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Regime do Estado
Regime do Estado
Nestes termos, haverá uma cisão cortante entre Política aristotélica e Política
moderna. Se a primeira teve como objeto os regimes políticos, teorizando-os na sua
diversidade, a segunda é constitutiva da nova forma política do Estado, este último
definido pelo seu poder característico – a soberania -, ao qual podem corresponder
indiferentemente distintos regimes políticos ou formas de governo. Do mesmo modo, se
a Política aristotélica se centrou nas particularidades dos regimes – isto é, nos regimes
considerados nos seus elementos externo e interno, este último correspondente à conceção
de justiça própria de cada um2 –, a nova ciência do Estado abstrai dessas particularidades.
3
V. ARISTÓTELES, Política, trad. A. Campelo Amaral e Carlos de Carvalho Gomes, Lisboa, Veja, 1998,
em especial, §§ I, 1253a; V, 1301a32-33 e 1309a35-40.
4
V. TOMÁS DE AQUINO, La Royauté, trad. de De regno ad regem Cypri por D. Carron, Paris: Vrin,
2017.
5
Cfr. J. BODIN, Les Six Livres cit., §§ I,2; III, 4.
3
Em Bodin, recorde-se, essa racionalidade já nada tem que ver com a “a justiça e a
honestidade” (a respeito das quais qualquer acordo seria impossível), antes se prendendo
exclusivamente com a prossecução da utilidade ou “proveito público”. À utilidade pública
corresponde uma utilidade privada dos cidadãos referida ao que lhes é “comum” e não ao
que os divide. Nesta lógica, dedicando “fidelidade, submissão, obediência, ajuda e
socorro” ao soberano, os cidadãos conhecem “a mais forte proteção possível”, vendo
garantidas, “por força das armas e das leis, as suas pessoas, bens e famílias”6.
6
Cfr. J. BODIN, Les Six Livres cit., § I, 6, 7.
7
O conceito de “cidadão” de Bodin já nada tem que ver com o “animal político” de Aristóteles. Se este
último se referia à linguagem moral da polis – sendo o homem “animal político” porque se move nessa
linguagem –, a qualidade de cidadão em Bodin releva exclusivamente da relação de sujeição estabelecida
com o poder soberano. Note-se que esta não é uma relação de sentido único – o seu sentido não se esgota
na obediência devida pelo súbdito àquele poder. Está em causa, antes, uma “obrigação mútua entre o
soberano e súbdito”, o qual “pelo reconhecimento e obediência que recebe daquele”, lhe deve “ajuda e
proteção”, v. idem, I, 6.
8
Cfr. SIMONE GOYARD-FABRE, L’État: Figure Moderne de la Politique, Paris, A. Colin, 1999, p. 12.
4
9
Cfr. J. BODIN, Les Six Livres cit., § I, 8; II, 1; IV, 7.
10
Para mais desenvolvimentos sobre a geometria política de Jean Bodin, v. o nosso O Estado como
Representação: Do Momento Hobbesiano aos Problemas Contemporâneos, Lisboa, AAFDL, 2019, pp. 56
segs.
11
Cfr. THOMAS HOBBES, Leviatã, trad. João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva, Lisboa,
INCM, 1994, cap. XVII; cfr. T. HOBBES, On the Citizen [De Cive], trad. Richard Tuck / Michael
Silverthorne. Cambridge, Cambridge University Press, 1998, § XIII, 6.
5
Deste modo, o Estado moderno não se reduz a uma mera forma política exterior,
mas depende da internalização de uma linguagem e correspondente racionalidade. É neste
sentido que o Estado é um regime político novo, isto é, uma forma política que – não
deixando de se contrapor aos regimes aristotélicos – não deixa de ter uma lógica interna.
A soberania é, tanto o eixo estruturante dessa forma política, como a expressão dessa
lógica, havendo uma relação indissociável entre as suas características de poder e a sua
funcionalidade à utilidade dos cidadãos. Com efeito, é na medida em que um poder
represente um corpo de cidadãos, prosseguindo uma salus publica que se reconduz à
satisfação dos seus interesses, que o mesmo é continuamente representado como soberano
pelos mesmos cidadãos13/14.
Em suma, e caso nos socorramos dos termos de Montesquieu, podemos dizer que,
ao Estado como regime, corresponde então um novo “princípio de governo”, que já não
se confunde com os princípios dos regimes políticos tradicionais (nomeadamente, com
uma qualquer conceção de “virtude” ou de “honra”), antes se reconduzindo ao interesse
e à imaginação política que o serve15.
