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X - VALOR MORAL: ACESSO E CONTEÚDO

Valor é uma categoria essencialmente ligada à atividade humana. Assim,


podemos falar de valores culturais, estéticos, econômicos, sociais, religiosos e
morais. Todos esses valores estão relacionados com sua atividade correspon­
dente. O produto ou resultado de uma atividade adquire valor pela s.ua relação
com o ser humano. Dessa forma, o valor não é propriedade dos oijetos em si, mas pro­
priedade adquirida graças à sua relação com o ser humano enquanto ser social. Mas, por sua
vez1 os oijetos podem ter valor somente quando dotados realmente de certas propriedades ob-
jetivas 1 . Um objeto adquire valor através da mediação da atividade do homem,
que lhe dá um sentido ao assumi-lo como um símbolo (por exemplo, os valo­
res estéticos e culturais) ou transformá-lo para o uso ou troca (por exemplo, os
valores econômicos e sociais). Para que isso aconteça, deverá encontrar nele
certas propriedades objetivas que o tornam apreciável para a realização do ho­
mem.
Existe um tipo de valor que tem como conteúdo não um objeto media­
do pela ação humana, mas a própria ação. Trata-se do valor moral. É o analoga­
tum princeps de qualquer outro valor. Todo valor moral expressa-se num
princípio.
Valar moral é uma petfeição ou qualidade inerente à própria atividade humana,
tanto interna como externa, enquanto esta se manifesta como autenticamente humana, isto é,
em conformidade com a dignidade da pessoa e portanto em correspondência com o sentido
mais profundo da existência humana2 . Essa definição aborda duas questões: o aces­
so ao valor e o conteúdo do valor.

1 A. SANCHEZ VAZQUES, L�tica, Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1985, 8. ed., p. 121.
2 P. VALO RI, L'esperienza mora/e. Saggio di una fondazione fenomenologica dell'etica, Brescia: Morcelli­
ana, 19762, p. 179.

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1 Acesso ao valor

O acesso diz respeito à cognoscibilidade do valor ou ao modo de co­


nhecer determinado valor. Como alguém pode, por exemplo, ter acesso ou
conhecer o que é a justiça ou a solidariedade como valor? Isto só é possível
através do testemunho da práxis solidária de alguém. Mas, para que esse teste­
munho seja avaliado e compreendido como merecedor de apreço, é necessá­
rio que seja valorado e transmitido pelo ethos. Assim, ao falar do acesso, é
preciso ter presente dois aspectos: a posição do valor e a resposta a ele.

1.1 Posição do valor


A posição do valor explicita o fato de que o valor não é um dado a priori,
mas uma qualificação do agir, isto é, só pode ser apreendido nos atos em que
está coenvo!ta toda pessoa, e, portanto, expressa a dignidade da pessoa. Ova­
lor é uma qualidade ou uma perfeição da práxis. O lugar de apreensão do valor
ou a posição do valor é a própria ação humana. Significa que a experiência axio­
lógica de um valor torna-se evidente pelo testemunho da práxis que o expres­
sa. O valor torna-se cognoscível mediado pela ação de que é uma qualidade.

1.2 Resposta ao valor


A resposta ao valor explicita o fato de que o valor como qualidade da ação
deve ser objetivado em determinado ethos para que seja transmissível. A experiên­
cia com certo valor ou qualidade é hipostasiada como um ideal condensado no ethos.
Parece adquirir uma existência fora ou exterior à ação de que é uma qualidade. É
um processo social que pretende transmitir os valores do ethos de um grupo.
Essas objetivações num determinado ethos são, por sua vez, internaliza­
das, porque existe uma apropriação do sentido do valor em atitudes. A cons­
ciência torna-se, assim, uma estimativa moral dos valores, que cria sensibilidade
axiológica e permite discernir racionalmente a concretização do valor.
Portanto, o lugar de transmissão do valor é o ethos. A resposta ao valoraponta
para a apropriação e internalização do valor e a necessidade de sua realização. O
valor, assim, não é uma qualidade real da ação, mas um ideal interpelante ou
uma tarefa a realizar.
Oacesso ao valor diz respeito ao seu conhecimento e transmissão. Ova­
lor é, por um lado, apreendido como uma qualidade da práxis (posição do valory e,

