À parte o curtíssimo período de vigência da Constituição de
Cádiz entre nós1, a história das nossas constituições tem início com a Independência. A Constituição de 1824 foi outorgada por D. Pedro I, depois de dissolvida a assembleia constituinte convo- cada no ano anterior. Foi a mais longeva das constituições brasileiras, durando 65 anos, somente tendo sido emendada uma vez, em 1834. Instituiu a monarquia constitucional e o Estado unitário, concentrando rigorosamente toda a autoridade política na Capital. O art. 98 da Carta estatuía que o Poder Moderador, novid- ade mais frequentemente mencionada quando se fala na Constitu- ição de 1824, “é a chave de toda a organização Política, e é deleg- ada privativamente ao Imperador, como Chefe Supremo da Nação”. O art. 99 estabelecia, ainda, que “a pessoa do Imperador é inviolável, e sagrada: ele não está sujeito a responsabilidade al- guma”. A ele incumbia nomear os senadores, dissolver a Câmara dos Deputados, nomear e demitir ministros de Estado e, mais, sus- pender juízes, por queixas contra eles feitas. Os juízes não dispun- ham das garantias da inamovibilidade e da irredutibilidade de vencimentos. O voto, nesse regime, era censitário e era recon- hecido a pouco mais de 1% da população. No dia 15 de novembro de 1889, o Decreto n. 1 proclamou a República Federativa, passando o país a ser dirigido por um governo provisório, encabeçado por Deodoro da Fonseca. A partir de 15 de novembro de 1890, um congresso constituinte funcionou no que fora o Palácio Imperial (hoje, a Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro), até 24 de fevereiro de 1891, quando a primeira Constituição republicana foi promulgada, erigida sobre o propósito de consolidar o regime republicano e o modo de ser fed- eral do Estado. A inspiração do presidencialismo norte-americano era evidente. A Constituição de 1891 foi a mais concisa das nossas cartas, com 91 artigos e outros 8 artigos inseridos nas 151/2051 Disposições Transitórias. Apesar dessa brevidade, ainda houve es- paço para normas como a que determinava a compra pelo Governo Federal da casa em que faleceu Benjamin Constant, de- terminando que nela fosse aposta “uma lápide em homenagem à memória do grande patriota”. A Constituição de 1891 criou a Justiça Federal, ao lado da Estadual, situando o Supremo Tribunal Federal no ápice do Poder Judiciário. Ao STF cabia, além de competências originárias, jul- gar recursos de decisões de juízes e tribunais federais e recursos contra decisões da Justiça estadual que questionassem a validade ou a aplicação de lei federal. Também lhe foi atribuída competên- cia recursal para os processos em que atos estaduais fossem con- frontados com a Constituição Federal. Os juízes não mais poderi- am ser suspensos por ato do Executivo, tendo-lhes sido assegura- das a vitaliciedade e a irredutibilidade de vencimentos. A Con- stituição de 1891 reservou uma zona de 14.400 km², no Planalto Central, para a fixação da futura Capital. As antigas Províncias passaram a ser chamadas de Estados-membros, e a elas se recon- heceu competência para se regerem por constituições próprias, re- speitados, sob pena de intervenção federal, os princípios constitu- cionais da União. Os Estados eram livres para adotar regime le- gislativo bicameral, e muitos tinham deputados e senadores estaduais. Essa Constituição, que, como a anterior, possuía uma de- claração de direitos, foi emendada numa única vez, em 1926. Culminando as frequentes crises da República Velha, sobre- veio a Revolução de 1930. As forças exitosas ficaram devendo, no entanto, uma nova Constituição para o país, reclamada com derramamento de sangue, em São Paulo, em 1932. Em 1933, reuniu-se, afinal, uma assembleia constituinte, que redundou no documento constitucional do ano seguinte. Nota-se nele a influên- cia da Constituição de Weimar, de 1919, dando forma a preocu- pações com um Estado mais atuante no campo econômico e social. A Constituição de 1934 buscou resolver o problema da falta de efeitos erga omnes das decisões declaratórias de inconstitu- cionalidade do STF, instituindo o mecanismo da suspensão, pelo Senado, das leis invalidadas na mais alta Corte. No campo do controle de constitucionalidade, ainda, a intervenção federal em 152/2051 Estados-membros por descumprimento de princípio constitucional sensível foi subordinada ao juízo de procedência, pelo