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<https://artepensamento.ims.com.br/item/pensar-e-estar-doente-dos-olhos/>
Cada pessoa é um olhar lançado ao mundo e um objeto visível ao olhar do mundo. Cada
corpo dispõe de um jeito de olhar que lhe é próprio e essa particularidade condiciona
também sua visibilidade como corpo diferente dos outros.
Inicio com essas evidências para preparar o enfoque de um fenômeno poucas
vezes visto: o de uma pessoa que não se contentou com dispor de um único olhar mas
quis dispor de vários, enfrentando o risco de se perder a si mesma de vista.
Minha proposta é considerar cada um dos múltiplos nomes sob os quais escre-
veu Fernando Pessoa (cada heterônimo e o não menos heteronímico ortônimo) como
um olhar; examinar não apenas o jeito de olhar que caracteriza cada um deles, mas
também o modo como, em cada um, é tratado o próprio tema do olhar.
O olhar é um tema privilegiado na poesia pessoana porque esta, em suas várias
facetas, é uma poesia de vocação filosófica, onde a reflexão sobre a relação sujeito-
objeto é constante. Se algo unifica as múltiplas personalidades do Poeta é, paradoxal-
mente, a questão sempre presente da unidade impossível do sujeito Pessoa.
Começarei por Fernando Pessoa “ele mesmo”, não porque eu o considere como
o Pessoa verdadeiro e essencial, mas por comodidade. Seguirei a ordem de apresenta-
ção que é a habitual nas edições de suas obras completas. Na verdade, qualquer ordem
serviria para percorrer o círculo descentrado dos nomes-Pessoa, e “ele mesmo” alguma
vez pensou numa ordem diferente daquela geralmente adotada por seus editores pós-
tumos.[1]
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Fernando Pessoa “ele mesmo” é aquele que não consegue olhar o mundo com um
olhar de ver. Entre seus olhos e as coisas há uma névoa constante, um intervalo de
bruma que desrealiza o real:
O sonho, tema recorrente em FP, é por ele vivido e considerado como oposto
ao real. O olhar do sonhador é um olhar de desconhecimento e de perda:
Este verso define plenamente o olhar de FP “ele mesmo”: estático e cego para
o mundo exterior, incapaz de estabelecer uma relação do sujeito que olha com o mundo
sensível. O olhar de FP é toldado pela impossibilidade de se deter naquilo que Merleau-
Ponty chama de “carne do mundo”. Descarnado ele mesmo, corpo que nega sua cor-
poralidade, FP vê as coisas irreais como símbolos de uma realidade oculta igualmente
invisível:
Ao longe, ao luar,
No rio uma vela,
Serena a passar,
Que é que me revela?
Não sei, mas meu ser
Tornou-se-me estranho,
E eu sonho sem ver
Os sonhos que tenho.
Que angústia me enlaça?
Que amor não se explica?
É a vela que passa
Na noite que fica. (OP, p. 143)
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No jogo paranomásico da rima, o véu que perturba a visão da vela impede que
esta revele o que venda, deixando seu contemplador no escuro angustiante da noite.
Para FP, tudo o que o olhar vê é símbolo de algo oculto. Mas, diferentemente
dos poetas românticos e simbolistas, FP não postula o mundo interior do sonho como
um mundo alternativo e preferencial; poeta-filósofo, ele questiona seu modo de olhar,
reflete sobre sua incapacidade de ver o mundo exterior:
Esse poema mostra, exemplarmente, aquilo que Benedito Nunes apontou como
“o primado da consciência reflexiva” em FP. “A reflexão excessiva [diz Benedito Nunes],
que nele se opôs ao sentir espontâneo, à plenitude das vivências puras, explica o des-
dobramento, tão patente nos poemas de O cancioneiro, dos atos de olhar, ouvir e lem-
brar. Mais do que olhar, o poeta vê-se olhando”.[2]
Paul Valéry, outro poeta em quem a consciência prevalece sobre as sensações,
pôs na boca de sua “Jovem Parca”: “eu me via me ver”. Ver-se vendo, olhar-se olhando,
é deixar de olhar e de ver o que se olha e vê fora de si, para tentar captar, no sentido
inverso, o próprio ponto de onde o sujeito olha. O resultado dessa operação, além da
perda do objeto exterior, é o eclipse do próprio sujeito, que topa com o ponto cego da
consciência tentando captar-se a si mesma como objeto. A esse respeito, diz o psica-
nalista Lacan: “Na ilusão da consciência de se ver vendo, o que se elide é o olhar, esse
avesso da consciência”.[3]
A autodevoração da consciência se representa, em Valéry, pela imagem da ser-
pente que devora sua própria cauda. A jovem Parca, ao ver-se vendo, estabelece ela
mesma e imediatamente essa relação:
De quem é o olhar
Que espreita por meus olhos?
