser do Samsara
Elemento indispensável
Componente integrante da Mandala
Constituinte concreto da Terra Pura

O natural encontro
Da Mandala Natural de Kuntuzampo,
Da Mandala do Lótus de Guru Rinpoche
Das infinitas paisagens e mundos dos 12 elos,
Todas vivas, dialogando entre si,
Indispensáveis simultaneamente,
Isso é a visão.

Meditação é manter isso


Em todas as aparencias 12 elos
Recolectando e purificando Alayavijanana

3. Ação

Ação é o milagre
Do movimento condicionado
Dentro da Mandala do Lótus

Seu segredo é sustentar a visão


Sempre ver 12 elos e a Mandala Natural
Sorrir
Converter cada elemento 12 elos,
Dar nasicmento

156
E acioná-lo causal e não-casualmente
Ambos,
Para benefício dos seres
É penetração da visão em todos os âmbitos de 12 elos
Essa penetração é a verdadeira compaixão
Ação Iluminada de Guru Rinpoche

Veja 12 elos com olhos de Mandala do Lótus,


Emaho!

O mundo faz sentido e se move perfeito!


As qualidades e felicidades são possíveis.
Construa-se com seus papéis aí
Veja cada ser aí
Veja 12 elos e Mandala do Lótus com olhos da Mandala Absoluta Natural
Emaho!

O céu acima não tem marcas!


Nem mandalas e nem 12 elos
Agora una esses três mundos:
Mandala Absoluta Natural, Mandala do Lótus, Roda dos 12 elos
Inseparáveis
Intenção Iluminada de Kuntuzampo
Sorria!

Mova-se sem pressa


Céu acima
Intenção Iluminada de Guru Rinpoche viva, pulsando
Roda dos 12 elos - jardim
Emaho!

Ação vitoriosa, impossível detê-la!

4. Moralidade

Perfeição de ética e moralidade


É mover-se apenas na Mandala!
Não descuidem disso!
Veja!

Proteja isso como seus olhos


Proteja como a sua pele

Medite, construa, dê nascimento,


Sustente, viva dentro
Da Mandala!
Emaho!

5.Observador Vajra

Abra os olhos devagar


Tudo ao redor manifesta significado
Produz impulsos

157
Cerre os olhos, lentamente.

Abra os olhos devagar


Natureza Vajra viva, atuando
Cerre os olhos lentamente

A operação dos olhos


Produz a sensação de alguém atrás dos olhos
Produz a sensação do objeto diante dos olhos
Veja a natureza vajra do surgimento dos objetos

Os objetos são vajra, não estão nos próprios objetos


Não têm localização e nem tempo.

Agora veja a natureza vajra do surgimento do observador.


Natureza primordial ganha forma
Surge magicamente e fica presa aos objetos construídos

158
Quatro Pensamentos que Transforma a Mente
Lama Padma Samten

1. Introdução

Hoje à tarde vamos prosseguir com a seqüência dos ensinamentos que compõem a estrutura que
estamos examinando, contemplando agora Os Quatro Pensamentos que Transformam a Mente.
Hoje pela manhã nós olhamos as Quatro Nobres Verdades, contemplando rapidamente os pri-
meiros itens da Roda da Vida, e também abordamos, de forma rápida, o Nobre Caminho dos Oito
Passos e os três níveis como esses ensinamentos são apresentados, quais sejam: os níveis de
visão, meditação e ação.

Como esses vários itens foram abordados de uma maneira rápida, faz-se necessário mais comen-
tários sobre eles. Ou seja, quando vocês forem estudar novamente essas gravações, vocês sai-
bam que esses itens não foram totalmente explicados e que precisariam de um detalhamento.
Eu expliquei de forma mais aprofundada somente as Quatro Nobres Verdades, tendo passado de
forma muito rápida pelo Nobre Caminho Óctuplo.

O objetivo de nós olharmos esses ensinamentos é o de desenvolvermos uma visão abrangente,


como se tomássemos uma fotografia de uma distância elevada, que apesar de não termos os
detalhes, teremos, no entanto, uma visão de conjunto, propiciando um melhor entendimento do
que estamos fazendo.

Então, ao invés de olharmos os ensinamentos mais sofisticados, vamos olhar os ensinamentos


mais simples, ou seja, vamos começar a olhar com mais detalhes o início mesmo desses ensi-
namentos. Assim, vamos examinar os Quatro Pensamentos que Transformam a Mente, pois eles
representam o próprio processo de transformação.

De início, vou introduzir o primeiro método de meditação, que nos ensina como utilizar os ensi-
namentos verbais como método de meditação. Ou seja, como aproveitarmos a escuta dos ensi-
namentos como prática de meditação também. Chagdud Rinpoche, meu mestre, sempre enfati-
zava a importância de nós praticarmos a meditação sobre o que nós ouvimos. Progressivamente,
fui desenvolvendo uma apreciação maior dessa instrução. No inicio, rejeitei um pouco esses
ensinamentos porque imaginava que os ensinamentos da meditação silenciosa eram melhores.

Na verdade, dentro de uma gradação de ensinamentos, a meditação silenciosa é muito mais


sofisticada do que os ensinamentos do pensar, contemplar, repousar. Mas não há ensinamento
que não possamos olhar de uma forma mais e mais sofisticada. Esses ensinamentos sobre pensar,
contemplar e repousar podem ser o início do processo. Mas, dependendo de como nós os enfoca-
mos, eles também podem ser abordados de uma forma sofisticada.

Então, explicarei um pouco as diferentes formas de examinar esses ensinamentos. Antes mesmo
de entrar no conteúdo dos ensinamentos sobre os Quatro Pensamentos que Transformam a Men-
te, vou começar falando sobre o pensar, o contemplar e o repousar.

2. Pensar, Contemplar e Repousar sobre os ensinamentos

2.1 - Evitar os defeitos do pote

O pensar-contemplar-repousar é um método muito útil para transformarmos efetivamente a nos-


sa forma de examinar a realidade. Assim, quando ouvirmos os ensinamentos, devemos ter muito
cuidado para não praticar nenhum dos defeitos, chamados de “defeitos do pote”. Por exemplo,

159
nós deveríamos ser como um “pote límpido”, “vazio” e “pronto para receber seja o que for”. Se
nós não estivermos receptíveis ao que vamos ouvir, vamos apenas desperdiçar o nosso tempo.

Hoje pela manhã vimos que, se quisermos ser céticos, precisaríamos primeiro ouvir, para só en-
tão criticar. Se não ouvimos é porque devemos estar apegados às nossas crenças, o que nos im-
pede de sermos verdadeiros céticos. Estaremos operando com um nível de apego que nos impe-
de de ouvir. Então, esse primeiro nível de receptividade significa o pote límpido, vazio e voltado
para cima. A limpidez significa que não há contaminação. Ou seja, quando ouvimos, ouvimos
sem apego, ouvimos sem perturbação interna. Simplesmente ouvimos e procuramos entender. A
partir disso, nós poderíamos criticar esses ensinamentos. Então, esses ensinamentos de pensar-
contemplar-repousar estão dentro desta categoria de operação como um “vaso límpido”.

Se tivermos o “vaso emborcado”, por exemplo, isso significa que não somos receptíveis, que não
queremos nem pensar, nem olhar o que está sendo dito. Eventualmente, podemos ter o “vaso
cheio”, que equivale ao fato de nós termos muitas idéias e não querermos mais nenhuma outra,
não estando também receptíveis. Podemos, ainda, ter um “vaso contaminado”, ou seja, termi-
namos transformando o que ouvimos em alguma coisa menor, alguma coisa poluída. Ou ainda,
podemos ter um “vaso rachado”, ou seja, as coisas são colocadas dentro, mas esquecemos.
Então, há os ensinamentos de como não esquecer, de como manter o vaso puro, como ser recep-
tível, etc.

Por que esses ensinamentos? Porque ao longo do tempo o próprio Buda foi percebendo que os
alunos tinham dificuldades de um jeito ou de outro. Então, ele foi explicando como fazer para
superar essas dificuldades.

Conversando com Alan Wallace, que se submeteu ao treinamento para monge, ele explicou
como é que eles fazem para lembrar dos ensinamentos. É que os monges precisam decorar todas
as categorias dos ensinamentos. Ele afirmou que quando eles ouvem, eles não apenas ouvem,
mas treinam internamente muitas vezes em se lembrar daquilo que ouviram. Eles aprendem a
“ouvir de fora” e depois a “ouvir de dentro” muitas vezes, até o ponto em que os ensinamentos
brotem facilmente. Por exemplo, nós ouvimos uma vez e pensamos que será fácil lembrarmo-
nos do que ouvimos. Mas essa nossa lembrança é muito frágil. Precisaríamos de novo e de novo
ouvir ou ler.

Por isso, existem esses métodos de memorização que são desenvolvidos dentro dessas culturas
orais. Por exemplo, eles colocam números e nomes em tudo, como os ensinamentos das Quatro
Nobres Verdades, do Nobre Caminho de Oito Passos. São números e títulos que ajudam na lem-
brança dos conteúdos, pois, ao invés de terem que lembrar de todo o conjunto de palavras, eles
lembram de títulos e números. Assim, mais facilmente eles recobrem a memória sobre aquele
conjunto e fica tudo organizado dentro da mente. Se tivéssemos ouvido os ensinamentos de
hoje de manhã sem o apoio dos títulos e dos números, vocês teriam mais dificuldade de lembrar
depois.

Esse é, pois, o ensinamento de “como não esquecer”, de “como curar a rachadura do pote”.
Ou seja, ouvimos os ensinamentos, mas perdemos! E temos que ouvir tudo de novo! Então, nós
precisaríamos desenvolver esses métodos para podermos até mesmo ajudar as outras pessoas.
Precisaríamos ser capazes de lembrar esses ensinamentos.

Uma vez que tenhamos desenvolvido a capacidade de ouvir os ensinamentos com o “pote lím-
pido”, nós precisaríamos saber o que fazer com eles. Vocês podem imaginar que esses ensina-
mentos vêm de uma cultura de vinte e seis séculos, herdeira de uma cultura que já monta agora
a cinqüenta séculos, uma cultural oral muito antiga da Índia. Eles desenvolveram a sofisticação
de cada detalhe, pelas tantas vezes que aquilo foi feito. Assim, quando vamos olhar o que fazer

160
com os ensinamentos, vamos entender que tudo aquilo que ouvimos, deveríamos primeiro aco-
lher para somente depois criticar.

Esse processo de acolher e criticar está dentro da primeira categoria, que é chamada de “ou-
vir ou pensar”. Assim, é isso que eles fazem: primeiro, ouvir e pensar; depois, contemplar, e,
por fim, repousar. É sempre assim. Então, aqui nós temos esses três itens: pensar, contemplar e
repousar.

2.2 - Primeira etapa: ouvir

Assim, quando ouvimos os ensinamentos, deveríamos ser capazes de ouvir com atenção e enten-
der aquilo que está sendo dito. Se fizermos isso, então podemos ser céticos, críticos, em relação
àquilo que estivermos ouvindo. É por essa razão que, no budismo, se diz que se você não for
crítico, você não desenvolve uma compreensão adequada dos ensinamentos. Assim, é necessário
que sejamos críticos, que olhemos com distanciamento, sem a necessidade de “aceitar” o ensi-
namento. Primeiro, devemos apenas ouvir o ensinamento. Depois, o testamos à vontade.

No Budismo em geral, o próprio Buda diz: “Nós deveríamos testar os ensinamentos como quem
compra ouro”. Ou seja, pelo calor derretemos o ouro e vemos se ele se separa dos outros ele-
mentos. Se ele não se separar, se não de dividir, isso significa que é ouro puro mesmo. O que
significa o “calor” no caso dos ensinamentos? Significa a própria prática, a argüição, a experi-
mentação que fazemos dos ensinamentos, a partir das nossas próprias experiências. Vemos se
aquilo que ouvimos é razoável e se faz sentido.

Vemos que os ensinamentos são compostos de vários itens. Após ouvirmos, o ponto seguinte
seria examinar um a um esses itens e ver se são verdadeiros. Será que nós estamos realmente
entre Quatro Montanhas? Será que nós estamos verdadeiramente presos pela aflição de “duka”,
pela insatisfatoriedade? Será que, efetivamente, tudo que nós tocamos está preso pela expe-
riência cíclica? Então, precisaríamos olhar criticamente e tentar encontrar algo que não seja
assim. Tentamos vasculhar isso com a mente. Dedicamos algum tempo para essa etapa. Depois
que entendemos e tiramos nossas conclusões, então passamos para a etapa seguinte, que é o
contemplar.

2.3 - Segunda etapa: contemplar

Nesse contemplar, nós olhamos o ensinamento e buscamos experiências positivas, experiências


que confirmem esses ensinamentos a partir do que já vivenciamos e do que podemos olhar à
nossa volta. Com isso, tentamos apontar nas várias direções e confirmar se tudo o que vemos
está ou não na experiência cíclica, por exemplo. Vemos a cadeira onde estamos sentados, esse
livro, esse papel, o prédio onde estamos; vamos olhando todas as coisas assim e vamos vendo
que também estão na experiência cíclica. Constatamos que tudo o que apontarmos, toda a ex-
periência que identificamos, é uma experiência cíclica: tem início, meio e fim.

Com essa contemplação, nós desenvolvemos a capacidade de usar o ensinamento na vida coti-
diana, diretamente. Pois a contemplação é justamente isso: olharmos aquilo que nos cerca e
vermos se isso é verdadeiro. Nós pegamos a informação que recebemos - que era apenas teórica
- e começamos a transformar em uma informação viva. Nós geramos como que um método in-
terno, pessoal, de olhar para as coisas e ver aquilo funcionando. Depois, vocês vão entender que
cansamos um pouco, e aspiramos entrar na terceira etapa, que é quando silenciamos a mente e
repousamos.

2.4 - Terceira etapa: repousar ou silenciar a mente

161
Essa é uma etapa muito interessante e também muito importante, porque nós nos percebemos
“vivos” sem precisarmos ficar pensando ou analisando seja lá o que for. Nos vemos vivos, intei-
ros, presentes e em silêncio. Isso nos introduz numa experiência que depois vai culminar com a
meditação da Oitava Etapa, que é o que chamamos de “meditação na presença”. Nós ocupamos
a mente e depois silenciamos a mente. Ocupamos e silenciamos. Com isso, ganhamos essa habi-
lidade de ocupar a mente de forma direcionada e depois silenciá-la. Ocupá-la e silenciá-la.

Essa inversão de expectativa é muito importante, bem como essa capacidade nossa de dirigir
a mente: “Agora você ouve”, e a mente fica disciplinadamente ouvindo e lembrando; “Agora
você analisa, você pensa” e a mente obedece; “Agora você encontra exemplos e contempla”, e
“Agora você silencia”. Então, lentamente, a mente começa a se tornar dócil. Quando não te-
mos ainda essa habilidade, é difícil para nós ouvir alguém falando algo, porque a nossa mente
fica saltitando. Escutamos um pouco “dentro” e um pouco “fora”. Se estamos muito ansiosos,
ouvimos mais o nosso diálogo interno, que estou chamando de “dentro”, do que o que nos está
sendo dito de “fora”.

Ou seja, vamos perdendo os ensinamentos que estão diante de nós porque a nossa audição fica
deficiente. Eventualmente, nós apenas guardamos aquilo que ouvimos, mas não somos capazes
de criticar, não somos capazes de avaliar. Então, precisaríamos desenvolver essa capacidade de
avaliar.

Se não tivermos a mente disciplinada, não conseguiremos ouvir agora e avaliar depois. E muito
menos seremos capazes de usar o ensinamento para contemplá-lo junto com a nossa experiên-
cia. Também vai ser difícil silenciar a mente, pois vamos ter perturbações em todas essas áreas.
Chagdud Rinpoche dizia: “A meditação é tornar a mente dócil”. Para mim, essa é a melhor de-
finição de meditação. Tornar a mente dócil é, então, a nossa capacidade de direcionar a mente
para uma função ou outra, e a mente obedecer. E isso é uma habilidade da meditação. Medita-
ção não é simplesmente ficar em silêncio.

Quando fazemos essas atividades, nós nos preparamos lentamente para ajudar as outras pesso-
as também. Por exemplo, quando eu converso com vocês, uso naturalmente esse processo. Por
que? Porque, primeiro, eu lembro os ensinamentos. Depois, eu falo sobre os ensinamentos, e
vocês podem observar que eu fico dando exemplos. Durante essa fase, fico prestando bem aten-
ção nos olhos de vocês. Não passo para outro item enquanto não percebo que eles brilham, que
me dão algum indício de compreensão. Enquanto isso não acontecer, fico dando exemplos e mais
exemplos. Isso é um método. E mais adiante vocês vão conseguir fazer isso também.

Não seria nada interessante eu apresentar os ensinamentos de uma outra forma, como às vezes
os professores fazem: vão enchendo o quadro sem olhar para a cara dos alunos, sem ver se eles
estão entendendo. Essa não é uma boa forma de ensinar.