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por outro, comunicado como um ideal do ethos (resposta ao valoi"). O valor é co­
nhecido na práxis e transmitido através do ethos. A mediação entre esses dois
momentos acontece na internalização dos valores numa estimativa moral. Só
assim existe verdadeira compreensão e comunicação dos valores na consciência
e no ethos.
Essas duas perspectivas apontam para dois sentidos: algo tem valor, e
algo é valor. No primeiro, o valor é uma qualidade da ação, isto é, a práxis tem
valor. Assim, ele é concreto, histórico, relativo e sui?Jetivo. No segundo, o valor torna-se
uma entidade objetivada, isto é, o ideal é valor. Dessa forma, é abstrato, absoluto,
universal.
As duas perspectivas fundam dois diferentes atos: valorar e avalit:tr. Valo­
rar significa discernir se algo é valor. Avaliar significa ponderar se algo tem va­
lor. Valorações dizem respeito a ideais e princípios e recebem sua mediação
no ethos. Avaliações referem-se a atos e atitudes e são mediadas pelas normas.
Portanto, toda norma é a mediação de um valor3 •
Todo valor ou princípio moral é sempre, ao mesmo tempo, um ideal
transcendental jamais plenamente realizado, mas também uma realidade da
experiência concreta da pessoa. O valor ou princípio caracteriza-se sempre
como absoluto (impõe-se como um ideal) e relativo (apresenta-se historicamente
situado); como universal (exigido como universalmente válido) e particular (con­
cretizado numa cultura e vivência particular); como oijetivo (possuidor de um
conteúdo objetivo) e sui?J'etivo (internalizado numa experiência subjetiva);
como cogente (obrigatório, racionalmente necessário, que se impõe ao agir) e li­
bertador (mediação da liberdade humana fundamental).

2 Conteúdo do valor

O conteúdo do valor determina a bondade moral de determinado agir.


Bom é aquele comportamento que humaniza, valorando a si mesmo e ao ou­
tro como pessoa real, concreta, singular, existente e em relação com os outros
e com a sociedade. Humanizar significa potencializar e efetivar a dignidade
humana em si e nos outros. Assim, o valor moral que qualifica uma ação não

3 M.-J. BOREL, Argumentation et valeurs, Revue de théologie e/ de philo,ophie 123 (1991), p. 164-166 (fra­
ta-se de um número monográfico sobre valores).

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está só na conformidade com a dignidade da própria pessoa, mas principal­


mente no respeito pela dignidade de qualquer outra pessoa. Portanto, o supor­
te axiológico de todo valor moral é a dignidade da pessoa humana. Os
diferentes valores morais são expressões desse valor supremo. Nisso consiste
a objetividade do valor, porque se trata de um a priori moral. Mas é captado
como um a priori existencial, pessoal e concreto. Existe como qualidade de
uma ação concreta apreendida como merecedora de valoração existencial e
social. A dignidade da pessoa humana efetiva-se e expressa-se em bens e valo­
res, que é preciso distinguir4 •

2.1 Bens

Bens (Bona plysica/ Güter) são dados reais que existem fora do sujeito
agente e independentes do nosso querer e pensar pessoais. Eles são prévios ao
agir e, portanto, realidades pré-morais, mas podem tornar-se morais quando
se desenvolve uma práxis em relação a eles. Bens pré-morais são, por exem­
plo, a vida, a saúde, a sexualidade, a procriação humana, a propriedade, o poder, o matri­
mónio e a família enquanto instituições, o Estado e a sociedade civil enquanto
instituições, etc. Podem ser, portanto, naturais e culturais. Todos são bens
contemplados pelo direito. São bensjurídicos a serem defendidos. Existem pré­
via e independentemente do agir humano, o que não acontece com os valores.

