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AS REVISÕES CONSTITUCIONAIS

Jorge Reis Novais


I
INTRODUÇÃO

Como é comum na generalidade das Constituições de Estado de Direito,


também a Constituição de 1976 contém um conjunto de disposições sobre revisão
constitucional (artigos 284º e seguintes). Essas disposições são normalmente
designadas como constituindo os limites de revisão constitucional, ou seja, um
conjunto de requisitos, de diferente natureza (temporal, formal, material e
circunstancial), aplicáveis às revisões constitucionais e que são mais exigentes que
os requisitos relativos à aprovação de legislação ordinária. Interessam-nos
especialmente, para o tema em apreciação, os chamados limites temporais (artigo
284º), já que é a partir deles que se processa e regula a distinção entre revisões
ordinárias e revisões extraordinárias da Constituição.
Entre nós, uma revisão ordinária é a que só pode ser desencadeada após
terem decorrido cinco anos desde a última revisão ordinária; já a revisão
extraordinária pode ocorrer a qualquer momento, desde que, para tanto, a própria
Assembleia da República, através de uma maioria de 4/5 dos seus deputados,
assuma poderes constituintes. Naturalmente, a necessidade de proceder a revisões
extraordinárias surge quando há um motivo especial que aconselha ou exige
alterações do texto constitucional numa altura em que ainda não tenham decorrido os
referidos cinco anos desde a publicação da última revisão ordinária.
Durante a vigência da Constituição de 1976 tivemos sete revisões, sendo
quatro delas ordinárias (1982, 1989, 1997 e 2004) e três extraordinárias (1992, 2001
e 2005). Da simples enunciação desta sucessão fica evidente, por outro lado, que
podemos distinguir claramente dois ciclos ou períodos durante a vigência da
Constituição de 1976: um primeiro período (até 2005) bastante agitado e de alguma
instabilidade do texto constitucional, com as referidas sete revisões, e um segundo
ciclo já de plena acalmia, sem qualquer alteração (de 2005 até ao presente).
De alguma forma, o primeiro ciclo corresponde ao período de persistência da
chamada querela constitucional, designação essa que alude à controvérsia política
na qual, tomando a Constituição como alvo, se alinham, de um lado, as propostas

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mais ou menos radicais de alteração e, do outro, a defesa mais ou menos acirrada
do legado normativo de 1976.
Ora, se durante os primeiros anos que se seguiram à sua aprovação, uma tal
querela possuía uma base objectiva, na medida em que a Constituição de 1976
apresentava, no seu texto originário, feições atípicas num contexto europeu ocidental,
pelo menos a partir da revisão de 1989 a persistência dessa controvérsia —todavia
mantendo-se e renovando-se durante muito tempo e ainda hoje suscitando
anacrónicas irrupções pontuais— perdeu objectivamente razão de ser, de tal forma o
texto constitucional saído das revisões de 1982 e de 1989 conformou definitivamente
a Constituição em vigor como Constituição de Estado de Direito em nada
estruturalmente distinta das demais Constituições dos países que nos são próximos.
Se se quiser, dessas duas revisões saiu um texto constitucional consagrando
as formas políticas típicas de um Estado de Direito social e democrático, com forma
de governo republicana, forma de Estado unitário com regiões autónomas, regime
político de democracia representativa, sistema de governo semipresidencial, sistema
eleitoral proporcional, pluripartidarismo e jurisdição constitucional onde pontifica um
Tribunal Constitucional.
Naturalmente, como qualquer outra Constituição, a Constituição de 1976 é
susceptível ou até carente de alterações parciais, de adaptação, de correcção de
aspectos pontuais, pelo que, sobre essas questões, toda a discussão é legítima e
desejável. Diferente, e destituído de qualquer fundamento objectivo, é considerar a
Constituição como dificuldade, como como algo que de alguma forma perturbe o
normal desenvolvimento da vida política e social, como problema que careça de ser
resolvido. Essa é uma mistificação construída e artificialmente mantida sem qualquer
apoio na realidade.
Não seria, pois, adequado enquadrar o tema das revisões constitucionais na
Constituição de 1976 com base no pressuposto de que persiste entre nós uma
qualquer questão ou querela constitucional. De resto, o ciclo que presentemente
atravessamos, sem qualquer alteração do texto constitucional ao longo de quinze
anos e sem que se suscite qualquer comoção a propósito, é a demonstração mais
eloquente da inexistência dessa querela, o que nos permite abordar com a exigível
objectividade as sete revisões entretanto verificadas.
Verificar-se-á, quanto ao conteúdo das revisões, que também em termos dos
temas que mobilizam as iniciativas de revisão, se podem igualmente distinguir dois

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períodos. Um primeiro, concluído na revisão de 1989, em que se pode dizer que
existia uma necessidade absoluta de rever o texto constitucional: sem a revisão, a
própria existência e estabilização de um Estado de Direito democrático corria riscos,
uma vez que a necessidade de pôr um termo ao período de transição e a necessidade
de adaptação da organização económica haviam tornado essas duas revisões
indispensáveis.
Já após a revisão de 1989, as posteriores revisões, independentemente das
melhorias introduzidas e das adaptações que se tornaram necessárias, apresentam
uma lógica e um sentido mais dificilmente apuráveis. Pode-se dizer que, em geral, as
posteriores revisões ordinárias (1997 e 2004) combinam, em síntese, uma resposta
de resultados duvidosos a um vago apelo à reforma do sistema político e, num plano
de maior pragmatismo político, um aprofundamento sensível e contínuo da autonomia
regional.
Por sua vez, as revisões extraordinárias (1992, 2001 e 2005) têm quase
exclusivamente uma motivação directamente relacionada com as vicissitudes da
integração europeia e das relações internacionais que, assumidas pelo Estado
português, colocam, por vezes, problemas complexos de compatibilização que pode
obrigar ou aconselhar alterações pontuais no texto constitucional.
Abordamos, em seguida, cada uma das revisões constitucionais ocorridas
durante a vigência da Constituição de 1976, distinguindo, em termos de
sistematização, as revisões ordinárias das revisões extraordinárias, e salientando,
para cada uma das revisões, as alterações mais significativas.

