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PENSAR É ESTAR DOENTE DOS OLHOS


Leyla Perrone-Moisés

Disponível em:
<https://artepensamento.ims.com.br/item/pensar-e-estar-doente-dos-olhos/>

Cada pessoa é um olhar lançado ao mundo e um objeto visível ao olhar do mundo. Cada
corpo dispõe de um jeito de olhar que lhe é próprio e essa particularidade condiciona
também sua visibilidade como corpo diferente dos outros.
Inicio com essas evidências para preparar o enfoque de um fenômeno poucas
vezes visto: o de uma pessoa que não se contentou com dispor de um único olhar mas
quis dispor de vários, enfrentando o risco de se perder a si mesma de vista.
Minha proposta é considerar cada um dos múltiplos nomes sob os quais escre-
veu Fernando Pessoa (cada heterônimo e o não menos heteronímico ortônimo) como
um olhar; examinar não apenas o jeito de olhar que caracteriza cada um deles, mas
também o modo como, em cada um, é tratado o próprio tema do olhar.
O olhar é um tema privilegiado na poesia pessoana porque esta, em suas várias
facetas, é uma poesia de vocação filosófica, onde a reflexão sobre a relação sujeito-
objeto é constante. Se algo unifica as múltiplas personalidades do Poeta é, paradoxal-
mente, a questão sempre presente da unidade impossível do sujeito Pessoa.
Começarei por Fernando Pessoa “ele mesmo”, não porque eu o considere como
o Pessoa verdadeiro e essencial, mas por comodidade. Seguirei a ordem de apresenta-
ção que é a habitual nas edições de suas obras completas. Na verdade, qualquer ordem
serviria para percorrer o círculo descentrado dos nomes-Pessoa, e “ele mesmo” alguma
vez pensou numa ordem diferente daquela geralmente adotada por seus editores pós-
tumos.[1]
2

FERNANDO PESSOA: O OLHAR VELADO

Fernando Pessoa “ele mesmo” é aquele que não consegue olhar o mundo com um
olhar de ver. Entre seus olhos e as coisas há uma névoa constante, um intervalo de
bruma que desrealiza o real:

E a terra é verde, verde…


Por que então minha vista
Por meus sonhos se perde?
De que é que a minha alma dista?
(OP, p. 122)

O sonho, tema recorrente em FP, é por ele vivido e considerado como oposto
ao real. O olhar do sonhador é um olhar de desconhecimento e de perda:

Sou o ser que vê,


E vê tudo estranho
[…]
Tudo é ilusão
Sonhar é sabê-lo.
(OP, p. 142)

Sonhar é estar separado e distante, é perder um real inapreensível porque in-


desejável:

Contemplo o que não vejo.


(OP, p. 170)

Este verso define plenamente o olhar de FP “ele mesmo”: estático e cego para
o mundo exterior, incapaz de estabelecer uma relação do sujeito que olha com o mundo
sensível. O olhar de FP é toldado pela impossibilidade de se deter naquilo que Merleau-
Ponty chama de “carne do mundo”. Descarnado ele mesmo, corpo que nega sua cor-
poralidade, FP vê as coisas irreais como símbolos de uma realidade oculta igualmente
invisível:

Ao longe, ao luar,
No rio uma vela,
Serena a passar,
Que é que me revela?
Não sei, mas meu ser
Tornou-se-me estranho,
E eu sonho sem ver
Os sonhos que tenho.
Que angústia me enlaça?
Que amor não se explica?
É a vela que passa
Na noite que fica. (OP, p. 143)
3

No jogo paranomásico da rima, o véu que perturba a visão da vela impede que
esta revele o que venda, deixando seu contemplador no escuro angustiante da noite.
Para FP, tudo o que o olhar vê é símbolo de algo oculto. Mas, diferentemente
dos poetas românticos e simbolistas, FP não postula o mundo interior do sonho como
um mundo alternativo e preferencial; poeta-filósofo, ele questiona seu modo de olhar,
reflete sobre sua incapacidade de ver o mundo exterior:

Olho o Tejo, e de tal arte


Que me esquece olhar olhando,
E súbito isto me bate
De encontro ao devaneando —
Que é ser-rio, e correr?
O que é está-lo eu a ver?
Sinto de repente pouco,
Vácuo, o momento, o lugar.
Tudo de repente é oco. —
Mesmo o meu estar a pensar.
Tudo — eu e o mundo em redor —
Fica mais que exterior.
Perde tudo o ser, ficar,
E do pensar se me some.
Fico sem poder ligar
Ser, ideia, alma de nome
A mim, à terra e aos céus…
E súbito encontro Deus.
(OP, p. 111-2)

Esse poema mostra, exemplarmente, aquilo que Benedito Nunes apontou como
“o primado da consciência reflexiva” em FP. “A reflexão excessiva [diz Benedito Nunes],
que nele se opôs ao sentir espontâneo, à plenitude das vivências puras, explica o des-
dobramento, tão patente nos poemas de O cancioneiro, dos atos de olhar, ouvir e lem-
brar. Mais do que olhar, o poeta vê-se olhando”.[2]
Paul Valéry, outro poeta em quem a consciência prevalece sobre as sensações,
pôs na boca de sua “Jovem Parca”: “eu me via me ver”. Ver-se vendo, olhar-se olhando,
é deixar de olhar e de ver o que se olha e vê fora de si, para tentar captar, no sentido
inverso, o próprio ponto de onde o sujeito olha. O resultado dessa operação, além da
perda do objeto exterior, é o eclipse do próprio sujeito, que topa com o ponto cego da
consciência tentando captar-se a si mesma como objeto. A esse respeito, diz o psica-
nalista Lacan: “Na ilusão da consciência de se ver vendo, o que se elide é o olhar, esse
avesso da consciência”.[3]
A autodevoração da consciência se representa, em Valéry, pela imagem da ser-
pente que devora sua própria cauda. A jovem Parca, ao ver-se vendo, estabelece ela
mesma e imediatamente essa relação:

Eu me via me ver, sinuosa, e dourava


De olhares em olhares minha profundas florestas.
Seguia nelas uma serpente que acabava de me morder. [4]
4

A reflexão excessiva impede o puro olhar, a apreensão do objeto pelo sujeito.