12
MAX WEBER. Economy and Society: An Outline of Interpretative Sociology, trad. E. Fischof et al,
Berkeley / Los Angeles, University of California Press, 1978, pp. 24 segs.
13
Recorde-se que “a obrigação dos súbditos para com o soberano dura enquanto, e apenas enquanto, dura
também o poder mediante o qual ele é capaz de os proteger”, cfr. T. HOBBES, Leviatã cit., cap. XXI. Neste
passo, Hobbes formula o cerne da racionalidade instrumental que subjaz ao Estado, definindo a “relação
entre proteção e obediência” que lhe subjaz, fora da qual nenhum Estado poderá subsistir duravelmente.
14
Recorde-se que, na obra de Hobbes, a salus publica é definida na perspetiva dos súbditos – dos
“benefícios” ou “vantagens” que lhes correspondem –, traduzindo-se na sua defesa comum contra inimigos
externos, na preservação da paz interna, no seu enriquecimento “tanto seja quanto compatível com a
segurança pública” e na fruição de uma “liberdade inofensiva”, cfr. T. HOBBES, On the Citizen cit., § XIII,
6.
15
Sobre os princípios do governo, v. MONTESQUIEU, Do Espírito das Leis, trad. Miguel Morgado,
Lisboa: Edições 70, 2011, em especial, Livros III, IV e V. Note-se que Montesquieu não deixou de
contrapor aos regimes políticos tradicionais – assentes na “virtude”, na “honra” ou no “medo” – um regime
caracteristicamente moderno, a república moderna, cujo princípio de ação seria o interesse ou a ambição.
Regressaremos aqui, já que, a respeito da construção do Estado constitucional a reflexão de Montesquieu
sobre a república moderna virá a cruzar-se com o discurso do Estado.
6
Esta lógica foi formulada inicialmente por Bodin, para quem, como já vimos, a
soberania não se traduz num poder concreto, mas numa abstração jurídica (um “poder
perpétuo e absoluto”). Deste modo, o soberano é-o no âmbito de uma norma ou princípio
(a soberania), sendo investido no âmbito de uma correspondente ordem impessoal e
servindo consequentemente o “proveito público”. Reflexamente, os cidadãos, mais do
que obedecer à pessoa do soberano, obedecem a essa ordem impessoal, em cuja
estabilidade e racionalidade vêm garantidas as suas “pessoas, bens e famílias”. Hobbes
prossegue na linha de Bodin, institucionalizando plenamente o papel do soberano
enquanto ofício, isto é, enquanto poder impessoal a ser prosseguido – por um monarca ou
por uma assembleia – segundo a lógica representacional do Estado. Mais ainda, clarifica-
se em Hobbes que esta lógica só é verdadeiramente prosseguida se o soberano agir
genericamente através da lei, isto é, através de um sistema de leis caracterizado pela
formalidade, publicidade, prospetividade, clareza e coerência interna. Com efeito, só
16
Cf. MAX WEBER, Economy and Society cit., p. 975.
7
17
Cfr. DAVID DYZENHAUS, “Hobbes and the Legitimacy of Law”, Law and Society, 2001/20, pp. 461
segs.. V. também, do mesmo autor, “Hobbes on the Authority of Law”, in Hobbes and the Law, eds. David
Dyzenhaus / Thomas Poole, Cambridge, Cambridge University Press, 2012, pp. 186 segs. Por ultimo, The
Long Arc of Legality: Hobbes, Kelsen, Hart, Cambridge: Cambridge University Press, 2022, em especial,
pp. 88 segs.
18
Sobre a noção moderna de Constituição, v. por todos DIETER GRIMM, Constitutionalism: Past,
Present, and Future, trad. Dev Josephs, Oxford: Oxford University Press, 2016, pp. 3 segs.
19
Idem, pp. 6 segs.
20
Idem, pp. 8-10.
8
21
JAMES MADISON, “The Federalist n. 10” (1787), in Madison Writings, New York, The Library of
America, 1999, pp. 160 segs. V. também a carta a Thomas Jefferson, datada de 24 de outubro de 1787 e
publicada na mesma coleção, p. 142 segs. Para mais desenvolvimentos sobre a conceção de uma “república
moderna” cuja lógica assenta na concorrência e contraposição de interesses e ambições, v. Luís Pereira
Coutinho, Teoria dos Regimes cit., pp. 75 segs.