II
AS REVISÕES CONSTITUCIONAIS ORDINÁRIAS

1. A revisão constitucional de 1982


A revisão de 1982 pode ser considerada como a principal e mais decisivamente
marcante das revisões constitucionais.
Por um lado, pôs fim ao chamado período de transição, previsto nas duas
Plataformas de Acordo Constitucional celebradas entre o MFA e os partidos políticos,
respectivamente, em Abril de 1975 e em Fevereiro de 19761. No fundo, esse período

1
Cf. Primeira Plataforma, B, 3; Segunda Plataforma, 5.4.

3
correspondeu à presença transitória dos militares no exercício do poder,
precisamente, até à primeira revisão constitucional; essa presença fez-se
essencialmente através do Conselho da Revolução, órgão político-militar acolhido
como órgão de soberania no texto originário da Constituição de 1976.
Logo, o termo do período de transição, que exigia dos militares o seu regresso
aos quartéis, pressupunha a extinção do Conselho da Revolução e,
consequentemente, a redistribuição dos poderes que até então lhe estavam
atribuídos.
Realizando integralmente o que havia sido previsto, a revisão de 1982
assinalou o termo desse período de transição, reconduzindo plenamente a
arquitectura constitucional ao modelo típico de uma Constituição de Estado de Direito
democrático.
Para além desse significado importante, a revisão de 1982 estabeleceu ainda,
de forma definitiva, pelo menos quanto aos seus elementos essenciais, a
configuração constitucional ainda hoje vigente nos planos do sistema de governo, do
sistema de fiscalização da constitucionalidade e no próprio sistema dos direitos
fundamentais.
Esta revisão teve, portanto, uma relevância ímpar, podendo ser mesmo
considerada de realização imprescindível para a plena institucionalização da nova
ordem constitucional inaugurada com a Revolução de 25 de Abril de 1974, já que, a
não ter existido, se teria verificado uma verdadeira transição constitucional, ou seja,
a Constituição aprovada em 1976, a permanecer intocada, não revista, ter-se-ia
transmutado numa Constituição e num projecto constitucional substancialmente
distintos dos que foram originariamente programados quando foi aprovada. O que
tinha sentido e justificação enquanto fase transitória até à plena instituição e
estabilização de um Estado de Direito democrático seria algo substancialmente
diverso se tivesse resultado em ordem constitucional definitiva e permanente.
É essa importância ímpar que aqui justifica o maior desenvolvimento relativo
que lhe dedicamos no conjunto das várias revisões constitucionais entretanto
verificadas.
Havendo inúmeras alterações ao longo de todo o texto constitucional,
salientamos aquelas que consideramos historicamente mais importantes e que
repartimos sistematicamente pelos seguintes domínios: extinção do Conselho da
Revolução, alteração dos poderes presidenciais com reflexos no sistema de governo,

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referências e enquadramento ideológicos, fiscalização da constitucionalidade e
direitos fundamentais.
O decreto de revisão foi aprovado em votação final global em Agosto de 1982,
com os votos a favor do PSD, PS, CDS, PPM, ASDI E UEDS, com os votos contra do
PCP e da UDP e a abstenção do MDP/CDE.

1.1. A extinção do Conselho da Revolução e a redistribuição dos seus


poderes
A extinção do Conselho da Revolução, para além de ter constituído, em si
mesma, a primeira e principal alteração introduzida pela revisão constitucional de
1982, obrigou a uma recomposição global dos poderes atribuídos aos diferentes
órgãos, uma vez que as competências que estavam atribuídas ao Conselho da
Revolução no texto originário da Constituição deveriam agora ser redistribuídas. Por
sua vez, essas competências respeitavam à natureza do Conselho da Revolução
enquanto órgão de soberania com funções de aconselhamento do Presidente da
República, como garante do regular funcionamento das instituições e do cumprimento
da Constituição e como órgão político e legislativo em matéria militar.
Assim, as competências na função de aconselhamento do Presidente da
República foram transferidas para um novo órgão entretanto criado, o Conselho de
Estado; as competências de garante do regular funcionamento das instituições
passaram a ser concentradas no Presidente da República; as competências relativas
às funções de garante do cumprimento da Constituição foram assumidas pelo
Tribunal Constitucional criado nesta revisão; e, finalmente, as competências próprias
de órgão político e legislativo em matéria militar são agora desempenhadas pelo
Governo e pela Assembleia da República.
Porém, quando poderes tão importantes quanto aqueles que o Conselho da
Revolução possuía são alocados a outros órgãos, tal redistribuição afecta
necessariamente o equilíbrio entre eles e obriga a uma recomposição global que
influencia a natureza do sistema de governo, uma vez que se reflecte no plano das
relações de interdependência entre os diferentes órgãos que exercem o poder
político, Presidente da República, Governo e Assembleia da República.
Em primeiro lugar, houve uma alteração sensível nos poderes do Presidente
da República, produzida no domínio do seu relacionamento com o Governo (poder
de demissão), no relacionamento com a Assembleia da República (poder de

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dissolução) e na nomeação das chefias militares. Em segundo lugar, houve também
alterações de relevo no relacionamento entre Governo e Assembleia da República.
São essas alterações introduzidas pela revisão constitucional de 1982 que
consideramos de seguida.

