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Compreender "as razões" que justificam, impulsionam c

orientam os comportamentos de uma pessoa ou de determinado


grupo c crucial para a adaptação do indivíduo na sociedade e. por
isso, tem intrigado diversas áreas do conhecimento ao longo do>
séculos. Para a filosofia, o processo de julgamento e tomada de
decisão (J I D) alude às próprias bases do pensamento cientíhco e
se perpetua no estudo da filosofia moral e da ética, de modo que
um possível debate nessa área poderia emergir da pergunta quais
são os valores que sustentam determinados conjuntos de regras
sociais e, portanto, regem nossas decisões, c cm que medidas tais
valores são universais? A partir disso, questionam-se. então, con­
ceitos como livre-arbítrio c consciência moral. Para as ciências
aplicadas, como a administração, o estudo da tomada de decisão
tornou-se popular com o interesse por métodos mais eficientes
cm relação ao gerenciamento de equipes c tendências de merca­
do. Já para as ciências políticas, esse estudo é corriqueiramente

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Julgamento e tomada de decisões Conceitos gerais

utilizado para a seleção de um plano de ação ou de uma políti­


ca pública a partir de uma série de opções apresentadas diante
de uma demanda específica. Aldrich et ai., (201 5) discutem, por
exemplo, a eficácia de diferentes estratégias adotadas nos Estados
Unidos para o controle do tabagismo, como o aumento do preço
do tabaco, o desenvolvimento de campanhas de prevenção dire­
cionadas ao público adolescente ou mesmo alterações nas dispo­
sições de controle sanitário.
Entretanto, apesar da crescente difusão do estudo da tomada
de decisão em diferentes disciplinas, foi na matemática, na eco­
nomia e, posteriormente, na psicologia e nas neurociências que
o campo de estudo recebeu expressiva notoriedade, desenvol­
vendo modelos e teorias capazes de descrever c otimizar deci­
sões em diversos contextos. Por exemplo, modelos da tomada
de decisão originários da Teoria dos Jogos (i.e., campo da mate­
mática aplicada que examina situações de conflito e cooperação
entre dois ou mais agentes, cujas decisões implicam consequên­
cias para todos os envolvidos) são amplamente empregados no
mercado de ações ou mesmo para a movimentação de Forças
Armadas em diversos países.
Assim, para compreender as perspectivas atuais dos estudos
sobre tomada de decisão e para saber quais são as tendências futu­
ras para o campo, este capítulo tem como objetivo introduzir bre­
vemente os principais modelos revisando suas origens normativas
e. consequentemente, suas ramificações descritivas e heurísticas,
além de oferecer algumas definições de conceitos fundamentais,
como ambiguidade, incerteza e risco. Em seguida, o capítulo loca
cm temas e pesquisas atuais no campo das neurociências, que, a
partir da intersecção das diversas disciplinas citadas e somadas

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Julgamento e tomado de decisão

aos avanços técnicos que permitem investigar o funcionamento


do cérebro em diferentes níveis, têm promovido novas hipóteses
acerca da tomada de decisão. Nesse sentido, o capítulo discor­
re sobre hábitos, deliberação e urgência, apresentando hipóteses
atuais da psicologia cognitiva e das neurociências referentes à
duradoura - porém, ainda estimulante - dicotomia entre toma­
da de decisão reflexiva versus tomada de decisão refletiva (para
uma revisão sobre o tema, ver também Dolan e Dayan, 2013 .
Por fim, o capítulo discute a influência - por vezes conturbada, por
vezes benéfica - que as emoções exercem sobre os processos de
tomada de decisão.

Racionalidade e tomada de decisão


Provavelmente. até hoje, nenhum campo tenha contribuí­
do tanto para a sistematização teórica e com as bases metodo­
lógicas do estudo da relação entre racionalidade e tomada de
decisão como a matemática e a economia. A partir do século
XVII, diversos estudiosos de ambas as disciplinas desenvolve­
ram modelos normativos c descritivos de tomada de decisão com
o objetivo de compreender e prever o comportamento huma­
no. Inicialmente, os chamados modelos normativos entendiam
que o processo da tomada de decisão se baseava estritamente na
racionalidade, ou seja, os indivíduos buscavam maximizar seus
benefícios e minimizar seus custos considerando todas as in­
formações disponíveis, como valores, probabilidades e utilidades
(An ai, Campbcll-Anai &• Steel. 2012'.
Assim, os primeiros modelos de tomada de decisão surgem
intricados às teorias de probabilidade, ganhando reconhecimen­
to por meio de trabalhos como os do matemático francês Blaise

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Julgamento e tomado de decisões- Conceitos gerais

