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1 Direito Constitucional II Inês Bastos 2017/2018 Senhor Professor Doutor Carlos Blanco de Morais

Nota: estes apontamentos não dispensam a consulta dos manuais indicados pela Regência,
nomeadamente:

• MIRANDA, Jorge, Manual de Direito Constitucional, Tomos I-VII, Coimbra Editora


• MORAIS, Carlos Blanco de, Curso de Direito Constitucional, Tomo I, Coimbra
Editora, 2012
• MORAIS, Carlos Blanco de, Curso de Direito Constitucional, Tomo II, Almedina,
2018

1. A Constituição como um complexo estruturado de disposições preambulares,


princípios e regras

A Constituição como Lei Fundamental de um Estado é composta por um corpo


normativo, o preceituado, o qual é precedido por um preâmbulo.

O Preâmbulo:

Trata-se de uma alusão ao circunstancialismo histórico, político e jurídico que


rodeou a aprovação do texto constitucional. É um texto proclamatório, solene, que
normalmente antecede os preceitos normativos da constituição, e que enuncia valores e
princípios que presidiram à feitura da constituição.

Alguns preâmbulos estão fortemente interiorizados na própria identidade nacional,


como acontece nos EUA – têm um caráter politicamente “sacro”. Já outros assumem um
expressivo detalhe prescritivo, revestindo uma força jurídica equivalente às normas
constitucionais – caso da constituição francesa de 1958, que efetua uma receção do
preâmbulo da constituição de 1946.
O preâmbulo da Constituição portuguesa é poético e ideológico, proferindo um
modelo doutrinário de sociedade e Estado, que se justifica pelo circunstancialismo histórico
com que se abriu a Assembleia Constituinte de 1975-1976, num ambiente carregado de
tensões ideológicas. O preâmbulo português divide-se em 3 partes: a primeira versa sobre
a origem da Constituição, a segunda sobre o projeto político, a ideia de Direito e aos
princípios que materializa; a terceira foca-se na aprovação pela Assembleia Constituinte.
Já outros textos constitucionais prescindem de preâmbulo, como o da Áustria,
Bélgica ou Dinamarca – o preâmbulo não é componente necessário de uma Constituição; é
sim um elemento natural de constituições feitas em momentos de rutura histórica ou de
grande transformação político-social.

O preâmbulo faz parte da Constituição e só pode ser alterado ou suprimido no


respeito pelos mesmos limites de revisão para as restantes normas, através dessa mesma
via.
Considera-se que o preâmbulo, salvo raras exceções (como o caso francês, em que
o mesmo protege os direitos, liberdades e garantias), não possui força normativa, e como
tal, não vincula como parâmetro constitucional.
Caso os princípios postulados no preâmbulo e os princípios plasmados na normação
constitucional entrem em colisão, valerão, no plano jurídico, os últimos.

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Terá o preâmbulo da constituição de 1976 relevância jurídica?

O alcance político e literário do preâmbulo é evidente, pois reflete a opinião pública


num determinado cenário histórico: menos palpável é o sentido jurídico. Dizer que é no
preâmbulo que se descobre o sentido
A doutrina diverge quanto a este ponto:
• Irrelevância jurídica: defendida pela regência. O preâmbulo é um mero texto
proclamatório. É um texto declaratório e semipoético (não está redigido
normativamente), tem uma carga utópica e não normativa. Havendo princípios no
preâmbulo, não são relevantes. Os princípios do preâmbulo não têm autonomia em
face dos consagrados no preceituado constitucional. Ou deixam de ter
correspondência e caducam, ou são reproduzidos nas normas constitucionais. Deste
modo, alguns foram suprimidos, como a ideia de que Portugal estava no caminho
para o socialismo. Outros princípios, como o democrático, estão desenvolvidos no
próprio texto constitucional e normas.
• Relevância jurídica plena: defendida por Gomes Canotilho. O Preâmbulo vincula
automaticamente o direito constitucional.
• Relevância jurídica indireta: defendida por Jorge Miranda. O Preâmbulo não tem
natureza cogente mas os seus princípios auxiliam a interpretação do texto
constitucional.

A desadequação entre a carga ideológica preambular e as sucessivas revisões do


preceituado da Constituição, são um fator de contradição, se o preâmbulo tivesse,
efetivamente, relevância indireta. Conferir algum relevo jurídico-interpretativo ao
preâmbulo significaria uma colisão entre a matriz socialista do mesmo e a atual via
democrática e pluralista

Preceito e norma constitucional

A Constituição é composta por normas jurídicas, que são critérios de decisão,


vinculativas para os poderes públicos e certas relações jurídicas privadas, e que estão aptas
a produzir efeitos jurídicos, garantidos no plano jurisdicional e político.

Preceitos são enunciados textuais estruturados em orações, dos quais defluem um


ou vários comandos jurídicos gerais.
Normas e preceitos não têm uma existência independente, pois não existe norma
de direito positivo sem preceito, e não se pode reconhecer verdadeira eficácia a um preceito
sem conteúdo normativo. Sendo realidades independentes, guardam alguma autonomia.
Um preceito pode conter uma pluralidade de normas cumuladas; pode conter
sentidos diferentes e, nesses casos, cabe ao Tribunal Constitucional interpretar neste ou
naquele sentido; pode ser conjugado com outros preceitos, de forma a que se extraia dessa
conjugação uma norma ou critério jurídico de decisão.

Tipologia das normas constitucionais:


Quanto à sua função estruturante:
• Secundárias: organizam o poder político ou dispõe comandos sobre como as outras
normas se ordenam.

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• Primárias: determinam condutas, nomeadamente as que se referem aos direitos,


liberdades e garantias – aplicam-se diretamente às relações institucionais.
Quanto às funções que desempenham em razão das matérias que disciplinam:
• Substanciais: ditam os critérios que regem a identidade material do Estado, definem
o regime político e os direitos fundamentais.
• Organizativas: regulam os estatutos do poder político. Existem quatro subespécies
destas:
I. Normas de competência: estabelecem os poderes dos órgãos, e limitam as
mesmas.
II. Normas estatuárias dos titulares de órgãos: definem regras sobre os
exercícios de certos cargos, tal como direitos, deveres, regalias e imunidades.
III. Normas de forma ou de processo: gizam a tramitação do itinerário relativo
à designação dos titulares do poder político, bem como o processo de
tomada de decisões e o modo de relevação dos atos jurídicos.
IV. Normas de qualificação: determinam as formas e os atributos jurídicos de
certos atos jurídico-públicos ditados pelos órgãos constitucionais, e o
respetivo regime.

Regras e princípios

As normas desdobram-se em princípios e regras constitucionais. O Artigo 277º/1º


reconhece os princípios, ao culminar com inconstitucionalidade as normas que contrariem
as disposições constitucionais e os princípios consignados na Constituição.
São vários os atos julgados inválidos por ofensa a princípios constitucionais.

Princípios: enunciados jurídicos de valores de ordem jurídica ou moral, dotados de um


elevado grau de indeterminação, dirigidos à prossecução de um fim e concebidos como
mandatos de otimização, porque ordenam algo que deve ser realizado na medida das
possibilidades jurídicas e fáticas existentes.

Regras: mandatos de definição, uma vez que têm elevado grau de determinabilidade no seu
comando, descrevendo a título imediato as condutas a serem adotadas na prossecução dos
fins.

Enquanto as regras podem resumir-se a normas de conteúdo funcional, os princípios


são enunciados de bens jurídicos.
Sem ignorar a importância do 288º e de outros artigos (12º, 13º, 18º, etc), deve
frisar-se que estes não esgotam os princípios constitucionais, porque outros princípios
podem ser implícitos ao texto. A justiça constitucional tem vindo a afirmar princípios não
explicitados no texto, como o da proteção da confiança, o da precisão e determinabilidade
da lei, e o da congruência. Os princípios não dispõem de hierarquia ou de prevalência sobre
regras.
No entanto, existem correntes de direito como o jusnaturalismo e
neoconstitucionalismo, que entendem que os princípios primam sobre as regras, por
constituírem valores, os quais as normas devem respeitar. Uma norma contrária a um
princípio não é válida, porque é arbitrária.

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Porém, os valores são de natureza abstrata e de conteúdo mutável, e podem ter


interpretações diversas. Por si próprios não possuem conteúdo jurídico, nem obrigam
coativamente os poderes públicos. Os valores penetram no direito através de princípios
jurídicos.
Por outro lado, o grau de indeterminação dos princípios varia: alguns envolvem
enunciados mas precisos, ao ponto de se assemelharem a verdadeiras regras (sub-
princípios); outros fazem-se até acompanhar por verdadeiras regras; outros ainda, fundam-
se em razão de uma doutrina e de uma jurisprudência consolidadas, as quais fornecem
métodos e paradigmas de aplicação do referido princípio aos casos concretos (ex: princípio
da proporcionalidade). Quanto mais vago for o princípio e menos específico o fim que visa
prosseguir, menos controlável será a sua realização, e maior será a discricionariedade dada
aos tribunais para o concretizar, maior o nível de subjetividade da sua interpretação.
É verdade que uma boa parte das regras se podem reconduzir a princípios, mas o
princípio não precede as regras, podendo, quanto muito, elucidar o seu significado. Tal
como os valores, os princípios encerram um elevado grau de indeterminação, que podem
levar a interpretações até contrárias: no princípio da dignidade da pessoa humana podemos
encontrar a justificação para a proibição e a admissão do aborto.
As Constituições podem conter regras que derrogam expressamente princípios
centrais previstos no mesmo texto constitucional.
Uma regra prevalece sobre um princípio porque, como critério de decisão de
conteúdo mais definido, mais extenso, e específico; é “lex specialis”, prevalecendo a norma
especial sobre a norma de caráter mais geral.
O legislador pode atender à especificidade de um determinado caso, através da lei
especial. Não há derrogação da lei geral, mas há uma limitação do espaço de regulação.
Já no que toca à colisão entre princípios, a resposta encontra-se na ponderação dos
mesmos, atendendo ao caso concreto.

Abertura das normas constitucionais

As normas constitucionais têm maior abertura do que as demais leis. A Constituição


é o estatuto do político e a sua interpretação não é exequível sem atendermos às
circunstâncias da sua génese.
Não obstante o facto de existirem regras muito definidas, outras, por seu lado,
ligam-se a conceitos jurídicos indeterminados, que o tempo e a prática têm clarificado (ex:
regular funcionamento das instituições democráticas – artº 195º, nº2), ou, ainda noutros
casos, que são condicionadas por práticas ou costumes políticos (como o poder de
dissolução parlamentar, presente no artigo 133º, o qual a Constituição estabeleceu como
faculdade livre, mas que a prática converteu em instituto de solução de crise).
Existe uma margem de discricionariedade na interpretação das normas
constitucionais que aumenta proporcionalmente à sua generalidade e indeterminação,
realidade que permite à Constituição durar no tempo e ajustar-se a situações específicas
não exatamente previstas no texto.
A abertura das constituições modernas manifesta-se em três dimensões básicas:

• Abertura axiológica

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O poder constituinte é soberano e não se deixa condicionar por padrões éticos e morais.
Pode ignorar os mesmos, pode atualizá-los ou contrariá-los, ou incorporá-los nas suas
normas. Direito e Moral aparecem neste plano como realidades distintas.
A regência concorda com a linha de raciocínio de Hart: as normas que não incorporam
valores morais são analisadas de forma positivista-jurídica. As que absorvem valores morais
devem ser tidas em conta à luz da ordem moral. Esta última hipótese envolve um domínio
de incerteza. Quando o artigo 1º da CRP apela ao princípio da dignidade da pessoa humana,
convoca valores filosóficos da ordem moral, política, cultural e religiosa. O mesmo se passa
no restante domínio dos direitos fundamentais.
No entanto, uma Constituição excessivamente aberta a valores oriundos de sistemas
não jurídicos converte-se num estatuto mais incerto, porque mais depende das pré-
compreensões dos intérpretes. Uma Constituição principiológica deixa de ser decisão para
se transformar num campo de disputa filosófica e ideológica, onde tudo pode,
potencialmente, ser tido como inconstitucional.
Posto isto, sendo incontornável a constitucionalização de valores das ordens política e
moral, o texto constitucional ganhará se estes casos forem reduzidos a um número mínimo
e essencial.

• Abertura externa
Prende-se com o impacto do Direito Internacional e a jurisprudência dos tribunais
constitucionais de outros estados, bem como de tribunais internacionais.
Para começar, cláusulas de receção constitucional em matérias de direitos
fundamentais constituem vias de comunicação e de “fusão” com sistemas externos.
As próprias constituições criam por vezes formas de abertura a outras fontes, como o
nº1 do artigo 16º d CRP, que admite direitos fundamentais extravagantes, materialmente
constitucionais, mas formalmente exteriores à lei.
Para além disto, os Estados integrantes da União Europeia, a par da influência clara do
TJU, existem Constituições que admitem a prevalência de normas institucionais sobre a
própria Lei Fundamental (caso da Holanda).
A soberania constitucional deixou de ser uma realidade hermética admitindo a
existência de pontes entre a constituição e o direito supranacional.

• Abertura morfológica
Muitas normas constitucionais estão elaboradas com enunciados polissémicos, com
conceitos indeterminados e suscetíveis de diversas interpretações.
O exemplo dado pelo Professor Blanco de Morais no Curso de Direito Constitucional é
precisamente o conceito de “justa causa” no despedimento, presente no artigo 53º. Nestes
casos, o texto constitucional confere como que uma delegação implícita à Justiça
Constitucional para concretizar normativamente o conceito.
Denote-se que a interpretação consolidada pela Justiça Constitucional, a partir de
normas de textura aberta, também faz parte da Constituição, constituindo uma camada
normativa externa, de expressão variável, e sujeita a revisão constitucional.
É a abertura morfológica que permite, pela via hermenêutica (interpretação) e pela
prática política, uma integração da diversidade pluralista e da evolução política no texto
constitucional, atualizando-o sem recorrer à revisão.

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Princípios normativos fundamentais da Constituição portuguesa de 1976

Os princípios fundamentais são aqueles que condensam os pilares identitários da


ordem constitucional, definindo a natureza do Estado, da Constituição, do Regime e do
sistema de direitos fundamentais. Estes princípios estão protegidos pela cláusula dos limites
materiais, do artigo 288º, pelo que a sua supressão ou restrição, mesmo após um processo
de revisão constitucional, constituiria uma fraude à mesma Constituição ou, em último caso,
uma transição constitucional.
Estes princípios do Estado de direito democrático primam sobre qualquer norma
jurídica de natureza externa.

Princípios reitores do Estado de Direito:

• Independência nacional

Norma de maior relevância política da Constituição, uma vez que constitui o


fundamento dos restantes princípios. As características do nosso Estado, patentes no artigo
2º (democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo, garantia dos direitos e
liberdades, separação de poderes), são uma consequência do próprio Estado soberano,
enunciado no artigo 1º da CRP.
A garantia da soberania portuguesa é dos principais fins do Estado Português e constitui
um limite material à revisão (artigo 288º).
A soberania é a qualidade identitária do poder político de um Estado independente e
envolve uma dimensão interna (faculdade de os poderes do Estado imporem as suas
decisões, por via coerciva, a todos os governados) e externa (aptidão dos órgãos de poder
estadual de poderem assumir a representação do mesmo Estado no plano internacional). A
soberania é una e indivisível (artº3/nº1) – não pode ser composta por centros ou transferida
para um Estado estrangeiro.
No entanto, denote-se que a independência de um Estado não é uma realidade estática.
Acompanhando a tendência para a criação de estruturas supranacionais de integração
política, económica e financeira, Portugal pertence a organizações supranacionais, sendo a
mais importante delas a União Europeia. Todos os estados que pertencem à EU têm
soberania limitada, pois delegam nos órgãos da EU competências. A EU pode legislar de
forma a vincular Portugal imediatamente, e sobrepor-se à lei ordinária.
O artigo 7º/nº6 prevê a delegação, em condições de reciprocidade, de poderes
soberanos na União Europeia. Por outro lado, esta delegação não pode ser total, pois
colocaria em causa a independência nacional (nomeadamente um exército comum ou a
federalização da diplomacia dos estados).
Paralelamente, os números 3 e 4 do artigo 8º da CRP permitem que as normas do direito
europeu se apliquem diretamente na ordem interna, prevalecendo assim sobre o direito
ordinário português. Contudo, os tratados europeus não preveem a superioridade desse
direito sobre as constituições dos estados, e, mesmo que o fizessem, não poderiam abater
os princípios estruturantes.

• Princípio da dignidade da pessoa humana

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O artigo 1º da CRP coloca o princípio da dignidade da pessoa humana como um dos


fundamentos ou bases da República Soberana, a par da “vontade popular” e do objetivo da
construção de uma sociedade “livre, justa e solidária”.
Este princípio, com uma natureza particularmente geral e abstrata, é vulnerável a uma
perigosa banalização, que lhe retira peso. A noção de dignidade da pessoa humana é
oriunda de uma conceção filosófica com claras originais na doutrinal social da igreja e no
jusnaturalismo, tendo sido posteriormente secularizada pelo positivismo, entre outras
doutrinas.
Inicialmente um valor da ordem moral, a dignidade humana foi estendida a um patamar
normativo, tornando-se objeto de convocação pela Justiça Constitucional, tendo sido
constitucionalizada.
O princípio da dignidade da pessoa humana define-se como o enunciado jurídico de um
valor antropológico, espiritual e universal, representado na exigência de respeito pela
condição de ser humano e que opera como pressuposto existencial e fim do Estado de
direito (O Estado serve as pessoas) para além de operar como justificação axiológica do
sistema de direitos fundamentais (é o cerne destes direitos).
Por ser tão abstrato, acaba muitas vezes por ser a base da justificação de invocação de
outros direitos

A pessoa humana como valor


A constituição portuguesa de 1976 prevê a noção de pessoa humana como valor:
- antropológico, pois tem como objeto o homem, como ser biológico;
-espiritual, porque o homem possui um atributo fundamental que é a perfeita consciência
de si próprio e a faculdade superior de discernimento, que lhe permite compreender o
mundo que o rodeia e autodeterminar-se livremente;
- universal, porque tendo a sua fonte na civilização judaico-cristã, tem percorrido um
caminho de aceitação por parte de outras civilizações, culminando na Declaração Universal
dos Direitos do Homem.

Conceito de dignidade:
Exigência geral de respeito e de proteção, relativamente a algo que é importante.
Este princípio tem uma dimensão de liberdade (valorização da autodeterminação
individual do homem, que passa a ser sujeito e não objeto das relações jurídicas) e uma
outra dimensão, de proibição de condutas que levem a situações degradantes para a pessoa
humana.