1.2. As alterações nos poderes do Presidente da República e no sistema


de governo
Antes da revisão de 1982, o poder de demissão do Governo era normalmente
visto como o principal dos poderes presidenciais, na medida em que, decorrendo do
poder que lhe era constitucionalmente atribuído de nomeação e exoneração do
Primeiro-Ministro, permitira, na prática, ao primeiro Presidente eleito, Ramalho Eanes,
uma intervenção decisiva no domínio do poder executivo nos primeiros anos de
vigência da Constituição de 1976. Essa intervenção presidencial no executivo foi
especialmente visível na reivindicação de uma prerrogativa presidencial de decisão
sobre a subsistência dos governos (Eanes arrogou-se a capacidade de decidir se um
Governo dispunha ou não de condições de sobrevivência) e, sobretudo, concretizou-
se na formação dos chamados “governos de iniciativa presidencial” (governos com
Primeiro-Ministro designado à margem da indicação dos partidos políticos —Nobre
da Costa, Mota Pinto, M. Lurdes Pintasilgo).
Não admira, por isso, que quando os dois grandes partidos entraram na revisão
constitucional de 1982 com o propósito implícito de redução dos poderes do
Presidente da República, se tenham orientado especialmente para a reconfiguração
desse poder. Se até à revisão constitucional o poder de demissão do Governo era
tido como poder livre do Presidente da República, com a revisão foi introduzida uma
limitação séria: o Presidente da República só podia, agora, demitir o Governo quando
tal se tornasse necessário para assegurar o regular funcionamento das instituições
democráticas (actual artigo 195º, nº 2).
Acompanhando essa alteração, ficou estabelecido (artigos 190º e 191, nº 1)
que o Governo apenas responde politicamente perante a Assembleia da República
(no sentido de que só a Assembleia da República pode demitir o Governo por
discordância política sobre o mérito da governação), passando desde então a
responsabilidade do Governo perante o Presidente da República a ser normalmente
designada como responsabilidade institucional (correspondendo doutrinariamente ao

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facto de que o Presidente da República só pode demitir o Governo quando tal se torne
necessário para assegurar o regular funcionamento das instituições).
Em contrapartida, um outro poder presidencial que, na altura, não era tão
valorizado, mas cuja importância se veio a revelar decisiva no equilíbrio do sistema
político, o poder de dissolução da Assembleia da República (artigo 133º, e)) —que é,
sem dúvida, o poder mais importante do Presidente da República no nosso sistema
de governo—, esse foi substancialmente ampliado na revisão constitucional de 1982.
Até à revisão constitucional, o Presidente da República só podia dissolver a
Assembleia da República se para tanto tivesse parecer favorável do Conselho da
Revolução. Com a revisão, esse passou a ser um poder da única e exclusiva
responsabilidade do Presidente da República, dado que o parecer do Conselho de
Estado é meramente consultivo.
Por outro lado, desapareceram com a revisão de 1982 outros
constrangimentos ao poder de dissolução: até então, o Presidente da República não
podia dissolver como efeito da rejeição parlamentar do programa do Governo (a não
ser no caso de ter havido três rejeições consecutivas) e era obrigado a dissolver a
Assembleia da República quando esta, por ter recusado a confiança ou por ter votado
a censura, tivesse determinado a terceira substituição do Governo.
No plano dos poderes presidenciais, na época foi também demasiado
valorizada uma pretensa diminuição dos poderes presidenciais no domínio da
nomeação das altas chefias militares. Com a revisão, o poder de nomeação e de
exoneração do Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, do Vice-Chefe
e dos Chefes de Estado-Maior dos três ramos passou a ser exercido sob proposta do
Governo (artigo 133º, p)). Tal foi entendido como diminuição dos poderes
presidenciais porque, até então, o acto de nomeação e de exoneração era
exclusivamente do Presidente da República. Porém, enquanto que, até então, o poder
presidencial de nomeação das altas chefias militares era atribuído por lei ordinária, o
que lhe dava uma consistência precária, já que poderia ser alterado ou até suprimido
em qualquer altura, agora passou a ser um poder partilhado, é certo, mas de
atribuição constitucional, pelo que adquiriu uma rigidez e dignidade de que até aí não
usufruía.
No âmbito do poder de veto (artigo 136º), foi suprimida a possibilidade de
exercício do chamado “veto de bolso”, a que algumas vezes recorreu o Presidente
Ramalho Eanes no período anterior à revisão, bem como foi ampliado o leque de

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matérias que requerem uma reaprovação parlamentar qualificada (2/3 dos
deputados) para superar o veto presidencial.
Finalmente, no plano da responsabilidade do Governo perante a Assembleia
da República (artigo 195º, nº 1, e) e f)), desapareceu a necessidade de aprovação de
uma segunda moção de censura para provocar a queda do Governo (com a revisão
de 1982, para esse efeito basta a aprovação parlamentar de uma moção de censura
ou a não aprovação de uma moção de confiança).
Num balanço global neste domínio, pode-se dizer que, ao contrário do que é
uma percepção muito difundida, sobretudo nos meios políticos e jornalístico, o
estatuto político do Presidente da República saiu globalmente reforçado da revisão
constitucional de 1982, atendendo à significativa ampliação do poder de dissolução
da Assembleia da República e à relevância máxima que este poder assume na
intervenção do Presidente da República no nosso sistema de governo.
Saiu também clarificada e racionalizada a matriz portuguesa do
semipresidencialismo, no sentido de que se estabeleceu definitivamente a natureza
da intervenção do Presidente da República como poder moderador, arbitral,
suprapartidário, e se afastou, também definitivamente, qualquer ideia de partilha do
poder executivo e governativo entre Governo e Presidente. Na matriz portuguesa de
semipresidencialismo, o Governo governa e o Presidente da República modera,
arbitra e assegura, no plano político, o regular funcionamento das instituições. Essa
identidade ficou estabelecida —e, como se veio a provar, definitivamente— quando o
poder de potencial interferência presidencial na função executiva (o poder de
demissão do Governo) foi restritivamente reconfigurado e o poder vocacionado para
a moderação e a garantia do regular funcionamento e do equilíbrio dos poderes no
sistema político (o poder de dissolução da Assembleia da República) foi
substancialmente ampliado na revisão de 1982.