Pascal (1623-1662). Ao se deparar com a possibilidade de optar


por (A) uma loteria cuja probabilidade de ganhar R$ 300,00 e de
50% ou (B) receber RS 70.00 com certeza, o indivíduo deveria op­
tar pela opção (A), cujo valor esperado c maior. Para Pascal, o \ alor
esperado poderia ser obtido multiplicando os prêmios por suas
respectivas probabilidades, ou seja: para a opção (A), tem-se 0,5
X 300 = 150: enquanto, para a opção (B), tem-se I X 70 = 70.
A ideia de Pascal sustentava-se, portanto, no lato de que o valor
esperado, obtido com base nas características das opções, deveria
reíletir a pre|erénciu de escolha de um indivíduo racional (Caplin
& Glimcher, 2014). Compreender de que forma indivíduos es­
tabelecem preferências era de grande interesse dos economistas,
que buscavam, justamente, entender por que razão objetos pouco
úteis, como um pequeno diamante, são tão valorizados, enquan­
to outros, como a água (elemento fundamental para manter-se
vivo), nem tanto. Desse modo, o economista inglês David Ricardo
(1772-1823) defendeu em seu livro Princípios de economia políti­
ca e tributação ‘1821) que o valor de uma mercadoria poderia ser
definido não apenas de acordo com a sua serventia, mas com base
em seu custo de produção (e.g. horas de trabalho), de forma que
o tempo e o eslorço gastos para lapidar um raro diamante poderia
explicar seu custo elevado cm relação à água.
lodavia, tanto a leoria do Valor Esperado, de Pascal, como a
leoria do Valor-1 rabalho, sugerida por David Ricardo, possuem
importantes restrições no que se refere à importância, à neces­
sidade e/ou a satisfação que o indivíduo atribui ao bem adqui­
rido. Por exemplo, a leoria do Valor Esperado não considera a
riqueza do indivíduo no momento da escolha, de modo que, para
alguém que não tem dinheiro algum, a opção de receber RS 70,00

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Julgamento e tomada de decisão

com certeza é melhor que a probabilidade de 50 r de não receber


nada. De forma semelhante, a Teoria do \ alor-'l rabalho não con­
sidera a disponibilidade de água em posse do indivíduo. de modo
que, para alguém que não possui um único copo de água em um
deserto, um litro de água pode ser muito valioso.
lai lacuna loi minimizada pelos matemáticos suíços Nicolau
Bernoulli (1687-1759) e Daniel Bernoulli ( 1“00-1 “82 . que suge­
riram o seguinte: em vez de maximizar os valores reais brutos (e.g.
probabilidades e ganhos), as pessoas devem maximizar a utilida­
de esperada associada a determinada opção Caplin & Glimcher.
2014). Por exemplo, ao decidir sobre qual roupa comprar, um indi­
víduo elencará todas as qualidades das opções e.g. preço, tecido.
resistência, modelagem, costura, acabamento) e atribuirá um peso
(utilidade) para cada uma dessas características. Portanto, de acor­
do com a ideia de utilidade esperada, um indivíduo pode optar por
determinada peça mesmo que ela lenha um preço maior que as ou­
tras. caso as utilidades atribuídas a qualidades, como acabamento
c modelagem, sejam maiores que a utilidade atribuída a qualidade
preço, por exemplo. Além disso. Daniel Bernoulli observou que a
utilidade atribuída a um bem diminui conforme a quantidade dis­
ponível deste e a expectativa de satisfação pessoa’ atribuída a sua
aquisição (Caplin ix Glimcher. 2014 Para a economia, as idéias de
Bernoulli loram percursoras do que ficou conhecido corno Lei da
Utilidade Marginal, ou seja, um único prato de comida ou um copo
de água pode valer muito (i.e., grande utilidade marginal para um
indiv íduo cm situação dc extrema escassez i.c . pequena utilidade
total), mas também pode valer muito pouco ■ i.e., pequena utilidade
marginal) para o mesmo indivíduo cm uma situação de extrema
abundância (i.e.. grande utilidade total .