Quando penso que vejo,
Quem continua vendo
Enquanto estou pensando?
(OP, p. 132)
A vela, velada e ocultante, que passava no rio do outro poema, é aqui substituída
pela árvore e pelo arco da ponte, igualmente velados para os olhos do Poeta, mas
velados pelo olhar de Deus, que os vê e que não podemos ver, que apenas podemos
intuir como grande Intervalo”. O olhar de Deus faria a ligação das coisas, mas como
não podemos vê-lo nem ver por seus olhos, afrontamo-lo como Intervalo.
O olhar de Deus é invocado por FP para garantir a existência das coisas e de si
mesmo. Entretanto, esse Deus judaico que tudo vê sem que o vejamos, Grande Olho
sempre pronto a desvendar a culpa e puni-la, revela-se como outra ameaça à autonomia
do sujeito, alienado objeto, perdido no olhar do Sujeito Absoluto, de quem ele é “erguido
pó, símbolo só” (OP, p. 164).
Olhado por um deus invisível, FP se sentirá espreitado por todos os lados, pelos
próprios objetos inanimados:
[...]
Sinto a sua ausência de olhos fitar-me e estremeço.
[…]
As arestas fitam-me.
Sorriem realmente as paredes lisas.
[...]
(OP, p. 133-4)
FP “ele mesmo” não é sempre igual a ele mesmo. A esse Poeta do Mistério e
do Oculto se justapõe (ou se contrapõe) o ortônimo da Razão soberana, do olhar ilumi-
nista, que tudo quer dominar:
Guia-me a só razão.
Não me deram mais guia.
Alumia-me em vão?
Só ela me alumia.
[…]
Com o olhar, a razão
Deus me deu, para ver
Para além da visão —
Olhar de conhecer.
(OP, pp. 159-60)
Essa temática é familiar aos leitores de Sartre. A psicanálise nos leva a dar a tal
reflexão uma inflexão particular, pela inclusão do desejo inconsciente no enfrentamento
do olhar de outrem. Esse olhar, diz Lacan, “é não um olhar visto, mas um olhar por mim
imaginado no campo do Outro”.[8]
A autovigilância da consciência em FP “ele mesmo”, como em seu Fausto, é um
meio de evitar o corpo, o corpo próprio e o alheio, corpos desejantes de que ele, lite-
ralmente, não quer nem saber:
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Simetricamente, é bom, para FP, que o olhar do outro seja também desencar-
nado:
Olhas-me de repente
De um distante impreciso
Com um olhar ausente
Começas um sorriso.
(OP, p. 186)
Olhar sem ver (porque a vida é sonho e tudo é oculto); ver-se olhando (porque
a consciência se quer soberana); ser visto sem ver quem nos olha (estar assujeitado
ao olhar de Deus ou dos múltiplos deuses aninhados nos outros e nas coisas) — todas
essas situações são terrivelmente desconfortáveis; em nenhuma delas FP consegue
sentir-se “ele mesmo”. Por tudo isso, o olhar do ortônimo é o mais triste dos olhares
pessoanos.
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Olhar e ser olhado como FP “ele mesmo” é exaustivo. Para deixar de ser ele mesmo e
tentar outra relação com o mundo, FP inventou seu mestre Caeiro.
Contra a busca do mistério, em que se abisma FP “ele mesmo”, Alberto Caeiro
propõe o simples olhar para as coisas, sem nenhuma interrogação metafísica. Ao “olhar
de conhecer”, ele opõe o olhar de ver:
[...]
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas coisas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
[...]
(OP, p. 207)
Olhar de criança, olhar primeiro, olhar nítido — para consegui-lo é preciso parar
de pensar:
Pessoa criou Caeiro como o mestre de que necessitava para ser menos infeliz;
concebeu-o como o fundador de um movimento filosófico político e estético, o neopa-
ganismo, cuja inspiração se encontraria na Antiguidade clássica. O objetivo desse mo-
vimento era reativo e terapêutico: “Fazer renascer o objetivismo puro dos gregos e
romanos” em oposição ao subjetivismo cristão, “decadente” e “mórbido”.[9]
Ricardo Reis, que será outro dos discípulos de Caeiro, dizia que este possuía
“toda a simplicidade, toda a grandeza, toda a posse das cousas que os antigos tinham”.