22
Cfr. SIÉYÈS, O que é o Terceiro Estado?, trad. Teresa Menezes. Lisboa, Temas e Debates, 2008, pp.
164-165.
9
Nos termos de Carré de Malberg, engendra-se assim uma nação moderna que tem
por seu representante e agente uma “pessoa jurídica do Estado” desdobrada nos órgãos
previstos numa lei constitucional. Com efeito, é precisamente o regime constitucional
formado por esses dois elementos (discurso constitucionalista e lei constitucional, nação
e Estado) que o mestre de Estrasburgo virá a formular como “regime estadual”23. Ou seja,
podemos bem reinterpretar a teoria do Estado de Carré de Malberg – a teoria de uma
nação que se personifica em Estado, concebido este como pessoa jurídica que se estrutura
nos termos de uma lei constitucional24 – como teoria do regime constitucional. Nesta
teoria, o elemento interno do regime – o princípio constituinte do Estado constitucional,
dito “soberania nacional” – encontra-se numa nação que se forma como corpo político
unificado na linguagem da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. O elemento
externo, por seu turno, encontra-se na vigência de uma lei constitucional e no
correspondente governo legal-racional por órgãos constitucionais que, como tais,
representam aquele corpo.
23
De facto, o mais consumado teórico do Estado do século XX – Carré de Malberg – não deixou de se
referir a um “regime estadual”, aquele em que uma nação enquanto corpo de cidadãos se personifica num
Estado que se identifica com a Constituição O contexto em que o fez não deixa de ser muito esclarecedor.
O que esteve então em causa foi uma oposição à “teoria da força” de Duguit, a qual Carré de Malberg
recusou como incompatível com qualquer “regime estadual”. Ora, ao opor-se assim a Duguit, o mestre de
Estrasburgo trazia à tona era a lógica do Estado, recordando que este não é uma realidade exterior ao ser
humano traduzida num mero poder ou “força”. Enquanto “regime”, o Estado apenas se viabiliza por lhe
corresponder um poder político suscetível de ser representado pelos cidadãos. Assim na razão em que
satisfaça as suas utilidades, já que esses raciocinam na lógica instrumental de que o Estado é produto e
agente, v. RAYMOND CARRÉ DE MALBERG, Contribution à la Théorie Générale de l’État, I, Paris:
Recueil Sirey, 1920, p. 198 segs.).
24
Para mais desenvolvimentos, v. o nosso O Estado cit., pp. 83 segs.
10
corresponde afinal uma certa linguagem da justiça – se bem que agora assente numa
solução formalizada25 – que se pretende integradora de uma comunidade política. Na
medida em que essa comunidade (a nação) se personifique ou represente em Estado (num
Estado que se identifica com a lei constitucional) é esse elemento interno que se projeta
em certa configuração institucional do poder político (o elemento externo do regime
constitucional).
25
No dizer de Grimm, à emergência do constitucionalismo corresponde a “formalização” do “problema da
justiça” preconizada pelo liberalismo económico e político, v. Constitutionalism…, p. 8.
26
Cfr. HANNAH ARENDT, Sobre a Revolução, trad. I. Morais, Lisboa: Relógio d’Água, 2001, p. 239.
27
Artigo 16.º da Declaração de 1789.
11
28
Artigo 3.º da Declaração de 1789.
29
Para a distinção entre “Constituição como ato” (constitution as act) e “Constituição como realização”
(constitution as achievement), v. D. DYZENHAUS, The Long Arc cit., pp. 149 segs.
30
Cfr. Contribution cit., I, p. 61 segs. e II, p. 490 segs.
12
direitos individuais). Tal equivale a dizer que a eficácia do direito constitucional (o facto
constituinte) se traduz na eficácia do discurso constitucionalista que lhe subjaz (“eficácia
discursiva” ou “eficácia juspolitista”)31.
31
Para a noção de “eficácia discursiva” ou “eficácia juspolitista”, em termos que permitem compreender
que a eficácia do direito constitucional corresponde na verdade à eficácia dos “enunciados justificativos”
que determinam a sua qualidade de “direito”, v. PIERRE-MARIE RAYNAL, De la Fiction Constituante:
Contribution à la Théorie du Droit Politique, Paris, L’Harmattan, 2019, pp. 264 segs.
32
Cfr. Sobre a Revolução cit., pp. 153-4.