1.3. A eliminação de referências ideológicas provindas do período


revolucionário
Um resultado bem conhecido da revisão de 1982 foi a supressão no texto
constitucional de parte das marcas terminológicas mais ideologicamente carregadas
que provinham do período revolucionário que se seguiu a Abril de 1974. De alguma
forma, a leitura dos primeiros artigos do texto originário de 1976 comparado com o

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texto actual provocará uma primeira impressão de não se estar perante a mesma
Constituição.
No entanto, apesar da importância destas alterações textuais (completadas na
revisão constitucional de 1989) no plano da capacidade de integração social e política
que uma Constituição de Estado de Direito pluralista e democrático deve
proporcionar, mesmo enquanto estiveram em vigor essas referências sempre se
mantiveram num plano meramente simbólico e retórico, não assumindo verdadeiro
significado jurídico, pelo que a respectiva supressão também só nesse plano produziu
efeitos. Ou seja, a eliminação das referências de cariz ideológico —que viria a ser
terminada na segunda revisão constitucional, a de 1989— não pôs em causa a
manutenção das formas políticas que verdadeiramente conferem identidade a uma
Constituição, do tipo histórico de Estado ao regime político, do sistema de governo à
forma de Estado, pelo que, mantendo-se inalteradas essas formas na revisão
constitucional de 1982, a Constituição continuou a ser a mesma após a revisão, a
Constituição de 1976, enquanto Constituição de Estado de Direito social e
democrático (embora a expressão “Estado de Direito” só tivesse agora sido
introduzida no texto constitucional —artigos 2º e 9º), de Estado unitário com regiões
autónomas e de sistema de governo semipresidencialista.
Desapareceram, todavia, com a revisão constitucional de 1982, entre outras,
referências ao socialismo (embora se mantivesse, no artigo 2º, o objectivo de
“assegurar a transição para o socialismo”), ao “exercício democrático do poder pelas
classes trabalhadoras” (embora se mantivesse, no artigo 1º, o empenho da República
portuguesa na “sua transformação numa sociedade sem classes”), ao “processo
revolucionário”, à tarefa de “socializar os meios de produção e a riqueza”, ao
“desenvolvimento das relações de produção socialistas”.
Foi também suprimida, mas aí já com significado prático no domínio da
organização económica, a anterior previsão de a lei poder autorizar a expropriação,
sem indemnização, de latifundiários e de grandes proprietários e empresários ou
accionistas.

1.4. Fiscalização da constitucionalidade


A criação do Tribunal Constitucional é a nota mais saliente neste domínio. Com
o desaparecimento do Conselho da Revolução —que, até então, se encarregava da
fiscalização da constitucionalidade auxiliado pela Comissão Constitucional— sempre

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seria necessário repensar o sistema. A opção foi, pela primeira vez na nossa história
constitucional, a da criação de um tribunal responsável pela administração da justiça
constitucional, o Tribunal Constitucional, com uma natureza, funções e forma de
nomeação dos juízes inspiradas noutras experiências europeias. Todavia, o sistema
de fiscalização que vinha já, no essencial, do texto originário de 1976 e a que aqui foi
dada continuidade, e que ficou praticamente estabilizado nos termos que lhe foram
conferidos por esta revisão constitucional, é muito diverso, tanto do chamado modelo
europeu quanto do modelo americano de justiça constitucional.

2. A revisão constitucional de 1989


Apesar de a segunda revisão constitucional, a de 1989, ter sido historicamente
justificada, sobretudo, pela necessidade de ajustamento e de adaptação da parte
económica da Constituição ao novo contexto marcado pela recente integração
europeia, ela não se resumiu a essa parte. Se bem que residam nesse domínio as
alterações mais importantes introduzidas em 1989, esta revisão integra-se
genericamente no ambiente da já referida querela constitucional que se instalou entre
nós neste período, pelo que o processo de revisão foi igualmente aproveitado para,
de um lado, encerrar o ciclo de filtragem ideológica que se havia iniciado na primeira
revisão constitucional e, de outro, inaugurar, por sua vez, um novo ciclo de
preocupações recorrentes com a reforma do sistema político que seria continuado e
aprofundado na revisão ordinária seguinte, a de 1997.
Destacamos, a seguir, as principais alterações introduzidas pela revisão de
1989 nesses três domínios: na parte económica da Constituição, no plano da
terminologia e referências mais ideologicamente conotadas e na organização do
poder político.
O decreto de revisão foi aprovado em votação final global em Junho de 1989,
com os votos a favor do PSD, PS, PRD e CDS e os votos contra do PCP, de “Os
Verdes” e da ID.

2.1. Alterações na organização económica


A mais importante alteração neste domínio respeita à eliminação da garantia
da irreversibilidade das nacionalizações efectuadas após o 25 de Abril de 1974,
permitindo-se agora a reprivatização nos termos de lei-quadro aprovada por maioria

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absoluta, observados alguns critérios enunciados em disposição constitucional
transitória (artigo 293º).
Por outro lado, onde anteriormente se falava, enquanto princípio fundamental
da organização económica, na “apropriação colectiva dos principais meios de
produção e solos”, fala-se depois da revisão em “apropriação colectiva de meios de
produção e solos, de acordo com o interesse público”. Em sentido afim, aquele
mesmo princípio da “apropriação colectiva dos principais meios de produção e solos,
bem como dos recursos naturais, e a eliminação dos monopólios e dos latifúndios”
deixou de constituir, o que até então acontecia, limite material de revisão
constitucional.
Nas tarefas fundamentais do Estado foi suprimida a “socialização dos
principais meios de produção”. Por sua vez, nos princípios fundamentais da
organização económica foi também suprimido o princípio do “desenvolvimento da
propriedade social”, que incluía os bens e unidades de produção com posse útil e
gestão dos colectivos de trabalhadores, os bens comunitários e o sector cooperativo.
Por último, apesar de respeitarem em termos de sistematização à parte dos
direitos fundamentais, mas relacionando-se, também, com a organização económica,
dadas as suas implicações, respectivamente, no financiamento do Serviço Nacional
de Saúde e no sector da comunicação social, salientam-se duas alterações
significativas. Primeira, a anterior caracterização do SNS como “universal, geral e
gratuito” foi agora substituída pela de “universal e geral e, tendo em conta as
condições económicas e sociais dos cidadãos, tendencialmente gratuito” (artigo 64º).
Segunda, consagrou-se a abertura da televisão, até então monopólio estatal, à
propriedade privada (artigo 38º).