Em FP, a incapacidade de ver o mundo exterior como algo onde o olhar possa deter-se
afeta a existência do próprio sujeito. Seu olhar se coloca imediatamente fora das coisas:
para além delas, já que busca por detrás delas algo oculto, invisível e essencial (é o
Pessoa ocultista), e aquém delas, já que ao invés de ver as coisas o sujeito tenta ver-
se a si mesmo olhando (é o Pessoa da consciência reflexiva). O sujeito se torna assim
tão alheio a si mesmo quanto as coisas, sem nome — “sem poder ligar/ Ser, ideia, alma
de nome/ A mim, à terra e aos céus” —, anônimo e sumido (FP rima “some” com
“nome”), oco-eu dentro de um oco-mundo, mera parte ou momento do Grande Ob-
jeto.[5]
O sujeito se constituirá então como inquietante estranheza para si mesmo:

De quem é o olhar
Que espreita por meus olhos?
Quando penso que vejo,
Quem continua vendo
Enquanto estou pensando?
(OP, p. 132)

FP não é um idealista absoluto, que postule a inexistência do mundo para afir-


mar a única existência das representações que o sujeito possui desse mundo. Em FP,
o próprio sujeito pensante se dissolve, na impossibilidade de ver o mundo como exte-
rior. A sensação de inexistência não é prévia à experiência do olhar, não se estende do
sujeito ao mundo, mas do mundo ao sujeito. FP não diz: não existo, portanto nada
existe, mas diz: não consigo deter meu olhar no mundo, para ideá-lo e nomeá-lo, e por
isso não posso idear-me ou nomear-me.
Só uma entidade maior e superior, um Olhar de cima, poderia colocar cada uma
dessas coisas em seu lugar, vê-las, nomeá-las, compreendê-las. Um Olhar sem véu,
que velasse pelas coisas e pelo sujeito que, velado, em vão tenta vê-las: “E súbito
encontro Deus”.
Em outro poema, podemos perseguir o desdobrar desses significantes cujos
significados só a poesia motiva:

Entre a árvore e o vê-la


Onde está o sonho?
Que arco da ponte mais vela
Deus?… E eu fico tristonho
Por não saber se a curva da ponte
É a curva do horizonte…
[…]
Deus é um grande Intervalo,
Mas entre quê e quê?…
Entre o que digo e o que calo
Existo? Quem é que me vê?
(OP, p. 113)
5

A vela, velada e ocultante, que passava no rio do outro poema, é aqui substituída
pela árvore e pelo arco da ponte, igualmente velados para os olhos do Poeta, mas
velados pelo olhar de Deus, que os vê e que não podemos ver, que apenas podemos
intuir como grande Intervalo”. O olhar de Deus faria a ligação das coisas, mas como
não podemos vê-lo nem ver por seus olhos, afrontamo-lo como Intervalo.
O olhar de Deus é invocado por FP para garantir a existência das coisas e de si
mesmo. Entretanto, esse Deus judaico que tudo vê sem que o vejamos, Grande Olho
sempre pronto a desvendar a culpa e puni-la, revela-se como outra ameaça à autonomia
do sujeito, alienado objeto, perdido no olhar do Sujeito Absoluto, de quem ele é “erguido
pó, símbolo só” (OP, p. 164).
Olhado por um deus invisível, FP se sentirá espreitado por todos os lados, pelos
próprios objetos inanimados:

[...]
Sinto a sua ausência de olhos fitar-me e estremeço.
[…]

De onde é que estão olhando para mim?


Que coisas incapazes de olhar estão olhando para mim?
Quem espreita de tudo?

As arestas fitam-me.
Sorriem realmente as paredes lisas.
[...]
(OP, p. 133-4)

Marilena Chaui, num texto sobre Merleau-Ponty, se refere a essa misteriosa


presença das coisas: “O sensível, ser dos confins, é ‘o que vela às portas de nossa
vida’. A presença das coisas é um mistério não por ignorarmos como são possíveis,
mas porque reivindicam a existência como indivíduos. Mais: são campos ou configura-
ções, famílias ou estilos de ser. Menos: são puras diferenciações e não encarnações do
princípio de identidade”.[6]
A experiência de FP com as coisas vai, entretanto, além (ou alhures) desse
sereno e quase amistoso mistério de que falam Merleau-Ponty e Marilena. Quando as
coisas começam a nos olhar, estamos experimentando não o mistério do conheci-
mento, mas o mistério do desconhecimento; é aquela experiência do inconsciente que
Freud conceituou como Unheirnlich (a inquietante estranheza) e que, quando de pontual
passa a permanente, se chama loucura, psicose.
FP beira esse risco. Mas no mais das vezes essa experiência pessoana do mis-
tério das coisas se apoia no álibi filosófico de um ocultismo neoplatônico:

Neste mundo em que esquecemos


Somos sombras de quem somos,
E os gestos reais que temos,
No outro, em que, almas, vivemos,
São aqui esgares e assomos.
6

Tudo é noturno e confuso


No que entre nós aqui há.
Projeções, fumo difuso
Do lume que brilha ocluso
Ao olhar que a vida dá. (OP, p. 178)

FP “ele mesmo” não é sempre igual a ele mesmo. A esse Poeta do Mistério e
do Oculto se justapõe (ou se contrapõe) o ortônimo da Razão soberana, do olhar ilumi-
nista, que tudo quer dominar:

Guia-me a só razão.
Não me deram mais guia.
Alumia-me em vão?
Só ela me alumia.
[…]
Com o olhar, a razão
Deus me deu, para ver
Para além da visão —
Olhar de conhecer.
(OP, pp. 159-60)

Esse “olhar de conhecer” é um presente de deus grego. Levado ao extremo, o


“olhar de conhecer” é destrutivo e autodestrutivo. Pior do que não ver porque “tudo é
oculto” é ver demais, com a fúria destruidora do Fausto, que FP “ele mesmo” também
assina. Nessa peça inacabada (Primeiro Fausto), FP desenvolve largamente o tema do
“olhar de conhecer”. Conhecer o objeto é anulá-lo, é devorá-lo pela consciência. Quanto
mais o olhar desse Fausto se aguça nessa prática, mais o sujeito Fausto se sente ame-
açado, por supor no olhar de outrem igual poder anulador:

Ó horror metafísico de Outrem!


O pavor de uma consciência alheia
Como um deus a espreitar-me!
Quem me dera
Ser a única consciência animal
Para não ter olhares sobre mim!