E podemos sempre praticar desse modo, nos reunimos para pensar, contemplar e também repou-
sar. Vocês vão perceber que, às vezes, no meio da palestra, eu paro. Esse parar é também um
momento, mesmo breve, em que podemos analisar e entender melhor o que estamos estudando.
Esse é um método natural de tratar dos ensinamentos tanto quando recebemos os ensinamentos
ou quando os oferecemos aos outros. Normalmente, quando eu paro, mentalmente observo qual
a seqüência: “Vi isso, aquilo e o que vem depois?” Vejam que eu não tenho nenhum papel junto
comigo, pois não é preciso. Está tudo arrumado dentro da minha memória. Eu passo às vezes
muitas horas falando direto, sem qualquer anotação de apoio, porque está tudo dentro de mim,
dividido em cada quadradinho, e cada quadradinho foi pensado, contemplado, repousado. Já
encontrei muitos exemplos na minha vida e na vida dos outros.

Com o tempo, mesmo sem o esforço de ter que memorizar, será natural que isso vá surgindo.

162
De tanto em tanto, vem mais um pedaço agregado, outras categorias dos ensinamentos que
se conectarão de forma surpreendente, como se fosse uma porta tipo “USB”, deixando aquela
parte do ensinamento ativo. Começamos a ver as conexões de uns ensinamentos com os outros e
vamos alargando e aprofundando a compreensão.

Então, sugiro que vocês comecem com o pensar, contemplar e repousar. Ou seja, pratiquem
isso. Temos uma lista de temas expostos nos quadros resumos, sobre as Quatro Nobres Verdades
e o Nobre Caminho de Oito Passos, que são temas excelentes para fazer essa prática de contem-
plação.

Esse é um processo pelo qual pegamos cada item dos ensinamentos e transformamos num item
vivo. Antes eram itens amorfos, mas eles têm que ganhar vida a partir de nós mesmos. E essa
vivificação dos ensinamentos só é possível quando formos capazes de praticar a contemplação, a
buscar encontrá-los nas nossas próprias experiências. Mais do que isso, passamos a descobrir um
meio de tornar as coisas vivas. E esse meio de tornar as coisas vivas é muito útil porque trans-
forma a nossa prática em algo vivo, real, deixando de ser algo burocrático.

Eu aconselho vocês a tomarem esse método, que é olhar todas as categorias dos ensinamentos
budistas, sempre item por item, desse modo: pensando, contemplando e repousando. Dito isto,
nós podemos entrar nos ensinamentos sobre os Quatro Pensamentos que Transformam a Mente.

3. Os Quatro Pensamentos que Transformam a Mente

O primeiro desses pensamentos é um ensinamento preliminar aos chamados Quatro Pensamentos


que Transformam a Mente, e depois esses quatro são sucedidos por um outro ensinamento. En-
tão, na verdade, os Quatro Pensamentos formam um grupo de seis. Ou seja, tem mais um prévio
e um posterior. E essa é uma maneira que usamos para lembrar: os quatro pensamentos são seis!

3.1 - Pensamento preliminar: Homenagem ao Lama, aquele que conhece

Para ajudar na lembrança desse primeiro pensamento, nós começamos com um versinho para
cada um dos ensinamentos. O versinho do ensinamento preliminar é assim: “Homenagem ao
Lama, aquele que conhece”. Se lembrarmos do versinho, isso funciona! Depois, vem um comen-
tário. Como é que surge o comentário? Ele surge porque nós ouvimos os ensinamentos, pen-
samos, contemplamos, conversamos com outras pessoas sobre isso, lemos em outros lugares.
Assim, quando ouvimos o versinho, sabemos tudo o que está envolvido por trás dessa expressão.

Mas o que significa, então, esse pensamento preliminar “homenagem ao Lama, aquele que
conhece”? Sempre gosto de explicar esse ponto assim: nós não estamos sozinhos, ou seja, é
importante sabermos que há uma “conspiração do bem”. E essa não é uma conspiração do bem
surgida nos nossos tempos. Ela é muito antiga, pois desde o início das complicações surgiram
seres que estão voltados para gerar todos esses benefícios. Ou seja, os Budas existem. E esses
ensinamentos estão presentes e se manifestam dentro de uma linhagem.

Assim, geração após geração, vocês vão encontrar pessoas que ouviram dos seus mestres mais
velhos, que ouviram de outros mestres, que ouviram de outros mais antigos, e aquilo vem vin-
do. Mas, muito mais do que apenas a memória do que é falado, a cada geração, a cada mestre,
todos os ensinamentos ganham vida de novo, através do pensar, do contemplar e do repousar.
Com o tempo, os mestres manifestam, dentro deles mesmos, a realização dos primeiros mestres
ou dos primeiros Budas, que falaram sobre aquilo.

163
Como isso acontece? Acontece porque a nossa natureza é idêntica. Lentamente, esses ensina-
mentos passam de “simples memória” para visão. Eles passam da visão de um para a memória
do outro, e da memória desse eles se tornam vivos. Ou seja, eles são vistos de novo como rea-
lidade. Quando isso vai acontecendo, as próprias pessoas ao verem isso operando dentro de si,
têm a sensação de que elas vão morrendo para o que elas eram, e vão nascendo como instru-
mentos dessa sabedoria que não é delas. Assim, é para lembrar dessa seqüência toda de ensi-
namentos que chegam até nós, que dizemos: “homenagem ao Lama, aquele que conhece”. Isso
significa que alguém traz para nós isso e é essa a função dos Lamas. Eles chegam numa determi-
nada região onde não há ensinamentos e os oferecem.

Quando o Lama surge, surge com ele o Darma. O Darma é o ensinamento. E num certo sentido,
surge o Buda, porque “quem” falou o Darma foi o Buda. Então, o sentido do Buda fica claro.
Nós passamos a entender o que o Buda falou, o que ele foi e o que ele fez. Com isso nós vamos
entender que, dentro do Lama, tem uma “energia natural”, uma “vontade natural” de ajudar os
seres. Mas essa vontade natural não é dele. Ela é “um potencial dentro de cada pessoa”. Então,
nós sofisticamos a nossa noção de Lama, saindo da noção de uma pessoa para a noção de uma
“energia” capaz de trazer benefícios.

Veremos que essa energia de trazer benefícios não é algo que se manifesta num determinado
tipo de pessoa, mas que está presente dentro de cada um de nós. O diferencial é que algumas
pessoas, a partir dessa compreensão, irão dedicar suas vidas dessa maneira, como eu por exem-
plo, que sou chamado de Lama. Mas não é o fato de eu ter sido ordenado, de ter recebido esse
título que faz de mim um verdadeiro Lama. É a operação dessa energia que indica a operação do
Lama. Ou seja, se nós confundirmos o aspecto pessoal, nós não vemos propriamente o verdadei-
ro Lama.

O próprio Buda dizia: “Se você olhar para o meu corpo e disser que vê um Buda, isso não é ver-
dade, isso é um engano”. O Buda não pode ser visto no fenômeno de sua aparência. Na verdade,
o Buda significa a lucidez e a compaixão em ajudar os seres. Mas isso não pode ser colhido atra-
vés de uma fotografia. Isso é algo sutil. Pensando assim, nos damos conta de que há uma “pre-
sença” dentro de cada um de nós, que é compassiva e que está disponível para ajudar os seres.
Então, isso tudo representa o Lama.

3.2 – Primeiro Pensamento: Vida humana preciosa

Assim, nós passamos para o primeiro dos Quatro Pensamentos que Transformam a Mente. Ele
tem um título: Vida Humana Preciosa.

Abordagem da consciência livre

Começamos entendendo que todos nós temos vidas humanas. Isso não é uma coisa simples, esse
ensinamento já é complexo. Explico: a consciência que estamos manifestando, não é apenas
uma consciência humana; ela é uma consciência vasta, livre, e pode se manifestar sob diferen-
tes condições. Esse “princípio vivo” que somos se manifesta em uma diversidade enorme de
seres: entre animais e vegetais, por exemplo.

Esse princípio de ação está presente em todo organismo vivo. Quando esse princípio de ação se
manifesta através de um corpo humano, ele ganha uma característica humana. Por exemplo:
mesmo quando esse princípio se manifesta através de um corpo humano, e esse ser humano diri-
ge um fusca, ele passa a ser um princípio limitado pelo automóvel. Aquela mesma pessoa chega
em seu local de trabalho, encosta o fusca e pega um caminhão de entrega dentro de Recife.
Agora o automóvel é um super-caminhão, poderoso, pesado. E esse ser humano já se manifesta

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de uma forma diferente de como ele se manifestava quando dirigia o fusca. Então, se ele che-
gar ao seu local de trabalho de moto ou de bicicleta, ele manifestará uma outra característica.
Quando se está no trânsito, de carro, de moto ou de bicicleta, é uma outra consciência que está
operando. O automatismo é diferente. A forma de perceber os diferentes veículos é também
diferente no trânsito. A forma de perceber os faróis, os semáforos, as sinaleiras, é diferente. A
forma de perceber os pedestres, a velocidade, tudo, é diferente. Os automatismos são outros.

Então, nós temos uma consciência que se filtra e se adapta aos diferentes veículos. Por exem-
plo, mesmo que tenhamos a habilidade de dirigir um automóvel, quando pegamos um caminhão
grande é completamente diferente. Vamos precisar dessa nova habilidade. Assim, percebemos
que temos uma “consciência livre” que é capaz de se adaptar a diferentes veículos. A cada veí-
culo que essa consciência é submetida, ela vai precisar gerar outro tipo de automatismo, outras
formas da percepção da realidade.

Assim, cada veículo gera uma consciência própria. Ou seja, temos uma consciência humana
porque temos um corpo humano, mas nós não “somos” uma consciência humana. Somos uma
consciência livre, que é capaz de se adaptar a diferentes corpos. Quando o nosso corpo humano
entra em uma deficiência, por exemplo, quando por acidente alguém fica paraplégico ou tetra-
plégico, é espantoso que a pessoa não morra de tristeza. Nós vamos ver pessoas tetraplégicas
ou paraplégicas que estão ativas. Ou seja, surge uma nova consciência dentro dessa limitação, e
ela segue operando.

Quando eu era muito jovem lembro que achava muito estranho o fato de que os velhos pudes-
sem ainda ter alguma vontade de viver. Eu olhava para eles e não conseguia entender a felici-
dade deles. Achava que apenas o corpo jovem é que valia a pena. Agora, com meus 56 anos,
já acho que vale a pena! Fiz uma adaptação, pois já não vejo uma grande diferença, nem um
grande problema! Então, a vida segue, a nossa consciência vai se adaptando à forma do corpo.
Confesso para vocês que para mim foi mais difícil e mais abrupto mudar de professor universitá-
rio para Lama. Quando eu chegava junto das pessoas como professor, eu fazia de um certo jeito.
E como um Lama, não podia ser igual. Ou seja, passei a ter algumas dificuldades. Por exemplo,
andar nos shoppings, nos aeroportos, com essa roupa de Lama é uma coisa muito diferente do
que andar com roupas convencionais. Então, isso tudo requer uma adaptação na consciência.

Estou dando esses exemplos apenas para que vocês lembrem esse ponto. Ou seja, enquanto
estou dando esses exemplos, estou contemplando, estou ajudando vocês a entender isso. Mas,
enquanto estou dando os exemplos, tenho que lembrar do que estamos fazendo, senão, nos
dispersamos. O que nós estamos fazendo? O que estamos contemplando? Estamos contemplando
o Primeiro Pensamento que Transforma a Mente. E, então, o que é que eu estava falando sobre
esse aspecto de consciência? Vimos que a vida humana é preciosa e que precisamos introduzir
essa noção de consciência livre. Então, qual é a tese que eu estou trazendo por trás dessa re-
flexão de que a consciência se adapta ao veículo? Por que eu estou dizendo isso? É apenas para
facilitar que entendamos que nós podemos embarcar em um outro veículo, um veículo peludo,
com rabo, de unhas (risos), um veículo alado, um veículo réptil....

Para alguns, essa tese é considerada inaceitável. Por exemplo, na visão espírita, o ser humano
está sempre ascendendo, eles não vêem a possibilidade de uma vida posterior num veículo infe-
rior. Mas, na visão budista, nós vamos encontrar essa situação. Ou seja, nós temos uma natureza
livre que se torna uma mente ou consciência quando ela começa a operar sob as condições do
veículo. E isso nós podemos constatar na nossa própria experiência, quando trocamos de veícu-
lo de transporte ou quando o nosso corpo humano altera a sua capacidade de mobilidade ou de
operação. E vemos que ainda assim seguimos vivendo... Como isso é possível? É possível porque
a consciência se adapta, ela opera de uma outra forma, e aquilo segue.

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Assim, quando olhamos desse modo, meu objetivo é introduzir a preciosidade da vida humana.
Ou seja, a vida humana não é tão simples e fácil de nós alcançarmos.

Volta e meia vemos notícias de algum acontecimento extraordinário relacionado aos animais.
Temos notícias de uma porca alimentando, através da amamentação, filhotes de tigre. Isso é
extraordinário! Na história romana, nos contam que uma loba alimentou Rômulo e o Remo.
Falam que é mito, mas talvez não seja! Nós vamos ver relatos de cachorros vira-latas protegen-
do crianças de ataques de animais maiores, como os pitbulls. Os vira-latas não teriam nenhuma
razão para isso, pois não se trata de auto-defesa. Mas eles tiveram a capacidade de defender
uma criança.

Outro dia vi um relato que achei emocionante. Uns nadadores estavam em alto mar e surgiu
um conjunto de tubarões próximo a eles. Eles não teriam nenhuma chance. Mas eis que apa-
receu um grupo de golfinhos que os cercou, impedindo que os tubarões se aproximassem. Os
golfinhos levaram os nadadores para um local seguro, onde eles conseguiram sair do mar e se
salvar. Os golfinhos conseguiram entender a situação dos nadadores e isso significa compaixão.
Outro exemplo desse tipo de compaixão vi hoje na internet. Na Etiópia, uma menina de doze
anos estava ameaçada e agredida por vários homens adultos, e ela chorava muito. Três leões se
aproximaram e espantaram os adultos e protegeram a criança até que apareceram familiares ou
pessoas confiáveis. Na presença dessas pessoas os leões saíram, voltaram para a floresta e não
causaram nenhum mal a ninguém. Na verdade, eles protegeram a criança dos maus tratos que
aqueles adultos estavam lhe causando.

Então, é possível que, com o tempo, nós vamos encontrando mais e mais relatos como esses.
Claro que, na visão budista, vamos dizer que esses animais são seres que estão operando com
uma consciência muito mais ampla do que o corpo deles permite. Do mesmo modo que nós,
seres humanos, temos uma consciência que pode ultrapassar a nossa condição e entender os
outros seres, vemos que os outros seres também são capazes de nos entender e desenvolver
compaixão.

A compaixão é um elemento muito importante, porque ela representa, de um modo prático,


essa liberdade que temos de ir além da nossa consciência humana, além da nossa consciência de
individualidade e de corpo. Então, estou falando sobre isso para trazer essa noção de liberdade,
ou seja, nós temos uma essência, e essa essência, de acordo com o veículo, ela se adapta, mas
segue com liberdade.

Nesse momento, nós temos um corpo humano. Mas temos também outros exemplos da nossa
proximidade com os animais. Existem seres humanos que desenvolveram ou desenvolvem “vi-
sões românticas” em relação aos animais. Ou seja, desenvolveram atividades sexuais com os
esses seres. Uma comprovação desse relacionamento é o fato de que várias doenças, que são
vírus residentes em animais, passaram a ser patológicos para os seres humanos. Um exemplo é a
sífilis, que dizem ter sido adquirida dos porcos. Conta-se que nas viagens dos navios veleiros, os
homens tinham esse pensamento romântico em relação aos animais que eles traziam nos navios
para a sua própria alimentação. Também se diz que na rota da AIDS estão os macacos, porque
eles não desenvolvem a doença, mas têm o vírus. E assim tem uma listagem de vírus adquiridos
dos animais pelo contato sexual.

Então, se as pessoas desenvolvem esse “olho apaixonado” pelos animais, isso também revela a
liberdade da nossa consciência. Por isso, quando nós morrermos, é bom que visualizemos pais
humanos, senão podemos ser conduzidos a um renascimento em reino não-humano! Os mestres
Tibetanos analisam, etapa por etapa, como desenvolvemos a nossa proximidade com os seres
humanos. Eles vêem que todo ser humano que nasce, visualiza pai e mãe humanos. Ele aspira
estar entre o pai e a mãe humanos. Assim, podemos desenvolver essa conexão. Mas, na visão

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budista, a forma humana não é a única forma possível de renascimento. Podemos nascer como
outros animais. E isso é bem forte na cultura chinesa, que acreditam que os parentes mortos
podem retornar à família em forma de animais de estimação, tentando retornar de algum jeito
àquela casa.

Abordagem da análise numérica dos seres

No entanto, mesmo que não entremos neste tipo de abordagem, nós poderíamos fazer uma
análise numérica da situação humana. Veremos que o número de outros seres não-humanos - os
insetos, por exemplo - é muito, muito maior, do que o número de seres humanos. De um modo
geral, os animais são muito mais numerosos do que os seres humanos. Então se diz que não é
fácil nós desenvolvermos a proximidade com o corpo humano, por uma dificuldade numérica.
Vejam que daqui onde estou até onde vocês estão, quantas formigas poderiam ocupar esse es-
paço? Pensamos que estamos todos perto uns dos outros, mas, para os insetos, essa distância é
enorme, pois o corpo deles é muito menor. Numa caixa de abelhas tem cinqüenta mil abelhas.
Para nós, humanos, essa caixa é muito pequena! Mal caberia uma criança nela!