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Julgamento e tomada de decisões- Conceitos gerais

Apesar de representar um importante avanço na teoria cia


tomada de decisão, a ideia de utilidade desenvolvida por Daniel
Bernoulli e elaborada pela Lei da Utilidade Marginal pressupunha
uma série de premissas que não podiam ser comprovadas empirica-
mente, como a própria ideia de que indivíduos buscam maximizar
suas utilidades. Para o cientista político, economista e engenheiro
italiano Vilfredo Federico Damaso Parelo (1848-1923), a única coi­
sa que poderia ser objetivamente mensurada eram as escolhas (de­
cisões) e os preços, de lorma que as preferências apenas poderíam
ser inferidas (Caplin & Glimcher, 2014). Com isso, Pareto atentou
que a ideia de utilidade não poderia ser uma escala quantitativa
contínua, e sim uma escala ordinal, portanto os números atribuídos
a ela apenas refletiríam um ordenamento de “desejabilidade", mas
não poderíam ser manipulados (e.g. somados, subtraídos, medidos
etc.) ou estabelecer relações quantitativas entre as opções. Assim.
o primeiro americano a ganhar o Prêmio do Banco da Suécia para
as Ciências Econômicas em Memória de Alfred Nobel, Paul An-
thony Samuelson (1915-2009), concebeu uma série de axiomas
necessários para implementar a ideia de utilidade, de maneira
que um indivíduo que não cumprisse tais axiomas não poderia ser
descrito como obedecendo qualquer função de utilidade. Os axio­
mas propostos poi Samuelson ainda são cruciais para a elaboração
de modelos para analisar e simular os comportamentos da tomada de
decisão, e, por isso, loram o ponto de partida para o Teorema
da Utilidade Esperada e a Teoria dos Jogos, ambos propostos pelo
matemático austro-húngaro John von Neumann (1903-1957) e
pelo economista alemão Oskar Morgenstern (1902-1977).
Em suma, uma das principais contribuições de von Neumann
e Morgenstern refere-se à possibilidade de relacionar diferentes

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Julgamento e tomada de decisão

prêmios e probabilidades em uma única loteria. Portanto, voltando


ao exemplo de Bernoulli. em uma situação na qual um indivíduo
pretere camisa \ em comparação à camisa B e pretere camisa B
em comparação à camisa C, von Neumann e Morgenstern su­
geriram que deveria existir alguma loteria entre a camisa A e a
camisa C que tem exatamente a mesma utilidade da camisa B
(Caplin & Glimcher, 2014). É possível, por exemplo, que. para
um indivíduo, uma condição na qual há 50% de chance de ga­
nhar a camisa A e uma condição na qual há 50' de chance de
ganhar a camisa C tenham a mesma utilidade que 100c de chan­
ce de ganhar a camisa B. ou seja, o indivíduo c ambíguo com rela­
ção a essas escolhas (i.e., não demonstra uma preferência . Ape­
sar de não solucionar complelamente as limitações apontadas por
Pareto, o leorema da Utilidade Esperada possibilitou a utilização
de probabilidades para mensurara relação entre as preferências de
escolha de um indivíduo.
\s teorias normativas sobre como as pessoas julgam e esco­
lhem a noção de que indivíduos procuram maximizar su.;> expe­
riências de satisfação com base nas informações disponíveis i.e..
racionalidade) - e a possibilidade de relacionar preferências em
termos de utilidade são fundamentais para as pesquisas em neu-
rociências da tomada de decisão (Sanfey. Loevvenstein. McClure
íx Cohen. 2006). - •
I m um estudo, macacos Rliesits foram compelidos a escolher
entre água ou suco Padoa-Schioppa S Assad, 2006 Para tanto.
os pesquisadores ofereciam aos animais duas opções. que varia­
vam com relação à proporção da quantidade de água c suco e.g.
uma unidade de água versin uma unidade de suco, ou uma unida­
de de água rersas duas unidades de suco, ou uma unidade de agua

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Julgamento e tomada de decisões- Conceitos gerais

versus três unidades de suco etc.). Com isso, os pesquisadores


foram capazes de computar as preferências entre água ou suco em
uma mesma escala de utilidade, permitindo a elaboração de hipóte­
ses sobre como essas preferências eram representadas pelo poten­
cial de ação de neurônios localizados no córtex orbitofrontal. O es­
tudo indicou que esses neurônios codificam a utilidade entre dife­
rentes opções, sugerindo, pela primeira vez, que uma ação motora é
planejada e executada apenas após essa codificação da utilidade de
um estímulo, além de salientar o papel do córtcx orbitofrontal para
a tomada de decisão (Padoa-Schioppa & Assad, 2006).
Entretanto, em nosso dia a dia, dificilmente nos deparamos
com situações em que precisamos decidir entre loterias como es­
sas e. mesmo quando expostos a uma, dificilmente empregaremos
um modelo normativo para tomar uma decisão. Isso porque, de
modo geral, a impossibilidade de identificar todas as opções pos­
síveis e atribuir utilidade a todas as suas características para então
ordená-las em lermos de preferência nos impele a estimar compa­
rações entre a atratividade de determinada opção e os riscos asso­
ciados a ela. Assim, os modelos descritivos da tomada de decisão
surgem para compreender de que forma atribuímos preferências
com base em estimativas de ganhos e de avaliação dos riscos, des­
crevendo, de lato, como tendemos a tomar decisões com base em
viescs dhersos. Logo, os modelos descritivos da tomada de deci­
são proxêm alternativas à ideia de racionalidade, preocupando-se
em expor a tomada de decisão tal qual ela ocorre.
1 ossivelmentc, o modelo descritivo mais conhecido seja a Teo­
ria do 1 rospccto, proposta pelo psicólogo israelense-amcricano
c Nobel de Economia Daniel Kahneman (1934), bem como pelo psi­
cólogo c matemático israelense Amos Nathan Tvcrsky (1937-1996)