Dignidade da pessoa humana como pressuposto e fim do Estado de Direito


O valor da dignidade humana é um pressuposto existencial do Estado de Direito,
uma vez que o povo é a sua fonte de soberania, e porque o Estado é servido por um poder
político vinculado a respeitar os direitos fundamentais das pessoas.
Ao mesmo tempo, a dignidade é um fim do Estado, que não existe senão para servir
o seu elemento humano.
Para a constituição portuguesa, antes da organização do poder político está o
homem, logo a dignidade da pessoa humana conforma um importante limite ao poder,

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vedando a adoção de políticas que favoreçam uma “cultura de morte”, secundarizem o ser
humano ou prejudiquem a sua vontade ou integridade.
Por todos estes motivos, o Estado assume uma dimensão social de promoção do
bem-estar e de qualidade de vida do povo.

Dignidade da pessoa e o sistema de direitos fundamentais


Raramente o princípio da dignidade humana é invocado como parâmetro direto de
decisões de inconstitucionalidade, embora abunde como critério interpretativo, já que se
projeta nos restantes direitos fundamentais.
A dignidade da pessoa humana acaba por ser a justificação, o fim e o limite dos
direitos fundamentais. Os direitos de personalidade, acima de tudo, requerem uma especial
proteção, já que sem eles não existe Estado de direito democrático.
Rendimento social de inserção – o Tribunal Constitucional faz uma interpretação
positiva do texto constitucional: o Estado é obrigado a assegurar meios existenciais de
sobrevivência e assistente a pessoas com dificuldades económicas, que não consigam, por
si próprias, subsistir. O RSI é um exemplo de um direito social cuja natureza remete para os
direitos, liberdades e garantias (artigo 17º da CRP), pois influencia diretamente o direito à
vida e a integridade física e moral da pessoa humana.
Por este motivo o T.C chegou a declarar inconstitucional a norma que permitia a
privação do rendimento mínimo garantido.

• Princípio da proteção constitucional reforçada dos direitos, liberdades e


garantias

Direitos, liberdades e garantias definem-se como posições jurídicas ativas das


pessoas, que protegem as suas esferas jurídicas contra condutas do poder político
ou terceiros que as possam prejudicar.
Esta categoria de direitos insere-se nos direitos civis (onde emergem alguns
direitos de personalidade) e políticos (nos quais se destaca a capacidade eleitoral),
que se encontram enunciados no Título I da Parte I da Constituição.
Os direitos, liberdades e garantias têm uma posição jurídica mais “forte”, uma vez
que é mais protegida, do que os direitos sociais. Esta situação justifica-se porque são
indispensáveis para a existência de um verdadeiro Estado de Direito, e porque a sua
verificação resulta mais de uma ação jurídica do que administrativa, financeira ou
material. O professor Reis Novais acredita numa paridade entre estes tipos de direitos,
no entanto, denote-se que há estados sem estes últimos direitos consagrados
(nomeadamente os EUA ao nível da saúde).
Só a lei ordinária pode restringir direitos, liberdades e garantias- estes não podem
ser restringidos primariamente. Por este motivo, o TC tem declarado
inconstitucionais, por exemplo, os regulamentos dos municípios que visam restringir
alguns destes direitos (ex: regulamento que proíbe a afixação de cartazes), uma vez
que apenas a lei ordinária o pode fazer. E mesmo a lei que restringe um direito, tem
necessariamente de visar proteger outro de maior peso.

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O artigo 18º destaca-se como epicentro desta proteção reforçada. Deste artigo
extrai-se que:
- nº1: os direitos liberdades e garantias têm aplicação direta, e que vinculam
entidades públicas e privadas; Verifica-se a vertente negativa do direito (direta e
imediata): os direitos são defendidos negativamente, a partir da proibição de uma
conduta que os viola.
- nº2 e nº3: os mesmos só podem ser restringidos por lei, nos casos previstos na
Constituição, e devem observar o princípio da proporcionalidade, serem gerais e
abstratas, não produzindo eficácia retroativa, e não diminuindo o alcance do
conteúdo essencial do direito. Só ocorrem quando há colisão entre direitos.
Outros artigos que protegem este tipo de direitos são: artº 165, nº1, alínea b);
artº 19º; nº4 do artº 20º; artº 22º; alínea d) do 288º. Deste último retira-se que o
núcleo dos direitos, liberdades e garantias não pode ser suprimido por revisão
constitucional.

• Princípio da proporcionalidade:

Nascido no universo do Direito administrativo, decorre do princípio do Estado de


direito, como forma de proibir as decisões do poder político que sejam arbitrárias ou
excessivas, e que constituam desvantagens ou sacrifícios desnecessários e
injustificados para os respetivos destinatários.
Este princípio encontra-se previsto em numerosas disposições constitucionais,
como no nº2 do artº 18º, nos 3, 4 e 8 do nº19, entre outras.
O princípio da proporcionalidade decompõe-se em três critérios
instrumentais (subprincípios). Uma lei que restrinja um princípio, para ser aprovada,
tem de impreterivelmente preencher todos os critérios:
- Adequação: as medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias, devem
ser aptas a atingir o fim que se pretende (exemplo dado, da fluência obrigatória de
médicos portugueses em inglês: a fluência não é sinal de competência médica).
- Necessidade: havendo que restringir um direito, deve-se utilizar o meio
menos oneroso para atingir o fim em causa (exemplo dado: inconstitucionalidade da
norma que alargava o período experimental dos trabalhadores por tempo
indeterminado. Tal provocaria uma insegurança extrema para os trabalhadores,
desadequada e demasiado onerosa).
- Proporcionalidade em sentido estrito: as leis restritivas e os fins
prosseguidos devem situar-se numa justa medida. Trata-se de um exercício de
ponderação –a justificação da restrição só pode passar pela defesa de outro direito
ou interesse público, porque os bens que se acautelam com a restrição de um direito
têm maior “peso” do que o sacrifício imposto – há que verificar se este direito é mais
valioso do que o direito sacrificado. Esta linha de pensamento é a chamada Fórmula
de Peso, que surgiu na doutrina alemã, por Alexi.

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Basta que a norma colida com um destes princípios para ser considerada
inconstitucional. Estes testes fundamentam uma expressiva parte das decisões do
Tribunal Constitucional português. Muitas das regras, apesar de passarem pelos dois
primeiros, não são aprovadas por barrarem no terceiro critério, que é o mais subjetivo.
O princípio da proporcionalidade combina-se com outros princípios: o
princípio da proteção da confiança integra a proporcionalidade, como um quarto
critério a verificar.

• Princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança

A segurança jurídica é um dos principais valores do Constitucionalismo liberal,


e constitui um dos pilares do Estado de direito. A segurança traduz-se na certeza
da ordem jurídica, na sua estabilidade e no respeito pela igualdade, que
permitem aos cidadãos saber com o que podem contar, e organizar a sua vida e
ações em conformidade com a mesma. A segurança jurídica pressupõe um
mínimo de previsibilidade em relação aos atos de poder, de forma a que os
efeitos surtidos correspondam às normas que os regulam.
Não é concebível um Estado de Direito cujo poder não se submeta às leis e
cujas leis não sejam publicitadas. A segurança é uma condição da realização de
Justiça.
Este princípio está presente na proibição da eliminação retroativa dos efeitos
produzidos por uma determinada norma, mais tarde considerada inconstitucional
(282º, nº4).
O princípio da segurança é deduzido do artigo 2º da CRP e reconhecido como
critério geral que vale para todos os domínios de atuação dos poderes políticos.
O princípio da proteção da confiança, por sua vez, consiste numa dimensão
subjetiva e defensiva do princípio de segurança jurídica, aplicada no universo das
restrições a direitos fundamentais por atos legislativos. Tem por finalidade a proteção
das expectativas legítimas das pessoas na estabilidade dos regimes jurídicos, nos
quais confiaram planos de vida. Este conceito direciona-se para a proibição de
situações em que uma lei regula e comprime retroativamente direitos que já tinham
sido exercidos e que produziram efeitos, ao abrigo da lei antiga (retroatividade plena).
Um exemplo ilustrativo desta situação seria a privação da cidadania
portuguesa, provocada por uma repentina alteração à lei da nacionalidade, a pessoas
que já usufruem da cidadania há anos.
Por outro lado, existem situações em que a retroatividade assume um caráter
impróprio: os casos de retrospetividade. Nestes casos, a lei restritiva vale para o
futuro mas afeta desfavoravelmente e imprevisivelmente, situações existentes cujos
pressupostos se constituíram no passado e perduraram para a atualidade.
Um caso famoso é o de Fernando Gomes. Uma lei passou a tornar
incompatíveis os mandatos de deputado do Parlamento Europeu e de presidente ou
vereador das câmaras municipais, sem salvaguardar as situações já existentes.

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Vigorando para o futuro, esta lei também se aplicava a quem se encontrava a meio
dos mandatos, o que obrigaria a uma escolha. O Tribunal Constitucional entendeu
que essa retrospetividade violaria o princípio da proteção da confiança, por frustrar
as legítimas expectativas dos eleitores.
O acórdão deste caso específico, o 188/2009, submeteu a lei restritiva a 4
critérios:
- o estado gerou um comportamento que criou expectativas;
- essas expectativas são legítimas e justificadas em boas razões (para fins e
interesses legítimos e honestos);
- os cidadãos devem ter condicionado as suas vidas tendo em conta essa
expectativa;
- a medida é justificada à luz do critério da proporcionalidade: se postergar
de forma intolerável, arbitrária, opressiva ou demasiado acentuada as exigências de
confiança; não colide com interesses públicos que, em sede de ponderação, se
sobreponham à salvaguarda das situações existentes.

• Princípio da Igualdade

É o principal eixo estruturante do sistema de direitos fundamentais, porque se


encontra presente no conteúdo dos demais direitos de liberdade e direitos sociais.
O princípio da igualdade impõe aos poderes políticos um tratamento igual de todos
os seres humanos perante a lei, e uma proibição de discriminações materialmente
infundadas, sem prejuízo de obrigar a diferenciações entre pessoas, sempre que
existam especificidades atendíveis e carentes de tutela ou proteção.
O princípio postula uma vertente negativa, uma vertente positiva, uma
vertente subjetiva e uma vertente objetiva.
Na sua vertente negativa, o princípio da igualdade concentra-se no artº13/1,
que faz a ligação com o princípio da dignidade humana. A igualdade negativa proíbe
aos poderes públicos discriminações arbitrárias, quer relativamente à conceção de
privilégios apenas para uns, como para o tratamento desfavorável de outros. No nº2
do mesmo artigo é estabelecida uma lista categorias suspeitas. Não quer dizer que
a discriminação feita nestes casos não seja justificada, mas o legislador tem um ónus
mais pesado, de provar a sua justificação. Por outro lado, o artigo 13º, apesar de
catalogar formas de discriminação, não esgota a possibilidade de um ato ser
considerado inconstitucional por ser discriminatório, por uma outra razão. O nº2 não
é taxativo.
Na sua vertente positiva obriga a tratar por igual aquilo que é igual, e aquilo
que é diferente como diferente. O princípio admite situações de tratamento desigual,
desde que fundamentadas: se radicarem em critérios de justiça, prosseguirem
objetivos legítimos, e cumpram o princípio da proporcionalidade. O legislador
entende que há uma discriminação e cria através do processo normativo uma nova
discriminação para reequilibrar a anterior. exemplo: criação de quotas de género para

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o exercício de cargos (ações afirmativas), ou a conceção de benefícios para pessoas


que se encontram em situações mais desfavoráveis (tratam-se de compensações que
atenuam desigualdades de partida). Estas discriminações positivas também têm de
ser justificadas. Se a discriminação for desproporcional, é inconstitucional. A
dimensão de desigualdade no tratamento tem que ser proporcionada às razões que
justificam esse tratamento desigual, não podendo revelar-se excessiva.
A própria Constituição, no artigo 9º, incumbe o Estado de promover a
“igualdade real” entre os cidadãos, e uma forma de o conseguir é através da
discriminação positiva.
Um direito fundamental tem sempre uma vertente positiva e negativa.
Quando falamos da vertente positiva, o cidadão não quer apenas o zelo desse direito
por parte do Estado, mas sim a sua ação interventiva. Quando falamos da vertente
negativa, referimo-nos aos princípios que o Estado deve apenas passivamente
consentir e respeitar, porque cabe ao cidadão exercê-lo, nomeadamente o direito à
honra.
A sua dimensão subjetiva prende-se com o facto do princípio da igualdade
constituir um direito subjetivo, que é passível de ser invocado junto do Tribunal
Constitucional, de forma direta e imediata, a partir da Constituição.
Há casos em que a Constituição autoriza limites ao critério da igualdade e remete
para a lei a sua concretização, como acontece no nº2 do artigo 15º.
Por fim, a dimensão objetiva do princípio da igualdade tem que ver com o dever do
Estado em garantir a igualdade nas suas decisões

• Princípio de acesso aos tribunais

O acesso aos tribunais é um direito sobre direitos, uma vez que garante o cumprimento
dos demais direitos fundamentais. É através do acesso aos tribunais que os cidadãos
garantem a tutela dos seus direitos. Auxilia a realização de Justiça, que por sua vez é um dos
fins do Estado de direito.
O princípio desdobra-se em 7 subprincípios, dos quais emergem uma pluralidade de
direitos, liberdades e garantias.
1. Direito de acesso aos tribunais (artº20/1) – todo o cidadão tem direito de exigir que
os seus litígios sejam dirimidos por órgãos independentes e imparciais que exerçam
a função jurisdicional. Este direito aplica-se também aos tribunais arbitrais. Embora
seja incontornável de que quem dispõe de maiores recursos financeiros é melhor
servido pelo sistema de justiça, o facto é que a carência de meios económicos nunca
pode ser obstáculo ao acesso à justiça.
2. Direito ao patrocínio judiciário – artº 20/2 – apoio financeiro no acesso à justiça para
os cidadãos ou estrangeiros residentes carenciados, que atestem a sua condição. (ex:
nomeação de patrono ou de defensor oficioso).
3. Direito ao advogado – artº20/2 – não é obrigatório, exceto em casos de matéria
penal, mas os cidadãos podem sempre fazer-se acompanhar por advogado.
4. Garantia do segredo de justiça – artº20/3

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5. Direito à decisão em prazo razoável – artº20/4 – uma justiça tardia significa


denegação da justiça. Portugal é condenado sistematicamente pelo Tribunal
Europeu dos Direitos do Homem por violação deste princípio.
6. Direito a um processo equitativo – artº20/4 – direito a saber qual é a fundamentação
que me é aplicada, caso queira recorrer da decisão.
7. Direito a procedimentos judiciais céleres e prioritários – artº20/5

• Princípio da constitucionalidade e da legalidade

O princípio da constitucionalidade encontra-se preservado no artigo 3º da CRP e envolve


duas dimensões:
- subordinação do Estado à Constituição (nº2)
- subordinação dos atos jurídico-políticos à Constituição (nº3)
Se uma lei violar a constituição é inválida – o poder político tem de ser limitado, num
Estado de Direito. A fiscalização da constitucionalidade é um limite material à revisão
constitucional: não pode ser alterada, sob pena de transição constitucional.
Este princípio enuncia a supremacia da Lei Constitucional sobre os demais atos
normativos.
O nº2 do artigo 3º refere que o Estado se funda na legalidade democrática: os órgãos
do poder político estão sujeitos à lei. A função administrativa e jurisdicional também está
subjugada às leis (artigo 266º/2).

Princípios da Ordem Política

• Princípio da separação com interdependência de poderes


Artigo 111º da CRP e garantido na alínea j) do 288º. Cada órgão soberano deve conter
nos limites das competências que lhe são atribuídas, de modo a observar uma repartição
que respeite o núcleo das funções: não pode haver usurpação de poderes entre órgãos, isto
é, um órgão não pode puxar para si o núcleo de funções que competia a outro. Há que se
verificar um respeito mútuo no exercício de competências.
A cada órgão deve corresponder um núcleo (função legislativa – Assembleia; função
administrativa – Governo; função jurisdicional – tribunais).
Por outro lado, a interdependência exige uma exigência de colaboração e controlo entre os
órgãos de soberania no exercício de competências, e a consequente responsabilização dos
mesmos.

• Princípio democrático
A designação dos governantes deriva do consentimento expresso pela vontade dos
governados, através das eleições livres, democráticas e pluralistas – artigo 2º da CRP e 10º.
O artigo 10º exprime os conceitos de democracia representativa (o povo decide quem são
os seis decisores no futuro), e de democracia referendária, que é de natureza semi-direta,
pois necessita da convocação por parte dos órgãos representativos.
A oligopolização partidária no exercício da atividade política visa a garantia da disciplina
parlamentar e a consequente governabilidade.
O critério maioritário é o princípio na tomada de decisões.

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• Princípio do Estado Unitário: remissão


6º - Unidade do poder constituinte; existência de uma só CRP, o que não impede a
descentralização político-administrativa. O estado unitário é um limite à revisão
constitucional.

• Princípio do Estado Social


Retirado do artigo 2º da CRP: O Estado visa a realização da democracia económica, social
e cultura. É também consagrado como um dos fins da República, no artigo 9º, alínea d). o
Estado, para além de tutelar os direitos de liberdade e a soberania nacional, deve promover
a igualdade material, assistir aos mais desfavorecidos, e criar sistemas de prestações sociais
e culturais.
Direito à habitação, saúde, proteção de estratos carenciados. Para além da tutela
dos direitos, liberdades e garantias, tem de haver um investimento do Estado na
promoção da igualdade entre os cidadãos, que compensam as situações em que os
cidadãos não conseguem garantir a sua própria sustentabilidade.
Note-se que este princípio não é necessariamente exigível por um estado de direito,
mas sim um complemento, o que justifica o porquê de não ser protegido explicitamente
pelo artigo 288º. No entanto, deve-se considerar que a existência de direitos sociais é
um limite implícito no artigo 288º, uma vez que, se a nossa constituição perdesse estes
direitos, perderia ao mesmo tempo um dos seus elementos característicos
fundamentais.

Natureza e operatividade:

Das regras
Uma larga maioria das regras da Lei Fundamental pode reconduzir-se aos princípios.
Independentemente do seu maior ou menor grau de generalidade ou abstração, as
regras em sentido estrito são suficientemente determinadas para delas se poder extrair uma
solução de decisão. Sem estes critérios de decisão não existira segurança jurídica: uma
constituição puramente principiológica revelar-se-ia insuficiente. As regras eliminam um
possível quadro de arbitrariedade e visam a previsibilidade jurídica.

Colisão entre regras:


• As mais recentes violam as mais antigas, a não ser que revoguem princípios –
princípio da cronologia
• À luz do princípio da especialidade, que consta no artigo 7º do CC, as regras especiais
prevalecem sobre as de caráter mais geral, e o mesmo sucede com as regras
excecionais em face das que assumirem uma maior generalidade.

As regras constitucionais dispõem de eficácia direta, a não ser que remetam para a emissão
de direito infraconstitucional para se tornarem exequíveis.