13
33
Cfr. NORBERTO BOBBIO, Iusnaturalismo y Positivismo Jurídico, trad. de E. Diaz et al. da 2.ª edição,
Madrid, Trotta, 2015, pp. 105 segs., em especial, p. 128.
34
Cfr. ERNST-WOLFGANG BÖCEKENFÖRDE, Gesetz und gesetzgebende Gewalt, 2.ª ed., Berlim:
Duncker und Humblot, 1981, 193 segs.
35
Cfr. N. BOBBIO, Iusnaturalismo cit., pp. 105 segs.
14
legislativa. Admitiu-se, pelo contrário, que “qualquer lei será sempre uma apreensão
incompleta e apenas parcial da matéria jurídica”36. Nesta linha, o que sobretudo esteve
em causa foi a recondução do direito positivo a um sistema, cabendo à ciência jurídica
um trabalho construtivo dos princípios ou conceitos que o estruturam37.
Ora, a transposição deste método para a ciência do direito público – feita pela
escola Gerber-Laband – empenhou-a numa “construção neutra” do direito constitucional,
assim emancipada de qualquer fundamentação. Silenciaram-se assim aqueles propósitos
políticos, monárquicos ou revolucionários, que, à altura, ainda se digladiavam entre si.
Recorde-se que a dita escola se desenvolve na segunda metade de oitocentos, depois da
Revolução de 1848, precisamente num cenário de pacificação do conflito que – nas
décadas anteriores – opusera partidários da soberania monárquica a partidários da
soberania popular. E não pode deixar de se dar razão a Schmitt quando afirma que não
haveria melhor forma de garantir essa pacificação do que a traduzida numa “evasão” à
“questão política” do poder constituinte38.
36
Cfr. PUCHTA apud OLIVIER JOUANJAN, Une Histoire de la Pensée Juridique en Allemagne (1800-
1918), Paris, PUF, 2005, p. 223
37
Para a caracterização da jurisprudência dos conceitos, cfr. KARL LARENZ, Metodologia da Ciência do
Direito, trad. José Lamego, Lisboa, Gulbenkian, 1997, pp. 21 segs.
38
Cfr. CARL SCHMITT, Constitutional Theory, trad. de Jeffrey Seitzer, Durham, Duke University Press,
2008, p. 63
15
Não deixou, note-se, de ser denunciado o engano traduzido na tentativa assim feita
de conceber uma ciência do direito constitucional independente da política – ou, noutros
termos, um direito constitucional independente do ideário constitucionalista. Como desde
logo detetou Georg Jellinek, a escola Gerber-Laband “apropria-se de muitos conceitos
fundamentais da literatura política do seu tempo”, nomeadamente do conceito
constitucionalista de personalidade jurídica do Estado, dando o “valor de evidências
jurídicas” a “resíduos depositados por teorias políticas”39. No mesmo sentido, clarifica
Michael Stolleis, que “os praticantes do método jurídico, ao mesmo tempo que expressam
o seu desdém por uma abordagem filosófica do Estado, retiram os instrumentos do seu
construtivismo jurídico da mesma caixa de ferramentas”40.
39
Cfr. GEORG JELLINEK, Teoría General del Estado, trad. de Fernando de Los Rios da edição de 1911,
Mexico: Fundo de Cultura Economica, 2000, p. 102.
40
Cfr. MICHAEL STOLLEIS, Public Law in Germany, 1800-1914, trad. de Pamela Biel, Nova Iorque /
Oxford: Berghan Books, 2001, p. 420.
41
Nas palavras de Jouanjan, se a intenção declarada já não é a de “realizar o ideal”, facto é que não se deixa
de “idealizar o real”, o “positivo”, cfr. Une Histoire cit., p. 231.
42
Para mais desenvolvimentos, v. o nosso Positivismo Epistémico e Constitucionalismo Liberal +
43
Cfr. M. STOLLEIS, Public Law cit., pp. 438 segs.
44
Cfr. RUDOLF SMEND, Constitución y Derecho Constitucional, trad. J.M. Beneyto Pérez, Madrid,
Centro de Estudios Constitucionales, 1985, pp. 37 segs.
45
Cfr. C. SCHMITT, O Conceito do Político, trad. de Alexandre Franco de Sá, Coimbra, Edições 70, 2015,
p. 41 segs.
16
46
A sua obra fundamental Contribution à la Théorie Générale de l’État tem como subtítulo Spécialment
d’après les données fournies par le droit constitutionnel français. Sobre a radicação de Carré de Malberg
em pressupostos de “isolamento”, cfr. P-M RAYNAL 2019: 267.