Dos olhos de cada um me fita, vivo,


O mistério de ver; e o horror de verem-me
Abisma-se.[7]

Essa temática é familiar aos leitores de Sartre. A psicanálise nos leva a dar a tal
reflexão uma inflexão particular, pela inclusão do desejo inconsciente no enfrentamento
do olhar de outrem. Esse olhar, diz Lacan, “é não um olhar visto, mas um olhar por mim
imaginado no campo do Outro”.[8]
A autovigilância da consciência em FP “ele mesmo”, como em seu Fausto, é um
meio de evitar o corpo, o corpo próprio e o alheio, corpos desejantes de que ele, lite-
ralmente, não quer nem saber:
7

Tão abstrata é a ideia do teu ser


Que me vem de te olhar, que, ao entreter
Os meus olhos nos teus, perco-os de vista,
nada fica em meu olhar, e dista
Teu corpo do meu ser tão longamente,
a ideia do teu ser fica tão rente
Ao meu pensar olhar-te, e ao saber-me
Sabendo que tu és, que só por ter-me
Consciente de ti, nem a mim sinto.
(OP, p. 106)

Simetricamente, é bom, para FP, que o olhar do outro seja também desencar-
nado:

Olhas-me de repente
De um distante impreciso
Com um olhar ausente
Começas um sorriso.
(OP, p. 186)

O olhar alheio dá a FP um trabalho insano. Proteger-se é uma eterna vigilância:

Cerca de grandes muros quem te sonhas.


[…]

Faze canteiros como os que outros têm,


Onde os olhares possam entrever
teu jardim como lho vais mostrar.
Mas onde és teu, e nunca o vê ninguém,
Deixa as flores que vêm do chão crescer
E deixa as ervas naturais medrar.

Faze de ti um duplo ser guardado;


E que ninguém, que veja e fite, possa
Saber mais que um jardim de quem tu és
[..]
(OP, p. 188)

Olhar sem ver (porque a vida é sonho e tudo é oculto); ver-se olhando (porque
a consciência se quer soberana); ser visto sem ver quem nos olha (estar assujeitado
ao olhar de Deus ou dos múltiplos deuses aninhados nos outros e nas coisas) — todas
essas situações são terrivelmente desconfortáveis; em nenhuma delas FP consegue
sentir-se “ele mesmo”. Por tudo isso, o olhar do ortônimo é o mais triste dos olhares
pessoanos.
8

ALBERTO CAEIRO: O OLHAR NÍTIDO

Olhar e ser olhado como FP “ele mesmo” é exaustivo. Para deixar de ser ele mesmo e
tentar outra relação com o mundo, FP inventou seu mestre Caeiro.
Contra a busca do mistério, em que se abisma FP “ele mesmo”, Alberto Caeiro
propõe o simples olhar para as coisas, sem nenhuma interrogação metafísica. Ao “olhar
de conhecer”, ele opõe o olhar de ver:

[...]
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas coisas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
[...]
(OP, p. 207)

Caeiro se apresenta como o oposto de FP “ele mesmo”: solar, enquanto aquele


é lunar; “simples”, enquanto aquele é complicado; “sereno”, enquanto o outro é angus-
tiado. Para Caeiro, o melhor modo de olhar o sol, como as outras coisas, é voltar-se
para ele e abrir-se à sua luz:

O meu olhar é nítido como um girassol.


Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás…
E o que vejo a cada momento
aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem…
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras…
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo…
(OP, p. 204)

Olhar de criança, olhar primeiro, olhar nítido — para consegui-lo é preciso parar
de pensar:

Creio no mundo como num malmequer,


Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender…
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo…
(OP, p. 204-5)
9

Pessoa criou Caeiro como o mestre de que necessitava para ser menos infeliz;
concebeu-o como o fundador de um movimento filosófico político e estético, o neopa-
ganismo, cuja inspiração se encontraria na Antiguidade clássica. O objetivo desse mo-
vimento era reativo e terapêutico: “Fazer renascer o objetivismo puro dos gregos e
romanos” em oposição ao subjetivismo cristão, “decadente” e “mórbido”.[9]
Ricardo Reis, que será outro dos discípulos de Caeiro, dizia que este possuía
“toda a simplicidade, toda a grandeza, toda a posse das cousas que os antigos tinham”.
Para o “espírito exilado na vida contemporânea”, Caeiro seria uma “consolação”; para o
“mal de adulto” de que sofremos hoje, os Antigos, “simples” e “inocentes” como crian-
ças, seriam um exemplo salutar.[10]
Não cabe discutir aqui até que ponto a concepção que Pessoa tinha dos gregos
e romanos corresponde às reais posturas filosóficas da Antiguidade. Como observou
Benedito Nunes, Caeiro é o “porta-voz de um realismo originário, desvinculado de com-
promissos filosóficos historicamente determináveis, e que ignora o problema das duas
substâncias, matéria e espírito, corpo e alma”.[11]
“Grego”, Caeiro estaria mais próximo dos pré-socráticos do que dos grandes
filósofos da era clássica. Seu empirismo o aproxima de um Heráclito, de quem subs-
creveria as afirmações só aparentemente óbvias como: “O sol é novo cada dia”, ou “A
largura do sol é a de um pé humano”.
Caeiro é pagão pelo fato de sua relação direta com o mundo sensível dispensar
qualquer referência a outro mundo, superior e sobrenatural, que as coisas ocultem ou
ao qual estejam subordinadas:

Sempre que olho para as cousas e penso no que os homens pensam delas,
Rio como um regato que soa fresco numa pedra.
Porque o único sentido oculto das cousas
É elas não terem sentido oculto nenhum,
É mais estranho do que todas as estranhezas
E do que os sonhos de todos os poetas
E os pensamentos de todos os filósofos,
Que as cousas sejam realmente o que parecem ser
E não haja nada que compreender.
(OP, p. 223)

O olhar, que é a relação privilegiada na filosofia reflexiva, é educado por Caeiro


para equivaler às outras experiências sensoriais, e estas ao pensamento, numa integra-
ção total e harmoniosa do sujeito com o objeto. A representação do objeto deve desa-
parecer, para Caeiro, em proveito de uma cognição direta e sensorial:

Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la


E comer um fruto é saber-lhe o sentido.
(OP, p. 212)

Enquanto FP “ele mesmo” não consegue sentir porque “o que em mim sente
está pensando”, Caeiro propõe a naturalidade e a calma de “Sentir como quem olha” e
“Pensar como quem anda” (OP, p. 216).
10

Mais do que praticar um olhar objetivo, Caeiro busca um tipo de olhar que des-
faça a distinção sujeito-objeto, que integre o que apreende com o que é apreendido.
Assim, o olhar de Caeiro se assemelha ao que é proposto pelas filosofias orientais. Um
famoso mestre zen dizia: “Logo que começas a pensar numa coisa, ela deixa de ser.
Precisas vê-la imediatamente, sem raciocinar, sem hesitar”[12]. O mesmo afirma o mes-
tre Caeiro:

Não basta abrir a janela


Para ver os campos e o rio.
Não é bastante não ser cego
Para ver as árvores e as flores.
É preciso também não ter filosofia nenhuma.
Com filosofia não há árvores: há ideias apenas.
(OP, p. 231)

Para Caeiro, como para os mestres do zen, o olhar não é instrumento de análise,
mas abertura receptiva ao real; muito diferente do olhar ocidental, que é ataque armado
de conceitos, carregado de intenções intelectivas ou de projeções psicológicas, olhar
que separa, que cinde, que destrói.
O amor, para Caeiro, é uma doença dos olhos tanto quanto o pensamento. Em
seu breve período de “pastor amoroso”, Caeiro tem sua visão embaçada. A figura da
amada, figura cambiante e falsa como todas as que não são fruto direto dos sentidos,
se sobrepõe constantemente às formas do mundo exterior. “Amar é pensar”, diz ele
(OP, p. 230); e pensar, já vimos, é estar doente dos olhos. Somente após curar-se dessa
doença amorosa o pastor Caeiro poderá recuperar a nitidez de seu olhar:

Quando se ergueu da encosta e da verdade falsa, viu tudo:


Os grandes vales cheios dos mesmos verdes de sempre,
As grandes montanhas longe, mais reais que qualquer sentimento,
A realidade toda, com o céu e o ar e os campos que existem, estão presentes.
(OP, p. 230)

A proposta de Caeiro é a de um olhar novo e claro, aberto à maravilha cotidiana


de as coisas existirem e serem visíveis a olho nu. O olhar nítido é o próprio fundamento
da proposta de Caeiro. Para ele, não é o modo de ser que precede e determina o modo
de olhar, mas é o modo de olhar que define o ser:

Sou fácil de definir.


Vi como um danado.
(OP, p. 237)

Saber olhar é uma receita de felicidade. Numa conversa relatada por Álvaro de
Campos, Caeiro explicava: “Toda a coisa que vemos, devemos vê-la sempre pela pri-
meira vez, porque realmente é a primeira vez que a vemos. E então cada flor amarela é
uma nova flor amarela, ainda que seja o que se chama a mesma de ontem. A gente não
é já o mesmo nem a flor a mesma. O próprio amarelo não pode ser já o mesmo. É pena
11

a gente não ter exatamente os olhos para saber isso, porque então éramos todos feli-
zes” (OP, pp. 247-8).
Em que medida o próprio Caeiro consegue praticar o olhar que prega? A res-
posta é: até certo ponto. Caeiro é muitas vezes capaz de falar das coisas que vê sem
sobrecarregá-las de conceitos e sentimentos, colocando-as diante de nossos olhos
“pela primeira vez”: a noite que entra “como uma borboleta pela janela” (OF, p. 203); as
flores “cor da sombra” quando uma nuvem passa (OP, p. 219); as bolas de sabão “com
uma precisão redondinha e aérea” (OF, p. 218). Ou de modo ainda mais direto, com
simples dêixis: “Há novas flores, novas folhas verdes” (OF, p. 235); ou como tautologia
assumida: “O luar através dos altos ramos […] / É não ser mais/ Que o luar através dos
altos ramos” (OP, p. 222).
Entretanto, na medida em que a poesia de Caeiro é também uma proposta de
método, uma insistente lição arrazoada de como se deve e não se deve olhar o mundo,
essa poesia evidencia uma tensão interna. Mais do que um claro olhar, Caeiro é um
esforço de olhar claro. Sua maestria não é apenas exemplar, como a dos mestres zen;
ela se exerce de modo argumentativo, autojustificativo e contestatório. Caeiro não é
apenas o oposto de FP “ele mesmo”; ele é resposta, crítica e oposição dialógica. O
mestre dialoga frequentemente com um discípulo oculto, equivocado e teimoso, cujas
perguntas seriam as de FP “ele mesmo”: “O mistério das coisas? Sei lá o que é o
mistério” (OP, p. 207); “o que nós vemos das cousas são as cousas! Por que veríamos
nós uma cousa se houvesse outra?” (OP, p. 217).
Por ser não apenas prática, mas teoria da simplicidade, Caeiro se revela com-
plexo; por insistir tanto em exibir sua serenidade, torna-se suspeito de intranquilidade.
Sua suposta identidade consigo mesmo e com o mundo se quebra, pelo fato de seu
discurso fazer dessa identidade um objeto de análise. Como FP “ele mesmo”, Caeiro
também se vê olhando, também transforma o próprio olhar em coisa pensada:

O meu olhar azul como o céu


É calmo como a água ao sol.
É assim, azul e calmo,
Porque não interroga nem se espanta…
[…]
Porque tudo é como é e assim é que é,
E eu aceito, e nem agradeço,
Para não parecer que penso nisso…
(OP, p. 217)

Este último verso é a confissão do disfarce. Caeiro não é apenas o mestre de


FP “ele mesmo” e dos outros; é o mestre aplicado de si mesmo, e a repetição da lição
evidencia que o aluno a recebe com dificuldade:

O essencial é saber ver,


Saber ver sem estar a pensar,
Saber ver quando se vê,
E nem pensar quando se vê
Nem ver quando se pensa.
Mas isso (tristes de nós que trazemos a alma vestida!),
12

Isso exige um estudo profundo,


Uma aprendizagem do desaprender
(OP, p. 217)

Aprendizagem árdua, que lhe arranca o desabafo:

Que difícil ser próprio e não ver senão o visível!


(OP, p. 218)

Mais de um poema de Caeiro começa com a fórmula: “Quem me dera…”. Quem


me dera ser de fato Caeiro, e poder olhar sem pensar — isto é o que diz, indireta e
constantemente, a poesia do guardador de rebanhos. Apesar disso, seu olhar é o mais
feliz dentre os olhares pessoanos. O esforço por ser Caeiro, em vários momentos, tem
êxito, e permite ver o sol e os girassóis, sem névoas de mágoa e sem nuvens de per-
guntas.

RICARDO REIS: O OLHAR DISTANTE

Ricardo Reis, o heterônimo neoclássico, autor de rigorosas odes horacianas e


teórico do neopaganismo, é um esforço redobrado: Reis procura ser o fiel discípulo do
mestre Caeiro. Como este, pretende ver claramente o mundo “exterior”; mas seu olhar
é frio e desencantado:

O mundo exterior claramente vejo —


Coisas, homens, sem alma.
(OP, p. 287)

Estoico, RR procura olhar o mundo desapaixonadamente, sem se envolver com


ele:

Sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo.