Por essa razão se diz que o nascimento humano é muito raro. Muito raro porque, quando com-
paramos numericamente esse nascimento humano com o dos outros animais, ele é muito pouco
provável. Os tibetanos ilustram esse tão raro ou tão improvável nascimento, com a coincidência
fortuita de uma tartaruga cega, que passa cem anos no fundo do oceano e de repente vem à
tona para respirar, encontrar o centro de uma bóia perdida no mar revolto! Isso é muito raro!
A cegueira da tartaruga representa que, quando vamos renascer, nós não temos a visão para
onde estamos indo. Vamos renascer aleatoriamente. E o mar revolto representa o “mar cármi-
co”, com a vastidão de ventres que esperam por nós (a superfície do mar). Um ventre humano é
“uma bóia”. Muito raro esse encontro, tendo em vista o número de ventres que nos esperam! É
uma situação grave! É melhor morrer com uma cordinha enrolada no dedo e grudada na futu-
ra mãe para ver se aquilo dá certo, não é? Claro que esse exemplo é uma metáfora que tenta
ilustrar a extraordinariedade do nascimento humano, pois os tibetanos sequer conhecem o mar,
muito menos os hábitos de uma tartaruga marinha, que, com certeza, não passa cem anos de-
baixo d’água, no fundo do oceano!

Assim, quando vocês tiverem filhos, vocês pensem: “Eis um ser que encontrou uma bóia! Isso é
muito raro! Vemos, então, que a possibilidade de oferecer o cuidado para uma criança é muito
extraordinário! Mas, ainda assim, tem muitas crianças sobrando, não é verdade? Não é fácil aco-
lher todos esses seres que chegam.

Com isso podemos comemorar: nós acertamos a bóia e fomos acolhidos! Poderíamos ter acerta-
do a bóia, mas a nossa mãe poderia ter pensado que não estava na hora, pois precisaria primeiro
concluir a pós-graduação. Ela poderia ter apertado o botão “delete” e teríamos voltado ao gran-
de mar, ao fundo do oceano, já com um pouco de raiva da mãe. Ainda assim, poderíamos ter
nascido, e a nossa mãe poderia ter olhado e dito: “É a cara do pai, esse eu não crio.” Ou seja, a
mãe olhou para nós e não achou isso muito bom. Então, o simples fato de nós termos sido aco-
lhidos, isso também é muito importante e extraordinário!

Em seguida, vamos precisar ser acolhidos pela família. Podemos ter sido acolhidos pela mãe,
mas termos tido algum problema de aceitação pelo resto da família, por algum tipo de precon-
ceito. Ou seja, poderíamos não ser bem vistos pela família. Mas nós tivemos a sorte de sermos
acolhidos pela família! Ainda poderia ter ocorrido que a nossa família não tivesse um lugar na
sociedade. Poderia ser uma família marginalizada. Então, nós estaríamos no mesmo barco que os
nossos pais, que a nossa família. Ou seja, não teríamos um nascimento social, não teríamos um
lugar no mundo esperando para ocuparmos. Mas nós tivemos a felicidade de encontrar um lugar
na sociedade, tivemos uma inserção, e isso é maravilhoso! Eventualmente, nós fomos ajudados,

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alguém nos empurrou daqui, ou dali, abriu um espaçozinho, nos colocou em algum lugar e ai nós
seguimos. Isso é muito raro! Poderíamos ter estudado ou não ter estudado, mas nós estudamos e
nos tornamos pacíficos. Não cometemos nenhuma grande não-virtude que tenha sido – pelo me-
nos até agora - notada ainda. Não cometemos nada terrível. Então, nos encontramos de posse
de qualidades muito especiais.

Percebam que todo esse trajeto é muito difícil de ser alcançado por grande parte dos seres
humanos! Nascer, tomar mamadeira, muitas fraldas; crescer, acordar, tomar banho, ir para o
colégio, aprender a segurar o lápis, merenda, tarefas, aprender a ler.... ufa! Isso é muito demo-
rado! Então, é bom que lembremos disso. Se formos reprovados no fim da vida, a melhor coisa
que pode acontecer conosco é a repetência. Começará tudo de novo, sabe lá que mãe virá e a
vida irá seguir. E nós teremos que transpor muitas diferentes barreiras, até chegar ao ponto em
que estamos hoje - se tivermos um pouco de sorte! Portanto, é bom que lembremos dessa traba-
lheira toda, para tratar de aproveitar a nossa vida agora!

Então, dizemos que temos uma vida humana. Mas essa vida, essa circunstância, poderia ser di-
ferente. Por exemplo, poderíamos ter nascido entre os seres dos infernos e estaríamos comple-
tamente dominados por sentimentos negativos de agressão e de medo, com corpos específicos
de seres desse reino. Mas, felizmente, isso não aconteceu. Poderíamos ter renascido no reino
dos seres famintos, ter corpos específicos dos seres famintos, completamente dominados pela
sensação de carência. Felizmente, não passamos por isso também. Nós poderíamos ter renascido
em algum tipo de corpo animal, pela vastidão de seres que oferecem ventres. Mas, felizmente,
também não passamos por isso. Poderíamos ter nascido entre os seres poderosos, que são os
semi-deuses, e estaríamos dominados por sentimentos de competição e não teríamos a liberda-
de da vida humana.

Por exemplo, se vocês estivessem dominados por competição, por disputas, vocês não estariam
com essa cara tranqüila. Ou seja, vocês não estariam aqui ouvindo, pois teriam coisas urgentes
nesse momento para serem feitas, batalhas que vão explodir hoje ou amanhã. Esses são seres
poderosos, porém excessivamente ocupados; poderosos, porém sem disponibilidade de crescer.
Ou nós poderíamos ter nascido no reino dos deuses, ou seja, estaríamos intoxicados pela felici-
dade das circunstâncias. Tudo seria muito fácil, muito bonito, muito favorável, mas estaríamos
dominados por essa condição. E dominados pela condição favorável, nós pensaríamos que estaria
tudo resolvido, que já teríamos atingido tudo que seria possível atingir. Então, teríamos perdido
a nossa vida. Mas, felizmente, nós estamos no reino ou na condição humana.

Percebendo a preciosidade da nossa vida

A condição humana é considerada muito favorável porque nunca ficamos numa situação boa
por muito tempo. Eu gostaria de avisar isso a vocês... Ficamos um tempo numa situação boa, aí
temos um percalço qualquer que acaba com a festa. Não sei se vocês já observaram isso! No en-
tanto, os percalços também nunca são tão graves, apesar de pensarmos que “agora é o fim” ou
“não tem mais jeito”. Mas, repentinamente, acontece alguma coisa boa, aí pensamos: “Agora
estou por cima!”. E vamos indo... E essa é a condição humana: esses aspectos cíclicos, sucessi-
vos, de aflições e melhorias.

Mas poderíamos estar numa condição humana problemática. Por exemplo, poderíamos ter algu-
ma deficiência, auditiva, visual ou algum tipo de impossibilidade que obstaculizasse nosso en-
contro com os ensinamentos espirituais, como faculdades mentais prejudicadas. Mas, felizmen-
te, ao que posso ver, estamos todos inteiros!

Também poderíamos ter nascido numa região onde as emoções perturbadoras são dominantes e
não conseguirmos praticar virtude. Um exemplo disso é nascer numa grande cidade em confli-

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to, como o Iraque, ou nascer nas regiões dominadas pelo tráfico de drogas das grandes cidades,
ou em alguns países que têm vastas regiões também dominadas por tráfico de drogas e guerras
incessantes. Nesses ambientes nós iríamos ser convidados a trazer à tona nossas negatividades e
não nossas virtudes. Seríamos convidados a construir as nossas vidas a partir das possibilidades
do local. Nessas condições, mesmo que não tivéssemos a motivação de produzir sofrimento, de
produzir dificuldades, seria provavelmente isso que faríamos. Mas, felizmente, estamos livres
dessas condições, pois nascemos em regiões pacíficas.

Por fim, poderíamos ter nascido em regiões pacíficas, mas onde não haveria os ensinamentos
disponíveis. Mas, felizmente, nascemos em região pacífica onde há os ensinamentos. Então, isso
é uma boa coisa! Devemos entender que isso é muito raro! Se entendermos que a situação na
qual nos encontramos é muito rara, desenvolvemos a compreensão de que o Buda e os grandes
mestres de outras tradições nos trouxeram uma benção (pois eles poderiam não ter vindo até os
seres humanos, mais vieram; poderiam não ter dado os ensinamentos, mas deram). Os ensina-
mentos poderiam ter desaparecido no tempo, mas não desapareceram. Os ensinamentos pode-
riam existir em lugares afastados de nós, mas não, eles existem onde nós estamos. Então, isso
é uma grande vantagem! Somos abençoados pelo fato de que o Buda e os grandes mestres de
outras tradições vieram.

Agora, tudo isso poderia estar presente, mas ainda assim poderíamos estar sob o poder de ou-
tros seres. Ou seja, poderíamos ter um marido ou uma esposa poderosa, ter um filho poderoso,
ter uma circunstância de vida ou um chefe perigoso, circunstâncias essas que nos impossibili-
tariam de aproveitar os ensinamentos. Não conseguiríamos ouvir os ensinamentos, ou fazer as
práticas, ou ir adiante com elas.

Assim, olhamos todas essas dificuldades e vemos que temos muitas vantagens. Temos essa ca-
pacidade toda, todos esses aspectos favoráveis. Então, dizemos: “nós temos as liberdades e
os dotes de um nascimento humano precioso”. Ou seja, temos uma vida humana e poderemos
“nascer” para uma vida humana preciosa. Nascer para uma vida humana preciosa significa nós
dedicarmos a nossa vida ao crescimento e à lucidez e não tomarmos todas essas vantagens
simplesmente para obtermos resultados dentro da experiência cíclica. Ou seja, coisas que hoje
obtemos, amanhã perdemos. Aí obtemos de novo, e perdemos. Isso seria desperdiçar a vida! En-
tão, deveríamos entender que a nossa vida deveria tomar um rumo claro em direção à lucidez,
caso contrário, estaremos perdendo tempo. Desse modo, todo esse esforço cósmico, que nos
possibilitou estar com saúde, com liberdade, com capacidade de ir adiante, tudo isso se esvai,
se não tivermos esse foco de lucidez!

Então, quando entendemos isso e decidimos seguir o caminho da lucidez, nós dizemos que temos
um nascimento humano precioso. Nesse momento, nasce a vida humana preciosa, com as liber-
dades, dotes e facilidades todas.

Assim, quando nos damos conta disso, pensamos: “Bom, daqui para a iluminação é um passo!”
Mas, sem querer desencorajar vocês, isso não é nada ainda! Nós estamos ainda um pouco longe,
que é o que veremos no segundo dos Quatro Pensamentos que Transformam a mente.

3.3 – Segundo Pensamento: A impermanência

O Segundo Pensamento que Transforma a Mente vai tratar da impermanência. Os mestres, como
Patrul Rinpoche, dizem: “A impermanência é um tema sobre o qual deveríamos meditar cons-
tantemente”. Chagdud Rinpoche sempre dizia que “nós deveríamos viver na consciência da
morte”. Isso pode parecer meio tétrico ou agorento, pois comumente pensamos: “Como é que
vamos pensar o tempo todo na morte se ainda estamos vivos? Durante a vida devemos pensar

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na vida! Deixemos para pensar na morte depois que morrermos!” Mas o fato é que a nossa vida
ganha um outro sabor quando nós, uma vez que seja, tivermos uma experiência de proximidade
com a morte. Nós entendemos a fragilidade da vida, a beleza e profundidade dessa experiência
e a importância disso.

Tem um grande mestre que dizia: “Um minuto dentro de um corpo lúcido equivale a um campo
de ouro!” A experiência comum de nós olharmos o mundo com os sentidos físicos vivos, abertos
pela lucidez, é uma experiência extraordinária. Para nós, tudo o que experimentamos é uma ex-
periência banal. Mas, na verdade, é uma experiência extraordinária. Com a nossa visão estreita,
não nos damos conta disso.

Quando os mestres percebem o que significa estar vivo e consciente de todas as coisas, eles se
dão conta de que um minuto nessa experiência tem um valor incrível. Para os demais seres, o
mundo ao redor é algo banal. Mas para os mestres, a experiência comum do mundo não é ba-
nal. É uma apresentação maravilhosa, luminosa, extraordinária, da natureza última. Como se
dois sois brilhassem simultaneamente! Essa é a forma como eles a descrevem. Isso se dá porque
todos os objetos passam a brilhar com o significado da natureza última. Eles não têm mais brilho
decorrente de significado banal. Então, os que têm essa experiência, andam como se estivessem
num campo de ouro e jóias, encontradas em todas as direções.

No entanto, essa experiência, apesar de extraordinária, é transitória. Os mestres justamente


enfatizam isso. Você tem algo extraordinário, mas esse algo extraordinário passa. Assim, é muito
importante nós termos essa consciência de que não temos domínio sobre o momento da nossa
morte. A qualquer momento, tudo aquilo a que temos apego ou que nos traz segurança, pode
simplesmente desabar. Não temos garantia nenhuma.

Chagdud Rinpoche conta que um dos seus mestres era muito austero, muito severo, mas era um
dos grandes lamas que os tibetanos anualmente visitavam, após uma longa peregrinação. Essas
viagens sempre foram muito longas e difíceis, em face da geografia do Tibete e da ausência de
meios de transporte modernos. Eles tinham de viajar à cavalo, em longas distâncias. Portanto,
as viagens eram muito lentas e eles eram obrigados a levar comida, pois como a população sem-
pre foi pequena, eles não dispunham de estrutura nessas viagens, tais como hotéis, estradas,
ou qualquer tipo de apoio. Eles levam meses para chegar. Logo, eles têm que levar comida viva,
que são os animais. Os animais vão pastando e eles vão comendo os animais; e os animais vão
nascendo e eles vão seguindo, em caravana. Como eles viajam em grupo, com as famílias intei-
ras e suas tendas, eles se tornam uma presa fácil para assaltos, pois tem grupos que prendem,
matam e roubam os animais e as propriedades. Vocês podem imaginar isso, vejam que complica-
ção!

Então, aos poucos esses grupos conseguem chegar até o mestre do Chagdud, o Tulku Arik. Quan-
do esse mestre os recebia, ele dizia ao grupo: “Meditem sobre a impermanência. A imperma-
nência é um fato. Vocês estão envelhecendo. Tratem de meditar sobre isso e de utilizar bem o
tempo da vida de vocês”. Aí as pessoas oferecem katar, fazem oferenda de dinheiro, ouro, jóias,
pedras, animais, levantam-se juntos e a equipe toda da caravana começa a voltar.

Anos depois, eles fazem novamente a mesma viagem. Quando eles chegam lá, Tulku Arik diz a
mesma coisa: “Vocês estão ainda mais velhos. Vocês meditem sobre a impermanência.” Então,
eles juntam todas as coisas, fazem as oferendas e retornam. Lá pela quarta ou quinta vez Chag-
dud Rinpoche conta que um deles perguntou: “O senhor não teria outro ensinamento para dar?”
Eles já tinham ouvido várias vezes sobre a impermanência! E depois do trabalho enorme que
era empreender cada uma das viagens, terem que ouvir de novo o mesmo ensinamento!? Então,
Chagdud conta que o Tulku Arik ficou furioso (os grandes mestres são assim, ficam furiosos!) e
respondeu-lhes: “Vocês estão mais velhos e teimosos! Meditem sobre a impermanência, porque

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o fim está próximo!”

Chagdud contou essa história uma vez numa palestra, para convidar as pessoas para meditar
sobre a impermanência. Um dos primeiros livros que ele publicou no Brasil foi justamente sobre
esse tema, “Vida e Morte no Budismo Tibetano”, que ensina como viver sempre lembrando da
impermanência, que é o fato de que todos nós vamos, num certo momento, morrer. Mas esse
não é um objetivo de natureza mórbida, é somente para entendermos que é preciso aproveitar
o tempo.

Isso até me lembra uma história, que uma vez li numa revista americana, de uma pessoa que
narrava a esperteza de uma enfermeira. O narrador dessa história fora companheiro de quar-
to, num hospital, de um milionário americano que estava internado e desenganado. Ou seja, o
milionário achava que ia morrer, mas ninguém descobria a causa da sua doença. Era como que
uma doença “hipocondríaca”. Ele tinha medo da morte e assim ele sempre estava com dores,
com sintomas variados, sempre achando que ia morrer. Ele tinha uma esposa meio histérica que
simplesmente se preocupava com aquilo, achando tudo horrível, horrível, horrível, mas não
fazia nada.

Então, a pessoa que conta essa história, diz que após alguns anos, depois que deixara o hospital,
reencontrou o tal milionário “desenganado” com ótima saúde e muito feliz ao lado da enfermei-
ra que cuidava dele. Curioso, ele não resistiu e foi falar com a enfermeira: “Olhe, eu tive hos-
pitalizado naquela época. Lembro que ele estava sempre muito doente, muito mal, o que você
fez? Você conseguiu provar para ele que ele não estava doente?” Para sua surpresa, a enfermei-
ra explicou: “Não, fiz justamente o contrário! Disse-lhe que, como ele estava muito doente e
desenganado, ele deveria aproveitar o pouco tempo que lhe restava.” Simples e surpreendente,
não! Esse é o sentido desse ensinamento, ou seja, devemos realmente aproveitar o presente
porque a impermanência (a morte, a mudança) pode surgir a qualquer momento!