2.2 Valores

Valores (Bonum mora/e/ Wene) são atitudes valorativas ou vinudes, uma quali­
dade real do querer humano, uma qualificação do agir que depende da intencio­
nalidade humana. Valores são, por exemplo, ajustiça, a solidariedade, a responsabi­
lidade, a fidelidade, a veracidade, a sinceridade, etc. Não existem independentemente
da práxis humana: são sempre uma qualidade do agir. Enquanto objetivado ou
hipostasiado, o valor é aquilo em cuja base o homem orienta o seu comportamen­
to moral (sentimento, convicção, mentalidade, ação). Os valores têm caráter
normativo e interpelativo enquanto motivações, mas não são normas.

4 F. BÓCKLE, Moral fundamental, S. Paulo: Loyola, 1984, p. 253-255; Idem, Werte und Normbcgrün­
dung, in: Christlicher Glauhe in moderner Gesellschaft, vol. XII, Freiburg/Basel/Wien: Herder, 1981, p. 61.
A distinção entre bens e valores é o ponto de partida deJ.-C. PIGUET, Transmission des valeurs, Revue
de théologie e/ de philosophie 123 (1991), p. 147-158.

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Evento Cristo

Portanto, os valores são essencialmente morais, porque subsistem como


qualidade e motivação da ação, enquanto os bens são pré-morais, porque exis­
tem independentes da ação. Os valores são, em si mesmos, uma perfeição da
práxis. Os bens podem adquirir valor, dependendo da ação empreendida face
a eles. A vida é um bem pré-moral, que pode adquirir uma valoração e tor­
nar-se moral, dependendo da intencionalidade da ação que tem a vida como
fim ou objeto. A ação pode ser de defesa ou de agressão à vida. Desse modo, a
práxis em relação à vida adquire uma avaliação moral.
Os valores são absolutos, isto é, nunca se pode agir contra um valor e,
assim, não existem conflitos de valores. Eles não podem entrar em colisão.
Não se pode ser solidário e não querer ser também fiel ou responsável. Podem
acontecer conflitos de bens entre si e entre bens e valores. Com respeito ao
primeiro caso, pode-se citar, por exemplo, o conflito entre a saúde da mãe e a
procriação do filho ou entre duas vidas que se enfrentam na legítima defesa,
etc. Quanto ao segundo, pode dar-se, por exemplo, o conflito entre a vida e a
veracidade ou entre a propriedade e a solidariedade, etc.
Mesmo sendo distintos, bens e valores relacionam-se mutuamente,
porque ambos estão referidos à dignidade da pessoa humana. A dignidade
concretiza-se nos diferentes bens naturais e culturais. Eles são o seu conteúdo.
A dignidade é respeitada, se os diferentes bens são respeitados e conseguem
chegar à consecução dos seus respectivos fins. A dignidade efetiva-se na atua­
lização dos bens. Os direitos humanos pretendem defender os bens e possibi­
litar a sua consecução. Por isso, afirma-se que a dignidade é respeitada se os
direitos humanos são defendidos. A efetivação da dignidade acontece através
da realização dos direitos humanos.
Os bens pré-morais podem receber uma valoração que os transforma em
valores de um determinado ethos. A vida, a família e a propriedade, por exemplo,
são bens pré-morais que podem ser valorados pelo ethos cultural de um grupo
social. Os bens podem também tornar-se critérios de avaliação através de uma
ação intencionada. Quando uma ação em relação à vida ou à sexualidade é obje­
to de avaliação, o respectivo bem pré-moral adquire valor e torna-se critério
moral que pondera a ação a partir do fim ou do sentido que atualiza o bem.
Todo valor moral propriamente dito é também referido a um bem que
quer preservar. A veracidade, como valor moral, diz respeito à comunicação da
verdade enquanto bem a ser preservado numa comunidade; a fidelidade, ao res-

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peito pelos compromissos assumidos; a castidade, à vivência da sexualidade segundo


o estado de vida; a honestidade e probidade, ao uso da propriedade e do poder, etc.
O valor moral fundamental é a can"dade, que se traduz em nossos dias
porjustiça e assume, em nosso contexto social, a forma de solidariedade. Este va­
lor fundamental se refere ao bem primordial do ser humano que é a dignidade
humana. A caridade e a justiça visam ao respeito e à realização da dignidade
humana do outro e a nunca tomar a pessoa humana como meio, mas sempre
como fim. Onde a dignidade humana se encontra diminuída e espezinhada, o
amor manifesta-se essencialmente como solidariedade. Por isso, a atitude fun­
damental, como valor que pretende preservar o bem mais precioso da pessoa
humana em nosso contexto social, só pode ser a solidariedade com os que são
desrespeitados em sua dignidade. Assim, a solidariedade é o valor fundamental
mais necessário em nossa realidade, para que se defenda o bem que é a base de
todos os outros: a dignidade humana. O desafio é como transformar esse valor
em algo efetivo e transmissível através de um ethos da solidariedade.

