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Capítulo 1

PROPÓSITO E DEFINIÇÕES

A
finalidade da primeira parte do livro, "Os sistemas dos
Estados antigos", é ver o que podemos discernir a res-
peito da organização da~ relações entre povos diferentes
em outras civilizações. A luz de nossas descobertas, po-
1 1 m >s, na segunda parte, examinar "A sociedade internacional
11 p ~ia', que muito herdou de experiências anteriores. A terceira
11 I ' amina "A sociedade internacional global" . O sistema inter-
' 11 ti ontel]l orâneo sur iu a artir do sistema euro eu, e
1lI las regras e instituições da sociedade européia foram sim-
11 111 apli cadas de maneira global; mas o sistema também
1 1 11 li' 1 idéias e práticas de sistemas anteriores.
nulrn. civilizações que queremos examinar, e as relações
1 1 ·om unidades, eram evidentemente muito individualiza-
11 11 l 1vnm constantemente. Que termos gerais podemos usar
1 , v ·r e classificar a grande variedade dessas relações?
010 " Estado", "império" e "sistema" são úteis, na medi-
' 1 , 1 ·tnhr ·mos qu e são apenas categorizações amplas que
, 111111 / ama considerável de fenômenos individuais distin-
1 f ' l' •111 'S usuários desses termos lhes atribuem signifi-
11 , 1111 ·111 • dil'c rentes. A simples distinção entre povos
111 IIJ ulo,·, ou ·ntre governantes soberanos ou vassalos,
1 1 111 ·111 • ,·ohr carregada de retórica e obscurece muitas
111 11 ' ' •s,·ilamos examinar. Necessitamos de espres-
111 1 ,
Adam Watson

Tornei-me crescentemente cético com relação a distinções


11111 idas entre sistemas de Estados independentes, sistemas suse-
l'IIIO impérios; agora prefiro definir o tema mais amplo dizendo
llll Hndo algumas comunidades diver~a_§ g~_p~~~oas ou entifla-
1 )1 ticas e.stão suficientement~ epv_Qlyjqas _urp.as com as outr~~
p li' 1 1uc digamos que constituem um sistema de algum tipo (seja
li I p 11dente, suserano, imperial ou o que quer que seja), a organi-
'I. 1 • ) do sistema cairá em alg\!_11?- ponto d~ _ ~ !?- es ectro_de noçõ~
\. 1111 1 ª tin~~pendê~ ciaJabsoluta e ,oli!::E~!lllJlbsoJµJ_~ As dÜãspõsi-
• marginais são bsolutos teóricov que não ocorrem na prática.
H • >11veniente, para fi; s de comparação, dividir-se o espectro em
•qtI tl1<1 categorias amplas de relações: independência, hegemonia,
{ do111 11 i ~ !~nr_~rj ? - 3,33 J/ettt.Att;?,Uf 4 - C<,..-~;, r._14_
11,, nos sistemas de Estados, uma tensão inevitável entre o de-
' 1 ordem e o de~~j o_de indep_ ~g_de_~~~ -A orde~ pr~1~~~ a
p 1z prosperidade, que são grandes dádivas. Há, entretanto, um
pr 't1, Toda ordem limita a liberdade de ação das comunidades e
1 • tlmente a de seus dirigentes. O desejo de ordem torna acei-
11v as limitações e os comprometimentos voluntários, pelas
I' w, 1 expostas por Hobbes e outros. Na medida, todavia, em que a
OI d li é imposta pela força real ou potencial de uma autoridade
h 111 nica, esta pode ser sentida como opressiva. Isso ocorre
, 1 • • llmente no caso de autoridades imperiais e outras que inter-
V Ili 11 lS políticas internas dos membros. o desejo de autonomia, e
1 p ,t de independência, é o desejo dos Esfados de relaxar as li-
Jll 11 • es e os comprometimentos sobre eles impostos. A indepen-
1 li • 1 entretanto, também tem seu preço, em termos de insegu-
i' tII ' , conômica e militar.
( > termo Estados inde2endent(ts num sistema indica entidades
p(II 1 • \S que mantêm a capacidade última de tomar decisões exter-
sim corµo decisões de natureza doméstica. Na prática, con-
1 liberdade para a tomada de decisões externas é diminuída
limitações que o envolvimento em qualquei· sistema impõe, e
ln pelos cpmprometimentos voluntá! ios que os Estados as-
1 a fim de gerir suas relações externas de maneira mais eficaz.
e
1 > niãiores forem· as limitações os comprometimentos, mais
'I t 11 1 lo será o sistema, e mais longe ele se situará no espectro.
A evolução da sociedade internacional 29