2.2. Eliminação do que restava das referências ideologicamente


conotadas com o período revolucionário
A revisão de 1989 procedeu à supressão das referências mais
ideologicamente datadas que não haviam já sido eliminadas na primeira revisão
constitucional. Do texto constitucional foram agora excluídas expressões como
“transformação numa sociedade sem classes”, “transição para o socialismo”, “abolir
a exploração e a opressão do homem pelo homem”, “estimulando e favorecendo a
entrada de trabalhadores e de filhos de trabalhadores” na Universidade,
“organizações populares de base”, “expropriação dos latifúndios e das grandes

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explorações capitalistas”, “reforma agrária” ou “eliminação dos monopólios e
latifúndios”.
No fundo, foram também preocupações deste tipo que levaram, nesta revisão,
a alguma neutralização ideológica e à supressão de alguns limites materiais de
revisão constitucional anteriormente previstos (apropriação colectiva dos principais
meios de produção, planificação da economia, organizações populares de base).
Assim, pode-se dizer que após a revisão constitucional de 1989 o texto
constitucional ficou definitivamente depurado das referências ideológicas e das
marcas proclamatórias oriundas do período revolucionário que, de algum modo, são
estranhas à tradição europeia ocidental das Constituições de Estado de Direito. Só o
preâmbulo da Constituição que, como se sabe, não tem relevância jurídica normativa,
tendo permanecido intocado, conserva a memória simbólica do contexto
revolucionário em que foi originariamente aprovada a Constituição em vigor, a
Constituição de 1976.

2.3. Reforma do sistema político


Depois das alterações significativas verificadas na primeira revisão
constitucional no domínio do sistema de governo (relações entre Presidente da
República, Governo e Assembleia da República), a revisão de 1989 iniciou o processo
da chamada reforma do sistema político —sempre orientada pelo objectivo
proclamado de aproximação entre eleitores e eleitos e de incremento da participação
de cidadania— que acabou por se converter num dos principais lemas inspiradores
das revisões constitucionais seguintes (incluindo as que vieram a falhar) e da querela
constitucional que as precede.
No caso da revisão constitucional de 1989, este Leitmotiv traduziu-se,
sobretudo, em duas alterações significativas: o referendo (artigo 115º) e o círculo
eleitoral nacional (artigo 149º, nº 2).
Tendo já a primeira revisão instituído a possibilidade de consultas directas aos
eleitores recenseados na respectiva área a realizar por iniciativa dos órgãos das
autarquias locais (os chamados referendos locais —artigo 240º), a revisão
constitucional de 1989 consagrou a possibilidade de realização de referendos
nacionais, a convocar pelo Presidente da República sob proposta da Assembleia da
República ou do Governo. Fê-lo, todavia, rodeando o instituto de um conjunto de
garantias que visam reduzir o risco de degradação plebiscitária da democracia

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representativa, como sejam, a necessária iniciativa do Governo ou da Assembleia da
República, a exclusão dos referendos constitucionais e das matérias, em princípio,
mais importantes e a necessidade de o referendo ter por objecto questões de
relevante interesse nacional que devam ser decididas por acto legislativo ou por
convenção internacional.
Por sua vez, na delimitação dos círculos eleitorais da Assembleia da
República, instituiu-se a possibilidade de criação legal de um círculo de âmbito
nacional, denotando, aparentemente, uma preocupação de garantia de um resultado
proporcional na distribuição final dos mandatos, dada a existência de círculos
territoriais que, por terem uma população reduzida, elegem um número menor de
Deputados. Num outro sentido, esta alteração poderia indiciar a perspectiva de
migração futura para um sistema misto de base proporcional, como se confirmou na
revisão ordinária seguinte.

3. A revisão constitucional de 1997


Enquanto que as duas revisões ordinárias anteriores (a de 1982 e a de 1989)
tiveram um propósito definido e previamente assumido pelas principais forças
políticas, a revisão de 1997 fez-se como se a sua realização fosse uma obrigação
ritualizada, mas sem que, à partida, se percebessem claramente as suas finalidades.
Não havia um objectivo pré-estabelecido, apelando-se simplesmente à já referida
vaga intenção de reforma do sistema político como ideia dominante. Não obstante, o
processo de revisão acabou por se traduzir na alteração de grande parte dos artigos
da Constituição, bem como na respectiva renumeração, sem que, no entanto, seja
possível sintetizar adequadamente quais os grandes resultados produzidos ou,
simplesmente, seja fácil responder à pergunta: para que serviu a revisão de 1997?
Perante esta dificuldade objectiva, salientamos a seguir o que terão sido as
alterações teoricamente mais significativas na parte dos direitos fundamentais, no
sistema político, na regionalização administrativa, na autonomia regional e na
jurisdição constitucional.
O decreto de revisão foi aprovado em votação final global, em Setembro de
1997, com os votos a favor do PS e do PSD e os votos contra do PP (CDS), do PCP
e de “Os Verdes”.

3.1. Alterações na parte dos direitos fundamentais

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De entre um amplo conjunto de inovações em grande medida supérfluas,
meramente retóricas ou acolhendo simplesmente as expressões e as tendências
mais em voga do discurso humanitário e político da época, há algumas poucas
alterações juridicamente relevantes.
A nota dogmaticamente mais importante foi a consagração constitucional do
direito ao desenvolvimento da personalidade (artigo 26º), na medida em que,
entendido enquanto protecção constitucional da liberdade geral de acção que actua
a título subsidiário sempre que não é invocável um direito fundamental específico, ele
institui uma protecção jusfundamental sem lacunas que obriga constitucionalmente o
Estado à justificação e à observância dos princípios constitucionais sempre que
intervenha restritivamente na liberdade e na autonomia individual.
Em sentido oposto, em matéria de detenção para efeitos de identificação civil
e de internamento compulsivo, se bem que mantendo uma rigidez que se revelou
desrazoável, há uma abertura nas situações em que se considera
constitucionalmente admissível a privação total ou parcial da liberdade.
No mesmo sentido, respondendo à crescente percepção dos riscos do
terrorismo, passa a admitir-se, condicionadamente, a extradição de cidadãos
portugueses nos casos de terrorismo e de criminalidade internacional organizada,
mas só em condições de reciprocidade estabelecida em convenção internacional.
Pode igualmente ter significado prático a expressa referência à
inadmissibilidade de organizações racistas. Até então a Constituição proibia as
associações armadas e de tipo militar, bem como as que perfilham a ideologia
fascista, mas não fazia referência a associações racistas.