Agora, eu não aconselho esse caminho do milionário, pois seria uma perda de tempo. Não que
eu tenha algo contra as enfermeiras, mas é que aqui, nesse contexto, “não perder tempo” signi-
fica praticarmos o darma, dedicarmos tempo para pensar, contemplar, repousar sobre as várias
categorias de ensinamentos do Buda e tentar praticar isso na nossa vida. Mas, num certo senti-
do, o ensinamento é o mesmo, ou seja, nós precisamos aproveitar o tempo que temos, porque
já estamos condenados ao fim! Então, é uma questão de aproveitar o tempo!

Patrul Rinpoche, esse grande mestre, quando queria enfatizar esses ensinamentos, pintava um
quadro ainda pior, e dizia: “Todos os grandes mestres morreram; todos os curadores morreram,
todos os grandes médicos morreram; todas as pessoas importantes - reis, grandes políticos,
imperadores - também morreram; até Miralepa, grande mestre, que era capaz de voar, também
morreu! Então, você que se cuide! Isso é coisa séria!”

E Patrul Rinpoche continuava: “Vai chegar um momento em que todos os seres vivos irão mor-
rer. A água vai se extinguir do planeta. O sol vai aumentar de tamanho, aquecendo o planeta, e
a morte vai progressivamente se estabelecer sobre toda a vida do planeta, até o momento em
que a última gota d’água se evaporará. Todos os seres morrerão na seqüência e os planos sutis
se extinguirão.” E podemos perguntar: “Não sobra nada, nem nos planos sutis? Será que nos
planos sutis a água seja necessária?” Então, entendemos que todos os planos sutis conectados à
ignorância das nossas impressões mentais, eles realmente se extinguem. Por que? Porque quando
morremos, nós guardamos na memória os ambientes, os rostos, as pessoas, as conexões. A nossa
consciência grosseira se mantém. Mas, quando não há mais o ambiente físico onde essa consci-
ência possa seguir, ela também se extingue.

No entanto, isso não quer dizer que as consciências “mais sutis” se extingam. A consciência mais

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sutil, aquela que surge e que opera independente da própria mente ligada ao corpo, essa segue.
Mas os planos sutis grosseiros, todos eles desaparecem. Podemos ilustrar isso assim: os mamutes
desapareceram, e os planos sutis ligados aos mamutes se transferiram para os elefantes, que são
os seres mais próximos dos mamutes na cadeia evolutiva. Contudo, os elefantes não são os ma-
mutes. Outras espécies diferentes vão precisar de transições maiores. Mas, quando não houver
mais nenhum desses seres, tudo se extingue. A vida como nós conhecemos, também se extingue.
Assim, o conjunto de impressões mentais ligadas aos corpos como nós conhecemos, também é
perecível. Esse conjunto de impressões mentais depende do planeta terra, depende das condi-
ções em que estamos vivendo aqui. Quando a biosfera se for, mesmo as regiões sutis, incorpóre-
as, vão ser afetadas.

Com isso, podemos verdadeiramente sentir o poder da impermanência, o poder da transitorie-


dade de todas as coisas. Desse modo, entendemos melhor o que significa nós termos uma vida
humana preciosa; podermos fazer as práticas, atingir a liberação das Quatros Montanhas, ultra-
passar essa noção de que, tanto no plano sutil quanto no plano grosseiro, nós estamos presos
às noções de nossos corpos e das nossas identidades. Por isso, entendemos que precisamos, o
quanto antes, aproveitar os ensinamentos que surgiram para a condição humana, e atravessar
isso antes que essa dissolução ocorra.

Ouvindo esses ensinamentos, também vemos que, sob o ponto de vista causal, somos profunda-
mente impotentes. Nós não temos o poder de evitar esses eventos todos! Vivemos num planeta,
onde, inicialmente, os continentes eram grandes blocos que, um dia, se fracionaram nos gran-
des continentes que hoje conhecemos (Ásia, América, Oceania, etc...). Não temos nenhuma
capacidade de controle sobre essas forças maiores. Somos muito frágeis e nossas vidas são muito
curtas. Por isso, não temos nenhuma razão para sermos orgulhosos enquanto membros de “espé-
cie superior”.

Então, a impermanência nos introduz a essa sensação de fragilidade. Com isso, entendemos
que não temos domínio sobre nenhuma circunstância positiva. Os ensinamentos do Buda hoje
existem, mas podem desaparecer. Temos saúde nesse momento, mas podemos adoecer. Estamos
vivos agora, mas daqui a pouco podemos estar mortos. Neste momento não estamos sob o domí-
nio de outros seres, mas podemos ficar presos a qualquer momento. Então, tudo isso é muito rá-
pido!. Lembro de um praticante gaúcho, que morava em Florianópolis, e que entrou num retiro
longo. Só que, no meio desse retiro, o Chagdud Rinpoche morreu e ele teve que sair do retiro.
Pouco tempo depois, a mãe dele esteve muito doente, ficou incapacitada, e ele foi obrigado a
assumir o trabalho dela. Ou seja, pouco tempo antes ele estava profundamente imerso no Dar-
ma, mas hoje ele é diretor de uma escola de crianças pequenas, para poder sobreviver, e não
tem mais tempo de fazer práticas!

Isso nos mostra que, mesmo que tenhamos méritos, que estejamos fazendo práticas e conec-
tados ao Darma, repentinamente podemos perder todas as boas condições e sermos desconec-
tados. Nós temos laços em várias direções que podem rapidamente nos fazer abandonar o que
estamos fazendo. Eu lembro também de um outro praticante, que também esteve nesse retiro
longo que o Chagdud Rinpoche conduziu, e, seis meses depois que ele saiu do retiro, foi atro-
pelado e morreu. Vejam vocês que ele aproveitou bem a vida. Ele fez retiros e seguiu de uma
forma lúcida. Ele veio de uma condição muito humilde, mas a vida dele era curta. No entanto,
ele aproveitou-a bem até o fim e isso foi uma grande coisa. Isso serve para nos lembrar como as
circunstâncias são muito difíceis e que nós não temos garantia nenhuma sobre as nossas próprias
vidas.

3.4 – Terceiro Pensamento: O Carma

Depois, nós temos o Terceiro Pensamento que Transforma a Mente que são os ensinamentos

172
sobre o Carma. Quando examinamos a noção do carma, vamos reconhecer assim: “Se nos ofere-
cessem coisas muito elevadas, muitos felizes, rapidamente diríamos: ‘sim, sim, eu sou tal pes-
soa’“. No entanto, se viesse alguém e dissesse: ”Você é muito maravilhoso! Eu tenho uma co-
nexão cármica de outras vidas com você. Minha missão nesta vida é fazer você feliz!” Diríamos:
“Sim, você demorou para aparecer, mas tudo bem, pois era exatamente o que eu estava espe-
rando!”. Ou seja, temos uma conexão com o reino dos deuses. No reino dos deuses, as pessoas
têm esse tipo de ligação entre elas.

Eu lembro também de uma praticante de Florianópolis, uma distinta senhora, praticante do Zen
e muito séria. Um dia, veio literalmente “do ar” um ser (ele havia descido de avião em Floria-
nópolis) que olhou para ela e disse: “Você é a mulher da minha vida!” E ela foi a mulher da vida
dele por seis meses. Viajou por todos os lugares, andou de avião por todos os lados e um dia ele
pousou em Florianópolis e a deixou. E o que ela fez? Ela voltou a fazer prática! Nós todos esta-
mos suscetíveis a isso. Pode aparecer do ar para nós alguém que nos olha e diz: “Eu amo você e
você é a pessoa da minha vida”. E nós abandonamos o Darma alegremente, deixamos de fazer
prática, e seguimos o sonho do reino dos deuses, o sonho da felicidade. Por que isso acontece?
Porque nós temos internalizado em nós o Carma relativo à felicidade sob as condições do mun-
do.

Se isso vier a acontecer conosco, deveríamos pensar e dizer: “Um momento! Se você viu tudo
isso em mim, ótimo! Então, podemos fazer práticas juntos!” Mas é muito difícil fazermos isso.
Nós vamos alegremente trocar o Darma pelo apelo do amante. Seremos até capazes de dizer
exatamente o contrário, concluindo: “Eu fiz prática direitinho, rezei e por isso esse ser maravi-
lhoso apareceu.” Teremos todas as explicações para isso. Então, o importante é nós entender-
mos isso, que temos essa conexão secreta e latente com o reino dos deuses.

E nós também temos uma conexão com o reino dos semi-deuses. De acordo com as circunstân-
cias, podem surgir pessoas que tocam os nossos brios, tocam “num nervo exposto” nosso. Aí,
pronto! Entramos numa briga e não queremos mais sair. Se formos baianos, vamos “rodar a baia-
na”; se gaúchos, “damos um boi para não entrar numa briga, mas daremos uma boiada para não
sair”. E a disputa segue, com dificuldade de parar. Isso significa a nossa conexão com o aspec-
to competitivo e eventualmente invejoso também. Nós temos essa dificuldade! Por exemplo,
se nos encontramos com um colega de turma, que estudou física e agora se tornou o primeiro
astronauta brasileiro da Nasa, ficamos um tanto surpresos, com uma certa inquietação em saber
como é que essa pessoa conseguiu chegar até lá! E identificamos isso como uma “inveja positi-
va”, uma coisa que nos torce por dentro! E assim, nós temos conexões com os seres competiti-
vos...

Temos, ainda, uma conexão com o reino humano básico, quando acreditamos que a nossa vida
pode melhorar em 24 prestações ou em 48 meses. E se recebemos do banco um aviso do banco
de que temos uma linha de crédito pré-aprovado de 15 mil reais, a pessoa olha e diz: “Oh! Que
maravilha! Agora eles estão me reconhecendo. Posso comprar isso, posso comprar aquilo.” Ou
seja, a pessoa começa a achar que finalmente alguma coisa boa está acontecendo. E esse é o
típico comportamento dos seres humanos, que acreditam que as coisas causais mudam a vida.
Desse modo nós terminamos perdendo a vida, pois é a através dos processos causais que obte-
mos coisas impermanentes e ficamos somente girando, presos, no meio disso. Então, cuidado!

Quando eu falo isso com vocês, na verdade, todos esses aspectos são itens para pensar, contem-
plar (encontrar outros exemplos) e repousar. Nós precisaríamos passar por dentro de tudo isso
com esse esforço. Se fizermos isso, nossa vida vai mudar, podem ter certeza disso! Então, nós
olhamos a situação humana, e vemos que temos carmas humanos. Por exemplo, nós como prati-
cantes, vemos a nossa família se reunir todo final de semana ao redor da churrasqueira, e pen-
samos: “Oh! Eu, todo final de semana, me reúno com grupos em redor de um altar. Mas ao redor

173
da churrasqueira parece ser bem melhor! Eles tomam cerveja, conversam, estão tranqüilos e eu
aqui fazendo esforço, com olheiras de tanto estudar, de tanto meditar... Acho que tudo o que eu
queria era uma vida ‘normal’!”. Ou seja, nós, como seres humanos, queremos uma vida humana
básica, com um pouco de conforto e estaria tudo bem! E vamos constatar que 99% das pessoas
estariam muito bem com uma vida humana básica. No entanto, para nós budistas, o fardo é lon-
go, difícil, pois a vida humana básica também não serve! Mas temos conosco esse carma da vida
humana básica.

Tem uma praticante que, certa vez, me disse ter descoberto que o budismo não servia para cer-
tas coisas. Então, ela encontrou São Judas Tadeu, cuja intermediação ela pensava que a ajudava
a obter muitas das coisas que ela precisava na sua vida! Já com a ajuda do Buda, isso não seria
possível, pois não dava para rezar ao Buda para pedir favores! Aí, ela abandonou o budismo por
São Judas Tadeu! Na linhagem Nyngma especialmente, os lamas estão proibidos de rezar por coi-
sas comuns. Podemos rezar para melhorar nossa condição de vida, nossa saúde, para podermos
seguir no caminho de prática, e aumentarmos nossa lucidez.

Mas a tendência humana é de se voltar para a espiritualidade para obter condições materiais e
emocionais mais favoráveis para ter mais felicidade. Acreditamos que, se fizermos determinada
coisa, nossa vida melhora e tudo ao nosso redor melhora!

Vimos que temos carmas com os deuses, semi-deuses, humanos, mas temos carmas também com
os animais. Ou seja, dentro de nós temos os componentes dos animais. Os componentes animais
são componentes minimalistas, pois podemos ver que eles precisam de menos proteção do que
nós. Por exemplo, muitos não precisam de uma casa, pois para alguns os seus próprios corpos
têm essa função. Eles também não precisam de roupas, pois elas são seus próprios pêlos. Eles
também têm uma grande camada de gordura que os protegem dos espinhos e de outros animais.
Ou seja, eles têm um mecanismo no próprio corpo que os protege, fazendo com que eles repou-
sem mais em mecanismos passivos do que numa vivacidade mental.

Por isso é que se diz que todos os animais tendem à tranqüilização, a ficarem mais parados. O
objetivo central deles é encontrar uma boa almofada, num lugar fresco e que tenha uma água
corrente de boa qualidade. De vez em quando encontramos seres humanos assim, parados,
amortecidos... e isso é um perigo, pois revela nossa conexão cármica com o reino dos animais.
E nós temos uma conexão verdadeira com o reino dos animais. Por exemplo, quando queremos
descansar, é como se nos transferíssemos para o reino dos animais. Nós precisamos sentir peso
no corpo, peso nas pálpebras, e no corpo como um todo, e assim como que afundamos. É desse
modo que normalmente descansamos. Mas esse modo de descansar não é necessário! Nós pode-
mos simplesmente relaxar, como uma sessão de relaxamento que é conduzida ao final de uma
sessão de Yoga. O difícil numa sessão de relaxamento não é relaxar, e sim não dormir! Mas essa
prática nos faz perceber o que significa “cair no sono” ou relaxar de forma lúcida.

Vocês podem experimentar. Quando vocês forem dormir, percebam que vem aquele peso no
corpo. Esse peso no corpo é desnecessário. Na verdade, esse peso não é relaxamento, mas é
um pouco de tensão que produzimos sobre o corpo. Quando vocês estiverem se aproximando do
sono pesado, vocês experimentem conscientemente relaxar cada parte do corpo. Vocês verão o
peso desaparecer. Ou seja, quando aumentaram o relaxamento, o peso desapareceu. Vemos en-
tão que o peso é tensão, uma situação construída. E esse peso é o reino dos animais; pensamos
que esse peso é o justo resultado de uma atividade intensa que fizemos antes. Mas não é neces-
sariamente assim. Vocês perceberão que, mesmo cansados, se surgir alguma coisa inesperada,
vocês acordam e aquele peso desaparece.

Na seqüência, vamos perceber que temos uma conexão com o reino dos seres famintos. Em ou-
tras palavras, nós nos sentimos carentes e eventualmente dizemos: “Ninguém me ama, ninguém

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me quer, ninguém disca para mim, ninguém me manda e-mail, ninguém nem mesmo briga comi-
go!” Então, temos um nível de carência. Por exemplo, se alguém nos pergunta carinhosamente:
“Como é que você está se sentindo? Você está bem? Eu acho que você está com uma carinha
triste!” Aí nós facilmente nos conectamos com a condição de fragilidade. Se alguma coisa está
sendo oferecida em algum lugar, nós imediatamente ficamos curiosos em saber o que é que está
sendo oferecido gratuitamente. Se surge uma linha de financiamento, rapidamente queremos
saber como poderemos nos enquadrar no processo. A coisa pode ser nada vantajosa, mas ficamos
excitados com a possibilidade. Isso revela nossa carência, nossa busca incessante.

Por fim, nós também estamos conectados aos infernos. Você podem observar que existem algu-
mas pessoas que não gostaríamos de reencontrar; tem alguns lugares que não queríamos entrar
novamente; algumas pessoas que não queremos nem lembrar; tem meia dúzia de situações que,
se surgissem, ficaríamos furiosos, inclusive com impulso de matar. Assim, nós temos os carmas
relacionados ao reino dos infernos.

3.5 – Quarto Pensamento: O Sofrimento

Se formos dominados pelos pensamentos e impulsos correspondentes a qualquer um desses seis


grupos de carmas, nós mais facilmente vamos entender o Quarto Pensamento que Transforma a
Mente, que é o fato de que somos vulneráveis a surgir em situações de sofrimento. Se nos co-
nectarmos ao reino dos infernos, temos várias respostas prontas que nos levariam a esse reino e,
naturalmente, o sofrimento é garantido. Se nos conectarmos ao reino dos famintos, o sofrimen-
to está garantido. Se nos conectarmos ao reino dos animais e também ao reino dos humanos no
sentindo comum, ou se nos conectarmos ao reino dos seres invejosos, competitivos, e ao reino
dos deuses, que estão dependentes de felicidade sob condições, então, inevitavelmente, num
certo momento, pela experiência cíclica, vamos experimentando sofrimento. Mesmo que viven-
ciemos experiências de felicidades dos deuses, ainda que seja uma experiência de felicidade,
mais adiante vamos ter sofrimento. Então, esses são seis níveis de carmas que nos conduzem a
seis classes de sofrimento.