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Julgamento e tcmoda de deosão

(Kahneman, 20 J 1; Kahneman & Tversky, 1979). A teoria de Kahne­


man e Tversky rev olucionou a ciência da tomada de decisão por sugerir
e demonstrar que: (1) cm vez de utilizar valores objetivos, as pessoas
utilizam valores subjetivos para ponderar sobre probabilidades; 2 as
utilidades são definidas com base na relação dos ganhos e das perdas
com as posses atuais do indivíduo; e (3) ganhos e perdas possuem
diferentes funções de utilidade, e as pessoas tendem a superestimar
prospectos certos com relação a prospectos prováveis Arvai et al.,
2012; Fox & Poldrack. 2014; Johnson & Ratcliff. 2014 . A Teoria do
Prospecto aproximou a psicologia do campo da tomada de decisão.
até então dominado pela matemática e pelas ciências econômicas.
demonstrando também que a forma como um problema é apresenta­
do pode influenciar nossas escolhas i i.e.. fruniing efject Para ilustrar.
considere o dilema da doença asiática, em que alguém deve optar pelo
Tratamento A. no qual duzentas vidas serão salvas com certeza, ou
pelo Tratamento B, no qual há 33% de chance de salvar todas as
seisccntas pessoas e 66% de chance de que ninguém será sal­
vo. Em seguida, considere uma situação em que alguém deve op­
tar pelo Tratamento C, em que quatrocentas pessoas irão morrer.
ou pelo Tratamento D. em que há 33% de chance de que nin­
guém morra e 66% de chance de que todas irão morrer. O que
Kahneman c Tversky observaram é que a maioria das pessoas
preterem o tratamento \ quando comparado ao B \ > B . mas pre­
ferem o tratamento I.) quando comparado ao C (D > C .
Uma vez que os tratamentos A e C são iguais, bem como os tra­
tamentos B e D. uma pessoa que preferisse \ > R e obedecesse a
uma função de utilidade (i.e.. noção de racionalidade proposta pelos
modelos normativos) deveria preferir também C > D. Entretanto. a
violação da função de utilidade observada pelas preferências pode ser

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Julgamento e tomada de decisões: Conceitos gerais

explicada pelo viés positivo atribuído pelo primeiro cenário e ao vies


negativo atribuído ao segundo cenário.
Formulações como essas possibilitaram a identificação de heu­
rísticas que usualmente utilizamos para tornar nossas decisões mais
eficientes (porem, nem sempre mais eficazes), como, por exemplo,
os efeitos de disponibilidade e ancoragem. O eleito de disponibili­
dade refere-se à tendência de superestimar a probabilidade de um
evento infrequente ocorrer com base na facilidade de cogitar a pos­
sibilidade de sua ocorrência, por exemplo, acreditar que a chance
de morrer em acidente aéreo e grande após assistir a uma maratona
de programas de televisão sobre o tema. Já o efeito de ancoragem
diz respeito à influencia de determinado estímulo sobre outro, de
modo que tendemos a utilizar certos estímulos como linhas de base
(“âncoras") para pressupor, inferir ou comparar outros. Por exem­
plo. ao se deparar com uma roupa cuja etiqueta apresenta o valor
de RS 500.00 c o vendedor a oferece por RS 300,00, alguém pode
ser facilmente influenciado a comprá-la, já que um desconto de
40'/ pode parecer um excelente negócio e, muitas vezes, ofuscar a
necessidade daquela compra.
Outros modelos descritivos vastamente difundidos no campo
da psicologia e da neurociência são os modelos de duplo processa­
mento da informação, que parlem da premissa de que a informação
é processada por dois sistemas distintos, mas complementares, o
Sistema 1 (experiencial, implícito, automático, rápido, paralelo.
associativo) e o Sistema 2 (analítico, explícito, deliberativo, len­
to, serial, custoso, orientado a um objetivo) (Evans. 2008; 2014).
A ideia de dois sistemas corrobora c atualiza modelos tradicionais
da psicologia, possibilitando também a formulação de hipóteses
para explicar comportamentos disluncionais e psicopatologias.