STF, de representação do Procurador-Geral da República. A Constituição previu expressamente o mandado de segurança. O diploma teve curta duração. Em 1937, o país já estava sob a regência de uma Constituição outorgada pelo Presidente Getúlio Vargas, acompanhando o golpe de Estado do mesmo ano. A Constituição foi apodada de polaca, devido à influência que nela se encontrou da Constituição polonesa, de linha ditatorial, de 1935. A tônica da Carta do Estado Novo foi o fortalecimento do Executivo. O Presidente da República era, por disposição ex- pressa do art. 37, a “autoridade suprema do Estado”. Podia adiar as sessões do parlamento, além de lhe ser dado dissolver o Legis- lativo. Habilitou-se o Presidente da República a legislar por decreto-lei. A Constituição eliminou a justiça federal de primeira instância, reduziu os direitos fundamentais proclamados no dip- loma anterior e desconstitucionalizou o mandado de segurança e a ação popular. No plano do controle de constitucionalidade, o art. 96, parágrafo único, estabelecia que o Presidente da República poderia submeter uma decisão do Supremo Tribunal Federal de- claratória da inconstitucionalidade de lei à revisão pelo Parla- mento, que poderia afirmar a constitucionalidade do diploma e tornar sem efeito a decisão judicial. A Carta também previa que, em sendo declarado o estado de emergência ou o de guerra, os atos praticados sob esse pressuposto seriam insindicáveis em juízo. Os direitos fundamentais ganharam referência, mas apenas simbólica. A pena de morte voltou a ser adotada, agora para crimes políticos e em certos homicídios. Institucionalizaram-se a censura prévia da imprensa e a obrigatoriedade da divulgação de comunicados do Governo. As casas legislativas foram dissolvidas e o parlamento não funcionou no regime ditatorial, desempenhando o Presidente da República, por si só, todas as atribuições do Legislativo, inclusive a de desautorizar a declaração de inconstitucionalidade de lei pelo STF. Com isso, tornaram-se irrisórios os juízos de inconstitucion- alidade que o Tribunal se animasse a formular sobre atos normat- ivos do Presidente da República. O término da Segunda Guerra Mundial e a derrocada dos regimes autoritários influíram sobre os acontecimentos políticos 153/2051 brasileiros, erodindo as bases ditatoriais do Estado Novo. Vargas foi deposto em outubro de 1945, e, em fevereiro de 1946, instala- se a a assembleia constituinte. A nova Constituição é promulgada em setembro do mesmo ano. A Constituição de 1946 exprime o esforço por superar o Estado autoritário e reinstalar a democracia representativa, com o poder sendo exercido por mandatários escolhidos pelo povo, em seu nome, e por prazo certo e razoável. Reaviva-se a importância dos direitos individuais e da liberdade política. Volta-se a levar a sério a fórmula federal do Estado, assegurando-se autonomia real aos Estados-membros. A Constituição era presidencialista, exceto pelo período compreendido entre setembro de 1961 e janeiro de 1963, em que durou o parlamentarismo, implantado pela Emenda n. 4, como providência destinada a amenizar crise política que se seguiu à renúncia de Jânio Quadros à Presidência da República. O Legislativo reassumiu o seu prestígio, reservando-se somente a ele a função de legislar, ressalvado o caso da lei delegada. Na vigência dessa Constituição, foi instituída a representação por in- constitucionalidade de lei, reforçando o papel do Judiciário no concerto dos três Poderes. Da mesma forma, proclamou-se que nenhuma lesão de direito poderia ser subtraída do escrutínio desse Poder. Ficaram excluídas as penas de morte, de banimento e do confisco. A Constituição ocupava-se da organização da vida econ- ômica, vinculando a propriedade ao bem-estar social e fazendo dos princípios da justiça social, da liberdade de iniciativa e da val- orização do trabalho as vigas principais da ordem econômica. O direito de greve apareceu expresso no Texto. Em março de 1964, depois de período de conturbação polít- ica, as Forças Armadas intervieram na condução do país, por meio de atos institucionais e por uma sucessão de emendas à Con- stituição de 1946. De toda sorte, o Diploma não mais correspon- dia ao novo momento político. Em 1967, o Congresso Nacional, que se reuniu de dezembro de 1966 a janeiro de 1967, aprovou uma nova Constituição, gestada sem mais vasta liberdade de