47
Conforme assinala Troper (“The French Tradition of Legal Positivism”, in The Cambridge Companion
to Legal Positivism, eds. Torben Spaak / Patricia Mindus, Cambridge, Cambridge University Press, 2021:
pp. 137 e 144 segs), “este documento, como o seu próprio título indica, não é um ato de vontade, mas uma
declaração” de princípios que antecedem qualquer vontade. Carré de Malberg aceita como boa essa
pretensão da Declaração de 1789 e é nessa razão que se torna possível articular o seu proclamado
positivismo com a dimensão normativa da sua teoria. Na verdade, supõe-se que aos “dados fornecidos pelo
direito constitucional francês” – e primeiramente correspondentes à Declaração de 1789 – corresponderiam
princípios válidos para todos os Estados, os quais os revolucionários teriam “descoberto”.
17
não se deixa conceber uma “Constituição” se não estiver “assegurada a garantia dos
direitos nem estabelecida a separação de poderes”48).
Carré de Malberg tem bem presente que a sua teoria é, antes de mais, uma teoria
do discurso constitucionalista, isto é, da constituição que subjaz à Constituição e que,
portanto, define esta última em termos prescritivos, bem como o Estado que lhe
corresponde. Com efeito, teorizar o Estado como representação da nação (uma nação cuja
vontade apenas pode ser expressa por diferentes órgãos constitucionais) significa afirmar
os princípios do constitucionalismo, nomeadamente a separação de poderes, contra
quaisquer pretensões assentes numa ideologia política de soberania (democrática ou
monárquica), a qual resultaria inevitavelmente na preeminência inquestionada de um
poder concreto (do povo ou do rei). Clarificando-o, o professor de Estrasburgo afirma que
a sua teoria tem “por utilidade dar uma base jurídica firme ao sistema moderno de
limitação dos poderes” com reflexa garantia dos direitos dos cidadãos51.
48
O artigo 16.º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.
49
Mesmo pelo povo enquanto conjunto numérico de cidadãos, divergindo assim a soberania nacional da
soberania popular, cfr. R. CARRÉ DE MALBERG, Contribution cit., II, pp. 27-28, 57-58 e 109 segs.
50
Sobre a Constituição como realização, v. novamente D. DYZENHAUS, The Long Arc cit., pp. 149
segs.
51
V. R. CARRÉ DE MALBERG, Contribution cit., I, pp. 28 segs. ; II, pp. 30 segs.
18
Importa precisar que, tal como reconstruído por Carré de Malberg, o discurso
constitucionalista desdobra-se essencialmente num conjunto de conceitos (soberania
nacional, representação, Constituição, personalidade jurídica do Estado, órgão). Trata-se,
esses, de conceitos constitutivos e não de conceitos ontológicos, ou seja, de conceitos que
criam as próprias “realidades” a que se referem e que se cumprem no momento em que
essas ganham existência (isto é, no momento em que o discurso constitucionalista que os
formula tem eficácia juspolitista, sendo as “realidades” correspondentes aceites como tais
pela nação que se integra em torno desse discurso)54. Ter presente a natureza constitutiva
dos conceitos centrais do constitucionalismo é tanto mais relevante quanto assim se
garanta uma definição estritamente jurídico-política dos mesmos, a única definição
concordante com os propósitos desse discurso. Precisamente o contrário sucede com a
utilização de conceitos (ou pseudo-conceitos) ontológicos (como os de “soberania do rei”,
“soberania do povo”, etc.). Estes últimos, diga-se, não deixam de ser, tanto quanto os
conceitos constitutivos, criadores das realidades a que se referem, apenas se distinguindo
por ocultarem a sua natureza criadora. Como é bom de ver, o engano, consciente ou
inconsciente, serve propósitos ilimitadores do poder. É que se revela sempre impossível
52
Diferentemente, considerando essa contradição como irresolúvel e a partir daí qualificando o positivismo
de Carré de Malberg como um “positivismo impossível”, v. DIDIER MINEUR, Carré de Malberg: Le
Positivisme Impossible, Paris, Michalon, 2010, em especial, p. 39.
53
Em termos próximos, afirma Éric Maulin que o que está agora em causa é conceber, em razão de certos
propósitos normativos, “uma realidade jurídica efetivamente independente do mundo empírico”, na qual o
Estado constitucional a vontade dos seus órgãos como equivalentes à vontade da nação, se deixam
equacionar, v. ÉRIC MAULIN, La Théorie de l’État de Carré de Malberg, Paris, PUF, 2003, p. 154 segs.