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Julgamento e tomada de decisão

especialmente aquelas relacionadas aos transtornos associados ao


uso de substâncias (Brevers et íí/.,2014: Koob. 2015, \oêl. Breve rs
& Bechara, 20] 3). &

Emoção e tomada de decisão


Além das contribuições da economia comportamental e da
psicologia cognitiva, os recentes avanços das neurociências tam­
bém têm fornecido evidências substanciais para compreender­
mos a fragilidade da ênfase racionalista nos modelos decisórios.
demonstrando que as emoções são indispensáveis para tomar­
mos decisões em nosso dia a dia Acnveij, Sênior. Dominguez &
lúrncr. 201 5). Principalmente nas últimas décadas do século XX.
trabalhos sintetizados por autores como Joseph LeDoux 2000'.
Antoine Bechara (2005) c Antônio Damásio 1996 ’ mostraram a
interação dinâmica entre processos cognitivos abstratos t emo­
ções básicas durante decisões em diferentes cenários.
Sem dúv ida. o caso mais famoso e bem documentado na neu-
ropsicologia que ilustra a integração de processos emocionais na to­
mada de decisão é o do paciente Phineas Gage. que. cm i 64S. teve
a parle frontal do seu cérebro traspassada por uma barra de ferro e.
espantosamente, não veio a falecer, Entretanto. depois desse aci­
dente, Gage passou a se comportar de maneira estranha. conforme
descrito por amigos e familiares. Ele. que era considerado uma pes­
soa responsável c trabalhadora, tornou-se imprevisível e começou
a apresentar grande dificuldade cm tomar decisões, \pcsar disso.
seu raciocínio lógico, sua memória c suas habilidades linguísticas
encontravam-se normais. O caso de Phineas Gage foi descrito pela
primeira vez pelo médico neurologista John Martyn Harlovv I SoS ,
mas ganhou simpatia mundial ao ser discutido no livro O erro Je

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Julgamento e tomada de decisões. Conceitos gerais

Descartes, emoção, razão e cérebro hummio, de Antônio Daniasio


(1995). No livro. Damásio narra este e outros casos de pacientes
que. após sofrerem lesões no córtcx frontal, passaram a demonstiai
incapacidade em tomar decisões. Especificamente, esses pacien­
tes apresentavam dificuldades em postergar pequenas recompen­
sas imediatas em detrimento de melhores recompensas no Intino.
Além disso, uma análise ncuropsicológica desses pacientes indicou
baixa reatividade emocional, levando o autor a concluir que algum
déficit no processamento emocional poderia levar a dificuldades
em tomar decisões racionais (Damásio, 1995). Segundo ele, a iden­
tificação das opções disponíveis bem como a avaliação dos custos e
dos benefícios dessas opções teriam como referência os processos
emocionais do indivíduo.
A Hipótese dos Marcadores Somáticos surge como um mo­
delo explicativo para quadros clínicos como os citados, propondo
que nossas vísceras ativam - a partir de estados corporais de­
sencadeados via sistema nervoso autônomo - sinais que guiam
decisões comportamenlais complexas. Esses “sinais”, ou seja,
marcadores somáticos, dependem da intricada relação entre di­
ferentes circuitos frontoestriatais e Irontolímbicos cm interação
com vias nervosas autonômicas. Segundo essa hipótese, c graças
a esse sistema que somos capazes de integrar processos emocio­
nais aos nossos mais abstratos mecanismos cognitivos. Portanto,
como Phineas Gage, comprometimentos em diferentes regiões
desse sistema neural podem prejudicar o processo decisório, já
que a sinalização somática se torna menos eficiente. Isso acaba
por direcionar as escolhas dos indivíduos para o curto prazo, au­
mentando a chance de envolvimento em situações de risco e com
mais probabilidade de prejuízos.