(OP, p. 259)

A formulação dessa máxima diz tudo: a virtual insatisfação com o espetáculo


(contentar-se com ele), a conveniência de considerá-lo apenas como espetáculo, a po-
sição assumida de espectador não participante.
Descrente da utilidade da ação, já que acima dos homens paira o Destino so-
berano, RR adota uma atitude contemplativa e busca, no desapego, a serenidade. Seu
olhar é olhar à distância:

Sereno e vendo a vida distância a que está.


(OP, p. 258)
13

Entretanto, mais do que a serenidade dos sábios, o que ele cultiva é a indife-
rença soberba dos seres magoados. Seu estoicismo é uma autodefesa.
Em RR, coloca-se constantemente a questão do lugar do olhar, que define a
situação do observador no universo, sua relação com as coisas vistas e com os outros
seres capazes de olhar. Há, na poesia de RR, uma hierarquia dos olhares.
“Mais alto estão os deuses […] visíveis à nossa alta vista” (OP, p. 265). Abaixo
do homem, estão as coisas do mundo, que ele deve olhar como os deuses, à distância:
“Vê de longe a vida […] Imita o Olimpo no teu coração” (OP, p. 270). A altura é o desafio
enfrentado por RR. Não podendo olhar dos céus, como os deuses, RR busca ao menos
o alto das colinas, “longe de homens e de cidades”, onde ninguém, nem casa alguma,
lhe vede a vista (OP, p. 262).
Olhar como os deuses é, para RR, ter um conhecimento imediato, total, sinté-
tico, oposto ao conhecimento analítico da ciência humana, “contemplação estéril” que
olha “até não ver nada com seus cansados olhos” (OP, p. 292). O olhar dos deuses é o
olhar clarividente, o olhar ideal:

Para os deuses as coisas são mais coisas.


Não mais longe eles veem, mas mais claro
Na certa Natureza
E a contornada vida…

Não no vago que mal veem


Orla misteriosamente os seres,
Mas nos detalhes claros
Estão seus olhos.

A Natureza é só uma superfície


Na sua superfície ela é profunda
E tudo contém muito
Se os olhos bem olharem.

Aprende, pois, tu, das cristãs angústias,


traidor à multíplice presença
Dos deuses, a não teres
Véus nos olhos nem na alma.
(OP, p. 294)

Contrariamente ao olhar cristão, cego para o visível por considerá-lo como mero
sinal do invisível essencial, o olhar que RR deseja ter detém-se na carne das coisas,
onde tudo está. Assim, Caeiro e Reis proclamam o oposto daquela famosa frase de
Saint-. Exupéry: “O essencial é invisível aos olhos”. Os neopagãos pessoanos afirmam
exatamente o contrário: “O essencial é visível aos olhos”.
Esse olhar sereno e clarividente é, porém, para RR como para Caeiro, apenas
um ideal. Atormentado pelo fluir do tempo, obcecado com a morte, RR não pode ter a
serenidade olímpica dos deuses eternos. O epicurismo de RR é triste (quem o diz é
outro heterônimo[13]). A crença no poder do Destino não o libera mas oprime, porque
esse Destino se parece mais com os desígnios do Deus infalível e punitivo de Israel do
14

que com as potências caprichosas, porém múltiplas, cambiantes, opostas entre si, e
sobretudo visíveis e acessíveis a que estavam sujeitos os pagãos.
A concepção cristã do tempo irreversível tinge de cores melancólicas tudo o
que RR contempla. “Está envenenada para sempre a alma humana”, reconhecerá ele
num texto teórico.[14]
O olhar de RR, temendo as mutações, transforma o espetáculo do mundo em
quadro imóvel, ondas do mar, folhagens, frutos, corpos nus, tudo parece, em sua poe-
sia, fixado como num baixo-relevo. O olhar de RR é olhar petrificante de Medusa. A
profusão das formas naturais adquire, sob seu olhar, uma rigidez geométrica. Os jardins
são “exatos” (OP, p. 257); os raios do sol são “lisos” e “agudos” (idem), a própria chama
da lâmpada, forma móvel por excelência, é para ele “firme” e “esguiada”, “como preci-
osa e antiga pedra” (OP, p. 263); o mar “jaz” (OP, p. 264), e seu movimento é regido
pela simetria: três precisas ondas (OP, p. 265).
Dentro dessa natureza-cenário, as pessoas figuram como atores imóveis de um
“quadro vivo”:

Bocas roxas de vinho,


Testas brancas sob rosas,
Nus, brancos antebraços
Deixados sobre a mesa;
Tal seja, Lídia, o quadro
Em que fiquemos mudos,
Eternamente inscritos
Na consciência dos deuses.
(OP, p. 266)

Assim, tudo se imobiliza sob o olhar de RR. Comprovando que sua concepção
do tempo não é cíclica como a dos Antigos, tudo o que se repete é visto por ele não
como recomeço, mas como ausência de mudança e renovada decepção. O verão traz
de novo “as aparentes novas flores” (OP, p. 276, sublinhado por mim); as ondas do mar,
“uma após uma”, são sempre a mesma onda (OP, p. 273); a abelha que freme sobre a
flor “não mudou desde Cecrops” (OP, p. 275). Enquanto Caeiro via a “eterna novidade
do mundo”, RR vê a eterna velhice do mesmo.
O mundo não muda para o olhar de RR porque ele teme qualquer mudança em
si mesmo:

Tudo que me ameace de mudar-me


Para melhor que seja, odeio e fujo.
Deixem-me os deuses minha vida sempre
Sem renovar […]
(OP, p. 273)

Por temor de que as mudanças, sinal do tempo, tragam a morte, RR quer tudo
parado, intemporal; mas ao ver tudo imóvel, o que seus olhos encontram é a própria
rigidez da morte:
15

Olho os campos, Neera,


Campos, campos, e sofro
Já o frio da sombra
Em que não terei olhos.
A caveira ante-sinto
Que serei não sentindo […]
(OP, p. 278)

Obcecam-no os “olhos feitos para deixar de ver” (OP, p. 279), a cova que es-
conde “olhos e bocas” sem abrigar mais “olhar nem riso” (OP, p. 281). E não é nem
mesmo preciso que a morte tenha chegado para matar o olhar; este vai morrendo pela
vida afora, em tudo o que vê morrer. Diante de um arbusto que fenece, diz RR: “Em
tudo o que olhei fiquei em parte” (OP, p. 282). Leia-se: em tudo o que olhei morri um
pouco.
De todos os heterônimos de Pessoa, RR é aquele em que mais forte se mani-
festa a pulsão de morte. A beleza fria de seus poemas é a de monumentos funerários,
sublimações do horror de ser mortal, formas de harmonia congelada ofertadas ao olhar
dos vivos, para que estes se lembrem de que seus olhos se fecharão um dia.
Espanta-me que muitos leitores, isolando versos de RR — como “Para ser
grande, sê inteiro” (OP, p. 289), ou “Quanto faças, supremamente faze” (OP, p. 287) —
, tentem transformá-lo em mestre de vida; a lição de RR, se lição há, é de um pessi-
mismo mortal. Não é o sentido dessas odes que nos ensina qualquer coisa de utilidade
moral, mas a sua forma soberana, que contradiz, em sua altiva conquista, o niilismo
filosófico ou, segundo outra ótica, a profunda neurose de sua mensagem. O olhar de
RR petrifica o que vê, e nesse sentido mata; mas petrifica em formas que suplantam as
formas naturais, e nesse sentido, que é o artístico, vivem e sobrevivem.