Dos princípios:
Os princípios desempenham funções:

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I. Função identitária – os princípios auxiliam a identificar a matriz do regime político,


o sistema de governo, o modelo económico, a ideia de sociedade, e o sistema de
direitos fundamentais. Alguns deles assumem mesmo uma natureza estruturante,
como é o caso do princípio de Estado de Direito Democrático na nossa constituição.
II. Função “nomogenética” – ao enunciarem valores e interesses públicos, regem a
produção das regras, justificam-nas e fundamentam-nas.
III. Função integradora: a abertura das normas de princípios permite ajustar o direito
ordinário à realidade circunstancial, estabelecendo critérios de solução para
problemas não previstos.
IV. Função interpretativa: os princípios ajudam a interpretação outras normas,
garantem a prevalência de direitos de maior peso; a sua abertura permite uma
interpretação evolutiva e atualista, que os ajusta à constante evolução da sociedade.

Diversamente do que afirmam Dworkin e Alexy, nem sempre as regras são aplicadas
quando se verifique, no plano dos factos, a hipótese nelas prevista. Há regras aplicadas por
via analógica, em que as condições factuais da sua aplicação não se verificam, mas que são
aplicáveis porque os casos por elas regulados têm uma identidade de razão em relação às
situações previstas na hipótese normativa que predica a sua convocação.

Regime de aplicabilidade normativa


As normas não se aplicam todas da mesma forma: algumas têm aplicação imediata,
outras carecem de mediação legal, e outras dependem do sentido retirado a conceitos
indeterminados que transportam. Nesse sentido, existem várias classificações das normas
constitucionais, consoante a sua aplicabilidade. O professor Blanco de Morais cruza a
proposta classificativa de Jorge Miranda com as de Gonçalves Ferreira Filho e João Afonso
da Silva.
Existem 3 tipos de normas:
• Normas percetivas exequíveis por si próprias – regras e princípios que se podem
aplicar plena, direta e imediatamente, nas suas dimensões positiva e negativa.
Dentro das normas exequíveis por si próprias existem duas categoriais teóricas: de
eficácia plena e de eficácia contida.
• Normas percetivas não exequíveis por si próprias – regras e princípios da
Constituição diretamente aplicáveis, mas cuja exequibilidade na sua dimensão
positiva se encontra condicionada à existência de requisitos jurídicos, expressos em
leis ordinárias, que as complementam. Como as normas percetíveis exequíveis por
si próprias, têm eficácia direta; como as programáticas, têm aplicação limitada por
condicionantes externos.
• Normas programáticas – normas que apontam no plano positivo para fins
transformadores de ordem económica e social. Prescrevem obrigações de
resultados, não obrigações de meios. Mais do que comandos-regras, explicitam
comandos-valores. Não são aplicáveis diretamente, porque a sua aplicação fica
dependente da existência de condições não apenas jurídicas, mas também
financeiras e materiais. O seu poder vinculante é diminuído, emergindo no contexto
do controlo de inconstitucionalidade por omissão. Carecem em absoluto de

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legislação ordinária que defina o seu conteúdo positivo, que em geral está
espelhado em princípios.
As programáticas simples fixam fins sem estabelecer meios para os alcançar,
enquanto que as qualificadas mencionam medidas.

Normas de eficácia plena:

Vertem diretamente sobre a integralidade das matérias. Para além de dispensarem


o direito ordinário, podem predicar a sua inconstitucionalidade, se esse direito não se limitar
a reproduzi-las e a concretizá-las no plano da mera execução, e, pelo contrário, as tentar
restringir. É o que acontece com as normas atributivas de competências dos órgãos de
soberania.
Estas normas não vedam necessariamente a existência válida de atos legislativos e
normas administrativas de medição: significa só que a sua aplicação não fica dependente da
existência desses atos, que os pode dispensar e, em caso de colisão ou desarmonia, o órgão
jurisdicional pode aplicar a norma da Lei Fundamental e desaplicar a lei ordinária.
No domínio dos direitos, liberdades e garantias, abundam normas legais ordinária
entrepostas entre a constituição e casos concretos da vida, mesmo quando os preceitos não
remetem para a lei comum. Esta interposição surge sempre que as normas na Constituição
não permitem soluções definidas para casos atípicos e há que legislar, de modo a que a
aplicação direta da norma não seja problemática.

Normas de eficácia contida:

Normas que, encontrando-se aptas a produzir direta e imediatamente efeitos,


preveem expressamente a emissão de legislação suscetível de restringir, condicionar, suster
ou modelar esses efeitos, através do apelo a uma lei futura, não como requisito da sua
efetividade, mas da possível contenção da sua eficácia. Se não for emitida legislação, os
efeitos são plenos e imediatos, passíveis de serem invocados pelo juiz.

Tomo I – Funções do Estado e o Poder Legislativo no Ordenamento Português

Capítulo I. Funções do Estado Ordenamento

Elementos do Estado:

Povo, território, poder político soberano e ordenamento jurídico.


O elemento do ordenamento deve ser adicionado uma vez que um Estado
(coletividade territorial) sem ordenamento pressupõe a existência de poderes fácticos que
agem arbitrariamente – o que é incompatível com um Estado de Direito.
A associação entre Estado e ordenamento foi apreciada por Kelsen, que concebeu o
Estado como um “sistema de normas”, que exprimiria a unidade de uma ordem jurídica. No
entanto, não devemos reduzir a noção de Estado à de sistema normativo. O Estado é um

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complexo de autoridades políticas, administrativas e jurisdicionais, que vai para além das
normas jurídicas que o regem (órgãos, titulares, funções, serviços, prestações).
Mas a ideia de Estado, como coletividade organizada pelo direito, com um
ordenamento próprio, constitui meramente uma noção positiva do conceito: não se trata
de uma conceção axiológica, como a que defende parte da doutrina. Este setor da doutrina
tem uma visão de Estado Constitucional que é sinónimo de Estado de Direito democrático.
Gomes Canotilho afirma “o Estado Constitucional não é nem deve ser apenas um Estado de
Direito (…) ele tem de estruturar-se como Estado de direito democrático, isto é, como ordem
de domínio legitimada pelo povo”. Segundo o autor, a soberania popular está no cerne da
legitimação do exercício do poder político.
Por outro lado, existem Estados, até membros de organizações internacionais como
a ONU, que não reúnem os pressupostos típicos de Estado de direito democrático, ou
porque não possuem constituição escrita, ou porque não cumprem o princípio de separação
de poderes, ou essa legitimidade não é democrática, etc. ainda assim, são estados regidos
por um ordenamento jurídico. O estudo de Direito Constitucional II foca-se, no entanto, no
estado de direito democrático, do qual faz parte a República Portuguesa.

Estado-Ordenamento e Estado-Pessoa

O Estado Ordenamento integra diversas pessoas jurídicas de caráter público: o


Estado enquanto pessoa coletiva, a par de outras entidades secundárias, dotadas de
diferentes graus de autonomia em relação ao Estado-pessoa: outras pessoas coletivas
territoriais, como os Estados federados, regiões autónomas, e autarquias locais; pessoas
coletivas públicas não territoriais (entre as quais os institutos públicos ou universidades).

2. As funções do Estado como Atividades Jurídico-Públicas

Os interesses gerais prosseguidos pelo Estado-Ordenamento consistem nos seus fins.


Estes, por sua vez, assentam nos princípios de justiça, segurança e bem-estar. Estes fins
encontram o seu cerne no artigo 9º da CRP. A prossecução dos fins do Estado realiza-se
através de atividades públicas, que são consideradas jurídicas ou não jurídicas, conforme
pressuponham ou não a prática de atos jurídicos.
O caráter de uma atividade deve ser medido pela natureza jurídica dominante dos atos
ao seu abrigo, uma vez que uma atividade pode produzir no seu âmbito atos jurídicos ou
não jurídicos. A função política em sentido estrito é, por exemplo, uma atividade jurídica,
apesar de produzir quer atos jurídicos (veto presidencial moção de censura), quer não
jurídicos (mensagens avulsas do PR, acordos políticos interconstitucionais).
Atividade estadual define-se como um conjunto de atos produzidos permanentemente,
por decisão de autoridades públicas, e que se agrupam numa relação de semelhança.

Conceito de função: o professor Blanco de Morais define como funções estaduais todas
as atividades jurídico-públicas desenvolvidas pelas autoridades do Estado-Ordenamento,
tendo em vista a realização dos seus fins. Jorge Miranda desenvolve dois sentidos possíveis
para o conceito de função: fim/tarefa, que satisfaça necessidades coletivas, ou atividade
com características próprias. A primeira definição traduz a tentativa de legitimação do

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exercício do poder político, ao associar sociedade e Estado. Na segunda, a função


compreende os atos que o Estado constantemente vai desenvolvendo, de harmonia com as
regras que o condicionam, como manifestação do poder político.
Jorge Miranda caracteriza a função como: diferenciada, quer materialmente (pelos
resultados que produz), quer formalmente (trâmites que exige), quer a nível orgânico
(órgãos de onde provém); duradoura (exercício constante); globalizada (é considerada pelo
conjunto, e não pelos atos individualizados).

A doutrina tem debatido quanto à natureza das funções do Estado.


Marcello Caetano faz uma distinção entre funções jurídicas e não jurídicas: dentro das
não jurídicas, arrumou as atividades política e técnica. Nas jurídicas, posicionou a atividade
legislativa e a executiva.
Já Gomes Canotilho e Marcelo Rebelo de Sousa defendem uma quadripartição das
funções: política, jurisdicional, administrativa e legislativa, partindo das referências feitas na
própria CRP.
Jorge Miranda esboça uma tripartição, fazendo distinção entre a função política (que se
desdobra na legislativa e na política em sentido estrito), função administrativa, e função
jurisdicional. A função política desdobra-se consoante se traduza em atos normativos e em
atos de conteúdo não normativo (os da política stricto sensu).
O professor Blanco de Morais vai ao encontro desta classificação, uma vez que esta se
concentra nas funções do Estado que pressupõe a prática de atos jurídicos, e porque a lei
não deve estar apartada da essência da atividade política, quando a própria constitui a
manifestação juridicamente mais relevante dessa atividade. No Estado Social de Direito, a
lei deixa de ser simples regra jurídica para passar a ser concebida como um instrumento
político.
Por outro lado, esta tripartição reduz a atividade legislativa, que é a mais importante de
todas as funções do Estado, a uma subfunção; as responsabilidades públicas no domínio da
política externa não foram autonomizadas, sendo reconduzidas à atividade política stricto-
sensu.
Carré de Malberg constrói a ideia de supremacia da lei sobre os atos da Administração
e os atos jurisdicionais, ou seja, a função politica constitui uma atividade primária ou
dominante, que apenas está vinculada à Constituição ou a outros atos oriundos dessa
mesma função política, enquanto que a função administrativa e jurisdicional são
secundárias ou subordinadas, que têm de respeitar a atividade legislativa.
Este conceito tem, no entanto, nuances que não podem passar despercebidas. A
verdade é que a função jurisdicional tem uma dimensão autónoma de controlo de
constitucionalidade. Essa atividade sobrepõe-se à própria lei, e, consequentemente, à
atividade legislativa. Assim, os tribunais, nos termos do artigo 205/1 subordinam-se à lei,
mas podem e devem, de acordo com o 204º, desaplicar uma lei se esta violar a Constituição,
tendo em conta o caso concreto (isto é, se a aplicação dessa lei ordinária ao caso violar uma
lei de hierarquia superior).
Parte da doutrina defende que pode estar em causa uma nova função do Estado,
relativamente a esta especificidade da função jurisdicional, já que os membros do T.C são
eleitos por órgãos políticos, e dirimem conflitos políticos com expressão normativa. No
entanto, a imparcialidade na aplicação do direito a conflitos e a independência que se

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esperam da Justiça Constitucional são suficientes para afastar esta ideia. A politização da
atividade jurisdicional atenta contra os princípios de freios e contrapesos, e da
independência de quem exerce o direito.

A função política em sentido amplo:

A política enquanto função consiste numa atividade de ordenação da vida coletiva


assente em valores, ideologias, e programas e exercida em benefício da mesma coletividade.
A CRP refere-se a elas quando reporta ao exercício de funções políticas do Governo – artº
197/1, ou quando dispõe sobre as competências da Assembleia, no artigo 161º.
Apesar da constituição fazer uma separação entre atividade legislativa e política, é
comum no plano doutrinário olhar para a função legislativa como a mais importante
atividade política dos poderes constituídos, já que a lei se define como um típico critério de
decisão.
O conceito amplo de política abrange por isso o exercício de responsabilidades
normativas, com a produção de critérios inovatórios de decisão que se traduzem em lei e
de governação

A atividade legislativa:

Define-se na base de critérios materiais, formais e orgânicos:


• Critérios materiais: poder de criação e modificação da ordem jurídica através da
aprovação de normas que cumpram o princípio da constitucionalidade, e que irão
regular a vida coletiva, mediante um programa intencional de valores e interesses.
• Critério formal: diz respeito à forma que o ato legislativo pode assumir: decreto-lei,
lei, ou decreto legislativo-regional.
• Critério orgânico: a atividade legislativa é da competência exclusiva da Assembleia
Legislativa, do Governo, e das assembleias legislativas das regiões autónomas.

Posto isto: atividade político-normativa que se traduz no poder de criação e modificação


da ordem jurídica, por órgãos competentes, que emanam atos sob a forma de lei e que
vinculam o exercício das demais funções estaduais.

A atividade política em sentido estrito

Também se define com base em critérios:

• Critério substancial: a função política stricto sensu é mais livre do que a atividade
legislativa. Assenta na produção de atos e exteriorização de condutas que corporizam
predominantemente o sistema de freios e contrapesos, da política externa, do uso de
poderes excecionais da defesa da República, e ainda formas de exercício de democracia
direta ou semi direta, como o referendo.
Têm maior liberdade porque, embora ambas as atividades estejam sujeitas ao primado da
Constituição, o controlo da constitucionalidade abarca as leis, mas não os atos políticos.

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Estes, salvo raras exceções em que a Lei fundamental prevê a sua inexistência, não são
sujeitos a fiscalização da sua validade, e produzem efeitos jurídicos imperativos, mesmo
que inconstitucionais.

• Critérios orgânico-formais: enquanto a função legislativa se traduz na emissão de


normas jurídicas, a atividade política stricto sensu envolve tanto a emissão de atos
singulares como de atos normativos.
Os primeiros assumem necessariamente a forma de lei; os atos normativos, formas muito
variadas, de caráter não legislativo: decretos do PR, moções e resoluções da Assembleia,
resoluções do Conselho de Ministros – todos têm conteúdo político. Ao Direito
Constitucional interessam os atos que produzem efeitos jurídicos.

Temos então a noção de atividade política em sentido estrito: emissão, com


expressivo grau de liberdade, de atos e normas de conteúdo político desprovidos da forma
de lei.

Os atos políticos portadores de eficácia jurídica podem ser produzidos ao abrigo de


poderes de direção e de controlo inter-orgânico.
Podem ser imputados aos órgãos do Estado ou aos órgãos das regiões com
autonomia político-administrativa.
Os atos políticos fluem das relações de interdependência de poderes, que envolve a
observância de limites, controlos recíprocos, e o exercício de competências partilhadas, ou
seja, envolvem realidades diferentes.
Os atos de direção política consistem em decisões que envolvem uma escolha
potencialmente livre de opções primárias relativas ao funcionamento das instituições do
Estado, e determinam objetivos de ação política, fixando, se for caso disso, meios ou vias
para a sua prossecução.
É importante não confundir os atos de direção política com a função de direção no
exercício da atividade administrativa. Esta função não implica a superioridade ou a
soberania de um órgão perante outro.
O Presidente da República é, por excelência, o órgão que dispõe de uma maior
panóplia de atos desta natureza. Os que envolvem nomeações de titulares podem ser
formalmente independentes (nomeação do 1º Ministro) ou envolver uma competência
partilhada com o Governo (nomeação dos restantes membros do governo, sob proposta do
1º Ministro).
Existem atos de direção presidencial que se projetam na própria subsistência de
órgãos de soberania em funções: caso da renúncia da aceitação de demissão do Primeiro-
Ministro. Outros atos, implicam o exercício de poderes diretivos sobre o funcionamento dos
órgãos colegiais, como é o caso da convocação extraordinária da Assembleia da República.
Por último, outras decisões implicam atos de projeção institucional relevante para a
proteção da República e da vontade popular, no âmbito de competências partilhadas (ex:
declaração de estado de sítio).
Também a Assembleia da República exerce importantes poderes de direção que se
projetam sobre outros órgãos, nomeadamente o Executivo, quando há votações de moções
de censura ou confiança.

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Os atos de controlo implicam um poder de escrutínio e vigilância por parte de


determinados centros de poder sobre outros órgãos: responsabilização política e jurídica,
apreciação do mérito de atos de outros órgãos (ex: veto e promulgação presidencial de atos
legislativos); atos de fiscalização da constitucionalidade.
A eficácia jurídica dos atos políticos projeta-se primariamente no circuito interno do
poder político, sem prejuízo de poderem mais tarde condicionar os atos normativos, como
acontece com o veto político.

Função Administrativa:

Atividade traduzida na concretização e execução das leis, e na satisfação de


necessidades coletivas legalmente definidas.

• Critério material: natureza dependente ou secundária da função; objetivos


prosseguidos; princípios típicos que presidem à atuação dos órgãos.
A administração é uma atividade subordinada porque não só se vincula à Constituição,
como à lei (nº2 do artigo 266º). Os objetivos prendem-se com a prossecução dos interesses
públicos. Finalmente, os centros de decisão administrativa devem exibir iniciativa e
parcialidade, na prossecução desses mesmos interesses, uma vez que a administração deve
atuar como parte interessada na realização das referidas necessidades.
Esta parcialidade não prejudica a imparcialidade que deve ser observada no tratamento
dos particulares, não favorecendo ou prejudicando os interesses de uns em relação aos
outros.
Constitucionalidade, legalidade, igualdade e imparcialidade, proporcionalidade, justiça,
e boa-fé, são alguns dos princípios – nº2 do artº 266º. Se não forem cumpridos podem gerar
atos inválidos.

• Critérios orgânicos: órgãos e agentes que desenvolvem a atividade administrativa,


nos termos do nº2 do artigo 266º. Enquanto órgãos, exercem funções públicas em nome de
uma pessoa coletiva. Enquanto agentes, colaboram com os órgãos, numa posição
subordinada a estes. Ambos podem praticar atos com efeitos externos em nome da pessoa
coletiva.
O Governo é o órgão superior da função administrativa (182º), exercendo poderes
de orientação sobre a administração indireta, e poderes de tutela sobre a administração
autónoma – artº 199, alínea d).
A Constituição prevê ainda a existência de entidades administrativas independentes.