Assim, entendemos que, como seres humanos, temos variados carmas para surgir em condições
de sofrimento. Esses carmas são chamados carmas primários. São chamados de primários porque
dão origem a carmas secundários, ou melhor, os carmas primários representam nossa vulnerabi-
lidade a situações secundárias. As situações secundárias acontecem quando surge uma situação
prática na qual aquele carma primário então aflora. Por exemplo, posso não estar sentindo raiva
no momento, mas tenho raivas latentes na forma de carmas primários. Então, quando surgem
situações específicas, esse carma brota e eu faço coisas terríveis. Minha situação piora muito,
entro em sofrimento e vou passa por dificuldades. Assim, não é que eu seja sempre uma pessoa
raivosa, mas quando a condição secundária surge, o carma primário aflora enquanto uma ação,
e assim os problemas acontecem.

Somos todos vulneráveis a ver os carmas primários, que estão presentes em nós, se manifes-
tarem como sofrimentos completos quando as circunstâncias secundárias acontecerem. Assim,
com este quarto pensamento, retornamos ao primeiro, que trata da vida humana preciosa.
Entendemos que temos uma vida humana preciosa, que temos a possibilidade de fazer práticas,
que temos ensinamentos disponíveis, e muitas outras facilidades. No entanto, todas essas con-
dições favoráveis são transitórias, pois estão sujeitas à impermanência. Entendemos que temos
carmas primários que, de acordo com as circunstâncias secundarias, podem se manifestar como
sofrimentos completos.

3.6 – Pensamento subseqüente: O Refúgio

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Então, diante dessa compreensão, entendemos que deveríamos tomar uma atitude bem clara na
nossa vida. E é aí que surge o pensamento que chamei de subseqüente. Antes eu tinha iniciado
explicando que os Quatro Pensamentos que Transformam a Mente eram seis. Que tinha um an-
tes, preliminar, e um posterior ou subseqüente.

Assim, no pensamento subseqüente, dizemos: “Eu tomo refúgio na natureza de Buda”. Ou seja,
tomamos refúgio no referencial que pode nos levar para fora dessa circunstância. Então, en-
tendendo que nesse momento estamos dentro de uma situação transitória favorável, para apro-
veitá-la melhor, deveríamos encontrar um referencial verdadeiro que pudéssemos utilizar para
definir nossa prioridade de vida. Então, o correto seria tomarmos refúgio na natureza de Buda.
A natureza de Buda está presente em todos os seres e em todas as direções. Assim, deveríamos
nos tornar consciente disso e agir no mundo segundo essa visão.

Deveríamos olhar esse ensinamento todos os dias, nem que fosse de forma abreviada. Esse não
é um ensinamento que um praticante deva fazer e outro não. Todos os praticantes deveriam
entender isto de novo e de novo, e prometer a cada dia tentar realizá-lo estritamente, corre-
tamente, tentar viver de uma forma lúcida, sem perder tempo. Porque nós, efetivamente, não
sabemos se o dia de amanhã vai ser possível. Não sabemos como as circunstâncias secundárias
vão se manifestar. Logo, é absolutamente necessário que aproveitemos muito bem a vida que
temos disponível.

A partir desse ponto, vamos ouvir sobre o Buda, o Darma e a Sanga. Vamos ser introduzidos
sobre a natureza última, sobre o que é o Buda. Então, nesse ponto, nós vamos ouvir sobre as
Quatro Nobres Verdades e sobre o Nobre Caminho de Oito Passos. Por isso, entendemos que de-
veríamos tomar refúgio no Buda, no Darma e na Sanga.

O refúgio no Buda tem níveis grosseiros e níveis sutis. O refúgio grosseiro no Buda seria olharmos
o Buda como se fosse uma imagem ou como se fosse um ser do passado. Isso pode nos oferecer
um certo referencial, mas esse referencial é insuficiente. Melhor é entendermos o Buda den-
tro de uma perspectiva sutil. Essa dimensão sutil seria entender o Buda como uma dimensão
de vida, uma dimensão latente, presente. Essa dimensão latente, presente, está representada
aqui, por exemplo, pelo fato de existir uma energia que nos fez e nos faz estar aqui, juntos,
nesta sala. Aqui nesta sala, todos nós temos essa aspiração, que é como se em cada um de nós
tivesse um pouquinho do Buda vivo dentro de si. Aí nós nos reunimos, e juntos, manifestamos
essa natureza de forma mais clara. E essa energia opera. Nós não estamos aqui para fazer outra
coisa senão escutarmos e estudarmos os ensinamentos. É isso que nos motiva.

Eu tenho muitos amigos que fazem muitas coisas diferentes, mas recentemente me dei conta
de que há mais de vinte anos eu nunca tive nenhuma relação com eles que não fosse dentro do
Darma. Eu sei que eles fazem muitas outras coisas, mas cada vez que eu os encontro, é sempre
para coisas do Darma. Então, isso significa o Buda nos unindo, o Buda vivo dentro de cada um de
nós. Eu acredito que seja uma grande proteção nós temos esse refúgio, porque assim nos co-
nectamos com as pessoas na parte melhor que elas têm. E ao nos conectamos desse modo, nós
ajudamos a pessoa a tornar aquilo nítido na mente dela. Acho isso maravilhoso!

Isso também nos conecta com a noção de Sanga. Por exemplo, quando estamos aqui nessa sala,
realmente não importa o que cada um de nós faz durante a semana. Realmente não faz dife-
rença para mim quais são os filhos que vocês têm, ou se vocês são casados, como é que vocês
ganham o sustento, no que vocês trabalham, isso realmente não é importante! O que importa
é que estamos todos aqui unidos dentro da perspectiva na natureza de Buda que cada um tem.
Então, isso é a Sanga. A Sanga é o lugar aonde nos unimos a partir dessa dimensão profunda.
Se algum de nós fez alguma coisa horrível em algum lugar, ou não, isso realmente não importa.
Porque todos nós temos a natureza ilimitada e na Sanga nós nos juntamos em função disso. Aqui,

176
não nos julgamos, não nos condenamos. Apenas estimulamos uns aos outros naquilo que há de
melhor dentro de cada um.

Então, tomamos refúgio no Buda, no Darma e na Sanga. O Darma são os ensinamentos, e esta-
mos aqui falando sobre os ensinamentos. Quando tomamos refúgio no Darma, tentamos pensar,
contemplar, repousar, para aprofundar nossa compreensão. Desse modo, vamos copiando a men-
te dos Budas que geraram os ensinamentos. Eles vão ficando tão claros para nós, que é como se
nós mesmos estivéssemos falando de forma original os ensinamentos. É assim que copiamos as
mentes do Budas. Esse é o aspecto sutil de tomar refúgio no Buda. Quando copiamos a mente do
Buda, entendemos o Darma, que são os ensinamentos.

Do mesmo modo, manifestamos essa energia como a própria Sanga. Assim, o grupo surge a partir
dessa energia. Então dizemos que o Buda está vivo na figura do Buda, que o Buda está vivo nos
ensinamentos, e que o Buda está vivo na Sanga. Dessa maneira, nós tomamos o refúgio ver-
dadeiro. O refúgio não é uma cerimônia burocrática, onde nos tornamos pertencentes a uma
igreja budista, por exemplo. Isso não é assim. O refúgio é no sentido de que a nossa vida muda,
os nossos referenciais mudam. Entendemos que é melhor seguirmos a nossa vida de uma forma
mais perfeita.

No caso da Sanga, temos algumas vezes ilusões de que ela só tenha características positivas. Na-
turalmente, nós, seres humanos, temos dificuldades. Então, quando nos encontramos, às vezes
surgem tensões, atritos. Nesse caso, deveríamos entender que a Sanga é como uma fogueira,
com um fogo de chão feito de muitos e diferentes pedaços de madeira. Uma única chama e dife-
rentes pedaços de madeira. Alguns pedaços estão sujos, outros estão com pregos, outros estão
cortados, como madeira serrada, outros são galhos, etc. Ou seja, cada um tem um aspecto
diferente. Mas, na medida em que tudo isso vai queimando, percebemos que o fogo tem o poder
de uniformizar. O fogo vai transformando cada galho torto em chama, em luz. Todos os galhos,
todas as madeiras, podem produzir aquela luz. A luz é a mesma. Enquanto a luz brota, o galho
seco e torto vai desaparecendo e virando cinza. Enquanto cinza, nós também somos iguais. En-
tão, a sanga tem esse poder.

Vocês vão entender porque o fogo fica mais fácil quando aproximamos os galhos. Se os afasta-
mos, mesmo que cada um tenha uma chama, ela esfria e, eventualmente, o fogo apaga. Mas se
pegarmos somente as brasas e as colocarmos todas juntas, a chama volta. Então, esse é o poder
da Sanga. A Sanga nos consome, ela nos mata, destrói o nosso aspecto torto, nosso aspecto pro-
blemático. Ela vai transformando toda a nossa manifestação em luz. Então, o refúgio na Sanga
é muito importante. O Buda diz: “A Sanga é o próprio Buda. Entre o Buda e a sanga, opte pela
Sanga.” Então, na ordenação do budismo, a Sanga é muito mais importante que qualquer outra
autoridade. Se diz que dentro da assembléia da Sanga está o Buda.

Então, esse é o ensinamento sobre os Quatro Pensamentos que Transformam a Mente, que são
seis, e culminam no Refúgio.

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Canções de Milarepa

1.CANÇÃO AOS DOZE SIGNIFICADOS DA MENTE

Prostro-me aos pés do meu mestre.

Ó bondosos protetores,
Se vocês quiserem realizar a essência da mente,
Devem praticar os seguintes ensinamentos:

A fé, o conhecimento e a disciplina


Constituem a árvore da vida da mente.
Esta é a árvore que devem plantar e cultivar.

O desapego, o desligamento e a visão clara


São os três escudos da mente;
São luzes a serem levadas, fortalezas na defesa,
Recibos que devem buscar.

A meditação, a diligência e a perseverança


São os três cavalos da mente,
Que correm rápido e voam velozes!
Se buscarem cavalos, estes são os bons.

A autoconsciência, a autoiluminação e o êxtase são os frutos da mente;


Plantem a semente, amadureçam o fruto,
Refinem o suco e emanará a essência.
Se desejarem frutos, estes são os que devem buscar.

Esta canção dos doze significados da mente


Surge da intuição yógica.
Continuem sua prática, inspirados pela fé,
Ó meus bons protetores!

2. CANÇÃO DAS CINCO FELICIDADES

Prostro-me aos pés de Marpa, o tradutor!


Abençoe a minha renúncia nesta vida.

A Rocha Branca do Dente do Cavalo é a fortaleza do caminho do meio.


No topo da fortaleza do caminho do meio,
Eu, o eremita tibetano, vestido com um pano de algodão,
Renunciei à comida e às roupas desta vida
Para me tornar um buddha perfeito.

Estou feliz com a almofada dura sob mim.


Estou feliz com o pano de algodão que me cobre.
Estou feliz com a corda de meditação que segura os meus joelhos.
Estou feliz com este corpo fantasmagórico, que não é insatisfeito nem
satisfeito.
Estou feliz com minha mente, que ganhou a sabedoria sobre a realidade.
Não estou infeliz, estou feliz!
Se parecer que estou feliz, façam como eu fiz.

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Se vocês não tiverem a boa fortuna de serem religiosos,
Pensem sobre a verdadeira e duradoura felicidade
De todos os seres, de vocês, de mim,
E não tenham, em vão, pena de mim.
Agora o sol está se pondo, retornem às suas casas.
Já que a vida é curta e a morte ataca sem aviso,
Eu, que me esforço para alcançar o estado de Buddha,
Não tenho tempo para palavras inúteis.
Portanto, deixem-me em minha contemplação.

3. CANÇÃO SOBRE AS COISA INÚTEIS

Prostro-me aos pés de Marpa, o tradutor!


Vocês, meus discípulos, aqui reunidos com fé,
Dêem ouvidos a isto, o testamento final
Deste velho Milarepa, o pai espiritual -
Eu, o yogi Milarepa,
Pela bondade e favor de Marpa de Lhodrak,
Completei todos os meus deveres com sucesso.

Se vocês, discípulos e seguidores,


Querem seguir meus ensinamentos, ajam de acordo com o que eu já declarei,
E assim, nesta mesma vida, vocês estarão fazendo um serviço poderoso
Pelo seu bem e pelo bem dos outros,
Agradando a mim e aos buddhas supremos;
Com exceção desses atos, todos os outros não trazem qualquer benefício
Para vocês ou para os outros, e portanto não agradam a mim.

A menos que o seu mestre seja detentor de uma linhagem inquebrável,


Qual é o benefício de se receber uma iniciação dele?

A menos que o Dharma esteja fundido com a sua própria natureza,


Qual é o benefício de se conhecer os Tantras?

A menos que renuncie a todos os objetivos mundanos,


Qual é o benefício de se meditar sobre os ensinamentos escolhidos?

A menos que corresponda o corpo, a fala e a mente ao Dharma,


Qual é o benefício de se fazer cerimônias religiosas?

A menos que o ódio seja vencido por seus antídotos,


Qual é o benefício de se meditar sobre a paciência?

A menos que toda parcialidade, como gostar e desgostar, seja abandonada,


Qual é o benefício de se oferecer veneração?

A menos que todo egoísmo seja abandonado, do fundo do coração,


Qual é o benefício de se oferecer esmolas?

A menos que os seres dos seis reinos sejam conhecidos como seus pais,
Qual é o benefício de se preencher um certo posto hierárquico?

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A menos que o amor puro e a veneração sejam inatos em seu coração,
Qual é o benefício de se construir um relicário?

A menos que se tenha a habilidade de meditar pelas quatro divisões do dia,


Qual é o benefício de se moldar pequenas imagens?

A menos que a prece surja do fundo do coração,


Qual é o benefício de se sofrer tristezas?

A menos que tanto a fé quanto o amor atendam ao santo vivo,


Qual é o benefício de se contemplar as suas relíquias ou a sua imagem?

A menos que o arrependimento e o remorso nasçam,


Qual é o benefício de se dizer, “Renuncie e se arrependa”?

A menos que se medite sobre amar aos outros mais do que a si mesmo,
Qual é o benefício de meramente dizer, “Ó, que pena”?

A menos que todos os desejos ruins sejam superados,


Qual é o benefício de se prestar serviços de vez em quando?

A menos que cada palavra do mestre sempre seja considerada razoável,


Qual é o benefício de se ter uma multidão de discípulos?

Todas as ações que não trazem benefício,


Que nada fazem além de prejudicar, devem ser quietamente deixadas de lado.

Para o yogi que completou sua missão,


Não há a necessidade de se ocupar com coisas inúteis.

4. CANÇÃO DA ESSÊNCIA DA MENTE

A manifestação não é algo que chega a ser;


Se alguém vir algo acontecer, é mero apego.
A natureza do samsara é a ausência de substância;
Se alguém vir alguma substância, é mera ilusão.

A natureza da mente é dois-em-um;


Se alguém discriminar ou vir opostos,
É devido ao próprio apego e afeto.

O mestre qualificado é o detentor da linhagem;


É loucura criar o nosso próprio mestre.

A essência da mente é como o céu;


Às vezes está encoberta pelas nuvens dos pensamentos que fluem;
Então, sopra o vento de ensinamentos do mestre interior
E se movem as nuvens flutuantes.
Sem apreensão, o fluir dos pensamentos é, em si mesmo, a iluminação.
A experiência é tão natural quanto a luz do sol e da lua,
Apesar de estar além do espaço e do tempo.

Está além de toda palavra e descrição

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E a certeza cresce em nosso coração
Como o brilho de muitas estrelas;
Quando ela assim resplandece, surge o êxtase magnífico.

A natureza do dharmakaya está além do jogo das palavras,


Está livre da ação dos seis grupos;
É transcendente, sem esforço, natural.
Além do que pode captar o próprio “eu” ou o “não-eu”,
Residente eterna dessa morada, é a sabedoria do desapego.
Como é a assombro trikaya!

5. CANÇÃO DAS SETE VERDADES

Prostro-me a você, Marpa o tradutor;


Rogo para que aumente em mim a bodhichitta.

Seja qual for a beleza de uma canção,


Ela será apenas um som
Para aqueles que não captam a verdade.

Se uma parábola não estiver de acordo com o ensinamento de Buddha,


Não importa quanta eloqüência possa ter;
Ela não passará de um simples eco.

Se não se pratica o Dharma,


Mesmo que se proclame como um erudito na doutrina,
Será apenas um auto-renegado.

Viver em solidão é aprisionar a si mesmo


Se não se praticar a instrução da transmissão oral.
Trabalhar no campo não é a sina de um castigo
Se não se descuidar do ensinamento de Buddha.

Para aqueles que não guardam sua ética,


As orações são apenas desejos.
Para aqueles que não praticam o que falam,
A oratória é apenas uma mentira traiçoeira.

Evitar as más ações diminui as próprias negatividades;


Fazer boas ações é acumular méritos.
Permaneçam na solidão e meditem sós.
Falar muito não é de proveito algum.

Sigam meu cântico e pratiquem o Dharma!

6. CANTO DA CERTEZA PERFEITA

Prostro-me a Marpa, o perfeito.

Sou o yogi que percebe a verdade última.