Para o “espírito exilado na vida contemporânea”, Caeiro seria uma “consolação”; para o
“mal de adulto” de que sofremos hoje, os Antigos, “simples” e “inocentes” como crian-
ças, seriam um exemplo salutar.[10]
Não cabe discutir aqui até que ponto a concepção que Pessoa tinha dos gregos
e romanos corresponde às reais posturas filosóficas da Antiguidade. Como observou
Benedito Nunes, Caeiro é o “porta-voz de um realismo originário, desvinculado de com-
promissos filosóficos historicamente determináveis, e que ignora o problema das duas
substâncias, matéria e espírito, corpo e alma”.[11]
“Grego”, Caeiro estaria mais próximo dos pré-socráticos do que dos grandes
filósofos da era clássica. Seu empirismo o aproxima de um Heráclito, de quem subs-
creveria as afirmações só aparentemente óbvias como: “O sol é novo cada dia”, ou “A
largura do sol é a de um pé humano”.
Caeiro é pagão pelo fato de sua relação direta com o mundo sensível dispensar
qualquer referência a outro mundo, superior e sobrenatural, que as coisas ocultem ou
ao qual estejam subordinadas:
Sempre que olho para as cousas e penso no que os homens pensam delas,
Rio como um regato que soa fresco numa pedra.
Porque o único sentido oculto das cousas
É elas não terem sentido oculto nenhum,
É mais estranho do que todas as estranhezas
E do que os sonhos de todos os poetas
E os pensamentos de todos os filósofos,
Que as cousas sejam realmente o que parecem ser
E não haja nada que compreender.
(OP, p. 223)
Enquanto FP “ele mesmo” não consegue sentir porque “o que em mim sente
está pensando”, Caeiro propõe a naturalidade e a calma de “Sentir como quem olha” e
“Pensar como quem anda” (OP, p. 216).
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Mais do que praticar um olhar objetivo, Caeiro busca um tipo de olhar que des-
faça a distinção sujeito-objeto, que integre o que apreende com o que é apreendido.
Assim, o olhar de Caeiro se assemelha ao que é proposto pelas filosofias orientais. Um
famoso mestre zen dizia: “Logo que começas a pensar numa coisa, ela deixa de ser.
Precisas vê-la imediatamente, sem raciocinar, sem hesitar”[12]. O mesmo afirma o mes-
tre Caeiro:
Para Caeiro, como para os mestres do zen, o olhar não é instrumento de análise,
mas abertura receptiva ao real; muito diferente do olhar ocidental, que é ataque armado
de conceitos, carregado de intenções intelectivas ou de projeções psicológicas, olhar
que separa, que cinde, que destrói.
O amor, para Caeiro, é uma doença dos olhos tanto quanto o pensamento. Em
seu breve período de “pastor amoroso”, Caeiro tem sua visão embaçada. A figura da
amada, figura cambiante e falsa como todas as que não são fruto direto dos sentidos,
se sobrepõe constantemente às formas do mundo exterior. “Amar é pensar”, diz ele
(OP, p. 230); e pensar, já vimos, é estar doente dos olhos. Somente após curar-se dessa
doença amorosa o pastor Caeiro poderá recuperar a nitidez de seu olhar:
Saber olhar é uma receita de felicidade. Numa conversa relatada por Álvaro de
Campos, Caeiro explicava: “Toda a coisa que vemos, devemos vê-la sempre pela pri-
meira vez, porque realmente é a primeira vez que a vemos. E então cada flor amarela é
uma nova flor amarela, ainda que seja o que se chama a mesma de ontem. A gente não
é já o mesmo nem a flor a mesma. O próprio amarelo não pode ser já o mesmo. É pena
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a gente não ter exatamente os olhos para saber isso, porque então éramos todos feli-
zes” (OP, pp. 247-8).
Em que medida o próprio Caeiro consegue praticar o olhar que prega? A res-
posta é: até certo ponto. Caeiro é muitas vezes capaz de falar das coisas que vê sem
sobrecarregá-las de conceitos e sentimentos, colocando-as diante de nossos olhos
“pela primeira vez”: a noite que entra “como uma borboleta pela janela” (OF, p. 203); as
flores “cor da sombra” quando uma nuvem passa (OP, p. 219); as bolas de sabão “com
uma precisão redondinha e aérea” (OF, p. 218). Ou de modo ainda mais direto, com
simples dêixis: “Há novas flores, novas folhas verdes” (OF, p. 235); ou como tautologia
assumida: “O luar através dos altos ramos […] / É não ser mais/ Que o luar através dos
altos ramos” (OP, p. 222).