de- liberação. A Constituição era marcada pela tônica da preocupação com a segurança nacional — conceito de reconhecida vagueza, mas que tinha por eixo básico a manutenção da ordem, sobretudo onde fosse vista a atuação de grupos de tendência de esquerda, es- pecialmente comunista. A Constituição de 1967 tinha cariz 154/2051 centralizador e entregava ao Presidente da República copiosos poderes. Possuía um catálogo de direitos individuais, que per- mitia, porém, que fossem suspensos, preenchidos certos pres- supostos. O Presidente da República voltou a poder legislar, por meio de decretos-leis. A crise política se agravou nos anos subsequentes e chegou às ruas. Em 13 de dezembro de 1968, o Governo editou o Ato In- stitucional n. 5, que ampliava ao extremo os poderes do Presid- ente da República, ao tempo em que tolhia mandatos políticos e restingia direitos e liberdades básicas. Pelo AI 5, o Presidente da República podia fechar as casas legislativas das três esferas da Federação, exercendo as suas funções, enquanto não houvesse a normalização das circunstâncias. Os atos praticados com funda- mento nesse Ato ficavam imunes ao controle pelo Judiciário. Em 1969, a Junta composta pelos Ministros que chefiavam cada uma das três Armas, e que assumiu o governo, depois de de- clarada a incapacidade, por motivo de saúde, do Presidente, pro- moveu uma alargada reforma da Constituição de 1967, por meio de ato que ganhou o nome de Emenda Constitucional n. 1/69. O Congresso Nacional havia sido posto em recesso. O novo texto tornou mais acentuadas as cores de centralização do poder e de preterimento das liberdades em função de inquietações com a se- gurança, que davam a feição característica do texto de 1967. Não poucos autores veem na Emenda n. 1/69 uma nova Constituição, outorgada pela Junta Militar. Em 27 de novembro de 1985, foi promulgada a Emenda à Constituição n. 26, que deu forma jurídico-constitucional à ex- austão do regime. A Emenda convocou uma Assembleia Nacional Constituinte “livre e soberana”. Os anseios de liberdade, parti- cipação política de toda a cidadania, pacificação e integração so- cial ganharam preponderância sobre as inquietações ligadas a conflitos sociopolíticos, que marcaram o período histórico que se encerrava. Com antecedência de pouco mais de um ano da impre- visível queda do muro de Berlim, valores de integração social, econômica e política, sob novo clima de liberdade, se impuseram ao quadro de suspeitas dissolventes e de controle estatal rígido e centralizador da vida em coletividade, que a Guerra Fria inspirara na década de 1960. A Constituição promulgada em 5 de outubro 155/2051 de 1988 restaurou a preeminência do respeito aos direitos indi- viduais, proclamados juntamente com significativa série de direit- os sociais. O Estado se comprometia a não interferir no que fosse próprio da autonomia das pessoas e a intervir na sociedade civil, no que fosse relevante para a construção de meios materiais à afirmação da dignidade de todos. As reivindicações populares de ampla participação política são positivadas em várias normas, como na que assegura as eleições diretas para a chefia do Exec- utivo em todos os níveis da Federação. Dava-se a vitória final da campanha que se espalhara pelo país, a partir de 1983, reclaman- do eleições “diretas já” para Presidente da República; superava-se a abrumadora frustração decorrente da rejeição, em abril de 1984, da Proposta de Emenda apresentada com esse intuito. A Constitu- ição, que, significativamente, pela primeira vez na História do nosso constitucionalismo, apresentava o princípio do respeito à dignidade da pessoa humana e o Título dos direitos fundamentais logo no início das suas disposições, antes das normas de organiza- ção do Estado, estava mesmo disposta a acolher o adjetivo cid- adã, que lhe fora predicado pelo Presidente da Assembleia Con- stituinte no discurso da promulgação. É esta a Constituição que se buscará melhor apreender nos próximos capítulos deste Curso.
1 Na esteira da revolução liberal portuguesa, D. João VI, por meio do
Decreto de 21-4-1821, mandou que fosse observada no Brasil, e até que en- trasse em vigor a Constituição que se achava em elaboração, a Constituição espanhola, liberal, de 1812, a chamada Constituição de Cádiz. No dia seguinte, novo Decreto de D. João revogava a ordem, e a Constituição espan- hola perdia vigência.