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Julgamento e tomada de decisão

A identificação da contribuição de processos cognitivos abs­


tratos e emocionais no processo de JTD, direcionou a neuropsico-
logia para o desenvolvimento de terminologias e modelos teóricos
compatíveis com o lugar-comum das teorias dc dupi o processa­
mento. Por exemplo, diversos autores passaram a classificar as
funções executivas como "quentes’ (relacionadas às emoções, à
motivação e ao afeto) ou "frias’’ (relacionadas à memória opera­
cional, à flexibilidade cognitiva e ao controle inibitório1 Zelazo
& Carlson, 2012; Zelazo, Craik & Booth, 2004 . Entretanto, os
modelos de duplo processamento da tomada de decisão, especial­
mente quando estendidos às funções executivas, encontram críti­
cas no que diz respeito à categorização artificial das funções men­
tais, que se baseia em uma dicotomizaçao simplista dc redes
neurais (Kluvve-Schiavon, Viola, Sanvicente-Vieira, Malloy-Diniz
& Grassi-Oliveira, 2016). De acordo com Kluvve-Schiavon et al.,
(2016), a divisão entre funções executivas "quentes ’ e frias" pre­
cisa ser substituída pela noção da existência de uma relação di­
nâmica entre processos cognitivos automáticos controlados c da
relação entre homeostase e estresse. \lém disso, o autor propõe
que. com base nessas interações dinâmicas, o indivíduo passaria
a automatizar estratégias bem-sucedidas para uso futuro, possibi­
litando o engajamento cm tarefas cada vez mais complexas.

Hábito, deliberação e urgência


A interdisciplinaridade e o crescente avanço nas pesquisas
acerca da tomada dc decisão permitiram que pesquisadores for­
mulassem diferentes hipóteses sobre algumas das possíveis etapas
que permeiam a identificação das opções disponíveis e a seleção
dc uma ação específica (ou seja, a implementação ou "tomada da

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Julgamento e tomada de decisões- Conceitos gerais

decisão em si). Por exemplo, Sonuga-Barke, Corlese, Fairchild c


Stringaris (2016) propuseram um modelo que se baseia cm uma
visão neurocconômica da tomada de decisão, o qual consideia
que esse processo pode ser dividido em estágios c que depende
de distintos sistemas de análises explícita, implícita c de controle
executivo. Um aspecto central do modelo é que ele considera que
qualquer ação que uma pessoa executa é, cm certa medida, uma
escolha. Além disso, sugere que cada pessoa busca maximizar a
utilidade subjetiva por meio de suas escolhas - mesmo que a uli
lidade subjetiva não traga tantos benefícios reais. Por exemplo,
uma pessoa que apresenta fobia social pode decidir por não apre­
sentar um trabalho de laculdade porque, para ela, a situação de
apresentação causa mal-estar intenso - menor utilidade subjetiva
no momento. No entanto, sabemos que as exposições a situações
sociais são importantes para a diminuição dos sintomas de Ití­
bia de médio prazo, ou seja, embora a opção de falar cm público
pudesse maximizar a utilidade real (melhora dos sintomas de an­
siedade í. a proposta aqui é que as escolhas seguem sempre um
padrão que busca maximizar a utilidade subjetivo.
Tomando essas informações como ponto de partida, Sonuga-
-Barke et al., (2016) propõem que o processo de tomada de de­
cisão se dá em três fases: 1) Avaliação: são integradas informa­
ções sobre cada opção de escolha considerando aspectos de va-
lência dos resultados (ganho ou perda), magnitude (grande ou
pequena), tempo para ter o resultado esperado (postergado ou
imediato) e probabilidade (alta ou baixa). Essas informações são
analisadas em referência à utilidade subjetiva c dependem de
processamento implícito e explícito. 2) Decisão e gerenciamen­
to'. envolve a comparação da utilidade subjetiva atribuída a cada

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Julgamento e tomado de decisão

uma das opções, a seleção de uma das opções e a implementação


de um plano para que essa escolha seja colocada cm prática de
maneira efetiva. Nesta fase, processos de alta ordem de controle
executivo seriam extremamente necessários. 3) ..á ■ c uco-
tnodação: a fase final envolve a análise dos resultado- e o ajuste
para escolhas futuras. Nesta íase, processos de aprendizagem so­
bre reíorçamcnto são utilizados c faz-se uma comparação entre
a utilidade subjetiva esperada no início do processo c a utilidade
derivada da escolha (algo como "essa escolha me trouxe o bene­
fício que eu esperava? ’).
O modelo propõe que cada uma dessas fases é dependente
de três domínios ncuropsicológicos principais. O sistema de pro­
cessos (iitlorreferenciuis e um sistema de análise explícita de infor­
mações que integra. (1) a memória autobiográfica e os valores pes­
soais sobre escolhas similares feitas pela pessoa no passado; 2
as informações explícitas sobre as opções de escolha atuais. 3 a
análise sobre como essas escolhas influenciarão o futuro. Os auto­
res definem esse sistema como sistema-padrão ou '. :ih porque.
embora ele envolva deliberação, esta se baseia na forma-padrão e
mais típica de como cada pessoa toma uma decisão. O- substratos
neuroanatômicos desse sistema seriam o córtex pré-frontal mediai.
o córtex do cíngulo posterior, o córtex lateral parietal e o giro tem­
poral mediai. O s/s/en/u de controle executiva, assoei.ido às funções
executivas, proveria o controle deliberado para planejar a decisão e
selecionar o que seria implementado. Além disso, a capacidade de
flexibilidade cognitiva permitiría a consideração de varias opções
do escolha: o controle inibitorio auxiliaria na inibição de automa-
tismos c na capacidade de pensar melhor sobre cada opção, além
de auxiliar na manutenção da implementação da escolha, inibindo