Na extremidade do espectro onde se situam as independências


múltiplas, quanto mais estreitamente os Estados soberanos estive-
rem envolvidos uns com os outros, menos se sentirão capazes de
operar sozinhos. A rede impessoal de pressões estratégicas e eco-
~miças que os mantém juntos num sistema os induz a fazer alian-
ças. As alianças proporcionam uma forma de ordem ao que seria
íí""m-siste1na não coeso, ao coordenar, e assim modificar, o com-
portamento de seus membros. Esse é um aspecto do que o sistema
europeu chamou raison d 'état . .t\. ordem é ainda promovida por
acordos e regras gerais, que limitam e favorecem todos o~ mem-
bros do sistema e o tornam uma sociedade. Esse é um aspecto da
raison de systeme, a crença em que vale a pena fazer com que o
sistema funcione. Na medida em que tais acordos, inclusive com-
promissos para com a segurança coletiva, sejam voluntários, e não
sejam impostos por uma potência ou um gfopo de potências vitorio-
sas, eles caem na área de independências ruúltipla~~do espectro.
Na prática, a liberdade de ação de Estados independentes sem-
pre é limitada pelas pressões da interdependência dentro de um
sistema, e muitas vezes também por escolha voluntária. Normal-
mente também é limitada, de maneira mais eficaz, pela \hegernonià.
À medida que progredimos dentro do espectro até o ponto em que
uma ou mais potências podem exercer hegemonia, as outras formas
't-- de coordenação apagam-se dentro das vaotagens derivadas da auto-
~ ridade hegemônica, que ordena o sistema de tal maneira que todos
~ os seus membros vêem um saldo de vaotagens ao aceitar a hege-
~ monia. 4\-ssim, também as potências imperiais normalmente julgam

~j'-' vantajosoreagir ios interesses e ao bem~estar de povos subordina-


~ dos - •
~ •.~--·

Quando uso o termo hegemonia, quero dizer que alguma po-


"-' tência ou autoridade num sistema pode "escrever as leis" sobre a
operação do sistema, ou seja, determinar em alguma medida as
relações externas entre Estados-membros, enquanto os deixa inter-
namente independentes. Alguns estudiosos gostam de reservar o
termo hegemonia para o exercício dessa autoridade por parte de
uma única potência. A dificuldade que bá é que, na verdade, a au- .
toridade pode ser exercida, seja por um Estado individual podero-
so, seja, como ocorre amiúde, por um grupo de Estados nessas
condições. Um exemplo de hegemonia dual é a diarquia ateno-
11 (Í) 1'
2)J~

w Adam Watson

( Np11rl 111111 d pois elas Guerras Persas, discutidas no Capítulo 5. As


•ln 'O ,ra nd es potências européias depois ele 1815 exerciam uma
li , 111onia difusa, discutida no Capítulo 21. Realmente, as regras e
111-1 im;litui ções da sociedade internacional européia estavam longe
d 1-1 'r puramente voluntárias: eram em grande medida impostas
p ' los principais vencedores nos grandes acertos pacíficos como
V 'i,;tfftlia, Viena e Versalhes, e eram, nesse sentido, hegemónicas.
llu, portanto, refiro usar o termo hegemonia nesse sentido mais
amplo de qualquer autoridade, que consista ele um ou alguns Esta- ·
dos poderosos, que possa determinar -as relações entre os membros
d ' uma sociedade internaciona( .em vez de recorrer a palavras feias--.
1
'0 1110 para-hegemónico. Ademais, uma hegemonia não é um flat
ditatorial. As hegemonias que examinei, quer sejam as exercidas
p >r uma potência individual, quer por um pequeno grupo, envol-
vem diálogo contínuo entre a autoridade hegemónica e os outros
\Staclos e uma noção, dos dois lados, da vantagem da celeridade.
Suserania é um conceito mais vago. Em direito internacional
uormalmente significa que um Estado exerce controle político so-
bre outro. Em muitos contextos históricos, significa uma vassala-
' ' m disfarçada que representa muito pouco na prática_., Alguns
sludiosos como Wight e Bull falaram de sistemas suseranos ou
sociedades suseranas querendo referir-se àqueles em que os mem-
bros aceitavam a hegemonia como legítima . Há uma diferença
' ntre sistemas cujos membros estão de acordo, de uma maneira
1crn l, quanto à idéia de que deveria haver uma autoridade suserana,
m 'SlllO quando é uma obediência na prática, e aqueles cujos mem-
bros só aceitam a autoridade suserana tacitamente. A aceitação
16 ·ita é o mesmo que a aquiescência, e é necessária para qualquer
h •<.: monia, seja ela de direito ou de fato.
Mais adiante, o espectro domínio cobre situações em que uma
1111 loridad c imperial em alguma medida determina o governo inter-
1m d ' outras comunidades, mas estas, não obstante, mantêm sua
d •111 idade como Estados separados e algum controle sobre seus ..
p1 oprlo1-1 nc ócios. Exemplos disso são as recentes relações soviéti-
'11 ·0 111 a • uropa Oriental, em que os Estados eram formalmente
11d p 11d nt s; a relação do imperador Augusto com o Reino de

1 " 1111~•11-H !", cm lnlim. (N. do T.)


