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"Aqui podemos observar em estado bruto o fascínio do poder que transpira da nova
ciência: é tão esmagador que chega a cegar a consciência de alguém para os problemas
elementares da existência humana. A ciência torna-se um ídolo que vai magicamente
curar todos os males da existência e transformar a natureza do homem."
O filósofo político alemão, radicado nos Estados Unidos, Eric Voegelin, em um artigo
publicado em 1948 intitulado The Origins of Scientism analisa o fenômeno do
cientificismo* e aponta as suas consequências filosóficas e espirituais. Enquanto
movimento intelectual, a sua origem se encontra já na segunda metade do século XVII.
Acompanhando o sucesso da Revolução Científica, o cientificismo caracteriza-se por um
fascínio com a nova ciência a ponto de desprezar ou mesmo negligenciar a preocupação
com as experiências do espírito.
(1) a noção de que a ciência matemática dos fenômenos naturais é o modelo de toda e
qualquer ciência; (2) a afirmação de que todos os âmbitos do Ser são acessíveis aos
métodos das ciências naturais; (3) o dogma afirma que todas as realidades não
acessíveis aos métodos das ciências naturais são irrelevantes, na sua forma mais
branda, ou francamente ilusórios, na sua forma mais radical. As consequências
filosóficas desses dogmas são a negação da dignidade das pesquisas acerca da
:
substância das coisas na natureza, no homem e na transcendência, e, como resultado, a
negação da realidade da substância.
Essa negação da substancialidade fôra notada já no século XVI por Giordano Bruno que,
ao tratar da matematização da realidade sensível em suas obras. O teor da crítica de
Bruno provém não da negação da possibilidade do emprego da matemática no estudo
dos entes sensíveis, e sim da percepção clara de que a quantidade é um acidente das
substâncias (como dizia Aristóteles) e não a sua essência. Ademais, a multiplicidade não
alcança a essência das coisas, e o homem que nega aquilo que não é perceptível
sensivelmente acaba por negar sua própria substancialidade.
Cabe uma breve explicação do sentido da crítica de Bruno. O que o filósofo aponta é que
as características quantitativas de um ente corpóreo (número, altura, comprimento,
largura, etc.) não são capazes de definir o tipo de ser que esse ente é. Por exemplo, um
homem que tem a mesma altura de um armário não é definido como ser humano pelo
fato de ter a mesma altura de um armário e vice-versa. O que o define como ser humano
é a sua essência ou substância. Uma ciência que se restringisse a tratar dessas
características quantitativas estaria necessariamente se restringindo ao nível mais
externo da realidade.
Em outros termos, o que Bruno e Voegelin apontam é que uma ciência que só estuda as
quantidades no mundo natural seria incapaz de determinar uma ontologia, ou seja, de
dizer exatamente o que há no mundo e o que as coisas são substancialmente. A
quantidade é um acidente, uma propriedade que não existe por si mesma e
independentemente de um supósito, de algo que lhe conceda suporte. É possível medir
sem saber o que se está medindo. Ninguém precisa saber a definição correta de ser
humano para medir a altura de um homem.
A atitude acima descrita se espraia para além das ciências naturais, constituindo
movimentos intelectuais como o positivismo e o neopositivismo, bem como modernos
movimentos políticos de massa como o comunismo e o nacional-socialismo. Afinal,
Voegelin aponta, o próprio Lênin havia declarado que o sentido da História é a
"transformação da coisa-em-si-mesma em coisa-para-nós, a transformação da essência
das coisas em fenômeno". Desse modo, o que importa cientificamente é tão somente o
que pode ser acessado por meio dos fenômenos, nunca as naturezas intrínsecas das
coisas.
Giordano Bruno enfatiza, em seguida, que em um universo cujo espaço é infinito não há
nenhum centro ou posição absolutas. A escolha do lugar para a origem das coordenadas
é arbitrário. Leibniz, tomando a questão, reafirma que o princípio do movimento depende
da exigência de que um corpo seja tomado como em repouso para que o outro seja
denominado como em movimento. Ocorre que, no âmbito do movimento relativo, essa
escolha é meramente uma hipótese.
Não obstante a importância dos problemas teóricos, Voegelin aponta também razões
teológicas na postulação do espaço absoluto por Newton. A redução da matéria à pura
extensão realizada por Descartes, e a consequente concepção do universo como uma
máquina governada por leis mecânicas cegas, pareceram a Newton como um expulsão
de Deus do quadro da realidade. Deveria haver um lugar para Deus no esquema das
coisas físicas.
Então, Newton concebe o espaço absoluto não como pura matéria extensa, mas como o
:
sensorium divino, isto é, o modo como Deus "percebe" e engloba todas as coisas. A
necessidade mecânica não poderia produzir a variedade de coisas que testemunhamos
somente pode ser explicada pela vontade e as ideias do Ser Absoluto. Ironicamente, os
newtonianos, principalmente após a obra de divulgação de Voltaire, esqueceram
totalmente as intenções teológicas do mestre e mantiveram somente a afirmação do
espaço absoluto. O mundo tornou-se de fato uma máquina material obedecendo a uma
lei universal.