41
Julgamento e tomado de decisões. Conceitos gerais

interferências, enquanto a memória operacional permitiría a reten­


ção de várias informações necessárias para a escolha. Além desses
fatores, o funcionamento executivo está associado a percepção c
à valoraçào temporal - aspecto associado, por exemplo, ao quanto
uma pessoa avalia a postergação ao receber reforços. Esse siste­
ma seria espccialmentc importante em situações novas, nas quais
escolhas automáticas não estão disponíveis, e em situações que
envolvem aspectos emocionais e motivacionais de escolha. O fun­
cionamento executivo é comumcntc associado com ao f unciona­
mento do córtex pré-frontal, c os autores incluem o córtex parictal
nesse sistema. Por fim. o sistema de processíimeiito de recompensei.
avaliação e aprendizagem envolve aspectos implícitos (não delibe­
rados) da análise das opções c da avaliação dos resultados da es­
colha. O sistema de valor implícito c aquele associado às prefe­
rências individuais que não são conscientes. Essas preferências
podem ser tanto traço-dependentes (tendência a preferir reforços
imediatos: impulsividade) quanto estado-dependentes (escolher
quando se está com fome ou cansado, por exemplo). Segundo os
autores, esse sistema está implicado em gerar uma avaliação pros-
pectiva das escolhas, analisar os resultados das escolhas e ajus­
tar a utilidade subjetiva dc acordo com esses resultados. Nesse
sentido, o aspecto central desse sistema é comparar a utilidade
subjetiva esperada com a utilidade subjetiva derivada dc falo da
escolha. Voltando ao exemplo da fobia social, se a pessoa decidir
apresentar o trabalho c se sair bem. haverá um ajuste da utilida­
de subjetiva atribuída a situações similares no futuro. Estruturas
subcorticais do cérebro, cm especial a amígdala, estão associadas
a esse sistema, além do córtex pré-frontal orbitofrontal c do córtex
do cíngulo anterior (Sonuga-Barke et ul., 2016).

42
Julgamento e tomada de dec<são

Apesar de influente e cxtensivamentc descrito, o modelo de


Sonuga-Barkee/ td.. nãoe o único. De forma similar. Ernst e Paulus
(2005) e Rangel, Carnerer e Montague <2008; sugeriram uma
perspectiva neurobiológica da tomada de decisão, na quai .. toma­
da de decisão c resultado de diferentes etapas. 1 a representação
ou a identificação de opções; (2) a avaliação de possíveis riscos.
ganhos e perdas, bem como o tempo estimado entre a ação e suas
consequências; (3) a seleção da ação ou o comportamento de es­
colha; (4) a avaliação das consequências obtidas com base nas
consequências esperadas: e 5 j atualização de representações
futuras ou aprendizagem com base nas consequências. O enten­
dimento da tomada de decisão como um processo constituído de
diferentes etapas, sendo cada uma suscetível à influência de dife­
rentes fatores ambientais c individuais, c fundamental para uma
discussão aprofundada sobre o tema, tanto para a clínica como
para a pesquisa. Xo âmbito da saúde e dos transtornos pelo uso
de substâncias, por exemplo, tal compreensão sugere que o com­
portamento de consumo de uma substância não é uma questão de
caráter moral ou, como habitualmcnte descrito pelo desinforma-
do senso comum, uma "simples escolha entre consumir ou não
consumir. Ao contrário, sugere que os transtorne < relacionados
ao uso de substâncias são desordens majoritariamente do cerebro
(Koob & Volkovv, 2016). em que cada uma cias etapas descritas
apresenta alguma alteração.