ÁLVARO DE CAMPOS: O OLHAR CALEIDOSCÓPICO

AC é o heterônimo “modernista”, engenheiro naval por profissão, cosmopolita


por formação, dândi por militância estética, histérico ciclotímico por constituição psí-
quica. Representante do “sensacionismo” (mais um dos numerosos movimentos con-
cebidos por Pessoa), AC quer “sentir tudo de todas as maneiras”, até transbordar, ex-
travasar-se (OP, p. 345). O sensacionismo se define como uma arte sintética e cosmo-
polita, uma “nova espécie de Weltanshauung”[15] alcançada através de uma “análise ace-
rada das sensações”.[16]
Derivado do simbolismo francês e aparentado ao futurismo italiano, o sensaci-
onismo propõe, no entanto, um tipo de visão que lhe é próprio. Enquanto o simbolismo
“desfocava o mundo”, em obediência a estados mentais de tédio e de apatia,[17] o sen-
sacionismo busca captar também as sensações intensas, enérgicas, vibrantes da vida
moderna. Do futurismo, o sensacionismo recebe a arte da decomposição das formas;
mas aplica-se a decompor “não as coisas, mas as nossas sensações das coisas”.[18]
Tal é o programa estético de AC, programa que vai orientar seu modo de olhar
o mundo. Vejamos até que ponto ele o cumpre.
16

O olhar de AC é o olhar do homem moderno, adequado às novas circunstâncias:


as metrópoles, a multidão, os meios de transporte mais velozes. Como o homem da
multidão, detectado por Baudelaire apenas algumas décadas antes de Pessoa, AC vive
a experiência dos olhares rápidos que se cruzam e se perdem para sempre, no movi-
mento da cidade grande: “O único olhar sem interesse recebido no acaso/ Da estran-
geira rápida…” (OP, p. 361) ou “a estranheza ocasional” do olhar que lhe lança um tran-
seunte na rua (OP, p. 377).
Também como homem do século XX, AC experimenta um olhar que os séculos
anteriores desconheciam: o olhar do corpo transportado em velocidade, no automóvel.
“Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra” (OP, p. 371), AC vai ganhando e per-
dendo rápidas visões. Proust, na mesma época, registrava também as mutações da
paisagem sob o novo olhar do automobilista.
Enquanto sensacionista, AC tem um olhar caleidoscópico, sob o qual cores e
formas giram, superpõem-se e transformam-se, num motu continuum. Pessoa obser-
vava que a dívida do sensacionismo para com o futurismo dizia respeito mais aos qua-
dros do que aos textos literários. Nos momentos paroxísticos de suas Odes, AC tem
um olhar cubista ou futurista, um olhar que capta o objeto de vários ângulos ao mesmo
tempo. As mudanças bruscas de ponto de vista e a coexistência dessas visões consti-
tuem a Ode triunfal. Na Ode marítima, o paquete que vem chegando ao porto, “perto e
visível”, já está a uma “distância excessiva” para o olhar imaginativo do observador. Os
múltiplos navios que vêm e vão se entrecruzam, são “vistos de perto”, “vistos de baixo”,
“vistos de dentro” (OP, p. 317-18).
A Ode marítima inteira é uma construção do olhar. O poema se inicia com a
observação do navio que chega:

Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de Verão,


Olho pro lado da barra, olho pro Indefinido,
Olho e contenta-me ver,
Pequeno, negro e claro, um paquete entrando.
(OP, p. 314-15)

E a ode termina, uns 800 versos depois, com a visão do navio que vai:

Depois o navio a caminho da barra, pequeno e preto,


Depois ponto vago no horizonte (Ó, minha angústia!),
Ponto cada vez mais vago no horizonte…
(OP, p. 335)

Entre as duas visões do navio real, dezenas e dezenas de visões imaginárias,


desvairadas, alucinadas e perversas atravessam o olhar interior desse observador que
viaja pelo olhar sem deixar fisicamente o cais. Não só os navios mas os marinheiros
são olhados por esse voyeur; dos marinheiros, ele deseja o próprio olhar, deseja ver o
que eles veem:

Homens que têm tombadilhos, que têm pontes donde olhar


A imensidade imensa do mar imenso!
17

[…]
Homens que vistes a Patagônia!
Homens que passastes pela Austrália!
Que enchestes o vosso olhar de costas que nunca verei!
(OP, p. 321)

Há em AC uma gula insaciável do olhar, uma ânsia de devorar com os olhos o


maior número de coisas no menor espaço de tempo. Em Passagem das horas, AC pro-
cede a uma cavalgada visual que produz efeitos visuais semelhantes aos do álcool ou
da droga:

Rua sem poder encontrar uma sensação só de cada vez rua


Rua pra trás e pra diante debaixo dos meus pés
Rua em X em Y em Z por dentro dos meus braços
Rua pelo meu monóculo em círculos de cinematógrafo pequeno.
Caleidoscópio em curvas iriadas nítidas rua.
Bebedeira da rua e de sentir ver ouvir tudo ao mesmo tempo.
(OP, p. 352-3)

O mundo, para AC, é um espetáculo alucinante. O álcool e o ópio (Opiário, OP, p.


301) são por ele expressamente referidos como transformadores da visão; mas a visão
alucinada lhe é tão própria e constante que o estado de drogado parece ser o estado
natural de seu olhar. O eu de AC se esvai pelo olhar como numa hemorragia, se esti-
lhaça em explosões, o prazer de olhar é orgasmático:

Ah, olhar é em mim uma perversão sexual!


