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O que é o Materialismo?

O materialismo representa uma doutrina metafísica que permeia nossa cultura e subjaz a
muitas ideias presentes em nosso entorno. É possível que, implicitamente, muitos indivíduos
sustentem alguma forma de materialismo. Antes de aprofundar no tema, é necessário fazer uma
distinção entre materialismo e fisicalismo.

O materialismo propriamente dito é uma derivação do atomismo, no qual um conceito de


matéria é determinante e fundamental para a realidade como um todo, abrangendo não apenas a
totalidade da realidade, mas também a visão de mundo como um todo. Essa abordagem clássica
do materialismo pode manifestar-se em visões atomistas ou mesmo em perspectivas que
consideram apenas energias, como as da física ou informação.

A essência subjacente a todas essas visões materialistas é a crença de que a realidade


consiste apenas em entidades materiais. Qualquer coisa que pareça não material deve, em
última instância, ser reduzida à materialidade, como evidenciado na busca contemporânea da
neurociência em explicar a consciência em termos materiais, mesmo que historicamente a
consciência tenha sido compreendida como algo não material.

Por outro lado, o fisicalismo amplia o conceito de materialismo ao admitir tudo o que é
considerado físico como existente. Aquilo que é tido como físico, conforme a compreensão da
física contemporânea, passa a constituir a totalidade do existente. Assim, o espaço-tempo da
teoria da relatividade ou conceitos como a matéria escura, embora não se enquadrem exatamente
na definição clássica de material, são incorporados pelo fisicalismo.

Ambas as abordagens, materialismo e fisicalismo, representam reduções da realidade a um


de seus aspectos. A física é reconhecida como um aspecto da realidade, mas ambas as doutrinas
reconhecem que a totalidade da realidade não se reduz unicamente a esse domínio. A
complexidade e amplitude da realidade transcendem as limitações impostas por essas
perspectivas, sublinhando a necessidade de uma compreensão mais abrangente.

A distinção entre materialismo do senso comum e materialismo filosófico é crucial para a


compreensão mais aprofundada dessas concepções ontológicas. No âmbito do materialismo do
senso comum, a visão é simplificada, afirmando que certas qualidades, como cor, cheiro e outras
características, são atribuídas à matéria percebida pelos nossos cinco sentidos exteriores. No
entanto, no materialismo filosófico, essas qualidades são consideradas secundárias e subjetivas,
sendo postulado que tais propriedades são impostas pelo observador e não inerentes à própria
matéria.

O materialismo filosófico, portanto, representa uma posição ontológica que aborda a


estrutura fundamental e a natureza da realidade circundante. Este posicionamento é, em essência,
uma postura metafísica que busca compreender a estrutura basal da natureza e da realidade. É
importante ressaltar que o materialismo filosófico não se confunde com a ciência; ao contrário, é
uma perspectiva que fundamenta a ciência e, por vezes, reflete uma filosofia inadequada, mas não
científica.
Ao analisarmos a incorporação de elementos materialistas em nossa cultura científica e
geral, é pertinente examinar o contexto anterior à chamada revolução científica, situada
aproximadamente no século XVII. Antes desse período, durante a Idade Média, a compreensão da
natureza, da ciência e do mundo físico era mais abrangente, influenciada pelo aristotelismo.
Aristóteles propôs, em suas obras "Física" e "Metafísica", uma abordagem que entendia o mundo
natural por meio da causalidade.

A explicação última de algo, segundo Aristóteles, envolvia quatro causas. A causa


material respondia à pergunta de que é feita a coisa, enquanto a causa formal (o que é a coisa?)
tornava inteligível a causa material. A causa eficiente dizia respeito ao agente que trouxe a coisa à
existência, enquanto a causa final indicava a finalidade natural da coisa após sua entrada no ser.
Essa abordagem causal aristotélica oferecia uma compreensão mais completa e abrangente da
natureza do que a perspectiva mais restrita que surgiu após a revolução científica.

Assim, a transição para a visão mais restrita da natureza após a revolução científica é um
elemento chave para entender por que a nossa cultura incorporou elementos materialistas. A
análise das mudanças na compreensão do mundo natural, especialmente a transição de uma visão
mais ampla na Idade Média para uma visão mais restrita pós-revolução científica, fornece insights
sobre a evolução do materialismo em nosso pensamento contemporâneo.

A abordagem da causalidade final apresenta-se como um alicerce racional para a


moralidade humana, proporcionando uma base lógica para a distinção entre ações boas e más.
Enquanto existem outras formas de fundamentar a moralidade por meio de princípios arbitrários
ou imperativos categóricos, a causalidade final desempenha um papel singular ao permitir a
determinação racional da bondade ou malícia de uma ação humana.

A analogia do olho ilustra eficazmente a influência da causalidade final na graduação da


perfeição na natureza. Ao considerar a finalidade natural do olho, que é enxergar, observamos que
os olhos que operam sem a necessidade de correção, como óculos, são percebidos como mais
perfeitos. Essa noção de finalidade na natureza possibilita uma avaliação qualitativa da perfeição,
destacando a proximidade ou afastamento de uma entidade natural em relação à sua finalidade.
Quanto menos o olho precisar de óculos ou outros paliativos para poder enxergar, mais perfeito
vai ser, melhor cumpre sua finalidade.

Esse princípio estende-se à ação humana, onde a avaliação moral é influenciada pela
proximidade ou afastamento das causas finais presentes na natureza.