3.2. Alterações na organização do poder político


Na referida lógica de reforma do sistema político, sob o lema da aproximação
entre eleitores e eleitos e do reforço da participação cidadã, foram aprovadas várias
alterações a que se atribuía uma importância tão vital que, por si só, justificariam a
revisão constitucional de 1997, mas que se vieram a revelar inócuas, irrelevantes ou
até nefastas. Entre elas, contam-se:
(i) a atribuição de direito de voto nas eleições presidenciais aos cidadãos
residentes no estrangeiro que tivessem uma efectiva ligação à comunidade nacional;
(ii) a admissibilidade constitucional de instituição de círculos eleitorais
uninominais nas eleições para a Assembleia da República;

14
(iii) a redução do número de Deputados para um intervalo entre cento e oitenta
e duzentos e trinta;
(iv) a exigência de que, para o resultado de um referendo ter eficácia
vinculativa, nele tivesse participado a maioria dos eleitores;
(v) a atribuição à Assembleia da República da competência para aprovar todos
os tratados internacionais;
(vi) a desconstitucionalização de aspectos importantes do sistema de governo
das autarquias locais quanto à forma de eleição do executivo e do seu Presidente;
(vii) uma complexificação dificilmente perceptível do processo de
regionalização administrativa (vd. infra).

Em contrapartida, dentro do reduzido número de alterações que produziram


algum efeito positivo significativo ou com alguma importância de ordem prática
contam-se:
(i) a referência à necessidade de instituição progressiva de igualdade entre
homens e mulheres, designadamente no domínio da participação política;
(ii) a expressa enunciação da admissibilidade de candidaturas de grupos de
cidadãos eleitores nas eleições dos órgãos das autarquias locais;
(iii) a desconstitucionalização da obrigatoriedade de prestação de serviço
militar.

3.3. Alterações no domínio da regionalização administrativa


Um dos aspectos mais enigmáticos da revisão de 1997 foi o tratamento dado
à regionalização administrativa. Está previsto nos artigos 255º e 256º e a sua
interpretação é um verdadeiro desafio dificilmente superável por não juristas, mas
também por juristas.
A Constituição prevê a existência das regiões administrativas como categoria
de autarquia local, mas o processo da sua eventual criação é de enorme
complexidade e, dir-se-ia, mantendo-se o procedimento instituído nesta revisão, de
concretização muito difícil ou até impossível.
Em primeiro lugar, passou a distinguir-se entre a criação das regiões e a sua
instituição em concreto.

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A criação das regiões será feita por lei que procede simultaneamente à
delimitação territorial de todas as regiões e de cada uma delas, bem como à definição
do regime aplicável, incluindo poderes, órgãos, funcionamento e competências.
Por sua vez, a instituição em concreto de cada região —que será igualmente
feita por lei— depende do que tiver sido disposto na referida lei de criação, mas fica
também condicionada à realização de um referendo nacional em que os eleitores são
directamente chamados a responder a duas questões. A primeira será a de saber se
concordam com a instituição em concreto das regiões administrativas tal como foram
criadas pela lei de criação atrás referida. Respondem também a uma segunda
questão, a de saber se concordam com a instituição em concreto da região
correspondente à sua área, mas a resposta a esta última questão será eficaz apenas
quando a resposta à primeira questão, a de alcance nacional, tiver obtido um
resultado favorável.

3.4. Alterações no domínio das regiões autónomas


A revisão de 1997 acentua, neste domínio, o processo de progressiva
ampliação da autonomia regional que vinha das duas revisões ordinárias anteriores.
No domínio da competência legislativa regional, a revisão de 1982 já procedera a uma
restrição do entendimento do conceito de “leis gerais da República” para efeitos de
determinação do parâmetro que, nos termos constitucionais, a legislação regional
devia observar. Assim, só seriam consideradas leis gerais da República as leis e os
decretos-leis cuja razão de ser envolvesse a sua aplicação, sem reservas, a todo o
território nacional. No mesmo sentido ampliativo, a revisão de 1989 previra a
possibilidade de a Assembleia da República autorizar que decretos legislativos
regionais pudessem contrariar leis gerais da República.
Por sua vez, a revisão de 1997 aprofunda esse processo e restringe a
necessidade de observância das leis gerais da República por parte da legislação
regional. Como se sabe, segundo a Constituição, as assembleias regionais podiam
legislar sobre matérias de interesse específico para a região, desde que não se
tratasse de matéria reservada aos órgãos de soberania e desde que não dispusessem
contra as leis gerais da República.
Ora, nos termos da revisão de 1997, os decretos legislativos regionais passam
a poder dispor contra as leis gerais da República desde que não contrariassem os
seus princípios fundamentais. Por outro lado, para que uma lei da República seja

16
considerada uma “lei geral da República” passa a ser necessário que a sua razão de
ser envolva a sua aplicação a todo o território nacional e que a própria lei assim o
decrete.
Para além dessas alterações ampliativas da competência legislativa regional,
são suprimidos do texto constitucional alguns limites expressos à autonomia regional
e, em contrapartida, enumeram-se exemplificativamente algumas matérias como
apresentando um interesse específico para as regiões, o que dá incontestavelmente
às assembleias regionais a possibilidade de sobre elas poderem legislar.
O Ministro da República (actual Representante da República) vê o seu estatuto
enfraquecido, perdendo os poderes originários de coordenação dos serviços centrais
do Estado na região, bem como a competência ministerial e o assento no Conselho
de Ministros, ficando, por outro lado, com o mandato temporalmente associado ao
mandato do Presidente da República.
Foi reforçada a participação institucional das regiões no processo de
construção europeia. Foi igualmente prevista a admissibilidade de referendos
regionais, convocados pelo Presidente da República.
Por último, a dissolução dos órgãos de governo próprio das regiões por parte
do Presidente da República passa a só poder fazer-se no caso em que haja actos
praticados contrários à Constituição —único fundamento até aí admissível para a
dissolução— e que sejam reputados de “graves”.