Entretanto, na medida em que a poesia de Caeiro é também uma proposta de
método, uma insistente lição arrazoada de como se deve e não se deve olhar o mundo,
essa poesia evidencia uma tensão interna. Mais do que um claro olhar, Caeiro é um
esforço de olhar claro. Sua maestria não é apenas exemplar, como a dos mestres zen;
ela se exerce de modo argumentativo, autojustificativo e contestatório. Caeiro não é
apenas o oposto de FP “ele mesmo”; ele é resposta, crítica e oposição dialógica. O
mestre dialoga frequentemente com um discípulo oculto, equivocado e teimoso, cujas
perguntas seriam as de FP “ele mesmo”: “O mistério das coisas? Sei lá o que é o
mistério” (OP, p. 207); “o que nós vemos das cousas são as cousas! Por que veríamos
nós uma cousa se houvesse outra?” (OP, p. 217).
Por ser não apenas prática, mas teoria da simplicidade, Caeiro se revela com-
plexo; por insistir tanto em exibir sua serenidade, torna-se suspeito de intranquilidade.
Sua suposta identidade consigo mesmo e com o mundo se quebra, pelo fato de seu
discurso fazer dessa identidade um objeto de análise. Como FP “ele mesmo”, Caeiro
também se vê olhando, também transforma o próprio olhar em coisa pensada:
Entretanto, mais do que a serenidade dos sábios, o que ele cultiva é a indife-
rença soberba dos seres magoados. Seu estoicismo é uma autodefesa.
Em RR, coloca-se constantemente a questão do lugar do olhar, que define a
situação do observador no universo, sua relação com as coisas vistas e com os outros
seres capazes de olhar. Há, na poesia de RR, uma hierarquia dos olhares.
“Mais alto estão os deuses […] visíveis à nossa alta vista” (OP, p. 265). Abaixo
do homem, estão as coisas do mundo, que ele deve olhar como os deuses, à distância:
“Vê de longe a vida […] Imita o Olimpo no teu coração” (OP, p. 270). A altura é o desafio
enfrentado por RR. Não podendo olhar dos céus, como os deuses, RR busca ao menos
o alto das colinas, “longe de homens e de cidades”, onde ninguém, nem casa alguma,
lhe vede a vista (OP, p. 262).
Olhar como os deuses é, para RR, ter um conhecimento imediato, total, sinté-
tico, oposto ao conhecimento analítico da ciência humana, “contemplação estéril” que
olha “até não ver nada com seus cansados olhos” (OP, p. 292). O olhar dos deuses é o
olhar clarividente, o olhar ideal:
Contrariamente ao olhar cristão, cego para o visível por considerá-lo como mero
sinal do invisível essencial, o olhar que RR deseja ter detém-se na carne das coisas,
onde tudo está. Assim, Caeiro e Reis proclamam o oposto daquela famosa frase de
Saint-. Exupéry: “O essencial é invisível aos olhos”. Os neopagãos pessoanos afirmam
exatamente o contrário: “O essencial é visível aos olhos”.
Esse olhar sereno e clarividente é, porém, para RR como para Caeiro, apenas
um ideal. Atormentado pelo fluir do tempo, obcecado com a morte, RR não pode ter a
serenidade olímpica dos deuses eternos. O epicurismo de RR é triste (quem o diz é
outro heterônimo[13]). A crença no poder do Destino não o libera mas oprime, porque
esse Destino se parece mais com os desígnios do Deus infalível e punitivo de Israel do
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que com as potências caprichosas, porém múltiplas, cambiantes, opostas entre si, e
sobretudo visíveis e acessíveis a que estavam sujeitos os pagãos.
A concepção cristã do tempo irreversível tinge de cores melancólicas tudo o
que RR contempla. “Está envenenada para sempre a alma humana”, reconhecerá ele
num texto teórico.[14]
O olhar de RR, temendo as mutações, transforma o espetáculo do mundo em
quadro imóvel, ondas do mar, folhagens, frutos, corpos nus, tudo parece, em sua poe-
sia, fixado como num baixo-relevo. O olhar de RR é olhar petrificante de Medusa. A
profusão das formas naturais adquire, sob seu olhar, uma rigidez geométrica. Os jardins
são “exatos” (OP, p. 257); os raios do sol são “lisos” e “agudos” (idem), a própria chama
da lâmpada, forma móvel por excelência, é para ele “firme” e “esguiada”, “como preci-
osa e antiga pedra” (OP, p. 263); o mar “jaz” (OP, p. 264), e seu movimento é regido
pela simetria: três precisas ondas (OP, p. 265).