• Critérios formais: manifestações externas do exercício da atividade (as que


produzem efeitos jurídicos, ou seja, os atos e contratos).
Quanto aos atos da Administração, podem ser normativos (regulamentos – normas
jurídicas gerais e abstratas) ou administrativos (decisões que no exercício da função
produzem soluções individuais e concretas, e que não têm caráter normativo).

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Por sua vez os contratos administrativos caracterizam-se como acordos plurilaterais de


vontade celebrados entre entidades públicas, ou entre estas e particulares, e que se
destinam à constituição modificação ou extinção de relações jurídicas administrativas.

Função jurisdicional

Define-se como uma atividade que resolve questões de direito emergentes de


interesses conflituantes, através da aplicação da Constituição, das leis e de outras normas,
mediante decisões que normalmente têm caráter individual e concreto, e que são tomadas
por tribunais independentes, imparciais e passivos.

• Critérios materiais: objeto (resolução de questões concretas), fim (garantir a justiça


material e a paz jurídica), natureza subordinada (como atividade jurídico-pública, dá
primazia à Constituição e à lei, normas relativamente às quais os decisores se encontram
submetidos – artsº 203º e 204º).
É importante referir que a subordinação dos tribunais à lei não impede, nem deve
impedir, os mesmos de a interpretarem a integrarem. O disposto do artº 112/5 apenas
impede operações jurisdicionais que sejam dotadas de eficácia externa (que vinculem
sujeitos situados fora do processo em julgamento).
Daí a declaração de inconstitucionalidade do instituto dos assentos.
Esta subordinação também não impede nem deve impedir os tribunais comuns
(artigo 204º) e do Tribunal Constitucional (artº 221 e 277º e sgs) em julgarem a invalidade
de leis contrárias à Constituição.

Critério orgânico
O elemento orgânico reporta-se aos tribunais como centros institucionais formados
por juízes, dotados de independência e irresponsabilidade. A Constituição define as diversas
classes de tribunais no artigo 209º.

Critério formal
O elemento formal reconduz-se às decisões jurisdicionais, as “sentenças”, que
corporizam o resultado da função jurisdicional. Num plano misto, simultaneamente material
e formal, as sentenças são de cariz individual e concreto (exceto as declarações de
inconstitucionalidade pelo TC que têm força obrigatória geral).

As funções do Estado e o Princípio da Separação de Poderes

• Separação de poderes

A separação de poderes prevista na nossa CRP não se identifica com o princípio dos
séculos XVIII, o qual implicava que a cada órgão de soberania fosse atribuída uma função do
Estado, de forma a evitar excessos. Este principio partiu de Locke, no quadro de monarquia
mista, procurando garantir os valores primordiais de segurança, propriedade e liberdade
individual. Montesquieu foi o seu grande estudioso, tornando este princípio num axioma do

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Estado de direito democrático. Este princípio esteve bastante presente na Constituição


Americana de 1878.
Quatro razões afastam na atualidade, a teoria da separação de poderes oitocentistas,
em relação ao paradigma do Estado do tempo presente.
I. Transformações das funções e dos próprios fins do Estado – a mais relevante
destas sendo a atribuição ao Governo, tecnicamente um centro de poder Executivo, de
funções legislativas.
II. Liberdade conformadora do constituinte para configurar diversas modalidades
ou formas de expressão da separação de poderes – as funções do Estado são condicionadas
pela arquitetura de cada Constituição em concreto, e não por um arquétipo teorético fixo.
Um exemplo disto é a diferença palpável entre os diferentes regimes semipresidencialistas.
III. Os limites políticos e jurídicos fixados pela teoria do núcleo essencial ao poder
constituinte a aos poderes constituídos – a flexibilidade da incidência do princípio no âmbito
de cada Constituição tem os seus limites.
O princípio da separação de poderes a partir das competências constitucionalmente
configuradas não pode ser irrelevante. Existem sempre parâmetros teleológicos que, caso
sejam ultrapassados, impedem que se possa invocar o respeito pelo princípio da separação
de poderes.
É vedada aos órgãos a possibilidade de se intrometerem no âmago de competências
alheias e de exercer funções que não lhe competem, mediante a Lei Fundamental. Não seria
admissível que um órgão que exercesse primado de uma função, o viesse a perder em favor
de outro órgão.
Não só este conteúdo de centralidade de cada poder constitui um limite ao poder de
revisão constitucional, como também se impõe como um limite ao poder constituinte de
um Estado democrático, por constituir um dos seus pilares.

Teoria do núcleo essencial: a nenhum órgão soberano podem ser cometidas funções de
que resulte quer o esvaziamento das funções materiais atribuídas a outro órgão quer a
intromissão no circulo indisponível das funções que devem pertencer a outro órgão, por
razões de essencialidade material.
O núcleo tem uma dimensão material que se impõe ao próprio poder constituinte,
relacionado com as características prototípicas dos órgãos: os Parlamentos são os titulares
da função legislativa que incida sobre as matérias mais relevantes; os Executivos (Governo
e Presidente) são os órgãos superiores da Administração Pública; os tribunais
desempenham a exclusividade da função jurisdicional.
Uma realidade diferente pressuporia um Estado que não de direito, ou até
constitucional, uma vez que o texto constitucional seria concebido para acomodar e
legitimar formalmente poderes fáticos, e não para limitar materialmente o poder político.

IV. Complementaridade incindível entre separação e interdependência de poderes.


O princípio de interdependência de poderes ou, como o Tribunal Constitucional lhe
chamou, dimensão negativa da separação de poderes.
Não basta que sejam repartidas as competências entre órgãos soberanos: uma
autoridade pode abusar do poder que lhe foi constitucionalmente conferido. Partindo da
ideia de Montesquieu de que “só o poder limita o poder”, a limitação da autoridade ocorre
necessariamente por força de controlos interorgânicos. Atos políticos que constituem

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poderes de impedimento (vetos, poderes de direção com componente sancionatória), ou


faculdades de autorização e confirmação, ilustram o princípio da interdependência.

Como colorários do princípio de separação de poderes, na esfera dos órgãos de


soberania, temos:
• A repartição da atividade política stricto sensu entre o Presidente, a Assembleia e o
Governo;
• A repartição da atividade legislativa entre a Assembleia e o Governo (com o primado
da Assembleia e a centralidade do Governo)
• Exclusão da atribuição da atividade administrativa à Assembleia;
• Reserva da jurisdição aos tribunais.

Capítulo II. Os Atos Jurídico-Públicos

Conceito: decisão imputada aos órgãos de uma entidade coletiva que se mostra apta
à produção de consequências jurídicas na prossecução dos fins públicos a que o mesmo se
encontra adstrito.
É um produto da exteriorização da vontade imputável a um ente público, cujo grau
de vinculação pode ser maior ou menor, consoante a natureza da função:

• É maior numa função dominante como a função política. A atividade legislativa é a


que permite a existência de uma liberdade conformadora do conteúdo dessa
vontade, que apesar de tudo pode ser limitada pela Constituição (ex: normal não
exequíveis por si próprias tem uma menor liberdade de concretização legislativa).
• É menor em funções subordinadas à legalidade, como a atividade administrativa e
jurisdicional.

Normalmente os atos jurídico-públicos são imputados aos órgãos públicos: são atos do
Estado no exercício de um poder público, sujeito a normas de Direito público. A eles se
contrapõem os atos de gestão privada e os atos dos particulares, inclusive os que são
praticados no âmbito de direitos políticos.
Existem, contudo, situações em que o ato é praticado por um ente de natureza jurídica
privada, que desempenha funções públicas ao abrigo de um poder público de autoridade
que lhe foi concedido por uma pessoa coletiva pública (ex: conceção de serviço público).
É a função publica que permite conferir ao ato produzido a natureza jurídico-pública. Os
efeitos jurídicos destes atos traduzem-se na manifestação unilateral de um poder de império
sobre os seus destinatários, assegurado pela coercibilidade que assiste ao direito e, como já
vimos, está na posse do Estado.
A Constituição da República contém uma previsão específica do princípio da
constitucionalidade, dirigida aos atos jurídico-públicos – nº3 “quaisquer entidades públicas”.

Pressupostos e elementos do ato jurídico-público:

• Órgão, vontade psicológica, competência

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Os pressupostos são nada mais nada menos que as condições prévias


indispensavelmente reunidas para que o ato possa ser produzido conforme o direito.
Os pressupostos podem assumir natureza subjetiva (como o órgão e da vontade
funcional) e natureza mista (dimensão objetiva e subjetiva – a competência).
Os órgãos são definidos como os centros institucionais de poder que exprimem uma
vontade funcional em nome da pessoa coletiva pública, da qual resulta a prática do ato.
O órgão é essencial porque sem a sua criação para o exercício de uma dada competência,
não existe ato, porque as pessoas coletivas, como o Estado, carecem de uma estrutura
organizatória institucional para poderem decidir. As decisões dos órgãos são imputáveis às
pessoas jurídicas.
Os órgãos, como instituições abstratas, decidem mediante a atuação de pessoas físicas
que são os seus titulares. Os titulares agem “acionados” pela vontade psicológica (formação
da decisão de agir), que antecede a vontade declarada (forma e conteúdo do ato decidido).
A vontade psicológica é um pressuposto subjetivo, uma vez que antes da emissão de
uma decisão é preciso necessariamente que o órgão queira livremente decidir: se o titular
do órgão for coagido anormalmente a agir, ou não se encontre nas suas plenas faculdades,
não há juridicidade do ato.
A competência pode ser definida como a atribuição a um órgão, muitas vezes
exclusivamente, do poder funcional de aprovar atos jurídico-públicos, no âmbito de uma
determinada matéria e nos limites de um determinado espaço e tempo.
A competência é um pressuposto eclético ou misto porque contém o elemento
subjetivo – o órgão que exerce a sua vontade – e objetivo – reconhecimento da autoridade
desse órgão, exercida ao abrigo de uma função do Estado-Ordenamento. Por exemplo, para
que o Governo pudesse aprovar decretos-leis na esfera da Assembleia da República, tornou-
se necessário conceder, no artigo 198º/1, àquele órgão, a faculdade de exercer esse poder
funcional.

Elementos fundamentais: forma e conteúdo

Os elementos são partes integrantes do ato, definidoras do seu modo de ser ou da


sua estrutura.
Emergem da vontade funcional declarada no ato, que têm necessariamente de se
encontrar presentes em qualquer decisão.
A forma consiste no modo como o ato é produzido e revelado. Todo o ato jurídico-
público é produzido através de um procedimento produtivo, que segue um itinerário
específico e lógico. A revelação em sentido estrito, consiste no titulo jurídico ou legenda
que é aposta ao ato formado ou declarado que permite a sua identificação externa.
A Constituição regula diretamente um número reduzido de procedimentos
produtivos, com relevo para a lei. mesmo não regulando diretamente outros atos, pode
impor-lhes formalidades produtivas avulsas, que devem ser respeitadas, como o quórum no
artigo 116º, ou a publicidade de atos de variada natureza, no artigo 119º.
Os atos jurídico-públicos estão por toda a Constituição: no artº 112/1 (títulos formais
dos atos legislativos); títulos de certas normas atípicas da função políticas (regimentos de
órgãos representativos), e reporta-se ainda aos títulos de alguns atos políticos “stricto
sensu”, como os decretos presidenciais
O conteúdo do ato reconduz-se ao objeto e ao fim.

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O objeto diz respeito às disposições materiais que configuram a vontade declarada


e o conjunto de situações jurídicas ou fácticas sobre as quais a declaração incide.
O fim consiste no escopo ou no objetivo que o ato visa preencher. Apesar de haver
alguma liberdade inerente à configuração do objeto os atos estão vinculados aos fins
constitucionais que prosseguem. Excetuando os atos políticos em sentido estrito, que não
estão sujeitos a fiscalização constitucional, o legislador depara-se sempre com os limites
internos fixados na Constituição e em legislação reforçada.
O Governo, quando aprova ao abrigo de competências primárias, um DL em matéria
concorrencial ou no âmbito da sua competência exclusiva, dispõe de uma maior liberdade
conformadora para definir o respetivo conteúdo e delimitar os fins, do que quando legisla
no exercício de uma competência sub-primária, ao abrigo de autorização legislativa. Isto
porque no DL autorizado, o órgão é obrigado a respeitar o parâmetro material da lei de
autorização parlamentar que define o objeto, a extensão e o sentido da delegação – artigo
198º/1/b); 165º/2.

Tipologia elementar de atos jurídico-públicos

Formulada por Jorge Miranda, atende ao critério da vontade:


• Atos livres (o autor goza da faculdade de os praticar ou não. ex: promulgação ou
veto presidencial); ou devidos (o autor é obrigado a praticá-los, como no veto por
inconstitucionalidade ou a obrigação de promulgar a lei confirmada pela AL);
• Atos simples (praticados por um só órgão, como a nomeação do Primeiro-Ministro
pelo Presidente da República); complexos unipessoais (implica um concerto de
vontades diversas de titulares ou órgãos pertencentes à mesma pessoa coletiva
como o procedimento legislativo parlamentar que resulta da iniciativa do Governo
ou dos deputados) e complexos pluripessoais (agrupamento de vontades de
titulares de pessoas coletivas distintas, como os processos de revisão dos estatutos
regionais, que partem das assembleias e precisam de ser confirmados pela A.L).
• Decisões (vontade de 1 só órgão) e deliberações (órgãos colegiais, como a
Assembleia Legislativa ou o Conselho de Ministros).

Em razão do objeto:
• Atos de eficácia interna (esgotam a sua eficácia no próprio órgão que o emite, por
serem de gestão interna) e atos de eficácia externa (projetam os seus efeitos em
diversos órgãos, como a generalidade das leis ou DL).
• Atos declarativos (atentam numa situação jurídica já existente, como na declaração
da inconstitucionalidade) ou constitutivos (geram com a sua produção um status
jurídicos novos, modificando situações jurídicos – é o que acontece com a
generalidade das leis).
• Atos-condição (vinculam o conteúdo de outros, constituem pressupostos da sua
produção ou validade) e atos-objeto (atos que estão vinculados aos atos-condições,
como um DL complementar a outro autorizado).
• Atos normativos (implicam a aprovação de leis, ou de outros atos jurídico-públicos
de caráter geral e abstrato) ou não normativos (decisões políticas não legislativas).

Conceito e estrutura do ato normativo


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O nº1 do artigo 277º dispõe que o sistema de fiscalização da constitucionalidade tem


por objeto “normas”. Mas no universo do atos jurídico-públicos, consagrado no artigo 3º/3,
que se encontra sujeito ao império da Constituição, como identificar os que assumem
natureza de normas jurídicas?
A Constituição não consagra um conceito unitário de norma jurídica, e a definição
de norma como regra de direito com caráter geral e abstrato, parece estar desatualizado,
desde a Revolução Liberal, altura em que se verificou um verdadeiro fenómeno de “aluvião
legislativo”, em que se produziram imensas leis individuais e concretas.
À generalidade e abstração parece ter substituído a politicidade do conteúdo legal.
Na CRP só se exige a generalidade e abstração a leis que disciplinam certas matérias, como
a dos direitos, liberdades e garantias. Isto permite-nos aferir que, a contrario sensu, também
podem estar presentes na Lei Fundamental regras de caráter mais específico e excludente.
Se alguma doutrina entende que a lei, à luz da Constituição de 1976, é definida pela
politicidade do seu conteúdo, pela sua forma e pela sua força, então o problema da sua
normatividade deveria encontrar-se solucionado. No entanto, o artigo 268º prevê atos
administrativos lesivos de direitos “independentemente da sua forma” - podem existir leis
com conteúdo idêntico ao ato administrativo?
O ato administrativo constitui uma atividade executiva, que por definição se
encontra vinculada à lei. o seu conteúdo não é politicamente inovador como o da lei, nem
supõe liberdade conformadora na sua edição; a sua forma não é a legal, e a sua potência de
valor é menos intensa do que a da lei, nos termos do 112º/5.

Conceito de norma para o STA: material


Conceito de norma para o TC: funcional

O professor regente defende, no Curso, uma noção pragmática, ou funcional, de


norma, que se aproxima da defendida pela jurisprudência do Tribunal Constitucional. A
generalidade deve constituir, por regra, o elemento estrutural da caracterização de uma
norma jurídica. Já a abstração não deve constituir um elemento permanente de definição
de norma, pois não abrange regras que se esgotam na regulação de um facto determinado
e circunscrito no tempo, as quais assumem caráter normativo em razão da natureza geral
(vários destinatários) do seu comando.
Conclusão: as normas são por regra gerais (e também abstratas), exceto se
revestirem a natureza de atos legislativos, os quais se caracterizam por ser critérios de
decisão de conteúdo político, dotados da forma e de força geral de lei, independentemente
do seu conteúdo ser geral e abstrato, geral e concreto, ou individual e concreto.

Normas “atípicas” da atividade política stricto sensu

O ato referendário nacional.

O referendo constitui uma forma de expressão de democracia-direta exercida no


âmbito da função política, porque a sua realização depende da combinação da vontade dos
órgãos de poder, que propõe o referendo (Assembleia ou Governo), e o convocam
(Presidente da República), com a vontade do eleitorado, que aprova ou rejeita o mesmo.

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Integra-se na atividade política stricto sensu, nos termos do artigo 115 nº 1 e 3,


porque se trata de um exercício de expressão popular através do sufrágio, que incide sobre
questões de relevante interesse nacional que devem ser decididas pelo Governo ou pelo
Parlamento através da aprovação de convenção internacional ou ato legislativo, sem que,
contudo, o próprio referendo assuma a forma de convenção ou de ato legislativo. Ao
implicar uma decisão livre que verte sobre matérias atribuídas ao exercício das atividades
políticas stricto sensu ou da atividade legislativa, o resultado do referendo integra-se na
função política.
A doutrina maioritária considera o referendo vinculativo um ato político não
normativo. Contudo, pode-se comparar o resultado referendário de resposta positiva às leis
de autorização legislativa, já que existe um sentido normativo fixado ao ato legislativo
subsequente.
Blanco de Morais defende que o referendo tem caráter de “norma sobre normação”
(logo, normativo) é uma decisão-regra com conteúdo vinculativo, que ulteriormente se
torna objeto de lei ou convenção internacional, e que tal lhe atribui um alcance normativo.
Neste contexto, o referendo é um critério material de decisão, é um comando normativo
para os poderes públicos.
Uma crítica que tenta afastar o referendo da natureza normativa é o facto do seu
conteúdo ser excessivamente abstrato em termos de densidade reguladora, para poder ser
traduzido numa norma. A regência afasta este argumento ao dar o exemplo de princípios
normativos que se encontram no texto constitucional e que continua a ser normas.
Só podem ser objeto de referendo os atos com natureza de lei ou convenção – ficam
excluídos atos políticos, atos e normas administrativas, e atos jurisdicionais.
O referendo só deve incidir sobre uma matéria para evitar que a resposta favorável
ou desfavorável a uma determinada questão, possa conduzir por arrastamento a uma
votação idêntica generalizada. O número de perguntas não deve exceder as três. As
questões devem ser objetivas, claras, e com resposta de sim ou não

Síntese procedimental:

Iniciativa: a iniciativa primária para a convocação de um referendo compete à


Assembleia da República e ao Governo, mediante resolução parlamentar ou resolução do
conselho de ministros.
O 115º/2 prevê uma iniciativa condicionada/ pré-iniciativa apresentada em sede
parlamentar, reconhecida a grupos de cidadãos eleitores – 75.000 é o nº mínimo. É
condicionada porque a iniciativa só se formaliza se não for rejeitada pela Assembleia da
República, fixando a Lei do Referendo os termos e prazos de apresentação e apreciação
parlamentar. Trata-se de um instituto de petição atípico, uma vez que a iniciativa se
processa perante a assembleia e não perante o PR.
O facto da Assembleia poder negar a iniciativa é uma forma de filtro que o sistema
encontrou, para evitar iniciativas populares indesejáveis pela classe política, o que contribui
para a falta de representatividade do sistema político. A regência admite que numa futura
revisão, as iniciativas deviam diretamente ser remetidas ao PR.
O Presidente da República submete obrigatoriamente as propostas referendárias a
um controlo preventivo da constitucionalidade junto do T.C, nos 8 dias subsequentes à
publicação da proposta parlamentar ou governamental. O tribunal tem 25 dias para decidir.