3.5. Alterações no domínio da jurisdição constitucional


A alteração mais importante neste domínio respeita ao mandato dos juízes do
Tribunal Constitucional e à sua duração. Assim, de um mandato renovável de seis
anos passou-se para um mandato único de nove anos. O objectivo foi, não apenas o
de permitir uma maior estabilidade no exercício da justiça constitucional, mas
também, e sobretudo, o de garantir uma maior independência no exercício desse
mandato. Se até então o mandato era renovável, existia o risco objectivo de os juízes
poderem condicionar a sua actividade no Tribunal Constitucional ao propósito de
voltarem a ser reeleitos para novo mandato, o que afectava potencialmente a sua
independência face aos grandes partidos que dispõem da capacidade fáctica de
influenciar a respectiva eleição na Assembleia da República. Por sua vez, num
mandato único esse condicionamento desaparece ou, no mínimo, atenua-se

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significativamente, já que desaparece a eventual preocupação dos juízes com a
reeleição.

4. A revisão constitucional de 2004


O objecto desta revisão reparte-se por diferentes domínios (integração
europeia, direitos fundamentais), mas, em termos de resultado, é, mais uma vez, a
autonomia regional e a sua ampliação que concentram a maior parte das alterações
mais relevantes introduzidas pela revisão constitucional.
O decreto de revisão foi aprovado, em votação final global, em Abril de 2004,
com os votos favoráveis de PSD, PS e CDS e os votos contra de PCP, BE e “Os
Verdes”.

4.1. As alterações relativas à integração europeia


Para além da proclamação da participação de Portugal no aprofundamento da
União Europeia (artigo 7º, nº 6), faz-se o reconhecimento do primado dos tratados
que regem a União Europeia e das normas emanadas das suas instituições (artigo
8º, nº 4). No entanto, esse reconhecimento constitucional expresso da supremacia do
Direito europeu relativamente ao Direito interno, incluindo a própria Constituição —
que corresponde, de há muito, ao entendimento estabilizado da jurisprudência e
doutrina comunitárias— deve ser entendido de forma combinada com as duas
seguintes notas: em primeiro lugar, o reconhecimento do primado na ordem jurídica
portuguesa deriva juridicamente de uma decisão da própria Constituição portuguesa
e, em segundo lugar, a supremacia fica expressamente condicionada pelo respeito
dos princípios do Estado de Direito democrático por parte das normas europeias.

4.2. As alterações em domínio de direitos fundamentais


Neste domínio, a nota mais marcante é a menção agora expressamente feita
à proibição de discriminações em função da orientação sexual. Mesmo que no plano
estritamente jurídico já fosse anteriormente possível deduzir essa proibição do próprio
princípio constitucional da igual dignidade, a sua consagração expressa tem, não
apenas um valor simbólico significativo, como, no plano jurídico, introduz uma
presunção de inconstitucionalidade relativamente a discriminações feitas com base
nesse factor.

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4.3. As alterações relativas à autonomia regional
Neste domínio, a revisão constitucional de 2004 prosseguiu e aprofundou de
forma muito significativa o caminho de ampliação da autonomia regional que, acolhida
no texto constitucional originário de 1976, foi sucessivamente reforçada nas revisões
ordinárias seguintes.
No que respeita aos poderes legislativos regionais, as alterações mais
relevantes desta revisão foram:
(i) a eliminação dos dois limites da competência legislativa regional que
geravam mais controvérsia jurídica: a existência de um interesse específico enquanto
pressuposto da competência legislativa regional e as leis gerais da República (os seus
princípios fundamentais) enquanto parâmetro material que a legislação regional devia
observar;
(ii) as regiões passam a poder legislar, no âmbito regional, sobre todas as
matérias não reservadas aos órgãos de soberania e que venham enunciadas nos
respectivos estatutos político-administrativos e, desde que possam legislar, podem
dispor diversamente ou até contra as leis da República;
(iii) mais, em domínio em que as assembleias regionais possam legislar, as
leis nacionais só se aplicam nas regiões se e enquanto não houver legislação regional
sobre a matéria;
(iv) a Assembleia da República pode ainda autorizar as assembleias regionais
a legislarem sobre algumas das matérias que integram a sua reserva relativa de
competência legislativa;
(v) finalmente, as regiões autónomas podem desenvolver para o âmbito
regional os princípios gerais contidos nas leis de bases.

Ainda relativo às regiões autónomas, mas no plano do respectivo sistema de


governo, a revisão procedeu às seguintes alterações relevantes:
(i) a figura do “Ministro da República” é substituída pela do “Representante da
República”, a sua nomeação e exoneração passa a ser competência exclusiva do
Presidente da República (até então fazia-se sob proposta do Governo) e perde as
competências ministeriais que ainda restavam da revisão de 1997;
(ii) desaparece a figura da dissolução-sanção dos órgãos de governo próprio
das regiões (pela prática de actos graves contrários à Constituição) e é, pela primeira
vez, atribuído ao Presidente da República o poder de dissolução das assembleias das

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regiões autónomas nos mesmos termos, adaptados, do poder presidencial de
dissolução da Assembleia da República.