Como a crítica filosófica não persuade o cientista. Este passa a exigir, como Euler, que os
filósofos simplesmente aceitem as leis mecânicas como o ponto de partida absoluto de
toda investigação natural. Toda questão deve ser abandonada, por mais que a crítica seja
definitiva. O filósofo e o cientista encontram-se em um impasse, afirma Voegelin. O
filósofo deve ou tentar aclarar a confusão feita pelos cientistas nos seus fundamentos ou
deve simplesmente capitular e aceitar o nonsense metafísico e epistemológico.
A resposta de Leibniz é distinguir entre aquela força intrínseca ao ser da coisa, a vis
primitiva, e a força fenomênica, a vis derivativa. A primeira corresponde à essência do
ente, sendo objeto da metafísica, enquanto a segunda corresponde às forças
observáveis dos seres em interação com os outros, objeto da física. Sobre estas versam
as leis naturais que são matematizáveis, muito embora no mundo real não existam entes
matemáticos puros na natureza. Não podem ser encarados a não ser como instrumentos
para cálculos exatos e abstratos.
Seja como for, a solução de Leibniz é esquecida e vence o mecanicismo de Newton que,
como consequência, afeta profundamente as estruturas políticas e econômicas do
ocidente. A ciência torna-se tecnologia, há a industrialização da produção e o aumento da
população, acontece o nascimento de novos grupos sociais como o proletariados
industrial e o proletariado intelectual, as decisões são tomadas cada vez mais longe do
homem comum, urbanização da sociedade, etc. O avanço da ciência após 1700, é o fator
isolado mais importante na transformação das estruturas de poder e de riqueza.
Ademais, a utilidade da ciência, diz Voegelin, foi o maior incentivo para que fossem
colocados à disposição do cientista esses meios de poder e de riqueza. É óbvio que essa
utilidade sempre esteve presente na história humana, pois o conhecimento das relações
entre causa e efeito nos permite traçar ações com meio a fins determinados. O problema
é que essa mentalidade racional-utilitarista alcançou as características de um câncer em
crescimento. O domínio da natureza se tornou, ou deve se tornar, a única preocupação
da humanidade e a única forma de estrutura da sociedade.
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Voegelin adverte que "é preciso que nos resguardemos contra o erro tão frequente em
que caíram os críticos dos movimentos totalitários: a crença de que uma ideia é
politicamente desimportante porque filosoficamente se trata de um claro disparate. A
ideia que a estrutura e os problemas da existência humana podem ser superados na
sociedade histórica pelo segmento utilitário da existência é certamente um puro absurdo.
(...) Não obstante, o fato de que a ideia é uma tolice não a impediu de se tornar a
inspiração do mais forte movimento político de nossa era."
Em segundo lugar, a orientação existencial não pode ser alcançada pela ciência dos
fenômenos. Ela requer a formação da personalidade por meio de instituições. Uma vez
que mesmo as instituições educacionais estão sob o jugo científico, há uma força que
ativamente obstaculiza o cultivo da substância humana e corrói os elementos
sobreviventes da tradição cultural. E no quesito do cultivo da substância, os homens
diferem em capacidade.
Voegelin aponta aqui para o fenômeno que é ainda muito comum no qual a afirmação de
ignorância ou de incompreensão parece adquirir o valor de uma refutação da tese alheia.
O que seria meramente uma falácia lógica, um argumentum ad ignorantia, torna-se por si
mesma uma demonstração de bom senso e de respeitabilidade intelectual. Em vez de
responder à objeção, o interlocutor simplesmente alega que sequer compreendeu o que
foi dito por seu adversário, insinuando que este afirmou algo sem sentido que não precisa
e não deve ser discutido seriamente.
Voegelin mostra que o prestígio da física de Newton explica em grande parte a vitória
social do cientificismo como limitação dos horizontes mental e espiritual do homem. Tudo
na realidade sendo reduzido à ciência do fenômeno, mesmo a experiência existencial
humana, qualquer outro saber deve ser eliminado ou considerado sem sentido. A
consequência é que a limitação mental dos propugnadores dessa tese (graças aos
sucessos técnicos, práticos e utilitários da ciência moderna), torna-se uma norma social e
favorece a ascensão daqueles que são espiritualmente eunucos.
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O diletantismo filosófico desses eunucos nos campos da psicologia materialista, da
antropologia filosófica e das ideias políticas é socialmente efetiva, enquanto o argumento
do filósofo não o é. Voegelin considera que a vitória do espaço absoluto de Newton foi o
primeiro exemplo do sucesso de uma teoria diletante. O cisma se completa meio século
após Schelling. Os eunucos formam dali em diante as ideias para as massas. Nos
sistemas totalitários o cisma toma a forma da eliminação física dos adversários dos
continuadores da tradição.
Hayek mostra que "Saint-Simon enxerga mais claramente do que a maioria dos
socialistas posteriores que a organização da sociedade para um propósito comum, o que
é fundamental a todos os sistemas socialistas, é incompatível com a liberdade individual
e requer a existência de um poder espiritual que escolhe a direção na qual as forças
naturais deverão ser aplicadas." Comte não fica atrás em seu desprezo pela liberdade de
consciência. Para ele, assim como na astronomia, na física, na química e na fisiologia
não há liberdade de consciência, esta será eliminada quando a política for elevada ao
nível de ciência natural.
...
Leia também:
...
* Cientificismo ou cientismo.
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