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O PR tem toda a liberdade para convocar ou não, mediante decreto, um referendo


que lhe seja proposto. Este ato não está sujeito a referenda – artigo 140º. Em caso de recusa,
não se pode confirmar a proposta de referendo por confirmação parlamentar. As propostas
recusadas não podem ser renovadas na mesma sessão legislativa, salvo nova eleição da
Assembleia, ou demissão do Governo.
O PR dispõe de 20 dias após a declaração da não-inconstitucionalidade da proposta
para decidir se vai ou não convocar o referendo. Se decidir convocar, a realização do mesmo
dever-se-á realizar entre o 6º e o 9º dia após publicação do decreto presidencial.
A não fiscalização precedente por parte do Tribunal Constitucional da proposta, isto
é, a publicação do Decreto presidencial antes da pronunciação do T.C, constituiria uma
violação do artigo 115º/8 da CRP e dos artigos 226º e 34º da Lei Orgânica do Referendo.
No caso do referendo não ter efeito vinculativo (o número de votantes tem de ser superior
a metade dos eleitores inscritos no recenseamento), limita-se a e ter um efeito político
equivalente ao de consulta (não vinculativa). Esta consulta não deve, no entanto, ser
negligenciada, uma vez que se vontade do eleitorado funciona como fonte de legitimação e
deslegitimação das políticas públicas.
Uma resposta negativa a um referendo vinculativo apresenta-se como um comando
normativo no sentido negativo. O Presidente da República fica vedado à promulgação de
um ato que desrespeite o sentido negativo do ato referendário: interpretação analógica
feito do artigo 242º, que proíbe o PR de não promulgar atos com resposta positiva
vinculativa constitucionais.
Caso o PR promulgue violando a obrigação de não legislar, a lei é ilegal, nos termos do
112º/3 e do 281/1/b) da CRP.
No caso de resposta positiva ao referendo: artigo 241 da Lei Orgânica: a A.R ou o
Governo têm 90 ou 60 dias, respetivamente, para aprovar. O PR não pode recusar a
ratificação ou vetar o ato com fundamento na sua discordância em relação ao conteúdo da
norma, mas pode exercer o veto fundado numa discordância em relação a normas que não
resultem diretamente do sentido do referendo.
No caso dos órgãos não emitirem o ato legislativo ou a convenção internacional
dentro do prazo legal, há doutrina que defende a declaração de inconstitucionalidade por
omissão. A regência defende que como este artigo só se aplica a normas não exequíveis por
si próprias (artigo 283º), a apreciação neste sentido não valeria.
No caso dos órgãos políticos quererem aprovar um ato desconforme com a resposta
positiva do eleitorado: ou o fazem numa nova sessão legislativa, e nesse caso não haverá
qualquer obstáculo à sua validade; ou o tentam fazer na mesma sessão, e nesse caso,
estaremos perante uma violação do artigo 240º da Lei do Referendo (que estipula a
vinculatividade da resposta) – padece de ilegalidade.

As resoluções normativas

A CRP refere-se à figura de resolução como um ato da competência da Assembleia


da República e das assembleias legislativas das regiões, do nº1 do artº 199º, e no artigo 166º,
no respeitante a possíveis matérias que tomam esta forma.
A Constituição não determina um conteúdo específico para todas as resoluções:
sendo atos da função política, alguns deles revestem a natureza de atos políticos e outros

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de normas políticas atípicas. A Lei Fundamental parece consagrar as resoluções para


designar decisões que não revistam outro título ou legenda.
Um atributo comum a todas as resoluções é a de não se encontrarem sujeitas à
promulgação pelo Presidente da República.
As resoluções estudadas serão as normativas, emitidas ao abrigo da função política
em sentido estrito.

Regimentos

Os regimentos dos órgãos colegiais constituem normas estatuárias, ou seja, relativas


à organização e funcionamento dos mesmos centros de poder, podendo ainda dispor sobre
os direitos e deveres dos seus titulares.
Estas regras têm uma função subsidiária em face da Constituição e da lei, devendo
observar os seus dispostos, sob pena de serem julgadas inconstitucionais, ao abrigo do
artigo 281º/1/c) (são um complemento da Lei Fundamental e das restantes leis, no que toca
aos estatutos dos órgãos).
Os regimentos não assumem natureza legislativa, pois são aprovados sob a forma
de resoluções, ou da Assembleia ou do Conselho de Ministros.
As disposições regimentais, apesar do seu conteúdo essencialmente interno, podem
produzir efeitos de eficácia externa, como consequência da interdependência de poderes.
Neste sentido, os regimentos da Assembleia podem incidir no Governo, devido à
comparência de membros do Governo nas sessões do Parlamento, com direito ao uso da
palavra.
As regras regimentais são normas sobre normação, uma vez que contêm critérios de
decisão sobre o procedimento de produção de outras normas, sobre a sua revelação e sobre
a sua qualificação. No entanto, a CRP não lhes confere caráter vinculativo, como ato-
condição das reras editadas ao seu abrigo. Não é por isso possível atribuir-lhes valor
reforçado. A violação das regras regimentais por atos legislativos não prejudica a validade
destes, com fundamento em ilegalidade. As normas regimentais têm, neste sentido, uma
função meramente ordenadora.
Por outro lado, se a CRP dispõe certas matérias como reservadas aos regimentos, a
sua regulação por lei implica a constitucionalidade dessa mesma lei, por violação de normas
constitucionais que determinam a mesma reserva, nomeadamente a do artigo 160º/1,
alínea b).

Resoluções parlamentes incidentes sobre o conteúdo e sobre a eficácia de outros atos


normativos

Para cessação ou suspensão da eficácia de DL: assumem natureza normativa as


resoluções da Assembleia da República que determinam a cessação da vigência, ou a
suspensão, de decretos-leis e decretos legislativos regionais autorizados (salvo os que são
emitidos ao abrigo de competência exclusiva do Governo). Estas resoluções são aprovadas
no âmbito do instituto de apreciação parlamentar de atos legislativos emanados de outros

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órgãos, o qual reforça o controlo inter-orgânico exercido no âmbito da função política, mas
que garante o primado da Assembleia da República quanto ao exercício da função legislativa.
Estas resoluções fogem ao princípio da tipicidade da lei (112º/5), na medida em que
apesar de não revestirem a forma de lei, determinam a cessação de vigência de outros
legislativos ou a sua suspensão.
Ainda assim, estas resoluções não podem assumir o mesmo conteúdo material típico
da lei, nem pode fixar alterações aos atos legislativos, decorrendo do nº2 do artigo 169 que
essas alterações devam ser feitas sob forma de lei.
Resoluções que aprovam tratados: as resoluções da Assembleia da República que
aprovam tratados internacionais (166º/6) têm caráter normativo e encontram-se sujeitas a
fiscalização preventiva da constitucionalidade (278º/1).

Declaração dos estados de exceção:


Quando confrontados com a ameaça de lesão ou com a própria lesão dos bens
jurídicos mais essenciais do ordenamento estadual, o poder político pode, se a legalidade
ordinária se mostrar insuficiente para proteger esses mesmos valores, sacrificar
transitoriamente esses bens jurídicos (suspensão de direitos, liberdades e garantias), de
menor essencialidade.
O estado de sítio e de emergência confirmam estados de exceção numa legalidade
de crise, cujo regimento se encontra no art. 19º da Constituição.
As duas figuras distinguem-se: os pressupostos da declaração de estado de
emergência são de menor gravidade do que no estado sítio, pelo que a opção entre eles
deve respeitar o princípio da proporcionalidade; o estado de emergência só pode
determinar a suspensão de alguns dos direitos, liberdades e garantias; a declaração de
estado de sítio pode envolver a intervenção das Forças Armadas, o que não acontece com
o estado de emergência.
Compete ao Presidente da República a declaração dos estados de exceção (art. 134º,
alínea d)). No entanto, para que possa produzir efeitos, implica a concorrência de atos de
controlo de outros órgãos (parecer obrigatório, mas não vinculativo, do governo, art. 197º
e 138º; habilitação política da AR, que autoriza ou não a declaração do estado excecional
mediante resolução – art. 161º , alínea l) , conjugada com o nº5 do art. 166º e o nº1 do 138º;
referenda ministerial).
A declaração é uma norma atípica da função política stricto sensu devido:
• À natureza normativa do decreto presidencial;
• À essência não legislativa do decreto, já que o Chefe de Estado não legisla e o
decreto não se encontra incluído na reserva de lei, mas o seu conteúdo sobrepõe-
se às leis e a outras normas da função política;
• À natureza vinculada da referida norma à CRP e à lei do estado de sítio e estado de
emergência.
Como ato normativo, é suscetível de fiscalização sucessiva, concreta e abstrata da sua
constitucionalidade, nos termos do artigo 277º/1. Já a fiscalização da sua legalidade, por
não existir estado de sítio ou de emergência, não parece possível, na medida em que apenas
os atos legislativos (e o referendo) podem ser objeto de fiscalização da legalidade.

Normas da função administrativa: o regulamento

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A administração pública não limita a sua atividade à resolução de problemas


concretos inerentes à satisfação das necessidades coletivas que a sua função prossegue. Ela
supõe igualmente a edição de normas gerais e abstratas que, seja em execução de leis, seja
habilitada por estas, regulem as relações jurídicas administrativas e fundamentem a prática
de atos administrativos. Estas normas designam-se por regulamentos administrativos.
A lei não pode regular normativamente todos os domínios da vida coletiva, uma vez
que a sua politicidade não é, geralmente, compatível com a edição de regras não inovatórias
e puramente executivas; o procedimento legislativo é mais rígido e moroso do que o
procedimento para a edição de normas administrativas; existem domínios específicos de
reserva da administração, vedados a escalões mais intensos de densidade reguladora da lei.
O CPA (Código de Procedimento Administrativo) define os regulamentos como
normas jurídicas gerais e abstratas que, no exercício de poderes administrativos, visem
produzir efeitos externos.
• Elemento substancial: a generalidade e abstração permitem o reconhecimento, a
contrario sensu, de que há normas de direito público desprovidas dessas
características (como as leis-medida).
• Elemento funcional: “no exercício de poderes administrativos” – invocação dos
poderes funcionais que têm faculdade de produzir normas regulamentares.
• Atributo consequencial no âmbito da eficácia: só são regulamentos para efeitos de
aplicação do Código as normas administrativas sujeitas a publicação que tenham
eficácia intersubjetiva, e que não se esgotem no interior de uma pessoa coletiva (ou
seja, que não sejam regulamentos internos).

O regulamento administrativo deve respeitar, nos termos do art. 143º do CPA, a


Constituição, o Direito europeu e as convenções internacionais, a lei ordinária (princípio
da legalidade, o qual pressupõe uma precedência absoluta da norma legal – a norma
regulamentar deve ser habilitada e conforme a esta) e os princípios gerais do direito
administrativo, bem como outros regulamentos de hierarquia superior.

Sinopse sobre o parâmetro de legalidade dos regulamentos:


Quanto à limitação legal da densidade reguladora dos regulamentos e aos
pressupostos de aprovação, a ordem jurídica prevê a existência de:
• Regulamentos independentes – podem conter disciplinas tendencial ou
parcialmente inovatórias, em termos próximos das leis, carecendo da pré-existência
de uma lei que defina a competência objetiva ou subjetiva para a sua emissão. Estes
regulamentos devem assumir a forma de decreto regulamentar se forem aprovados
pelo Governo. Os regulamentos independentes devem, sob pena de
inconstitucionalidade formal, invocar a lei que define a competência para a sua
produção;
• Regulamentos autónomos – normas administrativas emitidas por órgãos integrados
na Administração autónoma, a qual tende a prosseguir interesses próprios, como as
autarquias, universidades e regiões com autonomia político-administrativa;
• Regulamentos de execução – dispõem de menor densidade reguladora e limitam-se
a complementar ou a concretizar normas legais. Os regulamentos de execução
devem, sob pena de inconstitucionalidade formal, invocar expressamente a lei que
complementam (art. 112º/7);
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É inconstitucional toda a norma legislativa que não define um regime jurídico e que
remeta para outro regulamento do Governo que não o decreto regulamentar (como as
portarias e os despachos normativos), a disciplina desse mesmo regime, limitando-se a
estabelecer a competência objetiva e subjetiva a emissão da norma correspondente.

Hierarquia dos regulamentos governamentais: o CPA estabelece: 1º Decretos


Regulamentares; 2º Resoluções Normativas do Conselho de Ministros; 3º Portarias; 4º
Despachos Normativos (regulamentos individuais emitidos por um ministério ou
secretariado).

O ordenamento jurídico português

Ordenamento jurídico- Sistema jurídico, conjunto de instituições ou autoridades e


decisores que são responsáveis pela produção, aplicação e interpretação e controlo dos atos
jurídicos. O ordenamento jurídico é composto por decisões jurídicas e decisores.
A conceção adotada pela Regência de ordenamento é a de sistema jurídico
autojustificado, porque fundado numa decisão política soberana e juridicamente
incondicionada, que produz a norma de referência do mesmo sistema. Para além da
influência que esta conceção recebe do positivismo existencialista, ela é igualmente
tributária do positivismo inclusivo e do positivismo sociológico da teoria aberta dos
sistemas.
Do decisionismo extrai-se a valorização do poder de autoridade como componente
do ordenamento, o caráter existencial, supremo e conformador da decisão constituinte
soberana, e a ideia de ordenamento jurídico como um complexo ordenado de decisores e
decisões. Do positivismo sociológico retira-se a ideia de comunicação aberta entre o
ordenamento e o sistema social, bem como de outros sistemas jurídicos culturais externos,
realidade incontornável na idade da comunicação. Finalmente, do positivismo integrador
ou inclusivo recolhe-se o protagonismo da Constituição como norma de referência do
ordenamento jurídico, a distinção entre moral e direito, e a possibilidade de a Constituição
poder incorporar e atribuir caráter jurídico a alguns cânones morais de natureza objetiva,
os quais podem constituir fatores exógenos de integração e interpretação da Lei
Fundamental.

A Lei No Ordenamento Português

A Teoria da Lei

A Lei no Constitucionalismo Liberal

Os modelos institucionais vigentes no constitucionalismo liberal compreenderam


dois sistemas monistas (Constituição de 1822 e 1911 – o Parlamento é o titular exclusivo da
aprovação das leis) e dois sistemas dualistas mitigados (Carta Constitucional de 1826 e
Constituição de 1838 - quer o Monarca quer o Parlamento são ramos do poder legislativo;
o monarca sanciona leis pois dispõe do veto absoluto).

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Estes modelos têm em comum a unidade formal da lei (o sistema constitucional


prevê uma única forma de lei); a noção material de ato legislativo, centrado no seu conteúdo
geral e abstrato; presença da noção de força de lei, como misto de supremacia relacional
(superioridade hierárquica da lei sobre o restante direito ordinário) e de imperatividade
(obrigatoriedade do comando legal para os destinatários), própria da influência dos
sistemas monistas.
No Estado Liberal, a generalidade e abstração serviam o princípio da igualdade, que
surgia como contraposto às leis singulares da monarquia absoluta, com a sua concessão de
privilégios ou onerações desigualitárias.
A Lei no Regime Corporativo

A aceção de lei, na Constituição de 1933, ostentava um sentido eclético, já que


juntava critérios formais e materiais, embora de pendor materialístico. Tal justifica-se pela
generalidade das leis aprovadas pela Assembleia Nacional, que se restringiam às bases
gerais e aos grandes princípios e careciam de complementação. As leis eram “todas as
disposições genéricas provenientes dos órgãos estaduais competentes”.
A jurisprudência dominante (Marcello Caetano) reconduziu à força de lei a uma
potência unitária, pautada pela superioridade hierárquica sobre os demais atos. Jorge
Miranda aludiu à variabilidade do poder revogatório das leis, nas suas relações recíprocas,
como consequência não apenas do valor hierárquico, mas de outros pressupostos
estruturantes, como a especialidade, as exigências de forma e a competência.