Na origem do não-nascido, obtive a certeza pela primeira vez;
No caminho da não-extinção, lentamente aperfeiçoei o meu poder;
Com símbolos e palavras cheias de significado,

181
Fluindo de minha grande compaixão,
Entôo agora este canto
Do reino absoluto da essência do Dharma.

Devido ao karma maligno que criaram,


À densa cegueira e à obstrução impenetrável,
Vocês não podem compreender o significado da verdade última.
Portanto, escutem a verdade conveniente.

Nos antigos e imaculados sutras,


Todos os buddhas do passado têm repetidamente
Nos advertido sobre a verdade eterna do karma.
Cada ser senciente é seu próprio paciente;
Esta é uma verdade eterna que nunca falha.
Escutem atentamente o ensinamento da compaixão.

Eu, o yogi, evoluo através de minhas práticas;


Sei que os obstáculos externos
São apenas sombras chinesas
E que o mundo fantasmagórico
É um jogo mágico da mente não-criada.

Ao olhar para dentro da mente,


Vê-se a sua natureza, sem substância, intrinsecamente vazia.
Através da meditação em solidão,
Obtém-se a graça da sucessão dos mestres
E o ensinamento do grande Naropa.
A verdade interior do Buddha deve ser o objetivo da meditação.

Pela instrução misericordiosa de meu grande mestre,


Compreendi o abstrato significado interior do tantra.
Através das práticas da yoga de geração e perfeição,
Engenha-se o poder vital e se realiza a razão interior do microcosmo.
Por isso, não tenho os obstáculos ilusórios do mundo exterior.
Pertenço à grande linhagem divina,
Junto de imensuráveis yogis, tão vastos como o espaço.

Se, em sua própria mente, você reflete


Sobre o estado original da mente,
Os pensamentos ilusórios se dissolverão por si mesmos
No reino do dharmadhatu.
Não haverá quem cause aflição, nem quem seja afligido.
Um estudo exaustivo dos sutras
Não poderá nos ensinar mais do que isto.

7.CANÇÃO DA NÃO-DUALIDADE

Prostro-me aos pés do mestre Marpa.

O presente das bênçãos é concedido pelas dakinis;


O néctar do samaya é o ensinamento abundante;
Os órgãos dos sentidos são alimentados pela devoção fervente;
Assim se armazenam os méritos de meus discípulos.

182
A mente imediata não tem substância;
É vazia, menor que o menor dos átomos.
Quando o observador e o observado se eliminam,
A visão é verdadeiramente realizada.

Quanto à prática, na corrente da iluminação


Não pode haver qualquer estado.
A perseverança se confirma na prática
Quando é anulada a dualidade ator-ação.

No reino da iluminação, onde sujeito e objeto são um,


Não se vê causa, pois tudo é vazio.
Quando a ação e o ator desaparecem,
Todo ato torna-se correto.

Os pensamentos finitos se dissolvem no dharmadhatu;


Os oito ventos mundanos não trazem esperança nem medo.
Quando desaparece o preceito e aquele que o guarda,
As disciplinas são melhor observadas.

Ao compreender, através de um voto sincero e altruísta,


Que a própria mente é o dharmakaya,
O ator e o ato desaparecem.
Então, triunfa o Dharma glorioso.

Este é canto alegre que um ancião entoa


Em resposta à pergunta de um discípulo.
A neve, que caiu, demarcou minha casa meditação;
As deusas me deram alimento e sustento;
A água da montanha foi o gole mais puro;
Tudo se efetuou sem esforço;
Não há necessidade de semear quando não se requer alimento.

Meu celeiro está cheio, sem preparação ou provisões prévias;


Todas as coisas são vistas ao observar minha própria mente;
Sentando-se no lugar mais baixo, alcança-se o trono real.
A perfeição é obtida através da graça do mestre;
A dívida é paga através da prática do Dharma.
Seguidores e benfeitores aqui reunidos,
Dêem seus serviços com fé, sejam todos felizes e alegres.

8.CANÇÃO DOS PONTOS CHAVE

Ó meu mestre, exemplo de visão, prática e meditação,


Rogo para que me conceda sua graça e me dê a capacidade
De estar absorvido no reino da própria natureza.
Para a visão, a prática e a ação, há três pontos chave a se conhecer.

Toda manifestação, até mesmo o universo, está contida na mente;


A natureza da mente é o reino da iluminação,
Que não pode ser concebido nem tocado.
Estes são os pontos chave da visão.

183
Os pensamentos errantes se liberam no dharmakaya;
A consciência, que é a iluminação, sempre está em êxtase;
Meditem de modo que não haja esforço nem ação.
Estes são pontos chave da prática.

Na ação natural, crescem espontaneamente as dez virtudes


E se purificam os dez vícios.
O vazio iluminador não se perturba com correções nem remédios.
Estes são os pontos chave da ação.

Não há qualquer nirvana a se obter,


Não há qualquer samsara se renunciar;
Na verdade, conhecer a própria mente é ser o Buddha.
Estes são os pontos chave do atingimento ou realização.

Interiormente, reduzam os três pontos chave a um.


Este “um” é a natureza vazia do ser,
Que só um grande mestre
Poderá ilustrar claramente.

Muita atividade de nada serve;


Se alguém vir a sabedoria
Que nasce simultaneamente,
Terá alcançado a meta.

Para todos os praticantes de Dharma,


Esta prática é como uma jóia,
É a minha experiência direta da meditação yógica.
Reflitam com atenção e a guardem na memória, ó filhos e discípulos.

9.CANTO DOS TOLOS

Prostro-me aos pés de Marpa o tradutor,


E para vocês, meus fervorosos bem-feitores, eu canto.

Como é estúpido pecar, audaciosa ou imprudentemente,


Enquanto o Dharma puro se espalha ao seu redor!

Como é tolo gastar, sem sentido, o tempo de sua vida,


Sendo que obter o valioso corpo humano é um dom tão raro!

Como é ridículo apegar-se a uma cidade-prisão


E ali permanecer!

Como é cômico pelejar e brigar com esposas e parentes,


Que são apenas visitantes passageiros!

Como é vão estimar palavras doces e ternas,


Que são apenas ecos vazios em um sono!

Como é fátuo gastar mal a vida,


Brigando com inimigos, que são como flores delicadas!

184
Como é tolo atormentar-se pensando, até a agonia,
Na família, que nos ata à mansão da ilusão!

Como é estúpido restringir-se à tarefa do dinheiro e da propriedade,


Que é a dívida contraída pelo empréstimo que os outros nos fazem!

Como é ridículo embelezar e adornar o corpo,


Que é um vaso cheio de imundície!

Como é fátuo excitar cada nervo com riqueza e bens


E descuidar do néctar do ensinamento interior!

Entre uma multidão de tolos, aquele que é inteligente e sensível


Praticará o Dharma como eu faço.

10. CANÇÃO DA REALIZAÇÃO DO VAZIO

Escute-me, homem afortunado!


Por acaso, esta vida não é incerta e ilusória?
Por acaso, seus prazeres e alegrias não são como miragens?
Por acaso, há alguma paz neste samsara?
Por acaso, a sua falsa felicidade não é irreal como um sonho?
Por acaso, o elogio e a reprovação não são tão vazios quanto um eco?
Por acaso, a mente e o Buddha não são idênticos?
E o Buddha, não é o mesmo que o dharmakaya?
E o dharmakaya, não é idêntico à verdade?

Os iluminados sabem que todas as coisas são da mente;


Portanto, deve-se observar a mente, dia e noite.
Se a observar, ainda sim nada verá.
Então, fixe sua mente nesse estado, que transcende toda visão.

Não há qualquer entidade própria na mente de Milarepa.


Eu, eu mesmo, sou o Mahamudra,
Porque não há diferença alguma entre a meditação estática e a ativa;
Não tenho necessidade de estados diferentes no caminho.
De qualquer modo que se manifestem, sua essência é o vazio.
Não há atenção nem desatenção em minha contemplação.

Experiencie a realização do vazio;


Comparado com outros ensinamentos, este é o melhor.
A prática yógica dos canais, ventos e gotas,
Os ensinamentos do karma-mudra e do mantra-yoga,
As práticas de visualização do Buddha e das quatro posições puras
São apenas os primeiros passos do Mahayana.
Praticá-los não erradica o desejo nem o ódio.

Guarde firmemente isto que canto em sua mente;


Todas as coisas são da própria mente, que é vazia.
Quem nunca se separa da experiência e da realização do vazio
Realiza, sem esforço, toda a prática de veneração e disciplina.
É nisto que se baseia todo mérito e todo prodígio.

185
MILAREPA, enquanto ensinava uma discípula, cantou:

Medite sobre a natureza não nascida da mente,


Como o espaço, sem centro, sem limite;
Como o sol e a lua, brilhantes e claros;
Como uma montanha, imóvel, imperturbável;
Como o oceano, profundo, insondável.

Esta mulher praticou por algum tempo e retornou para ver Milarepa,
dizendo:

Fico feliz por meditar como o espaço,


Mas sou distraída pelas nuvens e pela neblina que aparecem lá.

Fico feliz por meditar como o sol e a lua,


Mas sou distraída pelas estrelas e planetas que surgem deles.

Fico feliz por meditar como uma montanha,


Mas sou distraída pelas plantas e flores que surgem.

Fico feliz por meditar como o oceano,


Mas sou distraída pelas ondas e espuma que surgem.

Fico feliz por meditar sobre a natureza não-nascida da mente,


Mas sou distraída pelos pensamentos e imagens que surgem dela.

Mestre, por favor, ensine-me sobre isto.

MILAREPA disse que ela teve uma boa experiência meditativa e


respondeu com outra canção.

Na meditação como o espaço,


As nuvens e a neblina são seus prazeres;
Permaneça em sua vastidão sem centro ou limite.

Na meditação como o sol e a lua,


As estrelas e os planetas são as suas jóias;
Permaneça em seu espaço, brilhante e claro.

Na meditação como uma montanha,


As plantas e as flores são seus ornamentos;
Permaneça em sua esfera, imóvel e imperturbável.

Na meditação como o oceano,


As ondas e espuma são os seus movimentos;
Permaneça em sua esfera profunda e insondável.

Na meditação sobre a natureza não-nascida da mente,


Os pensamentos e imagens são as suas meditações;
Permaneça em sua imensidão, vasta e lúcida.

186
De Longchenpa

Olhe às vezes para aquilo que você percebe como sendo favorável;
Se você souber que é apenas uma percepção, tudo o que você experimentar se
transformarará em algo útil.

Olhe às vezes para aquilo que você considera adverso e prejudicial;


Isto é vital, fazendo-o ficar intimidado com o modo deludido pelo qual você
vê as coisas.

Olhe às vezes para seus amigos e para os mestres dos outros;


Distinguir o bom do ruim irá inspirá-lo a praticar.

Olhe às vezes para a exibição milagrosa dos quatro elementos no espaço;


Você verá como o esforço se apazigua na natureza da mente.

Olhe às vezes para suas terras, coisas e posses;


Sabendo que são ilusórios, você terá desgosto do modo deludido pelo qual
você as percebe.

Olhe às vezes para as riquezas e posses dos outros;


Vendo o quão desprezíveis elas são, você corta toda a ambição pelo samsara.

Resumindo, ao examinar a natureza de todas as coisas em sua multiplicidade,


Você vai destruir a delusão do apego a qualquer coisa como sendo real.

Atacados por aflições, descobrimos o Dharma


E encontramos o caminho para a iluminação.
Obrigado a vocês, forças malignas!

Quando as tristezas invadem a mente, descobrimos o Dharma


E encontramos a felicidade verdadeira.
Obrigado a vocês, tristezas!

Por causa do mal causado pelos espíritos, descobrimos o Dharma


E encontramos o estado de não-medo.
Obrigado a vocês, fantasmas e demônios!

Por causa do ódio das pessoas, descobrimos o Dharma


E encontramos benefício e felicidade.
Obrigado a vocês, que nos odeiam!

Por causa das cruéis adversidades, descobrimos o Dharma


E encontramos o caminho imutável.
Obrigado a vocês, adversidades!

Por sermos impelidos pelos outros, descobrimos o Dharma


E encontramos o significado essencial.
Obrigado a vocês, todos que nos conduzem!

Dedicamos nossos méritos a todos vocês


Para recompensar sua bondade.

187
Hábitos
Thinley Norbu Rinpoche

Minha forma apareceu como um sonho


Aos seres sencientes que são como um sonho.
Ensinei a eles o ensinamento que é como um sonho
Para atingirem a iluminação que é como um sonho.

(Senhor Buddha, da Colina da Jóia Suprema)

Desde um tempo sem início, não há hábitos na mente natural incondicionada. Mas ainda assim
criamos hábitos ao dividir os fenômenos do espaço claro. Inerentemente um espelho não tem
qualquer poeira. Mas ainda assim ele atrai e junta a poeira, que obscurece sua claridade natu-
ral. Do mesmo modo, nossa Mente de Sabedoria pura torna-se obscurecida pelo ego quando nos
tornamos apegados à exibição não-obstruída de seus fenômenos puros. Se pudermos reconhecer
nossa mente natural e imaculada, não nos tornaremos obscurecidos pelo apego, mas se não re-
conhecermos nossa mente natural pura, então os fenômenos de nossos elementos sutis se jun-
tam como poeira sobre o espelho claro de nossa mente.

Se limparmos as leves partículas de poeira imediatamente, podemos limpar facilmente um espe-


lho. Se um hábito está em seu estágio semente, podemos fazê-lo desaparecer facilmente . Mas
quando deixamos um espelho sem limpá-lo, juntam-se partículas sutis, atraindo partículas mais
pesadas que se grudam nelas até que o espelho se torne completamente obscurecido e muito
difícil de limpar. Se formos descuidados e negligenciarmos os hábitos de nossos elementos sutis
não-conspícuos, eles se tornam a causa de nossos hábitos grosseiros, pesados e conspícuos.

Nossos hábitos conspícuos facilmente reconhecíveis são como o bolor que aparece sobre a comi-
da estragada. Nossos hábitos sutis não-conspícuos são como o fogo sob cinzas quentes. Quando
purificamos nossa mente, devemos remover todos os hábitos residuais, não importa o quão sutis
eles sejam. Se deixarmos apenas uma partícula de poeira sobre o espelho de nossa mente,
isto ainda é chamado de hábito residual. Mesmo se tivermos deixado apenas um único conceito,
apenas um único fenômeno, seja bom ou ruim, ele ainda é um hábito residual que obscurece. As
nuvens, sejam elas negras brancas, ainda são nuvens que obscurecem.

Os hábitos dos elementos pesados dos seres ordinários são como o almíscar grosso na glande
de um almiscareiro. Os hábitos dos elementos leves dos seres sublimes antes da iluminação são
como o odor residual sutil após o almíscar ter sido removido, que persiste por algum tempo an-
tes de desaparecer completamente. Os seres ordinários têm dor grosseira e felicidade grosseira
a partir dos hábitos de seus elementos grosseiros. Alguns bodhisattvas ainda têm dor e felicida-
de, mas como elas vêm dos hábitos de seus elementos leves, elas são como um resíduo fino se
comparados à dor e felicidade do grosso hábito raiz dos seres ordinários. Alguns bodhisattvas
expressam a dor apenas para revelar a verdade do karma e para purificar esse karma de sofri-
mento dos seres sencientes ao demonstrarem o cansaço do samsara.

Inerentemente, a terra básica pura não tem vegetação. Através das circunstâncias dos elemen-
tos, a vegetação aparece e obscurece a terra. Os hábitos são como a vegetação. Inerentemente,
a água básica pura não tem lodo. Através das circunstâncias dos elementos, o lodo aparece e
obscurece a água. Os hábitos são como o lodo. Inerentemente, o fogo básico puro não tem
fumaça. Através das circunstâncias dos elementos, a fumaça aparece e obscurece o fogo. Os
hábitos são como a fumaça. Inerentemente, o ar básico puro não tem poeira. Através das cir-
cunstâncias dos elementos, a poeira aparece e obscurece o ar. Os hábitos são como a poeira.
Inerentemente, o céu básico pura não tem nuvens. Através das circunstâncias dos elementos, as
nuvens aparecem e obscurecem o céu. Os hábitos são como as nuvens. A mente é como o solo

188
ilimitado e puro. Se não formos apegados e não nos agarrarmos aos nossos fenômenos finitos e
limitados, então poderemos permanecer em nossa mente fresca e ilimitada. A mente é como a
água clara e pura. Se não formos apegados e não nos agarrarmos aos nossos fenômenos obscu-
ros, então poderemos permanecer em nossa mente naturalmente intrínseca. A mente é como o
fogo radiante e puro. Se não formos apegados e não nos agarrarmos aos nossos fenômenos enfu-
maçados, então poderemos permanecer em nossa mente leve e luminosa. A mente é como o ar
sem peso e puro. Se não formos apegados e não nos agarrarmos aos nossos fenômenos empoeira-
dos, então poderemos permanecer em nossa mente clara e não-obstruída. A mente como o céu
imaculado e puro. Se não formos apegados e não nos agarrarmos aos nossos fenômenos enevoa-
dos, então poderemos permanecer em nossa mente de espaço e aberta.

189
Os Quatro Samayas
Thinley Norbu Rinpoche

De acordo com o ponto de vista da seção da mente da Grande Perfeição, desde o início, sem
discriminar entre meditação estabilizadora e analítica, ou entre meditação e pós-meditação,
estabelecemos os quatro grandes samayas, que são:

1. O samaya não-existente: Não podemos encontrar as qualidades negativas do samsara ou


as qualidades positivas do nirvana em qualquer lugar porque, desde o início, a mente não
existe substancialmente; ela nunca existiu, não existe agora nem existirá no futuro. Apesar de
nuvens brancas e pretas aparecerem, elas não existem porque o espaço é sempre inerentemente
vazio.