(OP, p. 309)

Entretanto, essa excitação do olhar “moderno”, procurada e encontrada por AC,


é finalmente vivida por ele como frustrante. O olhar da “estrangeira rápida” deixa-lhe
grandes mágoas de todas as coisas serem bocados” (OP, p. 361); ter olhado a passa-
geira do trem suburbano deixa-lhe a pergunta: “Qual foi a vida que houve nisto? Que
foi isto à vida?” (OP, p. 367); o passeio de automóvel faz com que ele sinta, na veloci-
dade, o desaparecimento rápido das coisas: a perda da rapariga imaginada à janela de
um casebre, a perda de si mesmo, proporcional ao ganho quilométrico:

Na estrada de Sintra, cada vez mais perto de Sintra,


Na estrada de Sintra, cada vez menos perto de mim…
(OP, p. 373)

A exasperação do olho, como dos outros órgãos dos sentidos, tem o seu preço
de saturação e exaustão:

O cansaço inconvertível de ver e ouvir!


[…]
Queria vomitar o que vi, só de náusea de o ter visto,
Estômago da alma alvorotado de eu ser…
(OP, p. 441)
18

AC é o heterônimo que menos se defende, que mais se expõe, que mais se


entrega à vertigem das sensações; mas é, correlatamente, aquele que precisa de bicar-
bonato e de aspirina (Bicarbonato de soda, OP, p. 380; “Preciso de verdade e da aspi-
rina”, OP, p. 384). As depressões de AC são monumentais. E, na depressão, ele se re-
vela afinal bem pouco futurista; o lastro tão português de mágoas e saudades acaba
sempre por forçá-lo a despir seu disfarce modernista.
Cai a noite, cai o observador no indefectível “si mesmo”, e todas as conquistas
do olhar caleidoscópico se revelam vãs. O manto negro da noite recobre as formas e
as cores com que se inebriava AC, e faz com que seu olhar se recolha. A Noite, “anti-
quíssima e idêntica”, apaga todas as diferenças:

E deixa só uma luz e outra luz e mais outra,


Na distância imprecisa e vagamente perturbadora,
Na distância subitamente impossível de percorrer.
[…]
E um vago soluço partindo melodiosamente
Do antiquíssimo de nós
[…]
De uma oculta vontade de soluçar,
Talvez porque a alma é grande e a vida pequena,
E todos os gestos não saem do nosso corpo
E só alcançamos onde o nosso braço chega,
E só vemos até onde chega o nosso olhar.
(OP, p. 312)

E então o futurista regressa ao “antiquíssimo”, o olhar caleidoscópico se reverte


e se concentra no âmago noturno do ser, “onde têm raiz todas essas árvores de mara-
vilha”; e a ebriedade reflui em soluço e se desfaz em lágrimas.
O sensacionismo, a intensidade, a exuberância, a extravagância são, em AC, o
que são a objetividade e a serenidade em Caeiro: um exercício de alteridade. Na volta
de suas “viagens”, AC é o depressivo, o que está imóvel no cais ou sentado à janela, o
que sabe estarem as coisas sempre uma diante da outra, irremediavelmente cindidas
no espaço e irremissivelmente perdidas no tempo. Depois de possuir tudo de todos os
ângulos, o olhar de AC volta para dentro e para trás, sob as pálpebras cerradas:

Encostei-me para trás na cadeira e fechei os olhos,


E meu destino apareceu-me na alma como um precipício.
[…]
E havia luar e mar e a solidão, ó Álvaro!
(OP, p. 401)

O olhar para dentro e para trás encontra sempre outra cena: a da infância. Livros
de imagens coloridas, onde o mundo era mais belo; formas e cores da festa de aniver-
sário, que hoje não festejam mais; olhares amorosos que o faziam sentir-se realmente
existente:
19

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui…
(OP, p. 379)

O adulto do presente é o que perdeu a identidade, o que não consegue mais


enxergar-se nem por seus próprios olhos nem pelos olhos dos outros, o que se gastou
e se extraviou na multiplicidade e na mobilidade das formas do mundo exterior. Os
temas do espelho e da máscara, da visibilidade e da invisibilidade do rosto são frequen-
tes em AC:

Quando quis tirar a máscara


Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi no espelho
Já tinha envelhecido.
(OP, p. 365)

O olhar de AC nunca efetua a relação harmoniosa do sujeito com o objeto. Pelo


olhar excessivamente exteriorizado, o sujeito futurista se fratura e se dispersa; pelo
olhar interiorizado, o sujeito saudoso só se vê como perdido. No simples olhar do pre-
sente, o que se patenteia é a separação, a falta de elo entre o olhar e o ver, o ver e o
ser visto, o ver a parte e compreender o todo. Esse é o grande tema do mais famoso
dos poemas de AC, Tabacaria:

Janelas do meu quarto […]


Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por debaixo das pedras e dos seres.
[…]
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.
[…]
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície […]
(OP, p. 362-5)

É toda a desgraça do olhar metafísico ocidental que se expõe em Tabacaria: a


cisão sujeito e objeto, a difícil comunicação entre sujeitos que tendem a objetivar-se
uns aos outros. Para que o universo se reconstrua, no final do poema, é necessário
que um outro olhar humano retribua o olhar do Poeta: o olhar do “Esteves sem metafí-
sica”.
20

Essa reconstrução do universo é melancólica (“sem ideal nem esperança”);


mesmo assim é uma epifania, se comparada ao efeito de outro olhar que AC lança sobre
a rua, em outro poema, o que o “esfria de pavor”:

Não, não, isso não!


Tudo menos saber o que é o Mistério!
Superfície do Universo, ó Pálpebras Descidas,
Não vos ergais nunca!
O olhar da Verdade Final não deve poder suportar-se!
(OP, p. 368)

Haveria todo um trabalho minucioso de análise a ser feito sobre a articulação


das oposições sujeito-objeto, interior-exterior, olhos fechados-olhos abertos (do sujeito
e do objeto), na poesia de AC; mas não cabe desenvolver aqui essa análise.