A Lei Na Ordem Constitucional de 1976

• A reserva de lei em sentido horizontal e vertical

Apesar de não definir explicitamente a noção de lei, a Constituição da República


Portuguesa de 1976 avança com critérios positivos e negativos para a sua caracterização.
Toda a doutrina convergiu na edificação de um sentido eclético de ato legislativo, tendo
os jusprivatistas privilegiando a sua vertente material e os juspublicistas a sua dimensão
formal.
O que mais gera discussão é saber se os atos individuais e concretos, ou gerais e
concretos, que são aprovados com forma de lei, assumem efetiva natureza legislativa. É
importante verificar se a Constituição autoriza a lei a assumir qualquer conteúdo ou lhe
impõe necessariamente um conteúdo geral e abstrato.
Poderá o legislador emprestar às leis por si editadas o conteúdo que considerar mais
conveniente, mesmo se este consistir num ato individual e concreto, de aplicação de outras
leis? Uma resposta positiva a esta pergunta significaria permitir que o legislador se
apropriasse das funções naturalmente confiadas à Administração.
Uma vez que a CRP prevê que a Assembleia detenha a competência genérica para fazer
leis sobre todas as matérias, salvo as reservadas ao Governo, e podendo este último legislar
em todos os domínios reservados ao Parlamento, verificamos que não se encontram
matérias subtraídas à lei. Existe uma reserva total de lei em sentido horizontal, ou seja, a
lei pode dispor sobre todas as matérias sem exceção.
No plano vertical, importa perceber se esta densidade reguladora, ou seja, o grau de
detalha da lei, poderá ser de tal modo intenso que implique a expropriação por via legal do

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domínio confiado constitucionalmente à autonomia privada, à atividade administrativa e


jurisdicional. Este problema é de importante consideração, numa altura em que a lei parece
penetrar todos os ambientes da existência humana.
O TC fez revelar a existência de domínios da autonomia privada garantidos contra
excessos de intromissão da lei no plano vertical. A lei não pode ser densa ao ponto de
esvaziar os direitos reconhecidos aos privados.
No que respeita à tensão entre função administrativa e legislativa, está em causa aferir
o grau de legitimação dos atos de poder legislativo, como atividade jurídico-pública
dominante, para preocupar o domínio material administrativo.
A jurisprudência converge na seguinte ideia: o princípio de separação de poderes veda
à lei a faculdade de absorver integralmente, no plano vertical, o universo material útil
correspondente ao exercício da função administrativa. Até o Tribunal Constitucional, que há
muito adota uma conceção marcadamente expansiva em favor do poder da lei em proceder
à anexação de tarefas normalmente cometidas à administração, admite a existência de um
núcleo desta, imune a apropriações abusivas por parte do poder legislativo. Fá-lo, todavia,
ao delimitar as competências entre o Parlamento e o Governo, e não na densidade como o
Governo pode legislar, quando dispõe simultaneamente de competências legislativas e
administrativas.
A haver âmbitos materiais reservados à função administrativa, tal implicará que uma lei
formal que ofenda ou se aproprie do núcleo dessa função seja tida por inconstitucional, por
ofensa ao princípio da separação de poderes.
A quase generalidade dos autores não se opõe à validade do que designam por atos
administrativos praticados sob forma de lei, contanto que simultaneamente sejam
sindicáveis junto da jurisdição administrativa.

Síntese sobre a problemática do conceito e do conteúdo da lei

Os critérios constitucionais implícitos na definição de lei favorecem a tesa que a


caracteriza em razão da sua forma, conteúdo político e força geral. A Constituição identifica
taxativamente a lei na base de uma tipificação forma (artigo 112º/1), hierárquica (112º/5)
e apenas impõe, cumulativamente, exigências de generalidade ou de abstração ao seu
conteúdo, a um número circunscrito de leis. Neste sentido, a caracterização da lei que é
proposta pela Regência funda-se em critérios de ordem positiva e estrutural.

Quanto ao conteúdo político:


• A deliberação da lei é sempre precedida por um critério político de decisão (a
atividade legislativa é uma subvariante da política).

Quanto à forma:
• O princípio da tipicidade das formas da lei, no artigo 112º, determina a inexistência
de atos legislativos fora dos três tipos específicos previstos (Lei, Decreto-Lei e
decreto legislativo regional).

Quanto à força:
• A força geral de lei resulta do nexo causal entre a superioridade hierárquica da lei
sobre as demais normas de natureza não política. Trata-se de um potência de valor,

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que se estriba quer no princípio da legalidade, o qual supra-ordena os atos da função


legislativa face aos demais (artigo 203º e 266º/2), e no princípio da tipicidade da lei
que proíbe a suspensão, alteração, integração ou revogação desta por outros atos
normativos de distinta natureza (112º/5).

Conclusão quanto à noção de ato legislativo: todo o critério político de decisão produzido
e revelado sob a forma de lei pelos órgãos titulares da função legislativa e que exprime uma
relação de supremacia sobre as demais normas internas e infraconstitucionais, desprovidas
de natureza política.
Quanto ao conteúdo da lei, a constituição não coloca barreiras ao conteúdo – o
legislador pode debruçar-se sobre aquilo que julgar oportuno, salvo se a CRP impuser a leis
que incidam sobre certos domínios exigências de generalidade e abstração, ou se a CRP
consagrar domínios de reserva total para a Administração Pública, que vedem a intromissão
vertical dos atos legislativos no núcleo da atividade regulamentar.

A Reserva de Lei

Noção de reserva em sentido amplo: corresponde a um domínio material necessário


de legalidade, o qual implica uma prioridade exclusiva de regulação primária de matérias
previstas na Constituição. A norma legal deve ser inovadora e razoavelmente densa/com
razoável pormenor; supremacia da lei sobre o regulamento, o qual deve ser interpretado de
acordo com a lei; interdição de deslegalizações na esfera das matérias que a Constituição
atribui à lei.
A reserva de lei funda-se no princípio da separação de poderes.

Tipicidade da lei:
A forma e a força baseiam-se no artigo 112º e no princípio de tipicidade da lei. Deste
preceito decorre que: a fonte da lei decorre da Constituição; a lei decompõe-se em três
formas específicas; a lei não pode ser objeto de interpretação, integração, modificação,
suspensão ou revogação com eficácia externa por atos não legislativos, nem que ela própria
o autorize. Posto isto, um regulamento não pode alargar o âmbito de aplicação de uma lei.
Foi também com base neste princípio que se procedeu à revogação dos assentos.
Nenhuma lei, DL ou DLR pode criar outras formas e categorias de atos legislativos –
só a CRP o pode fazer.

Pressupostos da admissibilidade da deslegalização:


A deslegalização consiste numa operação determinada pela lei, através da qual esta
confere natureza regulamentar a normas que precedentemente revistam forma e valor legal.
Existem formas de deslegalização claramente inconstitucionais. É o caso das leis que
desgraduam alguns dos seus preceitos, ou preceitos de outras leis, conferindo-lhes natureza
regulamentar, pese o facto das mesmas incidirem sobre matérias que a Constituição comete
à reserva de lei (não é possível regulamentar a matéria dos direitos, liberdades e garantias,
por exemplo). O mesmo acontece quando a lei permite, sem mais, a sua revogação ou
modificação por regulamentos, situação que viola o 112º/5, ou ainda o cenário em que uma
lei deslegaliza uma matéria, mas limita-se a conferir a sua regulação a um regulamento de

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execução, como uma portaria, quando a sua emissão reclamaria a forma de decreto
regulamentar.
No plano regional, os estatutos desempenham um papel importante como normas
legais distribuidoras de tarefas no seio da região. Como tal, um DLR que revogue um regime
inovador que esteja noutro DLR e remeter para uma norma regulamentar, operará uma
deslegalização ilegítima por violação do artigo 228/1, caso a matéria seja reservada aos DLR.
Fora da reserva de lei, um ato legislativo pode desgraduar algumas das suas normas
para um nível regulamentar, ou remeter para um regulamento administrativo.

O caráter taxativo da tricotomia das formas específicas de lei:

O nº1 do 112º da CRP enuncia as três formas específicas de lei ordinária previstas na
ordem jurídica constitucional: a lei, o decreto-lei, e o decreto legislativo regional. Trata-se
de uma enumeração taxativa – quando a Constituição se refere a uma classe de ato
legislativo como “leis orgânicas”, “leis de base”, entre outras, elas não classificam novas
formas específicas de lei, reportando-se antes a categoriais legais que se se reconduzem às
formas prevista pelo artigo 112º.

Relações entre categorias de leis do ordenamento português

• Necessidade de o operador jurisdicional solucionar antinomias entre normas.

situações reais ou aparentes de desconformidade entre o conteúdo de atos legislativos,


quando os mesmos prosseguem um fim comum, mas se contradizem.

Nem sempre a resolução de um conflito entre leis pode ser resolvida com base na
hierarquia material, de competência ou de procedimento agravado, mas sim atendendo a
juízos de ponderação, a partir de princípios constitucionais reitores do Estado de Direito
democrático e unitário. Neste sentido, poderá ser possível, em tese, que uma lei não seja
considerada inconstitucional, mesmo revogando uma lei de caráter reforçada, por vir repor
condições indispensáveis para a salvaguarda do mínimo existencial no plano de prestações
sociais. Isto cria o risco de gerar o desrespeito pela vontade do decisor democrático, na
medida em que permite distorcer ou desaplicar o direito decidido com base nas pré-
compreensões políticas e filosóficas do intérprete jurisdicional. Mostra-se também
incompatível com o princípio da segurança jurídica.
Por estes motivos, antes de examinar a validade material de uma regra à luz dos
princípios constitucionais de recorte axiológico (os princípios permitem aferir o sentido
indeterminado de certas regras, ou abrir normas fechadas), deve saber-se se a norma em
questão tem ou não condições lógicas, teleológicas, ou orgânico-formais, para ser
convocada.
Os critérios estruturantes das relações entre leis devem ter precedência aplicativa
sobre os princípios constitucionais de ordem substancial. Antes de se fiscalizar a
constitucionalidade da lei no plano material (no sentido de proporcionalidade e respeito
pela dignidade humana), há que aferir se a mesma é formalmente eficaz.

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As antinomias podem ser classificadas como:

• Aparentes – quando são solucionadas através de critérios objetivos de ordem lógica,


imediatamente aplicáveis. Ex: princípio da cronologia para as revogações;
• Perfeitas ou próprias – quando a colisão entre leis não contraria a Constituição (ex:
revogações tácitas, prevalência da lei especial) ou imperfeitas ou impróprias,
quando a colisão é inválida e resulta em violações de reservas de competência, de
procedimento, entre outros aspetos vinculativos pela Constituição.
• Totais – a colisão envolve integralmente dois preceitos normativos; parciais, quando
se restringe a parcelas desses preceitos.
A objetivação do processo de solução de antonímias impõe um pensamento dogmático
que intenta reduzir a problemática dos cenários de colisão.

Os critérios podem ser lógicos ou teleológicos. Os critérios lógicos emergem em


qualquer ordenamento democrático-pluralista, independentemente da sua
constitucionalização explícita, dado que são condições imanentes da sua coerência, unidade
e vocação de completude. Os princípios teleológicos resultam de uma opção específica de
programação de política constitucional para a estruturação das relações entre leis num
Estado em concreto (logo a sua incidência varia de ordenamento para ordenamento). A sua
consagração depende da arquitetura do sistema político de governo, da divisão de tarefas
entre órgão, e do modelo de organização territorial.

Critérios lógicos

a. Critério da cronologia – o princípio cronológico encontra-se previsto nos nº1 e 2 do


Código Civil, e funda-se essencialmente na inesgotabilidade da função legislativa e na
renovação desse direito. O legislador pode legislar a todo o tempo: a manifestação mais
recente da sua vontade deve prevalecer sobre a anterior.
Pressupostos da aplicação deste critério: existência de uma sucessão cronológica entre
duas leis; existência de um conteúdo isomórfico (identidade de fim), e isométrico
(identidade de âmbito de aplicação), de duas leis em tensão; existência, na lei nova, de uma
intenção revogatória, mesmo que tácita.
O princípio da cronologia é de caráter supletivo em face dos demais, não se aplicando
quando em contraste com os princípios teleológicos.

b. Princípio da especialidade – quando duas leis de densidade ou extensão distinta


regularem de modo diverso a mesma situação de facto, o ordenamento concede
prevalência à previsão menos ampla (lei especial) sobre a mais ampla (lei geral).
Deve existir uma relação de cabimento de uma proposição legal menos extensa no âmbito
da mais extensa. A lei especial envolverá um regime normativo parcial, relativamente a uma
dada disciplina legal que é horizontalmente mais extensa, incidindo limitadamente em
relação a esta, num determinado setor, para o qual determina uma normação própria. A lei
especial fixa um regime particular, e concretiza algo previsto ou suscetível de previsão na lei
ampla. A “lex specialis” exprime uma vontade particularizadora que procura afastar um
setor da “facti-species”, em relação à aplicabilidade de uma disciplina mais abrangente.

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Segundo o professor Blanco, a exceção pode ser considerada uma especialidade qualificada,
pois implica que o regime particular determine uma solução não apenas diversa, mas
contrária à do regime geral. o efeito de aplicação preferencial de uma lei especial, ou
excecional sobre a lei geral, será o mesmo.
A prevalência da lei especial justifica-se pela natureza de um Estado de direito. Na realidade,
a coerência do ordenamento jurídico impõe que não se deixe espaço imediato para uma
dupla valoração da mesma realidade, sendo dada prioridade à disciplina singular, já que a
mesma atende às particularidades próprias da situação de facto por ela regulada. Visa
também a justiça, tratando de forma diferente aquilo que o é. O princípio da especialidade
prevalece sobre o da cronologia, mas cede perante os critérios teleológicos.
Artigo 7º do Código Civil – a lei especial prevalece tanto sobre a lei geral anterior como
posterior, salvo a existência de uma intenção inequívoca manifestada pelo legislador, no
sentido de ser conferida uma prevalência revogatória à regra posterior de caráter geral. a
lei especial não revoga a lei antecedente, mas antes desaplica ou bloqueia, durante a sua
vigência, a eficácia de normas da primeira, que consagrem um regime diferente da segunda.

Critérios teleológicos

a. Princípio da hierarquia
Este princípio tem vindo a experimentar algumas transformações nos estados
plurilegislativos, ligadas à divisão de tarefas entre órgãos e as respetivas leis, e que levaram
à criação de diferentes espécies de hierarquia que geram efeitos jurídicos diferenciados,
entre normas subordinantes e subordinadas.
Hierarquia formal – traduz-se na aptidão de uma lei, reconhecida pelo ordenamento como
detendo um grau superior, conseguir revogar ou condicionar a validade de outras leis de
grau inferior, sem que o inverso possa suceder. Esta posição de superioridade justifica-se
pela tese da norma de reconhecimento” - a superioridade hierárquica dessa lei tem de ser
reconhecida pela Constituição. Trata-se de uma construção compatível com o princípio da
tipicidade da lei, presente no artigo 112º/5, que faz radicar na CRP a capacidade para
determinar a força dos diversos atos legislativos ordinários.
Os Estatutos político-administrativos de autonomia regional constituem a única sub-
categorial legal ordinária de hierarquia formal superior às restantes, já que a Constituição
os destaca (281º/1/alínea c e d), como parâmetro material vinculante e padrão de controlo
da legalidade de todas as restantes categorias normativas, tornando a validade da norma
estatuária apenas tributária da mesma CRP. Ou seja, o seu conteúdo não pode ser ilegal por
entrar em colisão com outras leis reforçadas – ele próprio é a única lei reforçada dotada de
hierarquia superior.
Hierarquia material – faculdade de vincular o conteúdo de outras leis, que com elas devem
coexistir numa posição subordinada (legislação-objeto). Em contraste com a hierarquia
formal, a hierarquia material costuma ser parcial, já que a supremacia da lei subordinante
se exprime, fundamentalmente, no condicionamento por certas leis-parâmetro, do
conteúdo de categorias específicas de certos atos legislativos, que às primeiras se
encontram subordinados.
Esta matéria prende-se com a força específica de lei, ou seja, com a competência atribuída
a certas leis em face de outras, na medida em que não podem ser por elas revogadas. Esta
diferenciação resulta da própria estrutura e do desenvolvimento dinâmico do sistema. Por

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um lado, tem-se convertido o sistema português em plurilegislativo, com a criação das


regiões autónomas. Deste modo, a unidade do Estado manifesta-se através de leis gerais
(as leis gerais da República). Por outro lado, prevendo a Constituição subtipos de leis
(orçamentais, autorização, bases), torna-se indispensável assegurar a prossecução dos
respetivos fins, não os deixando subverter por leis de diferentes características. A
prevalência material situa-se no cenário típico de duas leis coexistentes dentro da mesma
matéria, em que um dos atos legislativos goza de um “status” normativo de proeminência
sobre o outro, vinculando positiva ou negativamente o seu conteúdo. Nenhuma lei detém
em si mesma uma maior ou menor força, tudo se reconduz às relações entre os atos
legislativos. A mesma lei pode ser subordinante e subordinada. Assim sendo, a prevalência
material ocorre em três quadros de concorrência, previstos no ordenamento jurídico
português:
a) Concorrência complementar – leis de base/leis de enquadramento, de um lado, e
atos legislativos de desenvolvimento e concretização, de outro;
b) Concorrência derivada, que integra a relação entre uma lei de autorização
parlamentar e os atos legislativos autorizados, que a mesma habilita e condiciona,
mas que podem nos limites da autorização, revogar normas legislativas previamente
emitidas pelo poder delegante; a lei de autorização pode ser revogada por nova lei,
emanada pelo órgão competente, ou a Assembleia pode legislar sobre a matéria que
havia previsto na lei de autorização, revogando assim tacitamente a mesma.
c) Concorrência alternada, no âmbito da qual leis de base ou de enquadramento
vinculam o conteúdo de diplomas legais que as invoquem como referência, não se
encontrando toda a matéria envolvida nessa relação de atribuição de competências.

Na chamada “concorrência paralela” entre os órgãos de soberania e as regiões, verifica-se


que depois da extinção das leis gerais da república em 2004, deixou de subsistir uma
incidência da hierarquia material dos princípios fundamentais destas leis sobre os diplomas
legais das regiões. Adota-se a expressão “paralela” dado que, na mesma matéria, leis
estaduais e regionais correm por dois binários materiais potencialmente reservados a dois
entes territoriais, binários esses que se caracterizam por um paralelismo assimétrico e por
vezes incerto, de densidades reguladoras. É possível ter a vigorar uma L ou DL para todo país
menos para as RA, caso haja um DLR a vigorar para esses territórios.

b. Princípio da competência

Justifica a atribuição a um determinado órgão, com possível exclusão dos demais, o


poder de editar atos legislativos em relação a uma matéria e, se for caso disso, num espaço
territorial determinado e num prazo devido. Este princípio repousa no da separação de
poderes e no quadro de divisão de tarefas. A competência abarca elementos de caráter
formal e material:
i) Elementos formais – órgãos de poder e as legendas ou títulos legislativos que
chancelam as normas aprovadas pelos mesmos órgãos;
ii) Elementos substanciais – titularidade do poder de legislar; reserva material onde
o referido poder incide; âmbito territorial e eventualmente temporal da sua
incidência normativa.