A evolução da sociedade internacional 31

Herodes; e a relação do raj britânico com os príncipes indianos.


Nesses casos, o papel que cabe à capacidade de coagir é mais óbvio.
Finalmente, há iWBlf.rio, não mais absoluto na prática do que
independência, querendo dizer a administração direta de diferentes
comunidades a partir de um centro imperial. A liberdade de ação,
mesmo de governos imperiais, é diminuída na prática pelas limita-
ções que o envolvimento com outras comunidades impõe.
1 Quando examinamos exemplos históricos, no mundo de hoje,
ou nos sistemas do passado, estamos evidentemente conscientes do @J
fato de que essas categorias não são estanques e de Q!Je não há JJ.Illil '4--
tr,ansição abrupta de uma para a outra, mas, antes, há wna seqüên-
cia, como as ondas de luz num arco-íris, que achamos conveniente
dividir em diferentes cores. Nenhum sistema real permanec~ ~
u.um ponta desse espectro.
A relação das várias comunidades com as outras modifica-se
constantemente ao longo do espectro, no tempo. As maneiras pelas
quais um sistema aperta ou relaxa, e pelas quais uma potência he-
,emônica ou imperial suplanta outra, serão de interesse especial
para nós. Também há, a qualquer tempo, uma variação no espaço .
/\s comunidades envolvidas num sistema não estão todas na mes- ✓r
ma relação umas com as outras, ou com relação a uma potência?
imQerial. Há muitas gradações, ~esmo entre· Estados independen-
t ·s; e quai1do examinadas de perto, quaisquer relações entre duas
·omunidades têm na prática uma /natureza próp"i'.ii especial\ condi-
·ionada pela história, pela geografia e por outros fatores de dife-
1' 1 nciação. Uma questão que devemos examinar é a medida em que
01-1 impérios normalmente têm um núcleo duro de administração
direta, além do qual há camadas de domínio e de hegemonia até
11t ingir Estados independentes que estão fora do controle ou da
Influência imperiais. Essas "camadas" são, evidentemente, grada-
•(í 'S ao longo de nosso espectro e portanto círculos concêntricos
11urn diagrama, mais do que um mapa.
Além dessas variações continuadas da realidade, no tempo e
110 'Spaço, as comunidadeLquenós tratamos como componentes de
isl ·mas estão lon_g~ ~er ~2.!1§.IBOles. Uma entidade política signi-
1' ·n, ssencialmente, uma comunidade mantida unida por um go-
v mo comum. Obviamente, a área sob o controle de um governo
li ti' flutuar. Uma comwúdade, que também é mantida unida por
Adam Watson

0111ros liumes, tais como os costumes, a origem étnica, a religião ou


11 lín 111a, pode crescer ou diminuir em importância ou em tamanho:
po lo absorver outros elementos, ou quebrar-se, ou tornar-se assi-
ini lada , ou desaparecer de outro modo. Também devemos usar
l ' rmo • como comunidade e Estado no sentido mais neutro possí-
v 1. Por exemplo, parece-me que obscurece nosso entendim.!W1o da
natureza dos Estados sustentar~dÔgmaticamente que, _para contar
·01110 Estados, eles devêms er ind.epende~tes~ -- - - • -
Uma vez que os sistemas e as comunidades que os compõem
variam grandemente uns em relação aos outros, com culturas lar-
1ainente diferentes, experiências pretéritas diversas e diferentes
graus de desenvolvimento; e uma vez que, dentro de um dado sis-
tema, o grau de controle que uma, duas, três ou cinco potências
podem exercer sobre outras comunidades também varia, é possível
fazer quaisquer generalizações válidas sobre as pressões que indu-
ze m tais mudanças? Especialmente, será possível ver quaisquer
indicações da maneira pela qual nosso próprio sistema pode desen-
volver-se? Terá havido alguma tendência geral desviando -se do
pólo de autoridade centralizada, de império e de governo mundial,
no sentido da independência múltipla, como sustentam algumas
pessoas? Terá havido uma contratendência correspondente em
sistemas conhecidos de Estados independentes para que a potência
mais forte caminhe no sentido da hegemonia, tentando controlar as
relações exteriores de Estados clientes e ditar as regras do sistema;
e no sentido de que a hegemonia evolua para se tornar domínio?
Uma metáfora útil para uma teoria de sistemas é a do pêndulo.
Imaginem nosso espectro com o formato de um arco, com seu
ponto médio na parte mais baixa do movimento do pêndulo, em
nl •um lugar entre a hegemol}ia e odomínio. Havia, nos sistemas
Hnli os, qualquer efeito pêndulo suscetível de ser notado, qualquer
fl lrnção gravitacional sobre sistemas, centrífuga com ~l~ão_ aos
'X I.remos teóricos e dirigida para alguma área central do espectro,
uinda qu e o momento preciso da mudança e outros fatores pudes-
s in 1 ·var o sistema para além dessa área? Ou será que o padrão
1