CONCLUSÃO

Olhando de fora as quatro personae pessoanas, observo o seguinte: duas des-


sas pessoas usam óculos, duas não. FP “ele mesmo”, o do olhar velado, usava óculos
de míope; seus óculos eram também um esconderijo, uma proteção contra o olhar
alheio. Caeiro, o do olhar nítido, não precisava evidentemente de óculos; não há qual-
quer alusão a isso nos textos dele ou sobre ele; Pessoa descreve, dele, sempre e ape-
nas, “os olhos azuis de criança que não tem medo”, “o olhar azul que não sabia deixar
de fitar”.[19] RR também, ao que consta, não usava óculos; seu olhar era distante mas
agudo. AC usava monóculo, o que lhe garantia ao mesmo tempo a aparência de dândi
e um olhar, que ele pretendia ter, sem profundidade.
Segundo seu biógrafo, João Gaspar Simões, as últimas palavras do homem
Pessoa foram: “Dá-me os óculos”.[20] Já tive ocasião de confrontar esse modesto último
pedido às famosas palavras finais de Goethe: Mais luz!”; nesse confronto, o pedido de
Pessoa toma ares de paródia involuntária. No século XX, o poeta já não ocupa aquele
lugar reconhecido de vidente que lhe coube no Romantismo; perdeu a auréola (Baude-
laire), a supervisão, e só tem acesso à visão parcial dos fenômenos.[21]
Exemplo do poeta moderno ocidental, Pessoa conseguiu, com sua multiplicação
de olhares, sintetizar os problemas filosóficos de nossa cultura greco-judaica. Num
texto teórico sobre o neopaganismo, Pessoa opõe a claridade grega, o meio-dia do
paganismo onde “tudo está detalhado em plena luz”, à penumbra de ocaso que nos
velou os olhos, por efeito da “longa doença chamada cristianismo”. Diz ele: “Entre a
sensação e o objeto dela — fosse esse objeto uma cousa exterior ou um sentimento
— intercalara-se todo um mundo de noções espirituais que desvirtuara a visão direta e
lúcida das cousas”.[22]
As obras de Caeiro e Reis são esforços por recuperar esse claro olhar dos gre-
gos; FP “ele mesmo” e AC são vítimas confessas da cisão interior-exterior advinda com
o cristianismo. Mas é possível articulá-los de outro modo, se considerarmos suas in-
tenções: opondo-se a FP “ele mesmo”, os três heterônimos buscam um olhar mais
nítido. Caeiro e Reis opõem ao olhar “cristão” de FP o olhar claro dos pagãos; AC opõe
21

às brumas do olhar simbolista, que “desfoca o mundo”, o olhar acelerado do futurismo.


Muito olhar para um único Pessoa!
A poesia metafísica de Pessoa se presta à reflexão sobre as posturas filosóficas
a que correspondem os múltiplos olhares que nela se abrigam. Entretanto, é preciso
lembrar que Pessoa não é um filósofo, mas um poeta. Os temas filosóficos aparecem
em seu texto configurados num luxo de imagens, numa festa visionária poucas vezes
vista na poesia ocidental.
O olhar dos múltiplos poetas-Pessoa é, como o de todos os poetas, um olhar
metafórico, isto é, que transporta, que põe no que está o que não está; que vê numa
“casa branca” uma “nau preta” (OP, p. 354); que, ao olhar a pacata rua lisboeta, avista
“a terra inteira,/ Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido” (OP, p. 364).
Experiência feliz ou infeliz, é o olhar que produz a poesia pessoana. É a força
do olhar de todos os egos em que se encarnou Pessoa que confere a sua(s) obras(s)
a formidável possibilidade de gerar aquelas imagens que se inscrevem em nosso olho
interior e que, num segundo tempo, aguçam o olhar míope que nós, leitores, lançamos
cotidianamente ao mundo. Este é o olhar da poesia, da arte. “A arte torna visível”, dizia
Klee.
Ao substituir um real visto por uma imagem dita, o poeta afina nossa percepção
do real, revela o que não víamos antes, eleva diante de nossos olhos mentais um outro
mundo, que concorre com o visível e o suplanta, dando uma forma e uma significação
àquilo que, no mero estar-ali, é informe e insignificante.
Pessoa, como todos os escritores, escreve não para dizer o que vê no mundo,
mas porque o que vê não lhe basta, e ele deseja substituí-lo por formas mais satisfató-
rias. O olhar do poeta deforma o mundo para o desvendar, perde-o para recuperá-lo
mais nítido. A perda do objeto pelo olhar, e pela palavra em que se tenta fixá-lo, é cisão
irreparável no pensamento e no discurso, mas é apenas o preço provisório da recon-
quista poética. Fixado na fórmula poética, o objeto atinge sua máxima visibilidade: “Os
campos são mais verdes no dizer-se do que no seu verdor”, afirma o semi-heterônimo
Bernardo Soares, autor do Livro do desassossego.[23]
O trabalho do poeta não consiste em reproduzir o que seu olhar captou no real,
mas em produzir uma visão mais intensa. Nesse sentido, a poesia de Pessoa, como
toda grande poesia, é um fantástico aparelho óptico.

Notas:

[1] V. Fernando Pessoa, Obra poética, org., introd. e notas de Maria Aliete Galhoz, 2 ed., Rio de Janeiro, Agui-
lar, 1965, P. 655. Esta obra será doravante designada pela sigla OP.

[2] O dorso do tigre, São Paulo, Perspectiva, 1976, pp. 217-8.

[3] Jacques Lacan, Le Séminaire livre XX, Encore, Paris, Seuil, 1975, p. 79.

[4] Paul Valéry, “La jeune Parque”, Oeuvres, tome 1, Paris, Gallimard, 1957, Bibliothèque de la Pleiade, pp. 96-
110.

[5] V. Merleau-Ponty, Le visible et l’invirible, Paris, Gailimard, 1964, p. 31.


22

[6] Da realidade sem mistérios ao mistério do mundo — Espinosa, Voltaire, Merleau-Ponty, São Paulo, Brasili-
ense, 1981, p. 273.

[7] Primeiro Fausto, org. e introd. de Duílio Colombini, São Paulo, Epopeia, 1986, p. 136.

[8] Op. cit., p. 79

[9] Fernando Pessoa, Páginas íntimas e de auto-interpretação, Lisboa, Ãtica, s.d., P. 233. Esta obra será dora-
vante designada pela sigla PIAI.

[10] PIAI, pp. 320-1

[11] Op. cit., p. 220.

[12] D. T. Suzuki, Erich Fromm, Richard de Martino, Zen budismo e psicanálise, São Paulo, Cultrix, 1976, p.
27.

[13] PIAI, p. 386.

[14] PIAI, p. 322.

[15] PIAI, p. 134.

[16] PIAI, pp. 320-1

[17] Idem, ibidem.

[18] PIAI, p. 137.

[19] V. OP, pp. 246-7.

[20] Vida e obra de Fernando Pessoa — história de uma geração, 2 ed., Lisboa, Livraria Bertrand, s.d., p. 665.

[21] V. Leyla Perrone-Moisés, Fernando Pessoa — aquém do eu, além do outro, São Paulo, Martins Fontes,
1982, p. 35. (cap. II: “O gênio desqualificado”).

[22] PIAI, p. 170.

[23] São Paulo, Brasiliense, 1986, p. 398.

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