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A titularidade prende-se com um poder específico que habilita o órgão para, em


nome próprio, exercer a função legislativa. Esta pode, por isso, assumir duas
modalidades: primária e sub-primária. Por titularidade primária entende-se o órgão
constitucionalmente previsto para editar atos legislativo, de conteúdo inovatório, sob
determinadas matérias. A Assembleia é o órgão que detém esta titularidade. A
titularidade competencial sub-primária determina que o órgão que dela seja portador
deva uma necessária observância a limites paramétricos fixados por certas leis
interpostas entre a Constituição e as normas legais editadas ao abrigo desse poder. Em
termos práticos, o Governo pode ser autorizado a legislar, mas tem de respeitar a lei de
autorização.
Existe ainda um efeito secundário e eventual do princípio da competência,
articulado com o da cronologia, o qual pressupõe fenómenos de tensão constitutiva
entre atos legislativos. Trata-se do caso de autorizações legislativas em que o diploma
autorizado emitido pelo Governo como órgão eventualmente competente revoga um
conjunto de legislação precedente da assembleia da república, podendo, por ser turno,
o diploma autorizado ser revogado pelo órgão competente, num quadro de avocação
de poderes.
Só a Constituição pode delimitar as competências legislativas. A lei ordinária não o
pode fazer. Por outro lado, é possível retirar competências implícitas na Lei
Fundamental, contando que não se verifique uma apropriação do núcleo de
competência reconhecido a outro.
Ao órgão que tem a reserva do poder legislativo, está interdita a possibilidade de
legislar de forma incompleta, indeterminada ou imprecisa, de forma a subverter a
relação de competências.
O poder legislativo delegado pela assembleia não pode ser subdelegado nas regiões
legislativas regionais. A Assembleia não pode renunciar às suas competências,
transferindo-as para outros órgãos.
Se as normas constitucionais atributivas de competências legislativas a um órgão
forem objeto de revisão constitucional, tal facto não afetará a validade das leis
produzidas ao abrigo do direito constitucional antigo, valendo o efeito da revisão apenas
para o futuro. Trata-se de uma imposição do princípio de segurança jurídica, bem como
do critério do respeito pelo mandato democrático do legislador ao tempo de aprovação
dessas leis. Os atos que foram praticados por um órgão que era competente naquela
altura, não deixam de ser válidos porque o órgão deixou de ser competente.
Um órgão só pode limitar o exercício da competência legislativa nos termos estrito
da CRP. Nem a Assembleia pode fixar, numa lei de autorização legislativa, limites ao
diploma autorizada tão estritos e detalhados que retirem o sentido útil ao mesmo, mas
também não pode restringir-se a uma enunciação demasiado generalizada (caso das
“autorizações em branco”) e que redundam numa inconstitucionalidade fundada no
desvio do poder.

c. Princípio do procedimento agravado – a essencialidade política da matéria coberta


pela reserva justifica que a Constituição lhe tente incutir o mais elevado grau de
exclusividade. A tramitação agravada visa produzir uma decisão que é política e
normativamente mais intensa do que a comum, reclamando consensos mais alargados, que
tornarão mais complexa a criação, revogação e alteração das normas correspondentes.

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As leis orgânicas, que disciplinam matérias às quais se reconhece uma importância


paraconstitucional e que são aprovadas por maioria absoluta dos deputados efetivos,
constituem a categoria legal típica de lei regida pelo princípio do procedimento agravado.
As leis com procedimento agravado podem, no respeito pelo princípio da hierarquia formal
e da competência, revogar ou alterar leis de caráter comum, mas não podem conferir ou
transmitir rigidez às normas legais simples. daí que se considere inconstitucional que leis
portadoras de maior rigidez em razão do procedimento incorporem de forma silente normas
respeitantes a matérias que se integram no domínio legislativo ordinário simples.

O princípio da competência prevalece sobre os demais. O critério hierárquico


prevalece sobre os critérios lógicos e completa o da competência. O critério do
procedimento agravado promove relações de separação ou lateralidade entre categorias
legais atribuídos à competência do mesmo órgão. É pois um critério complementar em
relação aos princípios da hierarquia e da competência. Os critérios lógicos são de natureza
supletiva face aos teleológicos, ocupando o da cronologia a última posição.

Atributos do princípio da competência no subsistema legislativo português

d. Reserva da constituição na delimitação de competências legislativas – os poderes


derivam da Lei Constitucional, não podendo ser definidos por lei ordinária (artigo
110º/2). Contudo, a partir de um enunciado material fixado na Constituição, é
possível retirar poderes ou competências implícitas.
e. Consumpção de uma reserva de densificação total – o órgão autorizado deve
esgotar a reserva com uma disciplina legal. Não pode limitar-se a enunciados
incompletos, indeterminados, ou imprecisos, de modo a que outro órgão venha
completar os mesmos através de uma disciplina legislativa inovadora, a qual lhe será
vedada pela própria natureza da reserva.
f. Taxatividade constitucional das delegações legislativas – as autorizações legislativas
dependem de uma habilitação constitucional. Desse modo, os órgãos autorizados
não podem subdelegar o poder de legislar. Tão pouco pode a Assembleia da
República renunciar às suas competências legislativas, transferindo-as para outros
órgãos.
g. Tempus regit actum – se as normas atributivas de competências legislativas forem
objeto de revisão constitucional, tal facto não afetará a validade das leis produzidas
ao abrigo desse mesmo órgão até então. O efeito da revisão valerá apenas para o
futuro, por respeito ao princípio de segurança jurídica, e do respeito pelo mandato
democrático do legislador ao tempo de aprovação das leis.
h. Restrições ao regime de fixação dos limites à atividade legislativa – a Assembleia da
República não pode fixar numa lei de autorização legislativa limites ao diploma
autorizado tão estritos e detalhados que retirem o sentido útil ao diploma
autorizado ou removam a discricionariedade legislativa do Governo ou das ALR. Por
outro lado, também não pode ser demasiado genérica (caso das “autorizações em
branco”).
As normas de base também não podem ser tão detalhadas ao ponto de negarem a
sua própria natureza de normas incompletas de essência paramétrica, frustrando
desse modo o desenvolvimento por outros atos legislativos.

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43 Direito Constitucional II Inês Bastos 2017/2018 Senhor Professor Doutor Carlos Blanco de Morais

i. Incidência supletiva do princípio da subsidiariedade- completa a operatividade do


princípio da competência (artigo 6º/1), nomeadamente nas relações de
concorrência legislativa paralela entre Estado-Pessoa e regiões autónomas – dá-se
preferência aos poderes mais próximos dos cidadãos.

c. Princípio do procedimento agravado

Este critério justifica o regime jurídico traduzido por uma maior ou menor rigidez, como
consequência da associação entre uma reserva de competência exclusiva de ato legislativo
e um trâmite de produção especializado e agravado pela Constituição.
As leis ordinárias rígidas constituem um modo de limitação da vontade do legislador em
matérias mais sensíveis.
Todas as leis com valor reforçado ditado pelo procedimento especial são um produto
exclusivo do poder parlamentar, integrando-se toda a reserva na competência da
Assembleia da República e nas assembleias legislativas regionais. A força acrescida da lei
como consequência do procedimento agravado só pode decorrer de uma consagração
constitucional correspondente.
Ao contrário do que acontece com as leis-parâmetro, as leis procedimentalmente
reforçadas podem ou não, esgotar a integridade de uma reserva, havendo subespécies que
o fazem (maioria das leis orgânicas) e outras que se limitam a disciplinar um domínio
reforçado coexistente com o de outras leis.
A rigidez gerada pelo procedimento agravado visa impedir outras leis, desprovidas do
mesmo conteúdo e produzidas pelo mesmo órgão parlamentar, de revogarem os atos
reforçados.
A infração de lei de valor reforçado envolve inconstitucionalidade, mas trata-se de uma
inconstitucionalidade indireta, tal como a contradição entre lei interna e tratado ou entre
regulamento e lei. a lei contrária à lei de valor reforçado vem a ser inconstitucional, não
porque ofende uma norma constitucional, mas porque agride uma norma interposta
constitucionalmente garantida.
E, precisamente, o critério para se reconhecer se uma lei é reforçada ou não, está em
saber se se verifica ou não tal ocorrência: se a inconstitucionalidade surge imediatamente
ou como consequência da ilegalidade prevista nos artigos 280º, 281º e 282º.

Leis orgânicas e leis reforçadas:

Dir-se-ia haver uma correspondência estreita entre leis orgânicas e leis de valor
reforçado, nomeadamente porque as leis orgânicas são qualificadas pela CRP como leis de
valor reforçado. A par dela poder-se-ia apontar os estatutos regionais, nos artigos 280º e
281º. No entanto, tal linha de pensamento não é correta.
As leis reforçadas reportam-se fundamentalmente a cinco espécies diferentes: as
leis de enquadramento, as leis orçamentais, de autorização legislativa, de bases e os
estatutos político-administrativos das regiões autónomas.
Crítica da regência à noção de lei reforçada (noção: leis com valor reforçado são os
atos legislativos que nos termos da Constituição, devem ser respeitados por outras leis,
constituindo o sistema de fiscalização da legalidade) – redundância e descaracterização dos
diferentes tipos de lei com valor reforçado. A definição de lei não pode, tendo esta noção

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em mente, ser operada sem o apelo ao conceito de controlo de legalidade, e o controlo de


legalidade não pode ser definido sem a convocação da categoria de lei com valor reforçado.
A lei reforçada nasce para ser respeitada por outras leis, sob pena de ilegalidade das mesmas.
A ilegalidade surge para se firmar como relação desvalor que atinge os atos que violam.
Estamos perante uma conceção da lei reforçada que permitiu soluções absurdas –
hiperinflação de leis reforçadas.
Segundo Blanco, há que pautar por uma eliminação do controlo da legalidade e
com ele a recondução da noção de lei reforçada ao conceito tradicional, de lei rigidificada
em razão do procedimento agravado.
Gomes Canotilho e Vital Moreira incluem entre as leis reforçadas as leis instituidoras
de direitos fundamentais análogos aos direitos, liberdades e garantias, constitucionalmente
previstos, visto que esses direitos gozam de um privilégio de proibição de retrocesso. Jorge
Miranda contraria esta tese: a inderrogabilidade dos direitos não significa que os mesmos
revistam o papel de lei reforçada, uma vez que a lei reforçada pode ser sempre derrogada
por lei de igual natureza.
Jaime Valle escreve que os decretos-leis produzidos ao abrigo de autorizações
legislativas gozam de uma força superior à dos demais decretos-leis, porque podem atingir
leis da Assembleia da República e só podem ser modificados ou revogados por lei ou por
outro DL autorizado. Jorge Miranda contra-argumenta que, assim sendo, todas as leis de
reserva absoluta da Assembleia da República gozariam de uma força jurídica superior. O
problema não se trata de supremacia, mas de distribuição de competências.
O denominador comum de todas as leis reforçadas é a sua maior consistência, a
específica forma formal indesligável da função material que a Constituição lhes assina. Não
existe relação de hierarquia entre leis reforçadas.
A qualificação de lei como reforçada não depende de uma mera designação por
parte do legislador, mas sim da verificação de requisitos constitucionalmente fixados,
quanto ao conteúdo e ao procedimento. Deste modo, se um decreto não satisfizer os
requisitos, ainda que use o nomen juris, valerá como lei comum, eventualmente
inconstitucional ou ilegal por desconformidade com a CRP ou com lei reforçada.
O exemplo específico será o dos estatutos jurídico-administrativos das regiões
autónomas. O estatuto não é uma constituição, com amplitude potencialmente ilimitada.
Cabe-lhe definir o âmbito de poderes de autonomia, mas não regular matérias nesse âmbito.
Assegurar um sistema político regional, mas não substituir-se-lhe ou aos órgãos de
soberania. Se o estatuto pudesse abarcar qualquer matéria, ficava limitado o poder de
iniciativa dos deputados, dos grupos parlamentares, dos grupos de cidadãos ou do próprio
Governo da República.
Se um estatuto contiver normas sobre matérias que não as atinentes às atribuições
e aos órgãos, essas normas não adquirirão a força jurídica específica das normas estatuárias.
Por conseguinte, poderão ser modificadas ou revogadas, ou consideradas inconstitucionais,
por invadirem domínios de outras leis.
O procedimento de uma lei reforçada deve ser não só agravado como também
especial. O procedimento especial representa sempre um desvio em relação ao
procedimento que a Constituição fixa como principal, para efeitos da legislação comum. Um
procedimento especial é agravado se inserir exigências que limitam a livre vontade do
legislador.

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A tramitação agravada visa produzir uma decisão que é politicamente e


normativamente mais intensa do que a comum, e por isso pressupõe muitas vezes
consensos entre as diversas forças políticas representadas na Assembleia.
As leis orgânicas, que disciplinam matérias às quais se reconhece uma essência
paraconstitucional e que são aprovadas por maioria absoluta dos deputados efetivos
(denominador comum), constituem a categoria legal mais típica das leis regidas pelo
princípio do procedimento agravada.
As leis orgânicas podem revogar ou alterar leis de caráter comum, mas não podem,
em caso de modificação, conferir rigidez que lhes é própria às normas legais simples, a cuja
alteração procedem.
Assim, são inconstitucionais os casos em que as leis de procedimento rígido
incorporem de forma silente normas respeitantes a matérias que se integram no domínio
legislativo ordinário simples.

O procedimento legislativo parlamentar

Noção: sucessão encadeada de atos ou fases tidos como juridicamente necessários


para a produção e revelação de uma norma legal, por parte de um dos órgãos competentes
para o efeito.
O procedimento legislativo pode assumir a natureza de procedimento comum ou de
procedimento especial. O primeiro consiste na tramitação-regra atribuída à formação dos
atos típicos de uma forma legal fixada pela Constituição e por normas regimentais – artigos
167º e 168º da CRP. Já os procedimentos especiais são os que supõe a adoção de trâmites
dotados de elementos diferenciados em relação ao comum.
Os elementos diferenciados podem consistir: num “quid minus” – eliminação de
trâmites, formalidades e encurtamento dos prazos comuns; num “quid pluris” – que predica
a adição de diversos trâmites suplementares ao procedimento comum, os quais se podem
traduzir nos procedimentos agravados ou em especialidades adicionais de produção.
O processo legislativo consiste em cinco fases. A saber:

I. Iniciativa legislativa

Momento de instauração, iniciação ou propulsão do procedimento, mediante a


apresentação de um projeto ou proposta de lei, tendo em vista a sua discussão e eventual
aprovação como ato legislativo.
De acordo com o Regimento da Assembleia da República (RAR), a apresentação de um
ato de iniciativa legislativa não supõe nenhuma garantia efetiva da sua anterior discussão
ou aprovação. Isto porque o presidente da Assembleia da República pode rejeitar ou
indeferir projetos ou propostas de lei que enfermem de inconstitucionalidades evidentes ou
que ostentem vícios formais que impeçam a sua admissão (artsº 120º e 123º da RAR; 125º).
Competência e iniciativa legislativa não são sinónimos. A competência é um
pressuposto do ato legislativo, que consiste no poder de aprovar uma norma legal, em razão
da matéria, do território e do tempo. A iniciativa consiste, diversamente, num estádio
integrativo da componente formal do ato legislativo, respeitante ao procedimento
produtivo, destacando-se como fase inicial.

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Os sujeitos a quem é atribuído o poder de iniciativa não são necessariamente os


mesmos que intervêm no exercício da competência para aprovação de leis.
Fala-se numa iniciativa legislativa interna quando são os Deputados e os grupos
parlamentares a exercer a mesma sob a forma de projeto-lei (nº1 do artigo 167º da CRP).
Por outro lado, a iniciativa legislativa externa quando são órgãos diversos da A.R ou sujeitos
inorgânicos a exercer o poder de iniciação do procedimento legislativo da mesma
Assembleia, sob a forma de proposta de lei.
Dispõe de iniciativa legislativa heterogénea: o Governo, as assembleias legislativas
das regiões autónomas em relação a matérias que lhe digam respeito, e ainda, num
contexto de pré-iniciativa, um grupo de cidadãos eleitores (35000).
A iniciativa costuma ser livre, exceto nos casos em que está pensada para um
determinado órgão, como o Governo e a iniciativa do Plano de Orçamento (alínea g) do artº
161, por exemplo); ou dos estatutos, que competem às assembleias legislativas regionais,
bem como a sua eleição de deputados.
Existem ainda limites a esta iniciativa que se encontram presentes no artigo 120 do
RAR e no artigo 167º (as assembleias legislativas regionais só podem apresentar propostas
se a matéria incidir sobre as regiões).
As iniciativas rejeitadas não podem ser repetidas na própria sessão legislativa (artigo
120/3), salvo renovação da mesma. Isto visa proteger a assembleia de estar constantemente
a debater as mesmas propostas, mesmo depois de já terem sido afastadas uma ou outra
vez.
As iniciativas apresentadas mas não votadas na mesma sessão legislativa não
caducam, fora termo da legislatura, nos termos do artigo 167º da CRP.

II. A instrução

A fase instrutória visa recolher dados, pareceres e outros elementos cognitivos que
permitam aos decisores apreciar a oportunidade e o conteúdo da iniciativa legislativa. Pode
implicar um exame puramente interno, realizado em comissão parlamentar, e a realização
de audições externas a entidades públicas ou privadas.
Exame interno em comissão – a simples apreciação em comissão reveste a forma de
instrução interna e implica a elaboração de um parecer sobre as iniciativas pela comissão
especializada em razão da matéria (artigos 135º e 137º da RAR), podendo constituir-se uma
comissão eventual, se a importância ou a especialidade da matéria reclamarem essa opção.
Todo o autor tem direito de apresentar a proposta perante a comissão parlamentar
competente. A comissão pode proceder a estudos e a outros meios de recolha de
informação acerca da matéria em causa.
Consultas e audições externas- a Assembleia da República procede a consultas
obrigatórias e facultativas de entidades externas, podem realizar audições individuais ou
coletivas.

III. Fase constitutiva

A aprovação da lei exprime a sua fase constitutiva, a qual se prende à manifestação de


um ato de vontade normativa pelo Parlamento, do qual resulta a expressão do seu
consentimento na formação de um ato legislativo materialmente perfeito ou completo e,

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como tal, apto para produzir alterações jurídicas no ordenamento, volvida a sua
promulgação e publicação.
Antes do momento de aprovação, o ato de iniciativa é objeto de debate, através de
uma discussão realizada pelos deputados sobre a sua forma e sobre o seu conteúdo, a qual
pode ser realizada em plenário ou em comissão, nos termos do artigo 168º/1 da CRP.
Há 3 fases aprovatórias:
a) Discussão e votação na generalidade – em sessão Plenária, das iniciativas, pressupõe
um debate que incida sobre os princípios e o sistema do ato de iniciativa. Volvida a
discussão, cada projeto ou proposta de lei é votado em Plenário (artigo 168º/3 da
CRP ou 148º/1 da RAR), sendo certo que a votação favorável só garantirá que o ato
de iniciativa será objeto de votação na especialidade, não indiciando a sua
aprovação final. A votação em generalidade constitui um filtro dos diplomas
submetidos ao subsequente estádio da votação, e não garante a aprovação de
qualquer norma.
A deliberação parlamentar correspondente a esta fase de votação processa-se por
maioria simples (artigo 116º/3), salvo os casos de lei orgânica.
b) Discussão e aprovação na especialidade – versa sobre cada artigo número ou alínea
de um projeto ou proposta de lei. De acordo com o artigo 154º/1 da RAR, a ordem
é: proposta de eliminação; proposta de substituição; propostas de emenda; texto
discutido, com alterações aprovadas; propostas de aditamento ao texto votado.
Havendo duas ou mais propostas de alteração da mesma natureza, serão sujeitas a
votação.
A discussão e votação em especialidade é feita no Plenário, que pode supostamente
depois direcionar, ou não, esta tarefa para a comissão competente. No entanto, a
prática parlamentar que alguns autores designam por costume contra legem
caminha no sentido de que a maioria dos diplomas sejam discutidos e votados na
especialidades nas comissões, sem prejuízo do plenário poder, a todo o tempo,
avocar a si a votação na especialidade a requerimento, de pelo menos 10 deputados
– 169/3 da CRP; artigo 151º da RAR.
Por outro lado, existe um conjunto de atos legislativos que integram a reserva de
Plenário e que são objeto de necessária votação na especialidade em sessão plenária
– artigo 168º, números 4, 5 e 6.
c) Votação final global – finda a discussão e votação na especialidade, a Assembleia da
República em sessão plenária procede à votação final global (nº1 do artigo 164º da
CRP). Quando aprovado em comissão, o texto é enviado para Plenário para votação
final. A votação final encontra-se prevista no artigo 155º do RAR. Note-se que há
casos em que é exigida uma maioria agravada.
d) Redação final – finda a votação final global, a comissão competente em razão de
matéria procede à redação final dos atos aprovados, não podendo alterar o
pensamento legislativo, mas apenas aperfeiçoar o estilo e a sistematização do texto,
sem que se possam registar votos contra – artigo 156º da RAR.