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XI - INDIVIDUAÇÃO DA NORMA MORAL

1 Delimitação do conceito de norma moral

Antes de mais nada, é necessário distinguir lei jurídica de norma moral.


A lei acrescenta à norma a promulgação por parte da autoridade legítima que
deverá assegurar seu cumprimento. A distinção entre norma e lei reside no ca­
ráter da obrigatoriedade. A norma obriga interiormente através do seu caráter
ordenador e regulador; a lei obriga em virtude de sua promulgação autoritária.
A norma está referida à consciência do sujeito moral; a lei reporta-se à ordena­
ção legal garantida pela autoridade. A norma moral é uma diretriz que se apre­
senta como guia, enquanto a lei é um preceito e exige sujeição.
As normas morais não se identificam com os princípios formais -
como "Faz o bem e evita o mal" ou "Ama o próximo como a ti mesmo" -,
nem com as exigências transcendentais- como "É necessário seguir sempre o
juízo da consciência" ou "O cristão deve viver a partir da fé e do amor"-, nem
com as valorações categoriais - como "Seja justo" ou "Seja fiel". São sempre
normas operativas no sentido de ajudarem a consciência a encontrar a norma con­
creta ou o imperativo pessoal, que é o único que obriga no âmbito da consciência.
Toda norma moral é expressão de uma exigência de humanização. É
uma condensação de experiência humana na busca de humanizar as estruturas
da pessoa e da sociedade. Aqui é importante ter presente a distinção entre va­
lores e bens. Os valores expressam princípios e exigências transcendentais; as
normas condensam diretrizes operativas sobre bens a defender e a promover.
Os ideais da humanização são os bens exigidos pela dignidade da pessoa hu­
mana e assumidos pela vontade humana como valores a realizar nas atitudes.
O bem é o conteúdo da norma. O valor é uma qualidade da vontade que reali­
za o bem. Justiça é a firme vontade de dar a cada o que lhe é devido; fidelidade
é a vontade decidida de manter uma promessa.
A norma operativa é uma indicação para formular juízos morais sobre
bens a serem defendidos ou promovidos. Toda norma operativa reporta-se a

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um bem que realiza um valor. Por isso, ela tem sempre como contéudo um
bem a defender ou promover. Assim, temos normas proibitivas e prescritivas,
dependendo se elas são negativas (a norma "Não tirar a vida de um inocente"
diz respeito à defesa do bem da vida) ou positivas (a norma "O médico deve
sempre agir em benefício do enfermo" quer promover o bem da saúde). As
normas operativas devem continuamente adaptar-se ao surgimento de uma
mais autêntica compreensão cultural dos bens jurídicos e correspondentes va­
lores exigidos por uma autêntica humanização. Esses bens, em geral, estão ex­
pressos nos direitos humanos.
As normas não caem do céu; são sempre fruto da experiência humana e
surgem a partir de um contexto cultural e social. Não são absolutas no sentido
de ser independentes de lugar, tempo e outras circunstâncias e de ser univer­
salmente aplicáveis. São absolutas no sentido de não ser arbitrárias.
As normas têm sempre um caráter funcional, isto é, estão sempre a ser­
viço da humanização do ser humano e da sociedade. Esse objetivo fundamen­
ta a sua validade. Significa, do ponto de vista da fé, que toda norma só se
justifica como mediação do amor. O sentido da norma é explicitar as exigências
do amor para um determinado setor da vida humana. Por isso, trata-se de uma
norma operativa que visa à concretização do amor para uma determinada situa­
ção. Se ela não alcança este objetivo ou se serve até de subterfúgio para negar
ou desfigurar as exigências do amor, precisa ser criticada e desmascarada,
como Jesus o fez com a norma do sábado.
As normas têm igu almente uma função pedagógica. Em primeiro lugar,
em relação aos valores, ajudam a preservar a sua relevância para o ethos e a des­
pertar o senso moral para seu significado. Através das normas, o ethos educa
para os valores que quer defender. Em segundo lugar, as normas operativas
têm uma função pedagógica em relação à consciência, porque servem de dire­
triz para encontrar a norma concreta, que será o imperativo pessoal para o su­
jeito moral.
É necessário que a norma seja promulgada no âmbito da consciência,
para que se imponha como obrigatória ou seja concebida como dever. Não
basta puro conhecimento conceptual-legal; é necessário um conhecimento
valorativo-ponderativo. Segundo S. Tomás, para que haja um ato moral, é ne­
cessário que se seja livre. Assim, quem age espontaneamente age livremente
porque o princípio do agir está no sujeito moral; mas quem recebe impulso de

