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Da pulsão escópica à transferência: uma ética do olhar

Muito antes de nascermos, fomos pensados, idealizados, amados pelo Outro. Foi a
partir de um olhar, que o “bolo de carne”, o infans, pôde ter a possibilidade de se tornar
sujeito. O sujeito para a Psicanálise não nasce, mas se torna. Sempre é relacional: a partir de
um Outro que olha, informa, dá forma. A forma do olhar do Outro começa a transformar esse
antes “perverso polimorfo” em sujeito do desejo. Olhar que orienta, constitui e aliena. A
alienação se torna imprescindível, afinal, só é possível se separar daquilo que um dia se
alienou: o olhar do Outro. É por ele que antes o sujeito despedaçado poderá ter sua imagem
unificada, reconhecer-se a partir deste olhar, adotando a imagem do outro como sua imagem
de si. Existe nessa identidade uma alienação e um desconhecimento de si, pois é o outro
quem diz de mim, uma imagem virtual.
A partir desse eu unificado, mais consistente, é preciso que haja a separação do Outro
pelo significante do Nome do pai para permitir então o investimento da sua libido em outros
objetos para além de sua mãe, seu primeiro objeto de amor. Para isso é necessário que a mãe
tenha o pai como referência em seu discurso, este que porta uma Lei, reguladora do desejo da
mãe. No entanto, essa separação não é sem perdas, ela deixa um resto, no qual o sujeito se
identifica sua falta-a-ser. Passamos assim inquietantes por uma resposta da qual o olhar não
nos revela: o que o Outro quer de mim? Por que me olhas? O que vê em mim que eu mesmo
desconheço, não me reconheço?
Somente onde falha a visão, no domínio das ideias que é possível emergir um olhar,
para além daquele que é mostrado, visto. É um saber que encontra sua força pulsional da
pulsão escópica: olhar para agradar o Outro, suscitar desejo, e que espia o Outro para melhor
enganá-lo.
Mas o que se entende por pulsão? Freud nos dizia que a pulsão é o que está entre o
somático e o psíquico, ou ainda, é o eco do corpo que há um dizer. É pela pulsão que se
separa o homem do animal, a pulsão do instinto. A passagem do predomínio do olfato para a
visão, para a bipedia, instaura a passagem do funcionamento instintivo ao pulsional,
característica marcante da sexualidade humana, fundando então a possibilidade do sujeito
advir.
Esse sujeito pulsional tem por fonte, esse furo circundado no corpo, um alvo que
sempre é falho e se dirige a um objeto - para sempre perdido.
Lacan postula que o objeto da pulsão é o objeto a e destaca quatro objetos a
primordiais: as fezes, o seio, a voz e o olhar. Se nos atermos a esse último, o olhar, como
objeto da pulsão escópica, pode ser entendido como suporte que o sujeito encontra para o
desejo do Outro.
O sujeito em sua estratégia pulsional atribui o olhar do Outro de acordo com sua
estrutura clínica, isto é, o neurótico supõe um outro como suporte do olhar para causar desejo
ou sua angústia, sempre de castração. O sujeito se dá a ver ao público, ao analista. O olhar,
esse como inapreensível tem por objeto um objeto desconhecido, perdido e é na clínica que o
analista nessa função de semblante de objeto a, e ainda, de Sujeito Suposto Saber que, por sua
escuta pode promover um trabalho de transferência.
Lacan nos diz que: “de todos os objetos nos quais o sujeito pode reconhecer a
dependência em que se encontra no registro do desejo, o olhar se especifica como
inapreensível. É por isso que ele é, mais de que qualquer outro objeto, desconhecido”. Dessa
forma, podemos supor que exista uma dependência com o olhar, justamente pelo seu caráter
desconhecido, assim como a resposta ao enigma: che vuoi?
Seria então a neurose de transferência um dos destinos dessa pulsão? A potência da
pulsão deixaria sua fonte para ir em direção ao analista como objeto, giraria em torno dele,
para depois voltar enfim para seu ponto de partida? Eis o processo analítico.
Seria então a transferência a história fragmentada de uma pulsão particular? Cito
Lacan (1998, p.74) “Em nossa relação as coisas, como constituída pela via da visão e
ordenada nas figuras da representação, algo escorrega, passa, se transmite, de piso para piso
para ser sempre nisso em certo grau elidido - é isso que se chama o olhar.”
Entretanto, o que se transmite? Esse olhar em uma análise, que se vê para além do
que se olha, que ao invés de promover um desaparecimento do sujeito, como antes, no
Estádio do Espelho, na transferência o desejo do analista tende a ir a um sentido contrário ao
da demanda à identificação. A travessia do plano da identificação pelo analisando só é
possível, segundo “pelo intermédio da separação do sujeito na experiência. A experiência do
sujeito é assim reconduzida ao plano onde se pode presentificar, da realidade do inconsciente,
a pulsão" (Lacan 1964/1979, p. 259). É preciso que o analista se decline do lugar de ideal
para que o sujeito possa se haver consigo, para que parte da fonte circule o objeto e a ela
retorne. Em outras palavras, que o sujeito possa se haver com sua castração, talvez
endereçando esse saber a si mesmo.

Para finalizar, tomo emprestado as palavras de Leminski:


"Outros olham para baixo
procurando algum vestígio
do tempo que a gente acha,
em busca do espaço perdido,
Raros olham para dentro,
já que dentro não tem nada.
Apenas um peso imenso
a alma, esse conto de fada".

Jéssica Caiado.

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