2. O samaya único: Nossa mente, que é sempre única, é a única fonte de quaisquer fenôme-
nos impuros do samsara que apareçam, ou de quaisquer fenômenos puros do nirvana que apare-
çam. Incontáveis estrelas, planetas, luas e sóis são refletidos em um grande oceano.

3. O samaya livre: Os fenômenos do samsara não podem infectar e os fenômenos do nirva-


na não podem beneficiar porque a mente é livre de todos os extremos e limites. No céu não há
direções ou lados.

4. Samaya espontâneo: As incontáveis qualidades desejáveis do samsara e as imensuráveis


qualidades sem desejo do nirvana sempre surgem não-obstruidamente. Isto é a essência e a
exibição da dança mágica natural da Divindade de Sabedoria. Comparado com incontáveis jóias
preciosas ordinárias, a mente é inestimável porque todos os fenômenos aumentam espontanea-
mente a partir da mente.

190
Lidando com a Negatividade
Chögyam Trungpa Rinpoche

Nós todos experimentamos a negatividade - a agressão básica de querer que as coisas sejam
diferentes daquilo que são. Apegamo-nos, defendemos, atacamos, e por toda parte há a sensa-
ção de nossa própria infelicidade, razão pela qual responsabilizamos o mundo pelo nosso sofri-
mento. Isto é a negatividade. Nós a vivenciamos como alguma coisa terrivelmente desagradável,
malcheirosa, da qual desejamos nos desvencilhar. Mas, se a examinarmos mais profundamente,
descobriremos que ela tem um cheiro substancial e muita vida. A negatividade não é ruim per
se, mas algo vivo e preciso, ligado à realidade.

A negatividade produz tensão, atrito, tagarelice, descontentamento, mas é também muito


exata, intencional e profunda. Infelizmente, as interpretações e estimativas desastradas que
impomos a tais experiências obscurecem esse fato. Essas interpretações e avaliações, que são
a negatividade negativa observando-nos ser negativos, decidem, então, que a negatividade, aí
estando, é justificável. A negatividade parece afável, tendo todas as boas qualidades, de modo
que a elogiamos, defendemos e justificamos. Caso sejamos acusados ou atacados por outros,
interpretamos sua negatividade como sendo uma coisa boa para nós. Em ambos os casos o obser-
vador, ao comentar, interpretar e julgar, está camuflando e reforçando a negatividade básica.

A negatividade negativa diz respeito às filosofias e aos racionalismos que utilizamos para jus-
tificar o escape de nosso próprio sofrimento. Gostaríamos de fingir que esses aspectos “maus”
e “malcheirosos” de nós mesmos e do nosso mundo realmente não existem, que não devessem
existir, ou até que devessem existir. Portanto, a negatividade negativa é, em geral auto-justifi-
cante e auto-suficiente. Não permite que nada penetre em seu escudo protetor - uma maneira
hipócrita de tentar fingir que as coisas são o que desejaríamos que fossem, em vez de serem
aquilo que são.

Esse tipo de inteligência secundária e crítica da dupla negatividade é muito cautelosa e covar-
de, assim como frívola e emotiva. Ela inibe a identificação com a energia e a inteligência da
negatividade básica. Portanto não pensemos mais em auto-justificação, tentando provar a nós
mesmos o quanto somos bons.

A honestidade e a simplicidade básica da negatividade podem ser criativas tanto para a coleti-
vidade quanto para os relacionamentos pessoais. A negatividade básica é muito esclarecedora,
aguda e precisa. Se a deixarmos como ela é, em vez de encobri-la com conceituações, veremos
a natureza de sua inteligência. A negatividade produz um grande fluxo de energia que, vista
claramente, converte-se em inteligência. Quando deixamos as energias como são, com suas qua-
lidades naturais, elas permanecem viventes em vez de apenas conceituais. Dão força às nossas
vidas cotidianas.

A negatividade conceitualizada, a negatividade negativa, deve ser traspassada. Ela merece ser
liquidada no ato, com um cortante golpe de inteligência básica - prajnaparamita. É esta a fun-
ção da prajna: traspassar a inteligência quando ela se transforma em especulação intelectual ou
se apóia em algum tipo de crença. As crenças são reforçadas infindavelmente por outras crenças
e dogmas teológicos, morais, práticos ou metodológicos. Esse tipo de inteligência precisa ser
liquidado no mesmo instante, “desapiedadamente”. Este é o caso em que a compaixão não deve
ser uma compaixão tola. Tal energia intelectual deve ser eliminada, liquidada, esmagada, trans-
formada em pó instantaneamente, com um só golpe. Esse golpe único da inteligência básica é
a compaixão sem desvios. Tal atitude não se origina de intelectualizações ou de tentativas de
encontrar um meio de justificar a nós mesmos, mas vem, simplesmente, como conseqüência da
inteligência básica e da percepção da textura da situação.

191
Se nós, por exemplo, caminharmos sobre a neve ou sobre o gelo, sentiremos sua textura no mo-
mento em que pisamos. Sentiremos se nosso calçado vai firmar-se ou não. Estaremos falando da
sensação da textura, da riqueza da textura. Quando se trata de uma negatividade negativa, há
determinados meio de esmagá-la ou eliminá-la. De algum modo, a energia para isso provém da
própria negatividade básica, e não de alguma técnica especial ou de algum talento para assassi-
natos. Há ocasiões para sermos filósofos e ocasiões para sermos amenos. Existem também mo-
mentos, ao lidarmos com tais situações frívolas, em que devemos ser “desapiedados” e implacá-
veis.

A frivolidade são os atos físicos e mentais adicionais e desnecessários como os quais nos man-
temos ocupados a fim de não tomar conhecimento do que realmente está acontecendo numa
determinada situação. Sempre que ocorrer uma situação emocional frívola e dela se desenvolve-
rem conceitos, sua base deverá ser extinta por um golpe direto - ou seja, vendo-se diretamente
o que não é certo nem saudável. É isto que é chamado Espada de Manjushri, que corta a raiz
da conceituação dualista com um só golpe. Nisso a pessoa deve ser realmente “desapiedada”
e ilógica. O objetivo verdadeiro é apenas esmagar a frivolidade, a relutância em ver as coisas
como na verdade são, o que parece racional. A frivolidade, de fato, não permite uma oportuni-
dade de sentirmos inteiramente o terreno. Ela está preocupada em saber como reagiremos às
nossas projeções quando elas nos vêm de volta. A verdadeira espontaneidade sente a estrutura
da situação porque está menos envolvida com autoconsciência, com a tentativa de nos proteger
numa determinada situação.

É evidente que, quando estivermos verdadeiramente esmagando a frivolidade, devemos sentir


dor, pois há uma certa simpatia pela ocupação de ser frívolo. Ao destruí-la, estaremos afastando
inteiramente a ocupação. Começaremos a perceber que nada mais temos para nos apegar, o que
é tão amedrontador quanto doloroso. O que faremos depois de ter destruído tudo? Nessa altura,
não precisaremos viver nosso heroísmo por termos realizado alguma coisa, mas, simplesmente,
dançaremos com o incessante processo de energia que foi liberado por esta destruição.

A tradição tântrica do Budismo descreve quatro tipos de ação ou karma-yogas. A primeira é a


ação de “apaziguar” uma situação, caso ela não esteja certa. Apaziguar é procurar sentir o ter-
reno de maneira muito suave. Procuramos sentir progressivamente a situação, não só para apa-
ziguá-la superficialmente mas para exprimir sua totalidade, senti-la em plenitude. Em seguida,
expandimos nossas qualidades saborosas, dignas e ricas em todas as direções. Isso é “enrique-
cer”, o segundo karma. Se não funcionar, passa-se, então, para o terceiro karma, “magnetizar”.
É quando juntamos os elementos da situação. Após tê-los sondado pelo apaziguar e enriquecer,
procuramos junta-los. Caso não tenhamos êxito, há ainda a ação de “destruir” ou “eliminar” - o
quarto karma.

Esses quatro karmas são muito apropriados ao processo de lidar com a negatividade e com os
problemas assim denominados. Primeiro, apaziguamos, depois enriquecemos, a seguir magneti-
zamos e, caso não adiante, por último eliminamos, destruímos por completo. Esta última ação é
necessária somente quando a negatividade negativa se utiliza de uma pseudológica sólida, ati-
tude pseudofilosófica ou conceituações. Ela é necessária quando há algum tipo de idéia que traz
em si toda uma sucessão de outros conceitos, como os envoltórios de uma cebola, ou quando
se usam lógica e meios de autojustificação de modo que as situações se tornam muito pesadas
e sólidas. Sabemos que essa condensação está ocorrendo; mas, ao mesmo tempo, tapeamos a
nós mesmos sentindo que a apreciamos a complicação de tal lógica, sentindo que precisamos de
alguma ocupação. Quando começamos com esse tipo de jogo, não deve haver tolerância. Fora!
Fala-se na tradição tântrica, que se não destruirmos quando for preciso, estaremos quebrando o
voto de compaixão que, de fato, nos obriga a destruir a frivolidade. Por isso, dedicarmo-nos ao
caminho espiritual não significa obrigatoriamente, que apenas devemos ser bons e não ofender
ninguém; não significa que, se alguém obstruir, devemos procurar ser polidos e dizer “por favor”

192
ou “obrigado”. Isso não faz sentido, não é essa a questão. Se alguém interferir de modo brusco
em nosso caminho, simplesmente o afastamos, pois sua intromissão foi leviana. O caminho do
dharma não é, de modo algum, um caminho bom, sensato, passivo e “piedoso”. É um caminho
no qual ninguém deve andar às cegas. Àqueles que o fizerem - Fora! Eles devem ser despertados
por serem excluídos.

Nos estágios adiantados da prática, podemos atravessar a negatividade negativa e restituí-la à


sua natureza original, de modo que tenhamos uma poderosa força negativa, que é pura e não
constrangida. Ou seja, uma vez que tenhamos esmagado totalmente essa negatividade negativa,
passado pela operação sem anestesia, então, reavivaremos a negatividade por causa da energia.
Mas isso pode ser complicado.

Se a energia pura da negatividade estiver envolvida com qualquer tipo de fundamento, ela será
invariavelmente considerada como um atributo da energia que está em segundo plano, a energia
lógica da negatividade negativa. Isso se deve a nossa fascinação para reviver a negatividade bá-
sica, para recriar o conforto e a ocupação associados a ela. Portanto não devemos reviver essa
atividade de maneira alguma. As ocupações devem ser completamente superadas. Então a ener-
gia que destrói o reviver da ocupação torna-se energia lógica transmutada em louca sabedoria
- as idéias conceituais se desprendem. Isso quer dizer que não há mais idéias conceituais, mas
somente energia desenfreada. Originalmente, havia idéias conceituais; mas depois elas foram
traspassadas por completo, de modo que não mais olhamos a luz e as trevas como luz e trevas;
passam a ser um estado de não-dualidade.

Assim, a negatividade torna-se simplesmente alimento, força pura. Não mais nos referimos à
negatividade como sendo boa ou má, mas utilizamos continuamente a energia que dela provém
como fonte de vida; portanto, nunca somos, de fato, derrotados em qualquer situação. A louca
sabedoria não pode ser derrotada. Se alguém a agride ou se alguém a elogia, a louca sabedoria
absorverá ambas as situações igualmente. No que lhe diz respeito, elogio e acusação são a mes-
ma coisa, pois há sempre alguma energia correndo...pensamento realmente aterrorizante.

A louca sabedoria poderia tornar-se diabólica, mas, por alguma razão, isso não acontece. Os que
temem a louca sabedoria destroem a si mesmos. A destruição negativa que projetam nela retor-
na a eles, pois a louca sabedoria não tem noção alguma de bem ou de mal, nem de destruição
ou de criação. Ela não pode existir sem comunicação, sem uma situação com a qual possa traba-
lhar: o que precisa ser destruído, ela destrói; o que precisa ser cuidado, é cuidado. A hostilidade
destrói a si mesma, e a abertura também abre a si mesma. Isso depende da situação. Algumas
pessoas podem aprender com a destruição, enquanto outras aprendem com a criação. É isso o
que as divindades coléricas e as divindades pacíficas, os mahakalas e os budas, simbolizam.

Os quatro braços do mahakala representam os quatro karmas. Toda a estrutura da imagem


baseia-se na energia e na total compaixão, livre de compaixão idiota. Neste thangka em parti-
cular o braço esquerdo representa o apaziguamento; segura um crânio em forma de taça cheio
de amrita, o néctar inebriante dos deuses, que é um meio de pacificação. O outro braço segura
uma faca em forma de gancho que simboliza o enriquecimento, estendendo a sua influência
sobre os outros e sentindo a textura do terreno e a sua riqueza. Esta faca em forma de gancho
é também considerada como cetro dos deuses. O terceiro braço, do lado direito, empunha uma
espada, que é o instrumento magnetizador de energias. Esta espada não precisa golpear, mas
simplesmente pelo seu brandir, faz com que as energias ao redor se unam. O quarto braço segu-
ra uma lança tridente, que simboliza a destruição; as três ponta não significam destruir por três
vezes, mas que com um único golpe se produz três ferimentos: a destruição final da ignorância,
da paixão e da agressividade ao mesmo tempo.

O mahakala está sentado em cima de cadáveres de demônios, os quais representam a paralisia

193
do ego. Isso é muito interessante e se relaciona com aquilo que já comentamos: não se deve
agir impulsivamente em nenhuma situação. Permita que a situação aconteça; em seguida obser-
ve-a, mastigue-a adequadamente, digira-a, espere. O movimento repentino é insalubre, impulsi-
vo e frívolo em vez de espontâneo.

A espontaneidade vê as situações tais como são. Notemos que há uma diferença entre espon-
taneidade e frivolidade; uma linha muito tênue as separa. Sempre que houver um impulso para
fazer alguma coisa, não devemos simplesmente segui-lo; é preciso trabalhar com esse impulso.
Se estivermos trabalhando com ele, não agiremos com levianidade; desejaremos realmente vê-
lo e prová-lo adequadamente. Livre de frivolidade. Frivolidade significa reagir de acordo com o
reflexo. Lançamos alguma coisa e, quando ela nos retorna, reagimos. Espontaneidade é quando
lançamos alguma coisa, observamos e trabalhamos com a energia quando ela nos retorna. A fri-
volidade implica excesso de ansiedade. Desde que estejamos emocionalmentes excitados, ansie-
dade em demasia é posta em nossas ações. Mas quando somos espontâneos, há menos ansiedade
e simplesmente lidamos com as situações como elas são. Não reagimos apenas: trabalhamos com
a qualidade e a estrutura da reação. Sentimos a natureza da situação em vez de apenas agir
impulsivamente.

O mahakala é rodeado por chamas que representam a energia enorme e incessante da cólera
sem ódio, a energia da compaixão. A coroa em forma de crânios simboliza a negatividade ou as
emoções, as quais não são destruídas, abandonadas ou condenadas por serem “más”. Ao contrá-
rio, elas são utilizadas pelas mahakala como enfeites e como diadema.

194
As Cinco Famílias Búdicas
Chögyam Trungpa Rinpoche

A disciplina tântrica para se relacionar com a vida se baseia no que se co­nhece como cinco
princípios búdicos — ou cinco famílias búdicas. Esses princípios são conhecidos tradicionalmente
como famílias porque são uma extensão de nós mesmos, no mesmo sentido em que nossas rela-
ções de pa­rentesco são extensões de nós: temos pai, mãe, irmãos e irmãs, todos fazen­do parte
de nossa família. Mas podemos dizer também que esses parentes são princípios: nossa "materni-
dade", nossa "paternidade", nossa "fraterni­dade" e "irmandade" e nossa "eu-dade" são vivenciadas
como princípios definidos com características distintas. Do mesmo modo, a tradição tântrica fala
em cinco famílias: cinco princípios, categorias ou possibilidades.

Esses cinco princípios das famílias búdicas são chamados de vajra, ratna, padma, carma e buda.
São bastante comuns. Não há nada de divino ou de extraordinário nelas. O essencial é que, no
nível tântricô, as pessoas se f dividem em tipos específicos: vajra, ratna, padma, carma e buda.
Depara-mo-nos o tempo todo com membros de cada uma dessas famílias — pes­soas que são par-
cial ou completamente de uma das cinco. Encontramos pessoas assim ao longo da vida inteira,
e cada uma delas é uma pessoa fértil e maleável, com quem se pode ter uma relação direta e
pessoal. Portanto, do ponto de vista tântrico, quando nos relacionamos diretamente com esses
tipos de pessoas estamos na verdade nos relacionando com diferentes estilos de iluminação.

A família ou famílias búdicas associadas a uma pessoa descrevem seu estilo básico, sua pers-
pectiva ou postura intrínseca na percepção do mundo e na relação com ele. Cada família está
associada a um estilo de neurose e a um estilo de iluminação. A expressão neurótica de cada fa-
mília búdica pode ser transmutada na sabedoria de seu aspecto iluminado. Além de des­crever os
estilos das pessoas, as famílias búdicas estão associadas também a cores, elementos, paisagens,
direções e estações — a todos aspectos do mundo fenomênico.