vn l'in I masiadamente de um sistema para outro para que possamos


l'uz; •r· qualqu er inferência geral válida?
) utni qu estão importante é até que ponto os arranjos entre
{'01rn1nidu IC8 dentro de um sistema são aceitos como legítimos.
/J~\i

A evolução da sociedade internacional 33

1
A lezitimidade é a aceitação da autoridade, o direito, de uma regra
ofae um dirigente, de ser obedecido, diferentemente do poder de
coagir. A legitimidade é determinada pelas atitudes daqueles que
obedecem a uma autoridade. Como é que a autoridade legítima,
diferentemente do poder exercido pela compulsão ou por sua amea-
ça, opera entre comunidades dentro de um sistema, e como adquire
significação internacional? uanto mais estreitamente envolviclos
stejam ' Estados indep_endentes entrn si, m@nes tentarão operar
$i!kdamente. Eles vêem que podem promover alguns de seus inte-
resses e defender seus princípios, especialmente a preserv~ d~ M> 'l
sua independência, por meio da cooperação com aliados- o ~~ •
envolve levar em conta as visões e os desejos dos aliados e assim
modificar seus próprios comportamentos. Outros interesses podem
ser promovidos por acordos e regras gerais que limitem e favore-
çam todos os membros do sistema. Essa consciência das vantagens
da cooperação entre parceiros independentes corresponde às ma-
neiras pelas quais as potências hegemônicas e imperiais julgam
vantajoso reagir aos interesses e ao bem-estar de po.vos subordina-
dos. Até que ponto essas políticas dependem, para seu sucesso, de
uma ampla medida de aceitação? As regras, as instituições e as
práticas aceitas de uma sociedade de Estados substancialmente
independentes necessitam de autoridade legítima para garantir o
seu cumprimento habitual. Será a autoridade legítima tão necessá-
ria para o exercício bem-sucedido da hegemonia ou do domínio?
Se quisermos entender como as civilizações do passado orga-
nizavam as relações entre suas diferentes comunidades, não pode-
mos simplesmente abandonar essas provas, que historiadores e
arqueólogos puderam revelar, como uma massa de dados não cor-
relacionados. Pode ser muito útil impor um diagrama ou uma grade
de categorias sobre a múltipla variedade de relações reais para
possível classificação e análise comparativa. Não há nada de inco-
mum nisso. Temos de agrupar diferentes indivíduos e comunidades
em categorias- para fins jurídicos: por exemplo-, quando dizemos
que todos os muito diferentes Estados nominalmente independeg;::.
tes em nosso sistema internacional atual são iguais perante o direito
iaj:erriacionaí,
~ --···
e isso era regularmente feito nos teínpos antigos,
como o é hoje, a fim de atingir um objetivo político. No entanto,
enquanto a divisão da realidade em categorias pode ajudar nosso
111 Adam Watson

•111 •ndimento do que realmente acontece, há o perigo inerente de


q11 ' nossas categorias possam interpor-se entre nós e a realidade.
Podemos cair na suposição de que os feiiômenos amontoados numa
·at.cgoria sejam mais parecidos entre si do que realtpente são, ou de
qu c, porque algumas coisas são verdadeiras sobre todos eles, outras
l• )isas também o sejam. Temos observado o risco de palavras que
significam categorias com conotações ernociauais, como "inde-
pendência" e "império". Igualmente enganosas são as categorias
utili zadas por civilizações passadas para classificar suas comuni-
dades, especialmente aquelas que os governantes e os líderes polí-
licos proclamavam para seus próprios objetivos. Valerá a pena,
portanto, examinar um pouco mais detidamente os padrões cam-
biantes de relações de vários sistemas em toda a sua individualida-
de, e então compará-los.

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