Contudo, a compreensão aristotélica, fundamentada nas quatro causas, viu uma mudança
significativa durante a revolução científica, notadamente com Galileu Galilei, René Descartes,
John Locke, Francis Bacon e Thomas Hobbes. O abandono progressivo das causas formais e
finais, predominantemente qualitativas, em favor das causas materiais e eficientes, caracterizou
essa transformação na visão do mundo natural.

O bifurcacionismo cartesiano, proposto por Descartes, dividiu o mundo em duas esferas:


a res extensa, que envolvia aspectos extensivos e matematizáveis, e a res cogitans, que abarcava a
realidade subjetiva e ideal. Esse dualismo contribuiu para o afastamento das qualidades
qualitativas na investigação científica, resultando em uma visão predominantemente materialista e
quantitativa do mundo natural.

A ininteligibilidade da matéria sem forma, decorrente desse abandono das causas finais e
formais, propiciou o terreno propício para a ascensão do materialismo.

Assim, a transição na cosmovisão científica, impulsionada pelo abandono das causas


finais e formais, forneceu o contexto propício para o desenvolvimento do materialismo e do
mundo natural e da moralidade.
O determinismo newtoniano, fundamentado na concepção mecânica da natureza, propôs
que, mediante o conhecimento de condições iniciais específicas, seria possível prever com
precisão todos os eventos futuros no mundo natural. Essa abordagem, vinculada à mecânica
newtoniana, sugere que as leis físicas e a matéria, quando formalizadas matematicamente,
determinam de maneira necessária o curso dos acontecimentos naturais. Nessa perspectiva, o
livre-arbítrio é questionado, uma vez que as ações humanas seriam consideradas meras
consequências das leis físicas e das condições iniciais estabelecidas.

No entanto, a introdução da mecânica quântica na primeira metade do século XX desafiou


essa visão determinista e materialista. Ao contrário das premissas do determinismo newtoniano, a
mecânica quântica revelou uma natureza não determinística da matéria, com resultados
probabilísticos e uma ausência de certeza em nível microscópico. Essa discrepância entre a
mecânica quântica e as previsões deterministas do materialismo tradicional gerou
questionamentos fundamentais.

A mecânica quântica, ao destacar a incerteza e a não determinação nas propriedades da


matéria, provocou uma reavaliação crítica do materialismo e do determinismo newtoniano. Essa
mudança paradigmática na compreensão da natureza da matéria colocou em xeque a ideia de que
tudo poderia ser precisamente determinado com base nas leis físicas conhecidas até então.

Adicionalmente, o materialismo enfrenta dificuldades ao lidar com fenômenos complexos,


como a consciência humana. Apesar dos esforços da neurociência, ainda não existe uma
explicação abrangente em termos de causas materiais e eficientes para a natureza da consciência.
Essa lacuna na compreensão da consciência levou alguns materialistas a adotarem posições
fisicalistas, buscando explicações além do escopo puramente material.

O físico Roger Penrose, por exemplo, argumenta contra a redução da mente e da


consciência às leis físicas conhecidas, utilizando o teorema da incompletude de Gödel. Em vez de
rejeitar o materialismo, ele propõe uma abordagem fisicalista que reconhece a limitação das leis
físicas convencionais para explicar completamente a mente.

Dessa forma, tanto os desafios apresentados pela mecânica quântica quanto as questões
não resolvidas relacionadas à consciência indicam as limitações do materialismo tradicional e
incentivam abordagens mais abrangentes que possam incorporar aspectos não puramente
materiais na compreensão do mundo natural e da mente humana.

O materialismo apresenta também a dificuldade de definir a matéria. Resulta que, a


matéria, na tradição aristotélica, é compreendida em termos de hilemorfismo, onde a matéria
(hyle) é acompanhada pela forma (morfé), conferindo inteligibilidade ao objeto. Aristóteles
percebeu que a forma capacita a matéria a ser compreendida e identificada, permitindo a distinção
entre diferentes entidades materiais. Esse entendimento da matéria como pura potencialidade,
suscetível à forma, destaca sua natureza mutável e potencialmente transformadora.

É assim que o materialismo, por sua ênfase na pura potencialidade da matéria, enfrenta
desafios na explicação da inteligibilidade do mundo natural. A matéria-prima, conceito derivado
do aristotelismo, é puramente potencial e carece de inteligibilidade sem a presença de formas. A
noção de matéria-prima, no sentido aristotélico, assemelha-se à moderna concepção de energia,
embora a energia possua uma determinação específica, enquanto a matéria-prima é entendida
como potencialidade sem determinação.

A definição aristotélica de matéria, com sua ênfase na forma e potencialidade, questiona a


capacidade do materialismo de explicar a inteligibilidade do mundo natural. A mera aderência à
pura potencialidade não é suficiente para proporcionar uma compreensão completa das
propriedades e identidades dos objetos materiais.
Outro ponto de crítica ao materialismo refere-se ao argumento do intelecto. Segundo o
materialismo, tudo no mundo é explicado por causas materiais e eficientes, incluindo a mente.
Essa abordagem sugere que a mente pode ser reduzida ao cérebro, e, por conseguinte, a mente
seria essencialmente matéria. No entanto, esse ponto de vista levanta questões sobre a operação
da mente, que abstrai e capta formas substantivas da natureza. Se a mente fosse puramente
material, a transformação da matéria ao receber uma forma implicaria que, ao pensar em um
triângulo, o cérebro literalmente se transformaria em um triângulo, o que apresenta um desafio
lógico.

Em resumo, podemos dizer que examinamos a concepção materialista do mundo, sua


origem histórica, a definição aristotélica de matéria, e apresentamos alguns argumentos contrários
ao materialismo, destacando suas limitações ao lidar com a consciência, a definição de matéria e a
natureza da mente.

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