A primeira família búdica é a família vajra, que significa literalmente a família da acuidade, da
cristalização e da indestrutibilidade. A palavra "vajra" é traduzida superficialmente como "dia-
mante", mas isso não é mui­to exato. Tradicionalmente, vajra é uma pedra preciosa celestial que
corta qualquer outro objeto sólido. Ela é, portanto, mais do que um diamante: é a indestrutibi-
lidade completa. A família vajra é simbolizada pelo cetro vajra, ou, em tibetano, dorje. O cetro
vajra, ou superdiamante, tem cinco pontas, que representam as cinco emoções: agressão, orgu-
lho, paixão, in­veja e ignorância. As extremidades pontiagudas ou pontas do vajra repre­sentam
o corte extirpador de todas as tendências emocionais neuróticas; representam também a quali-
dade arguta de estar consciente dos diversos pontos de vista possíveis. Diz-se que o indestrutí-
vel vajra é como um feixe de navalhas: se ingenuamente tentarmos pegá-lo ou tocá-lo, haverá
diver­sas pontas afiadas cortantes e penetrantes. A ideia é que o vajra corrige ou remedeia todas
as distorções neuróticas de modo preciso e arguto.

No mundo comum, a experiência do vajra talvez não seja tão extrema quanto pegar lâminas
com a mão, mas, ao mesmo tempo, é penetrante e muito pessoal. É como um inverno rigoroso,
cortante e penetrante. Sem­pre que nos expomos ao ar livre, congelamos instantaneamente. Do
ponto de vista intelectual, o vajra é muito arguto. Todas as tradições intelectuais pertencem
a essa família. A pessoa da família vajra sabe avaliar logicamente os argumentos usados para
explicar a experiência. Ela sabe dizer se a lógica é verdadeira ou falsa. O intelecto da família
vajra tem também um senso de abertura e perspectiva constantes. Uma pessoa vajra consegui-
ria, por exemplo, ver uma bola de cristal por centenas de pontos de vista diferentes, conforme
o lugar onde tenha sido colocada, o modo como foi percebida, a distância da qual é observada,
e assim por diante. O intelecto da família vajra não é apenas enciclopédico: ele é acuidade,
objetividade e consciência das perspectivas. Essa indestrutibilidade e essa agudeza são muito
pessoais e muito reais.

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A expressão neurótica do vajra está associada à ira e à fixação intelectual. Quando nos fixamos
numa lógica específica, a acuidade do vajra

se tornar rigidez. Em vez de termos um senso de perspectiva aberta torna-mo-nos possessivos


em relação às nossas ideias. A raiva da neurose vajra pode ser agressão pura ou um senso de
nervosismo, por sermos tão apega­dos a nossa acuidade mental. O vajra está associado ao ele-
mento água. A água turva e turbulenta simboliza a natureza defensiva e agressiva da ira, en-
quanto a água cristalina sugere a reflexibilidade aguda, precisa e clara da sabedoria vajra. Na
verdade, a sabedoria vajra é chamada tradicionalmente de sabedoria especular, o que evoca
essa imagem de um lagoa calma ou de uma poça que reflete a luz.

A propósito, o uso do termo vajra em expressões como "vajrayana", "mestre vajra" e "orgulho va-
jra" não se refere a essa família búdica específi­ca, mas significa simplesmente indestrutibilidade
fundamental.
A família búdica seguinte é o ratna. Ratna é um senso pessoal e real de expansão de nós mesmos
e de enriquecimento de nosso ambiente. E expansão, enriquecimento, abundância. Essa abun-
dância pode apresentar também problemas e pontos fracos. No sentido neurótico, a riqueza
do ratna se manifesta como uma obesidade excessiva ou ostentação extraor­dinária, além dos
limites de nossa sanidade. Expandimo-nos permanente­mente, abrimo-nos de modo descuidado e
nos gratificamos até o nível da insanidade. É como nadar num lago espesso de mel e manteiga.
Quando nos cobrimos com essa mistura de manteiga e mel é muito difícil removê-.a. Não basta
esfregá-la; é preciso aplicar vários produtos de limpeza, como detergentes e sabões, para fazê-
la desgrudar.

Na expressão positiva da família ratna, o princípio da riqueza é extra­ordinário. Sentimo-nos


muito ricos e opulentos e nos oferecemos ao nosso mundo em sentido pessoal, direto, emocio-
nal, psicológico e mesmo espiri­tual. Estamos sempre nos oferecendo, expandindo-nos como uma
inunda­ção ou um terremoto. Há um senso de propagação, de abalar as estruturas ia terra e abrir
novas fendas nela. É a poderosa expansividade do ratna.

A expressão iluminada do ratna chama-se sabedoria da equanimidade,


porque o ratna é capaz de incluir qualquer coisa em seu ambiente expansivo.
O ratna é associado, por isso, ao elemento terra. É como um tronco caído e podre que se sente
muito à vontade no campo. O tronco não quer sair dali. Gostaria de ficar, mas, ao mesmo tem-
po, cria todo tipo de fungo e planta e permite que os animais se abriguem nele. Esse acomodar-
se preguiçoso e ficar à vontade em casa, assim como convidar os outros a entrar
e se aconchegar também é ratna.

A próxima família é o padma, que significa literalmente "flor de lótus". O símbolo da família
iluminada padma é o lótus, que cresce e floresce na lama mas é puro e limpo, virginal e claro.
A neurose padma está ligada à paixão, a uma qualidade ávida e a um desejo de possuir. Ficamos
completamente envolvidos pelo desejo e queremos apenas seduzir o mundo, sem nos preocupar
com uma comunicação verdadeira. Podemos ser uma prostituta ou um publicitário, mas em es-
sência somos como o pavão. Na verdade, o Buda Amitabha, que é o buda da família padma, por
tradição se senta sobre um pavão, o que representa a vitória sobre a neurose padma. A pessoa
com a neurose padma fala com delicadeza, incrível delicadeza, e é aparentemente muito sexy,
gentil, magnânima e inteiramente afável: "Se você me ferir, tudo bem. Faz parte do nosso amor.
Venha". Essa sedução padma se torna às vezes excessiva e às vezes compassiva, dependendo do
modo como a trabalhamos.

O padma está ligado ao elemento fogo. No estado de confusão, o fogo não distingue entre as
coisas que envolve, queima e destrói. Mas, no estado iluminado, o calor da paixão se transforma
no fervor da compaixão. Quan­do a neurose padma é transmutada, ela se torna incrivelmente

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precisa e consciente; transforma-se em enorme interesse e curiosidade. Cada coisa é vista de
maneira especial, com suas qualidades e características próprias. A sabedoria do padma é cha-
mada de sabedoria da consciência discriminante. O verdadeiro caráter da sedução padma é uma
abertura real, uma dispo­sição para mostrar ao mundo fenomênico o que temos e o que somos. O
que proporcionamos ao mundo é um senso de prazer, de promessa. Em tudo o que vivenciamos,
começamos a perceber que há muitas promessas. Experimentamos constantemente um senso de
magnetismo e de hospita­lidade espontânea.
Essa qualidade do padma é como um banho de perfume ou de chá de jasmim. Sempre que nos
banhamos, sentimo-nos ótimos, reanimados. Sentir-se magnetizado parece bom. O ar perfumado
é maravilhoso, e a hospitalidade de nosso anfitrião é magnífica. Comemos a boa comi­da pro-
porcionada por nosso anfitrião, e é deliciosa, mas não nos deixa fartos. Vivemos num mundo de
leite e mel, num sentido muito delicado — diferente da experiência rica, mas pesada, da família
ratna. É fantástico!

Até mesmo o pão está perfumado de essências deliciosas. O sorvete está colorido por lindas
cores róseas como o lótus. Mal podemos esperar para comer. Há constantemente uma música
suave ao fundo. Quando não há música, ouvimos o sopro do vento em torno de nosso ambiente
padma, e isso se torna uma bela música também. Mesmo não sendo músicos, compomos músicas
de todos os tipos. Desejaríamos ser poetas ou amantes extraordinários.

A família seguinte é a família carma, que é algo bem diferente a ser considerado. Não falamos
aqui de dívidas cármicas ou de consequências cármicas; carma, neste sentido, significa simples-
mente "ação". A qualida­de neurótica da ação ou atividade está ligada ao ciúme, à comparação e
à inveja. O aspecto iluminado do carma é chamado de sabedoria da ação que tudo realiza. É o
senso transcendental de realização plena da ação, sem lutas ou sem ser forçado para a neurose.
É a realização natural do modo como nos relacionamos com nosso mundo. Em ambos os casos,
tanto no nível transcendental quanto no nível neurótico, o carma é a energia da eficiência.

Quando temos uma neurose da família carma, sentimo-nos muito in­comodados se vemos um fio
de cabelo numa xícara de chá. Primeiro pen­samos que a xícara se quebrou e que o cabelo é uma
rachadura. Em seguida nos aliviamos — a xícara não está quebrada; é apenas um fio de cabelo
na borda. Mas, em seguida, começamos a olhar para o fio de cabelo e ficamos irritados nova-
mente. Queremos que tudo seja muito eficiente, puro e ab­solutamente limpo. Mas, quando che-
gamos a conquistar essa limpeza, ela própria se torna um novo problema: sentimo-nos inseguros
porque não há nada para administrar ou com que trabalhar. Ficamos sempre tentando verificar
os menores detalhes. Por sermos muito devotados à eficiência fi­camos agarrados a ela.

Quando encontramos alguém que não é eficiente, que não organiza a própria vida, nós o consi-
deramos uma pessoa detestável. Gostaríamos de nos livrar de pessoas tão ineficientes, e certa-
mente não as respeitamos, mesmo que sejam músicos talentosos, cientistas ou qualquer outra
coisa. Por outro lado, quando alguém tem uma eficiência impecável, começamos a gostar de sua
companhia. Gostaríamos de nos associar exclusivamente com pessoas responsáveis e bem-apes-
soadas. Mas percebemos que estamos com inveja e ciúme dessas pessoas tão eficientes. Quere-
mos que os outros sejam eficientes, mas não mais do que nós.

Em resumo, a neurose da família carma é querer criar um mundo uni­forme. Mesmo quando
temos pouquíssima filosofia, pouquíssima medi­tação e pouquíssima consciência em termos de
autodesenvolvimento, nós nos sentimos capazes de lidar adequadamente com nosso mundo.
Temos autocontrole, relacionamo-nos corretamente com todo mundo e ficamos ressentidos com
o fato de que nem todas as pessoas do mundo vêem as coisas como nós. O carma está ligado ao
elemento vento. O vento nunca sopra em todas as direções, mas em apenas uma de cada vez. É
a visão de mão única do ressentimento e da inveja, que seleciona um único defeito ou virtude
e o amplia de maneira desproporcionada. Na sabedoria carma a qualidade do ressentimento é

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excluída, mas as qualidades da energia, realização da ação e da abertura permanecem. Em ou-
tras palavras, o aspec­to ativo do vento se mantém, de modo que nossa atividade energética afet
tudo o que há em seu caminho. Enxergamos as possibilidades intrínsec das situações e adotamos
automaticamente o curso adequado. A ação cum-j pré o seu propósito.
A quinta família é chamada de família buda. Está associada ao elemento espaço. A energia buda
é o alicerce ou espaço essencial. É o ambiente oxigénio que torna possível o funcionamento
dos demais princípios. Ter uma qualidade calma e sólida. As pessoas dessa família têm um forte
senso de experiência contemplativa, e são altamente meditativas. A neurose buda é a situação
de ficar perdido no espaço, em vez desenvolver a espaciosidade. está frequentemente associada
a uma relutância em se expressar. Podemos constatar, por exemplo, que nossos vizinhos estão
destruindo nossa cerca de madeira com uma marreta. Podemos vê-los e ouvi-los — na verdade,
passamos o dia todo vendo-os quebrar nossa cerca. Mas, em vez de reagir, apena observamos
e em seguida voltamos para nossa confortável casinha. Tomame o café da manha, almoçamos
e jantamos, ignorando o que eles estão fazendc Ficamos paralisados, incapazes de falar com
alguém de fora.
Uma outra característica da neurose buda é a de que não podemos se incomodados. Nossas
roupas sujas se empilham num canto do quarto. Às vezes usamos as roupas sujas para limpar
algo derramado no chão ou na mesa e em seguida elas voltam para a pilha. Com o tempo, nossas
meu sujas se tornam insuportáveis, mas não fazemos nada. .

Se entrarmos numa carreira política, nossos colegas poderão sugerir que desenvolvamos um
determinado projeto e expandamos a nossa or­ganização. Se tivermos uma neurose buda, optare-
mos por desenvolver a área que requer menos esforço. Não vamos querer haver-nos diretamente
com os detalhes da realidade. Entreter os amigos também é muito cansa­tivo. Preferimos levá-
los a um restaurante em vez de cozinhar em casa. E, quando queremos ter um relacionamento
amoroso, em vez de seduzir um parceiro ou parceira conversando e fazendo amizade, simples-
mente pro­curamos alguém que já tenha uma queda por nós. Não podemos perder tempo con-
vencendo alguém de qualquer coisa.
Às vezes nos sentimos afundando na terra, em lama e terra espessa. As vezes nos sentimos bem,
porque nos achamos as pessoas mais estáveis do universo. Começamos, aos poucos, a sorrir para
nós mesmos, porque somos as melhores pessoas que existem. Somos os únicos que conseguem
permanecer estáveis. Mas às vezes nos sentimos as pessoas mais solitárias de todo o universo.
Não gostamos muito de dançar, e quando alguém nos convida para dançar sentimo-nos envergo-
nhados e constrangidos. Quere­mos ficar em nosso cantinho.

Quando a qualidade indiferente da neurose buda se transmuta em sa­bedoria torna-se um am-


biente de espacialidade que tudo permeia. Esse aspecto iluminado é chamado de sabedoria do
espaço que tudo abrange. Ela ainda pode ter, em si mesma, uma qualidade um tanto desolada e
vazia, mas, ao mesmo tempo, é uma qualidade de potencial inteiramente aberto. Pode acomo-
dar qualquer coisa. É tão espaçosa e vasta quanto o céu.

Na iconografia tântrica, as cinco famílias búdicas são dispostas no centro e nos quatro pontos
cardeais de uma mandala. A mandala das cinco famílias búdicas representa, evidentemente, sua
sabedoria ou aspecto iluminado. Tra­dicionalmente, a família buda ocupa o centro. Isso significa
que no centro está a coordenação básica e a sabedoria essencial do buda, simbolizada por uma
roda e pela cor branca. O vajra está no leste, porque o vajra está ligado ao nascer do Sol. Está
ligado também à cor azul e é simbolizado pelo cetro vajra. Ë a agudeza da experiência, como
quando acordamos pela manhã. Co­meçamos a ver o nascer do Sol, no primeiro momento em que
a luz se reílete no mundo, como um símbolo do despertar da realidade.
O ratna está no sul. Está ligado à riqueza e é simbolizado por uma jóia e pela cor amarela.
Também está ligado ao meio-dia, quando começamos a sentir necessidade de nos refrescar e de
nos alimentar. O padma está no oeste e é simbolizado pelo lótus e pela cor vermelha. À medida
que o dia vai acabando, também temos de encontrar alguém para amar. É o momen­to de socia-

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lização, de sair com quem se ama — ou, se nos apaixonamos por alguma antiguidade ou roupa, é
hora de sair para comprá-la. A última fa­mília é o carma, no norte. É simbolizado por uma espada
e pela cor verde. Finalmente concluímos a situação: já temos tudo de que precisamos; não há
nada mais para obter. Já trouxemos para casa nossa mercadoria ou nosso amante e dizemos:
"Vamos fechar a porta — vamos trancá-la". Portanto, a mandala das cinco famílias búdicas repre-
senta a progressão de um dia inteiro ou de um curso de ação completo.
Se não compreendermos as cinco famílias búdicas, não teremos uma base prática para entender
o tantra e começaremos a nos sentir distancia­dos dele. O tantra é visto como algo desmesurado,
aparentemente sem relação conosco enquanto indivíduos. Podemos pensar que o vajrayana é
apenas uma meta distante, um objetivo distante. É necessário, por isso, estudar os cinco princí-
pios búdicos. Eles fazem a ponte entre a experiência tântrica e a vida cotidiana.

Devemos entender e assimilar os cinco princípios búdicos antes de ini­ciar a disciplina tântrica,
para que possamos começar a compreender o que é o tantra. Se o tantra é uma experiência mís-
tica, como relacioná-la à nos­sa vida comum, cotidiana, doméstica? Poderia haver uma enorme
lacuna entre a experiência tântrica e a vida diária. Mas é possível preencher essa lacuna com
o entendimento das cinco famílias búdicas. Ao trabalhar com as famílias búdicas descobrimos
que já temos certas qualidades. Na pers­pectiva tântrica, não podemos ignorá-las nem tentar
ser outra coisa. Te­mos nossa agressão, nossa paixão, nosso ciúme, nosso ressentimento, nossa
ignorância e tudo o mais que tenhamos. Já pertencemos a uma ou outra família búdica e não
podemos rejeitá-las. Devemos trabalhar com nossas neuroses, estabelecer uma boa relação com
elas e vivenciá-las corretamente. Elas são o único potencial que temos, e quando começamos a
trabalhar com elas constatamos que é possível usá-las como ponto de partida.

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