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outrem não é livre. Quem evita o mal por causa de um preceito do Senhor não é li­
vre. Em compensação, quem evita o mal por ser um mal, este sim é livre, e o
seu agir tem densidade moral. Quem cumpre apenas a materialidade da nor­
ma, sem uma compreensão formal do seu significado, não age moralmente (ln
Epistolam II ad Corinthios, cap. III, lect. III).
O sistema ético expressa-se em três níveis: universal, particular e singu­
lar . A articulação entre essas dimensões é essencial para uma moral equilibra­
!

da. A dimensão universal aponta para os grandes princípios que têm validade
para sempre e em toda parte. São absolutos e imutáveis. Identificam-se com
os princípios éticos e evangélicos como, por exemplo, Faz o bem e evita o mal ou
Ama o próximo como a ti mesmo. Eles valem para todo o sempre. Têm erfl vista os
grandes valores e os fins últimos que todos devem levar em consideração para
a realização humana. Constitu�m o desefável integral 2 para todo ser humano.
Querem levar o ser humano à perfeição. Em virtude disso, a dimensão univer­
sal é uma dimensão utópica. Por serem universais e abstratos, esses princípios
são vazios de conteúdo concreto. Não dizem o que é fazer o bem e evitar o
mal ou amar o próximo no contexto atual e numa situação determinada. Por
isso, é necessário introduzir a dimensão particular.
Consciente de que nunca é possível concretizar plenamente o des�jável
integral, a moral procura considerar a realidade de uma determinada sociedade
e de uma determinada época e chegar àquilo que se poderia chamar de des�jável
habitual. É a dimensão particular. Por isso, elabora normas operativas que jus­
tamente condensam o desefável habitua/3. Este fato aponta para a eventual cadu­
cidade das normas, porque são a realização da utopia para determinado
momento e lugar. Esse indivíduo ou esse grupo social verificam que uma de­
terminada conduta tem efeitos construtivos ou destrutivos a curto ou longo
prazo e chegam a declarar que tal ou qual conduta deve ser seguida ou evitada.
Desse modo, a história e a reflexão crítica mostram-nos que é normal que em cada época hqja
conflitos entre as normas das moraisjá adquiridas ou constituídas e as normas das morais
que estão se impondo.(..) No plano das normas particulares, a evolução ética é des�jável.

X. TH(,VENOT, Que moral para o nosso tempo. Segunda parte: Pontos de referência para uma nova
"construção moral", Revis/a de catequese 12 (1989) nº 48, p. 6-1 O.
2 O termo é tirado de Thévenot: Ibidem, p. 6.
3 Ibidem, p. 7.

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Caso contrário, a moral torna-se imoral porquefechada, porque não abre mais espaço à vida
e à novidade do Espírito4 •
Toda pessoa é única e singular. Nenhuma norma particular consegue
prever e indicar concretamente como a pessoa deve agir em determinada situa­
ção. As situações humanas são, quase sempre, conflitantes e cheias de ambi­
güidades. Daí a importância da dimensão singular. É necessária a intervenção
da consciência moral para que se chegue criativamente ao imperativo pessoal
que vale para esse indivíduo singular. Nenhuma moral pode dispensar esta in­
tervenção e prescindir da responsabilidade pessoal. A pessoa ou grupo responsável
procura, então, não mais o desqável integral ou habitual, mas aquilo que é efetivamente pos­
sível, para aproximar-se do desqavel integral. O sonho delineado nos princípios, a sabedoria
expressa nas normas, esba1,am na complexidade do real absolutamente único, que é vivido
num determinado momento e num determinado lugar5 •
Para entender o lugar da norma no edifício da ética, poder-se-ia propor
o seguinte esquema:

NÍVEIS DA FÉ NÍVEIS DA RAZÃO

Princípios evangélicos Princípios éticos

Normas cristãs 2 Normas morais


(eclesiais) (consuetudinárias)

Leis canônicas 3 Leis civis e


e disciplinares processuais

As normas operativas referem-se ao nível 2. Não se identificam nem


com os princípios e valores absolutos e universais do nível 1, nem tampouco
com as leis jurídicas do nível 3. Elas servem para encontrar a norma concreta e
singular que se impõe à consciência como imperativo pessoal.

4 Ibidem, p. 8.
5 Ibidem, p. 9.

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2 Individuação das normas morais


A individuação das normas morais explicita o modo como se chega a
formular as normas. Existem dois caminhos: a fé (revelação) ou a razão Oei na­
tural). O primeiro inspira-se na Bíblia e expressa-se no ethos eclesial; o segundo
baseia-se na natureza humana e configura-se no ethos cultural.
Essas duas fontes clássicas do conhecimento moral foram tradicional­
mente interpretadas como dois blocos monolíticos, absolutos e universais, de
princípios e normas. Queria-se captar a natureza humana em estado puro e re­
cuperar o núcleo da mensagem evangélica, abstraindo-a do tempo e do condi­
cionamento sociocultural. Faltava levar em consideração a historicidade, que
"
caracteriza a condição humana.
A introdução da dimensão histórica leva a superar uma concepção está­
tica e fixista da natureza humana e a admitir a necessária historicidade da pró­
pria compreensão humana. A ménsagem evangélica não é estranha ao influxo
da historicidade enquanto sujeita às leis da cultura. Os textos do A. T. e N. T.
já são interpretação em ato, esforço de acolher a palavra de Deus para deter­
minado tempo e lugar. Esse processo continua e tem por paradigma o que fi­
zeram os primeiros cristãos.

2.1 Fé (Revelação)

2.1.1 Bíblia6
Apesar da insistência do Vaticano II em que a teologia moral alimente
mais sua reflexão na Sagrada Escritura (OT 16), a Bíblia não pode ser transforma­
da em código de normas. Ela não é um receituário de soluções acabadas para pro­
blemas morais; é antes uma mensagem fundamental e transcendental que permite
uma nova autocompreensão do ser humano. Expressa uma antropologia salvífica
que ressalta certos elementos importantes para o agir. Abre um novo horizonte de
compreensão da realidade, que terá seus efeitos sobre a práxis.
A Bíblia mostra uma via moral, porque apresenta as respostas dos pri­
meiros cristãos às questões morais. Esse ethos primitivo serve de paradigma,
mas não no sentido literal, porque as soluções que apresenta não constituem

6 CH. CURRAN/R. McCORMICK (Edd.), Readings in Mora/Theology, n" 4: The use ofScripture in Moral
Theology, New Yok: Paulist Press, 1984.

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uma resposta acabada e pronta para o mundo hodierno. Fornecem uma ma­
iêutica que ajuda o cristão de hoje a individuar, à luz do Evangelho, a resposta
adequada aos problemas atuais.
Nas soluções dadas pelos primeiros cristãos aos problemas morais, é
necessário distinguir entre o princípio ético, que fundamenta a solução e mantém
sua validade, e a aplicação prática, que depende da cultura da época. Portanto,
não podemos procurar na Escritura normas operativas concretas, mas antes
princípios éticos ou exigências transcendentais (Ziel-Gebote), que são absolutos
e uruversa1s.