Dentro dessa natureza-cenário, as pessoas figuram como atores imóveis de um
“quadro vivo”:
Assim, tudo se imobiliza sob o olhar de RR. Comprovando que sua concepção
do tempo não é cíclica como a dos Antigos, tudo o que se repete é visto por ele não
como recomeço, mas como ausência de mudança e renovada decepção. O verão traz
de novo “as aparentes novas flores” (OP, p. 276, sublinhado por mim); as ondas do mar,
“uma após uma”, são sempre a mesma onda (OP, p. 273); a abelha que freme sobre a
flor “não mudou desde Cecrops” (OP, p. 275). Enquanto Caeiro via a “eterna novidade
do mundo”, RR vê a eterna velhice do mesmo.
O mundo não muda para o olhar de RR porque ele teme qualquer mudança em
si mesmo:
Por temor de que as mudanças, sinal do tempo, tragam a morte, RR quer tudo
parado, intemporal; mas ao ver tudo imóvel, o que seus olhos encontram é a própria
rigidez da morte:
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Obcecam-no os “olhos feitos para deixar de ver” (OP, p. 279), a cova que es-
conde “olhos e bocas” sem abrigar mais “olhar nem riso” (OP, p. 281). E não é nem
mesmo preciso que a morte tenha chegado para matar o olhar; este vai morrendo pela
vida afora, em tudo o que vê morrer. Diante de um arbusto que fenece, diz RR: “Em
tudo o que olhei fiquei em parte” (OP, p. 282). Leia-se: em tudo o que olhei morri um
pouco.
De todos os heterônimos de Pessoa, RR é aquele em que mais forte se mani-
festa a pulsão de morte. A beleza fria de seus poemas é a de monumentos funerários,
sublimações do horror de ser mortal, formas de harmonia congelada ofertadas ao olhar
dos vivos, para que estes se lembrem de que seus olhos se fecharão um dia.
Espanta-me que muitos leitores, isolando versos de RR — como “Para ser
grande, sê inteiro” (OP, p. 289), ou “Quanto faças, supremamente faze” (OP, p. 287) —
, tentem transformá-lo em mestre de vida; a lição de RR, se lição há, é de um pessi-
mismo mortal. Não é o sentido dessas odes que nos ensina qualquer coisa de utilidade
moral, mas a sua forma soberana, que contradiz, em sua altiva conquista, o niilismo
filosófico ou, segundo outra ótica, a profunda neurose de sua mensagem. O olhar de
RR petrifica o que vê, e nesse sentido mata; mas petrifica em formas que suplantam as
formas naturais, e nesse sentido, que é o artístico, vivem e sobrevivem.
E a ode termina, uns 800 versos depois, com a visão do navio que vai:
[…]
Homens que vistes a Patagônia!
Homens que passastes pela Austrália!
Que enchestes o vosso olhar de costas que nunca verei!
(OP, p. 321)
A exasperação do olho, como dos outros órgãos dos sentidos, tem o seu preço
de saturação e exaustão:
O olhar para dentro e para trás encontra sempre outra cena: a da infância. Livros
de imagens coloridas, onde o mundo era mais belo; formas e cores da festa de aniver-
sário, que hoje não festejam mais; olhares amorosos que o faziam sentir-se realmente
existente:
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Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui…
(OP, p. 379)
CONCLUSÃO
Notas:
[1] V. Fernando Pessoa, Obra poética, org., introd. e notas de Maria Aliete Galhoz, 2 ed., Rio de Janeiro, Agui-
lar, 1965, P. 655. Esta obra será doravante designada pela sigla OP.
[3] Jacques Lacan, Le Séminaire livre XX, Encore, Paris, Seuil, 1975, p. 79.
[4] Paul Valéry, “La jeune Parque”, Oeuvres, tome 1, Paris, Gallimard, 1957, Bibliothèque de la Pleiade, pp. 96-
110.
[6] Da realidade sem mistérios ao mistério do mundo — Espinosa, Voltaire, Merleau-Ponty, São Paulo, Brasili-
ense, 1981, p. 273.
[7] Primeiro Fausto, org. e introd. de Duílio Colombini, São Paulo, Epopeia, 1986, p. 136.
[9] Fernando Pessoa, Páginas íntimas e de auto-interpretação, Lisboa, Ãtica, s.d., P. 233. Esta obra será dora-
vante designada pela sigla PIAI.
[12] D. T. Suzuki, Erich Fromm, Richard de Martino, Zen budismo e psicanálise, São Paulo, Cultrix, 1976, p.
27.
[20] Vida e obra de Fernando Pessoa — história de uma geração, 2 ed., Lisboa, Livraria Bertrand, s.d., p. 665.
[21] V. Leyla Perrone-Moisés, Fernando Pessoa — aquém do eu, além do outro, São Paulo, Martins Fontes,
1982, p. 35. (cap. II: “O gênio desqualificado”).