IV. Fase do controlo de mérito

Reporta-se ao momento em que o ato legislativo aprovado pela Assembleia da


Repúblico é remetido sob a forma de decreto ao Presidente da República para promulgação.

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O Chefe de Estado exerce nesta fase um controlo político sobre um ato produzido pelo órgão
parlamentar, no quadro do sistema de freios e contrapesos, formulando um juízo de
oportunidade positivo ou negativo, o qual se designa por controlo de mérito. O Presidente
tem 20 dias desde a receção do decreto para promulgar, vetar ou suscitar a fiscalização
junto do T.C. Se a decisão do TC pautar pela inconstitucionalidade, o Presidente deve vetar
o decreto por inconstitucionalidade – veto vinculado/translativo. O diploma é devolvido ao
parlamento sob o processo previsto no 279º da CRP. Se o Tribunal não considerar
inconstitucional, o Presidente conta com um prazo de 20 dias para promulgar ou vetar
politicamente o decreto.
A promulgação pode ser simples ou com reservas. Na segunda, o Chefe de Estado
acompanha o ato promulgatório com uma mensagem onde exprime preocupações,
objeções sobre o ato e sobre aspetos mais delicados relativos à sua concretização legal. No
plano político, este tipo de promulgação visa distanciar o Presidente em relação à lei.
Em caso de veto, o ato é reapreciado pelo Parlamento, que pode desistir do diploma,
confirmá-lo ou reformula-lo. O veto pode ser simples ou qualificado, se exigir uma maioria
de 2/3 para o confirmar.

V. Fase integrativa de eficácia

Trata a publicação e a data de entrada em vigor. No artigo 119º/1, alínea c), é


determinada a obrigatoriedade de publicação das leis promulgadas no Diário da República
– a falta da mesma determina a ineficácia jurídica. A vigência nunca poderá começar no dia
da sua publicação e, se nada for determinado, a entrada em vigor ocorre quando esgotado
o vacatio legis (5 dias).

Apreciação Parlamentar de atos legislativos aprovados por outros órgãos constitucionais

Atualmente, encontra-se previsto no artigo 169º da CRP. É uma manifestação do


primado da Assembleia, sobre os restantes órgãos constitucionais, no que respeita ao
exercício da função legislativa. Assim, a AR dispõe da faculdade de apreciar a grande maioria
dos decretos-leis e dos decretos legislativos regionais autorizados. Estão, assim, submetidos
a apreciação parlamentar, todos os decretos-leis (exceto os emitidos dentro da competência
exclusiva do Governo – 198), e os decretos legislativos
regionais que seja objeto de autorização legislativa da AR.
A apreciação parlamentar poderá ser iniciada por dez deputados (mínimo), para
efeitos de cessação de vigência ou de alteração, num prazo de 30 dias a contar do
dia da publicação do ato legislativo em causa (devem ser descontados os períodos de
suspensão do funcionamento da AR). A votação na generalidade incide sobre a cessação da
vigência e a votação da especialidade incide sobre as propostas de alteração, que poderão
ser votadas na votação final global.
O processo de apreciação parlamentar deverá ser considerado caduco, se não
ocorrer pronúncia sobre a cessação da vigência ou se a lei, com as respetivas propostas de
emenda, não haja sido votada até ao termo da sessão legislativa em curso.
As alterações introduzidas nos diplomas, no contexto de apreciação, devem revestir
forma de lei. Não obstante, a AR pode aprovar uma resolução que suspenda, total

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ou parcialmente, a vigência do DL até à publicação da lei que o altere ou até à rejeição de


todas as propostas de alteração.

Procedimento Legislativo do Governo

O Governo como legislador, ou seja, a extensão da função legislativa ao Governo,


surge em resposta ao intervencionismo do Estado Social. Assim sendo, atualmente, o
Governo não é só titular da função administrativa, é também titular da função legislativa.

Tipologia das competências legislativas do Governo:

• Competências concorrenciais alternadas: no que toca às concorrenciais,


corresponde ao 198/1/a) e ao 161/1/c): ou seja, o Governo poderá legislar, em
concorrência com a Assembleia, sobre todas as matérias não reservadas ao mesmo
órgão constitucional. A relação é de concorrência paralela, ou seja, no caso de
colisão, o conflito é resolvido de acordo com o princípio da cronologia.
• Competências exclusivas: De acordo com o 198/2, cabe ao Governo legislar sobre a
sua própria organização e funcionamento. Acresce que os decretos-lei, quando
incluídos nestas matérias, não podem ser submetidos a apreciação parlamentar
nem, quando vetados, podem ser transformados em propostas de lei da AR.
• Competências complementares: a competência complementar encontra-se
prevista no artigo 198º/1/c e a), que consiste na faculdade de desenvolver leis de
bases, regimes gerais e leis de enquadramento. Quanto aos decretos leis de base,
em matéria concorrencial, não lhes está obrigada a vinculação, se não invocarem o
desenvolvimento.
• Competências delegadas: respeita à reserva relativa da AR, artigo 165º, conforme
sejam concedidas autorizações legislativas (que sigam as regras estabelecidas).

Nota: no que respeita ao exercício da função legislativa, o Governo em gestão deve abster-
se da adoção de todos os atos de conteúdo objetivamente inovatório que não forem ditados
por imperativos de estrita necessidade, a qual deve ser rigorosamente fundamentada à luz
da sua indispensabilidade e urgência. Paralelamente, deve considerar-se que as propostas
de lei pendentes e autorizações legislativas caducam por força da CRP (art. 164º e 165º/4).
O procedimento legislativo governamental:

I. Iniciativa

A iniciativa cabe ao membro do Governo, nomeadamente ao Ministro competente em


razão da matéria (podem, assim, existir iniciativas conjuntas). Quando haja um processo de
legislação interno, os Ministros formalizam propostas de decretos-lei, que submetem à
aprovação do Conselho de Ministros. Quando o propósito seja a apresentação de uma

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proposta de lei ao Parlamento, os Ministros enviam o projeto de proposta de lei para o


Conselho de Ministro, que a aprova e submete à AR para discussão e aprovação.

II. Instrução:

A instrução participam várias entidades – o Secretário de Estado da Presidência do


Conselho, que realiza uma apreciação preliminar do ato legislativo; os gabinetes
ministeriais/conselho de ministros, por onde circula a proposta, a qual deve ser apreciada;
uma Reunião de Secretários de Estado, como forma de controlo de mérito; podem participar,
em termos de audição, as regiões autónomas, quando seja matéria quem lhes diga respeito.

III. Aprovação:

O Conselho de Ministros é o órgão que aprova os Decretos-Leis e as propostas que


seguem para a aprovação e discussão na Assembleia. Como o Conselho de Ministros é um
órgão colegial, aplica-se o disposto no artigo 116º. As deliberações podem, então, ser feitas
por consenso ou por votação. O Primeiro-Ministro tem voto de qualidade entre os ministros.
A prática é a da aprovação por consenso, já que o processo de instrução é extenso o
suficiente para evitar conflitos no último nível de decisão (daí a circulação de projetos do
diploma pelos gabinetes e a reunião de secretários de Estado – visam eliminar as
divergências). Contudo, em Governos de coligação é mais normal procederem-se a votações,
já que o Primeiro-Ministro não tem tanta agilidade para impôr a sua vontade e liderar a
formação de compromissos.
Após a votação ou aprovação por consenso, o decreto é assinado pelo Primeira Ministro
e pelos Ministros competentes, em razão da matéria(201º).

IV. Controlo de Mérito:

Quanto à promulgação e ao veto, o decreto aprovado deve seguir para o Presidente da


República para aprovação. Este, no prazo de 40 dias, pode vetar por motivos políticos, pedir
o controlo da constitucionalidade e promulgá-lo. No caso do veto, este terá caráter absoluto
– logo, não pode ser superado. Se não corresponder a matéria da exclusiva competência do
Governo, poderá ser formulada uma proposta de lei, enviada à Assembleia, com vista à sua
aprovação, por forma a passar por cima do veto. A promulgação carece, igualmente, de
referenda ministerial (artigo 140º).
Em virtude do caráter absoluto do veto presidencial, o procedimento do envio do
diploma para a Presidência assume um caráter bastante informal, permitindo ao Presidente
da República, antes da aprovação em CM, sugerir ou condicionar o conteúdo dos decretos-
leis. Trata-se de um dos poderes implícitos mais importantes do PR, que pode solicitar
durante o prazo de 40 dias a reapreciação de diplomas, bem como a sua correção formal e
sistemática, e pode devolver informalmente os mesmos para a inserção de alterações,
correndo o procedimento num circuito informal.
Sendo o veto absoluto, verifica-se que a reiteração da vontade legislativa do Governo
em editar decretos-leis idênticos a decretos anteriormente vetados se apresenta (embora
não seja inconstitucional) como contrário ao espírito da Constituição de 1976 e como um

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51 Direito Constitucional II Inês Bastos 2017/2018 Senhor Professor Doutor Carlos Blanco de Morais

ato de afronta ao poder regulador do Presidente da Repúblico, colocando em causa, maxime,


o regular funcionamento das instituições.
O ato de promulgação carece de referenda ministerial nos termos do art. 140º.

V. Fase de integração da eficácia: nos mesmos moldes do procedimento


parlamentar.

A Atividade Legislativa ds Regiões Autónomas

Como Estado unitário que compreende regionalização político-administrativa


parcial, a República Portuguesa é composta pelo continente e por duas regiões autónomas,
Açores e Madeira (artigo 6º/1). Assim sendo, estas regiões são autónomas, a nível político
e administrativos, com órgãos de governo próprio e estatutos que orientam essa autonomia.
Note-se que, no entanto, se mantém um só poder constituinte e uma só Constituição, no
entanto, as regiões são orientadas por leis estatutárias, que devem ser conformes à Lei
Fundamental. Os estatutos vigoram enquanto leis da Assembleia da República, não obstante
o seu valor reforçado e o facto de serem de iniciativa exclusiva das Assembleias Regionais.
Ainda, é de notar algumas figuras que também configuram esta unidade: o Representante
da República, com poderes vicariantes do Presidente da República, e o facto das
coletividades autonómicas não disporem de representação própria na câmara parlamentar.

É problema jurídico geral a natureza plurilegislativa dos Estados, dado que, em


certos momentos, se torna impossível contornar a sobreposição, quer das leis do poder
central, quer das leis dos poderes periféricos. Assim, há que determinar o poder legislativo
competente para regular certa matéria e, no caso de concorrência, qual das leis tem
preferência aplicativa. Existem, assim, diversos modelos de repartição horizontal:

• Modelo de lista única estadual: associado ao federalismo, consiste numa


enumeração constitucional das competências do poder central, ficando, por
exclusão, as matérias não enumeradas entregues às coletividades
autónomas – EUA e Canadá.
• Modelo de lista autonómica: consiste na enumeração das competências
regionais na Constituição, sendo as não enumeradas atribuídas aos órgãos
de soberania.
• Modelo de lista plural: consiste na enumeração das matérias da
competência do poder central e dos poderes autónomos, definindo as
matérias concorrenciais e cláusulas com determinações residuais de
competências.

Em 2004, dá-se uma revisão mais profunda no modelo que regulava as relações
entre o poder central e o periférico. Assim, elimina-se a lista de competências de poderes
legislativos regionais da CRP, remetendo-se apenas para os estatutos; dá-se uma definição
mais clara do conceito de âmbito regional, agora entendida como um critério geográfico e
espacial; verifica-se uma diminuição da prevalência da lei estadual, em relação à lei regional.

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52 Direito Constitucional II Inês Bastos 2017/2018 Senhor Professor Doutor Carlos Blanco de Morais

A repartição horizontal consiste na atribuição dos poderes legislativos do Estado e


das regiões por listas de matérias. Manteve-se, com a revisão de 2004, o modelo de lista
plural, conservando-se duas listas constitucionais de poderes (uma estadual e outra regional)
e uma lista subconstitucional de poderes regionais.
A característica da taxatividade impõe que a autonomia legislativa apenas incida
sobre as matérias enunciadas nos estatutos, não previstas constitucionalmente aos órgãos
de soberania (reservam-se, apenas, no direito de exercer a competência legislativa de
acordo com os estatutos). Seria, em conformidade, inconstitucional uma norma estatutária
que habilitasse a região a legislar sobre matérias indeterminadas não previstas no estatuto,
já que se trataria de uma norma aditiva de competência e não de delimitação de matérias e
seria uma situação de desvio de poder.
Foram introduzidos conceitos indeterminados como o limite do âmbito regional e o
da reserva de competência explícita e implícita dos órgãos de soberania (numa variável
móvel). Por âmbito regional, entender-se-ia, anteriormente um critério de interesses
(matérias de interesse regional). Com a revisão, passou a compor-se por um critério
geográfico, ou seja, matérias que dissessem apenas respeito ao âmbito geográfico da região.
Quanto à reserva de competência móvel, introduzida pelo TC, permitiria, casuisticamente,
integrar ou não integrar matérias na reserva de competência dos órgãos de soberania.
Já a a repartição vertical de competências diz respeito à definição dos tipos de
competências legislativas regionais e seus limites específicos. Neste ponto, cabe referir a
importância do conceito de âmbito regional, como critério geográfico, na definição dos
limites verticais.

Competências legislativas regionais.

• A competência comum: trata-se de competências que têm por objeto o maior


número de matérias, encontrando-se previsto no artigo 227º/1/a), em conjugação
com o 112/4 e o 228/1. Há, assim, que ter em conta certos critérios: matérias
enumeradas nos estatutos, do âmbito regional e não reservadas aos órgãos de
soberania. No caso concorrencial, a aplicação deverá seguir um critério preferencial
– a aplicação subsidiária do direito dos órgãos de soberania terá lugar quando não
haja regulação pelas ALRs, quando haja revogação não substitutiva de diplomas
regionais, quando se verifiquem lacunas em leis regionais.
• Concorrência legislativa: a relação concorrencial que se estabelece entre órgãos
legislativos do Estado e as regiões é paralela (em domínios concorrenciais, no caso
de duas leis sobre a mesma matéria, estas não se podem alterar ou revogar). Difere,
assim, da relação entre Governo e Parlamento, cuja concorrência é alternada, pelo
que ato legislativo posterior revoga ato legislativo anterior. Dada a natureza
divergente, nos termos dos decretos legislativos regionais de desenvolvimento, a
invocação e a conformidade são sempre exigidas.
• A competência delegada: através das autorizações legislativas, admitidas a partir de
2004 às regiões autónomas, estas vieram a poder aceder a determinadas matérias
da reserva relativa – no entanto, note-se que muitas matérias não se encontram
disponíveis às regiões (página 554, listagem das respetivas matérias – 2º Edição). No
que toca às bases previstas na competência relativa da AR, note-se que não é
impossível a sua delegação à região autónoma; todavia, de acordo com a regência,

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53 Direito Constitucional II Inês Bastos 2017/2018 Senhor Professor Doutor Carlos Blanco de Morais

tal prática seria defeituosa e propiciadora de problemas jurídicos, pelo que se trata
de uma solução que fica entregue ao bom sendo do legislador parlamentar na
concessão e recusa de autorizações legislativas.
As propostas e as leis de autorização devem ser acompanhadas do anteprojeto do
decreto legislativo regional a autorizar, no entanto, a regência entende que o
legislador regional não se encontra vinculado a editar uma normação idêntica ao
respetivo anteprojeto, desde que o novo diploma se encontre dentro dos limites da
autorização. Aplica-se, se resto, às autorizações legislativas e aos decretos
legislativos autorizados as regras gerais das autorizações legislativas.
• A competência complementar: às regiões é igualmente atribuída a faculdade de
desenvolver e concretizar o conteúdo de leis de bases e de leis de enquadramento
– neste desenvolvimento não, então, limites.
• A competência mínima ou residual: trata-se de competência mínimas previstas no
artigo 227º/1 (em algumas alíneas, como por exemplo – i), p), s), h), v)).
• A competência para transposição de diretivas comunitárias: o artigo 112/8, com a
revisão de 2004, passou a permitir aos DLR a transposição de diretivas, em matérias
fora da reserva dos órgãos de soberania (competência já reconhecida às regiões
autónomas italianas e espanholas).

Síntese sobre as relações jurídicas imediatas entre os atos legislativas do Estado e das
Regiões Autónomas:

O critério geral é o da aplicação preferencial, ou seja, é aplicada preferencialmente a lei


regional e subsidiariamente a lei regional. Não há, deste modo, revogação entre as leis
estaduais e as leis regionais: garante-se que, no caso de falta de lei regional sobre a respetiva
matéria, deve ser aplicada subsidiariamente a lei estadual. Os tribunais comuns dispõem de
competências para solucionar antinomias entre as leis estaduais e as leis regionais. Neste
sentido, em termos de inconstitucionalidade e ilegalidade, podem julgar várias situações.
• Leis de autorização: a violação do objeto e da extensão (inconstitucionalidade
orgânica) e da duração (inconstitucionalidade material).
• Reserva de estatuto: invasão da norma legal do Estado ou de decreto legislativo
regional na reserva de estatuto (inconstitucionalidade formal).
• Âmbito regional: a violação do limite do âmbito regional por decreto legislativo
regional (inconstitucionalidade orgânica).
• Violação de atos-pressupostos: quando o decreto legislativo regional viole as bases
gerais, leis de enquadramento, regimes gerais ou leis de valor reforçado da AR.
• Violação dos estatutos: leis dos órgãos de soberania que ofendam direito regionais
compreendidos nos estatutos ou decretos legislativos regionais que violem os
estatutos.

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