54
Sobre conceitos constitutivos e a sua distinção de conceitos ontológicos, v. M. TROPER, “Souveraineté
et Représentation”, in Les Défis de la Représentation, eds. Manuela Albertone / Dario Castiglione, Paris,
Classiques Garnier, 2018, pp. 75 segs.
19
Recorde-se que, para Schmitt, uma lei constitucional é apenas uma “Constituição
em sentido relativo” que pressupõe e se valida numa decisão substantiva, esta última
correspondente à unidade existencial de um povo e à sua ordem política concreta55.
Assim, a verdadeira Constituição – aquela que o é “em sentido absoluto” – traduz-se nessa
decisão substantiva, a qual, por definição, “não pode ser contida num estatuto ou numa
norma”56. Tal é suficiente, por si só, para clarificar a oposição de Schmitt ao discurso
constitucionalista no sentido acima referido (isto é, no sentido sustentador e não
relativizador de uma lei ou estatuto constitucional). A um nível mais profundo, tal
evidencia a oposição de Schmitt a toda a modernidade política tal como esta se
desenvolveu a partir de Hobbes.
55
V. C. SCHMITT, Constitutional cit., pp. 75 segs.
56
Idem, pp. 59 segs.
21
57
Como é bom de ver, esta representação não pode ser confundida com a representação em sentido
hobbesiano. Em Hobbes, a representação é uma realidade da linguagem cujo sentido é normativo (isto é, o
conceito hobbesiano de representação é um conceito normativamente constitutivo e não ontológico). Já em
Schmitt, a representação é uma realidade efetiva cujo significado não normativo se cumpre na sua própria
atualização. Como sintetiza Dyzenhaus, o que está em causa em Schmitt “é o que é representado e não o
que deve ser representado”. Nesta razão, acrescenta Dyzenhaus, é mesmo duvidoso que se possa falar de
verdadeira “representação” em Schmitt, sendo difícil compreender como entendimento deste último “possa
impedir o princípio da representação de colapsar no princípio da identidade ou vice-versa”, v. Legality and
Legitimacy: Carl Schmitt, Hans Kelsen and Hermann Heller in Weimar, Nova Iorque: Oxford University
Press, 1997, P. 55.
58
Cfr. C. SCHMITT, O Conceito cit., p. 41 segs.
59
Cfr. C. SCHMITT, Constitutional cit., p. 65.
60
A prerrogativa assume em Hobbes um significado excecional, sendo a lei a forma privilegiada da ação
do Estado, o que precisamente traduz a racionalidade do Estado como representação, v. THOMAS POOLE,
“Hobbes on Law and Prerrogative”, in Hobbes and the Law cit., pp. 68 segs.
22
61
Cfr. MARTIN LOUGHLIN, Against Constitutionalism, Cambridge MA: Harvard University Press, 2022,
p. 57 segs.
62
É assumida a inspiração de Loughlin em Hermann Heller, para quem “a relação entre normatividade e
realidade é dialética”, idem, p. 60.
23
concebidos (ou reconcebidos) como seus “elementos” (povo, território e poder político)
para que haja um Estado.
63
Idem, p. 188.
64
Sobre diferentes declinações do discurso constitucionalista, v. MAURIZIO FIORAVANTI,
Constitucionalismo: Experiencias Históricas y Tendencias Actuales, trad. A. Mora / M. Martinez, Madrid:
Trotta, 2014.
65
Recorde-se que Kelsen formula a fiscalização jurisdicional da constitucionalidade das leis numa lógica
de preservação das estruturas formais de um Estado constitucional e do pluralismo democrático que
considera dever perpassar nessas estruturas. Nestes termos, o que está em causa sobretudo é a garantia das
minorias, nomeadamente da sua participação democrática, v. HANS KELSEN, “A Jurisdição
Constitucional (Exposição de Hans Kelsen)”, in Jurisdição Constitucional, trad. Sérvulo da Cunha, São
Paulo: Martins Fontes, 2007, pp. 121 segs.
24
Pelo contrário, terá estado sempre presente a ideia de que esse passa por uma efetiva
imaginação ou reimaginação política de dada comunidade como comunidade
constitucional (com a inerente conversão de certos pressupostos materiais em elementos
do Estado, agora do Estado constitucional).