Risco e incerteza
Outro aspecto fundamental para o estudo do comportamen­
to da tomada de decisão são as definições dos conceitos de .nu-
bigtt idade, incerteza e risco. Apesar de algumas divergências, tais

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Julgamento e tomada de decisões: Conceitos gerais

conceitos podem ser utilizados para descrever determinado cená­


rio de decisão cm relação à possibilidade de mensurar objetiva­
mente as probabilidades e as características associadas a cada op­
ção ou cm relação ao aumento da variância na distribuição da pro­
babilidade de determinado resultado, independentemente de ha­
ver uma perda envolvida (Fox & Poldrack. 2014: loblcr & Wcbcr.
2014). Lsualmcnte, podem ser considerados cenários dc risco
aqueles em que todas as probabilidades são conhecidas pelos
agentes, por exemplo, quando jogamos cara ou coroa com uma
moeda ou quando jogamos um dado. Em contrapartida, cenários
de incerteza são gcralmcnle descritos como aqueles em que o in­
divíduo não tem qualquer conhecimento com relação à proba­
bilidade de ocorrência dc determinada condição. L m exemplo
corriqueiro pode ser a decisão dc sair ou não com um guarda-chu­
va em um dia nublado. Apesar dc ser possível estimar qual é a
probabilidade dc chover - com base nas informações da prc\ isão
do tempo, no lormato das nuvens, na direção do vento ou nas
dores nas articulações a decisão c tomada considerando uma
grande margem dc erro, c, com frequência, é a utilidade atribuída
a possibilidade dc licar molhado ou de carregar um guarda-chuva
sem necessidade o critério determinante para a decisão. Em ge­
ral. situações sociais eliciam incertezas, uma vez que a ocorrência
de determinado evento não pode ser prevista em decorrência da
complexidade dos Iatores que o originam (Tobler & Webcr. 2014).
Pode-se supor, portanto, que risco c incerteza referem-se a dois
extremos dc um gradiente no que diz respeito à certeza da ocor­
rência de um evento ale sua completa ignorância.
Muitas das tareias neuropsicológicas e os paradigmas expe­
rimentais utilizados atualmente e descritos nos capítulos subse­

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Julgamento e tomada de decisão

quentes deste livro podem ser classilicados de acordo com essas


definições. Por exemplo, a tarefa lowa Gambling Task, dcsem olvi­
da por Bechara Damasio, Tranel e Damasio 2005 Malloy-Diniz
et dl., 2008) extensivamente empregada em diversos campos da
pesquisa em psicologia para mensurar comportamentos de pro­
pensão ao risco - expõe o indivíduo a um cenário de incerteza no
qual ele deve aprender por tentativa e erro quais opções podem
maximizar os ganhos em longo prazo. Por sua vez. tarefas como a
Game ol Dice lask (Brand et al., 2005; Rz.ezak, Antunes. Tulik Sc
Mello, 2012) podem ser consideradas tareias de tomada de decisão
cm cenários de risco, uma vez que a magnitude c a probabilidade
dos ganhos e das perdas estão sempre acessíveis. Já tareias como
a Columbia Card l ask (I igner. Mackinlay. Wilkening \ Weber,
2009; Kluvvc-Schiav on, 2015) também podem ser compreendidas
como tareias de tomada do decisão em cenários de risco. poi>. ape­
sar de o indivíduo não ter certeza das probabilidades associadas a
suas decisões, possui acesso a informações que permitem alguma
eslimaliv a.

Conclusões
O presente capítulo apresentou aspectos gerais da tomada de
decisão, identificando algumas de suas bases teóricas mais domi-
nantes na matemática aplicada c descrevendo sua evolução nas
disciplinas de economia, psicologia, neuropsicologi.- c neurocicn-
cias. Fica claro, portanto, que o estudo da tomada de decisão não
é privilégio de alguma área específica, de modo que não c um equí­
voco ignorar suas consolidadas bases teóricas e aplicadas para pro­
mover hipóteses ainda pouco elucidativas Entretanto. conhecer
tais alicerces teóricos para então expandi-los ou refutá-los tende

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Julgamento e tomodo de decisões. Conceitos gerais

a consolidar ainda mais a tomada de decisão como um objeto de


estudo fundamental para a compreensão do comportamento hu­
mano. O capítulo discutiu também a dicolomia entre tomada de
decisão reflexiva versus reíletiva, ressaltando tanto a influência de
aspectos cognitivos conscientes c deliberativos como a necessida­
de da integração de aspectos emocionais para um funcionamento
adequado da tomada de decisão. Além disso, o capítulo apresen­
tou algumas das hipóteses acerca dos elementos constitutivos da
tomada de decisão, os quais muitas vezes influenciam a concepção
de novas tareias neuropsicológicas e novos experimentos compor-
tamentais. Por fim, cabe ressaltar que este capítulo não buscou
reduzir o complexo e intrigante processo de tomada de decisão às
hipóteses ou aos modelos teóricos apresentados, mas, ao contrá­
rio, buscou servir como estímulo para explorar os demais capítulos
desta obra, que abordarão diversos fatores desenvolvimentais, so­
ciais e individuais que influenciam esse processo.

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