III
AS REVISÕES CONSTITUCIONAIS EXTRAORDINÁRIAS
As revisões extraordinárias são, por definição, justificadas por necessidades
pontuais de resolução de dificuldades jurídico-constitucionais cuja premência não
permita ou não aconselhe aguardar o decurso normal do tempo em que a Assembleia
da República adquire, de novo, poderes constituintes de revisão. Assim, como
aconteceu entre nós com as revisões de 1992, 2001 e 2005, destinam-se a resolver
problemas pontuais num contexto de relativa urgência que mereceu o
reconhecimento de 4/5 dos Deputados: a maioria constitucionalmente exigida para
que a Assembleia da República possa assumir poderes constituintes de revisão
extraordinária (artigo 284º, nº 2).

1. A revisão constitucional de 1992


A necessidade da revisão extraordinário nasceu da aprovação do Tratado da
União Europeia, de Maastricht, que, assinado em Fevereiro de 1992, viria a entrar em
vigor em 1993, o que levantava algumas questões de compatibilidade com a
Constituição portuguesa (tal como, de resto, aconteceu com outros países).
A Assembleia da República assumiu poderes extraordinários de revisão e o
decreto seria aprovado em votação final global, em Novembro de 1992, com os votos
a favor de PSD e PS e os votos contra do PCP, CDS e “Os Verdes” e a abstenção do
PSN.
Fundamentalmente, consagrou-se a possibilidade de Portugal convencionar o
exercício em comum dos poderes necessários à construção da união europeia (artigo
7º, nº 6), alterou-se o artigo sobre o Banco de Portugal (artigo 105º), que perdeu o
exclusivo de emissão da moeda em ordem a permitir a adesão à moeda única
europeia, e reconhece-se a possibilidade de atribuição de capacidade eleitoral a
cidadãos de países membros da União Europeia na eleição dos deputados por
Portugal ao Parlamento Europeu (artigo 15º).

2. A revisão constitucional de 2001

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A motivação da revisão foi a necessidade de admitir, entre nós, a jurisdição do
Tribunal Penal Internacional, cujo tratado constitutivo tinha sido assinado em 1998 e
que suscitava problemas de compatibilidade constitucional no que se referia à
imunidade dos titulares de cargos políticos e à admissibilidade de aplicação da pena
de prisão perpétua. O decreto de revisão, que acabou por não incidir exclusivamente
sobre essa matéria, foi aprovado em votação final global, em Outubro de 2001, com
os votos a favor de PS, PSD e CDS e os votos contra do PCP, BE e “Os Verdes”.
Assim, a revisão extraordinária vem permitir que Portugal aceite a jurisdição
do Tribunal Penal Internacional nas condições estabelecidas no Estatuto de Roma
(artigo 7º, nº 7).
Para além disso, foram desconstitucionalizadas garantias referentes à
expulsão e à extradição no âmbito da cooperação judiciária penal no quadro da União
Europeia (artigo 33º, nº 5), foram introduzidas restrições à garantia de inviolabilidade
de domicílio durante a noite (artigo 34º, nº 3), desde que em casos de terrorismo e de
criminalidade especialmente violenta ou organizada, e foi admitida a associação
sindical de forças de segurança, mas sem reconhecimento do direito à greve (artigo
270º).

3. A revisão constitucional de 2005


Perante a hipótese da conveniência política em realizar um referendo nacional
sobre o aprofundamento da integração europeia que se viesse a traduzir num novo
tratado, mas havendo dúvidas sobre a admissibilidade constitucional da sua
realização, fez-se a revisão de 2005 destinada a permiti-lo.
O decreto de revisão, contendo uma disposição transitória nesse sentido
aditada ao texto da Constituição (artigo 295º), foi aprovado, em Junho de 2005, com
os votos favoráveis de PS, PSD, CDS e BE e a abstenção de PCP e “Os Verdes”.

BIBLIOGRAFIA SOBRE AS REVISÕES CONSTITUCIONAIS

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Nota: nas duas Constituições Anotadas de referência (GOMES CANOTILHO/VITAL
MOREIRA e JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS) encontram-se, para cada um dos artigos,
menções às alterações ocorridas nas diferentes revisões constitucionais.
Para uma informação pormenorizada sobre as alterações introduzidas em
cada uma das sete revisões constitucionais, cf. JORGE MIRANDA, Manual de Direito
Constitucional, t. I, 2, 10ª ed., Coimbra, 2014, págs. 216 e segs.
Já para um comentário mais desenvolvido ao sentido e conteúdo de cada uma
das revisões constitucionais ordinárias, destacam-se as referências bibliográficas a
seguir indicadas.

1. Revisão de 1982
ANTÓNIO NADAIS/ ANTÓNIO VITORINO/ VITALINO CANAS, Constituição da República
Portuguesa —Texto e Comentários à Lei nº 1/82, Lisboa, 1983
JORGE REIS NOVAIS, Semipresidencialismo II —O Sistema Semipresidencial
Português, Coimbra, 2010, págs. 111 e segs.
JORGE REIS NOVAIS, Semipresidencialismo, 2ª ed., Coimbra, 2018, págs. 181 e
segs.

2. Revisão de 1989
JOSÉ MAGALHÃES, Dicionário da Revisão Constitucional, Lisboa, 1989
MARIA M. LEITÃO MARQUES, “A Constituição económica depois da segunda
revisão constitucional, in Revista de Direito Público, 1991, págs. 9 e segs.

3. Revisão de 1997
A. SOUSA PINHEIRO/ M. BRITO FERNANDES, Comentário à IV Revisão
Constitucional, Lisboa, 1999
JOSÉ MAGALHÃES, Dicionário da Revisão Constitucional, Lisboa, 1999
ANTÓNIO DE ARAÚJO, A Revisão Constitucional de 1997: um Ensaio de História
Político-Constitucional, Coimbra, 1999
BFDUC, vol. LXXIV, 1998, págs. 405 e segs. (artigos de VITAL MOREIRA, MARIA
BENEDITA URBANO, CATARINA SAMPAIO VENTURA E PAULA VEIGA)

4. Revisão de 2004

22
LUÍS CABRAL DE MONCADA, “A VI revisão constitucional e a autonomia regional”
in Anuário Português de Direito Constitucional, IV, 2004-2005, págs. 49 e segs.

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