2.1.2 Ethos eclesiaF


A Igreja propõe aos seus fiéis um modus vivendi correspondente à fé cris­
tã e fundado na mensagem evangélica. Para a formação desse ethos eclesial,
contribui o ensino do magistério, a reflexão dos teólogos e o senso dosfiéis. Fazem par­
te desse ethos as normas ético-religiosas tipicamente cristãs, como, por exem­
plo, as relativas aos sacramentos e à vida eclesial, e à impostação e motivação
cristã das normas morais tipicamente humanas.
Nos últimos séculos da história da Igreja, assistimos a uma hipertrofia
da autoridade do magistério na determinação do ethos eclesial8 • Aos teólogos
caberia apenas comentar e fundamentar as determinações do magistério; aos
fiéis, obedecer às suas diretivas. Essa perspectiva deu origem à distinção entre
Igreja docente e discente.
O significado atual de magistério, como ofício exclusivamente hierár­
quico de ensinar, se impôs apenas no século XIX, com base no conflito acirra­
do entre a Igreja e o mundo moderno. Na Idade Média, falava-se do magistério
dos pastores e do magistério dos doutores. Quem dirimia as questões teológi­
cas eram os teólogos e as universidades. Gerson, célebre chanceler da Univer-

7 Sobre a relação entre concepção eclesiológica e visão moral: H. SCHLÔGEL, Kirche ,md sittliches Han­
deln. Zur Ekklesiologie in der Grundlagendiskussion der deutschsprachigen katholischen Moraltheolo­
gie seit derjahrhundertwende ((Walberberger Stuclien 11) Mainz: Mathias Grünewald, 1981; Sobre as
fontes da moral na Igreja: H. LEPARGNEUR, Fontes da moral na Igrqa. O papel da Hierarquia, dos teó­
logos e da prática popular na elaboração da norma moral. (Coleção "Cadernos de Teologia e Pastoral"
nº 10) Petrópolis: Vozes, 1978.
8 B. FRALING, Hypetrophie lehramtlicher Autoritat in Dingen der Moral? Zur Frage der Zustandigkeit
des Lehramtes aus moraltheologischer Sicht, in: P. HÜNERMANN (Hrsg), Lehramt und Sexual-moral
(Schriften der katholischen Akademie in Bayern, Band 137), Düsseldorf: Patmos, 1990, p. 95-129.

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Evento Cristo

sidade de Paris, defendia, no século XV, o direito dos doutores de decidir


escolasticamente sobre o que pertence à fé, antes dos prelados da Igreja. Ape­
nas nos últimos séculos, os papas começaram a introduzir questões teológicas
no seu ensino pastoral. Essa função pertencia ao magistério dos doutores.
Com a revolução francesa, as faculdades teológicas foram supressas ou decaí­
ram e, como conseqüência, a autoridade suprema da Igreja reservou exclusi­
vamente para si o magistério exercido anteriormente pelos doutores das
universidades. Aos poucos, foi progredindo a idéia da infalibilidade do ma­
gistério papal e a distinção entre a infalibilidade de todo o corpo da Igreja, já
conhecida e aceita, e a do papa. Esse fenômeno culminou na distinção entre ec­
c/esia docens e ecc/esia credens vel discens9 •
O Vaticano II procurou situar o magistério no interior do povo de Deus,
em relação com ele (LG) e na docilidade à palavra de Deus e ao Espírito Santo
(DV). O povo de Deus, do qual fazem parte também o papa e os bispos, é o
dado primeiro, porque a condição de batizados insere todos nesse povo e lhes
confere o sensusjidei e a conseqüente infalibilidade in credendo de todo o corpo da
Igreja, anterior à infalibilidade in docendo do magistério. Por isso, vamos tratar
primeiro da contribuição do sensus jidelium para a formação do ethos eclesiaL

2. 1.2.1 Senso dosJiéis 10


Ao falar-se de "senso dos fiéis", está em questão a existência de um
"magistério" dos fiéis11 . Trata-se de saber até que ponto os cristãos leigos são
sujeitos ativos na configuração do ethos eclesial ou apenas depositários passivos.

9 Para toda essa questão consultar: Y. CONGAR, A Semantic History of the Term "Magisterium" in: CH.
CURRAN/R. McCOR.MlCK, Readings in Mora/Theology n' 3: The Magisterium and Morality, New York
Paulist Press, 1982, p. 297-313 (original francês: RvScPhTh 60 (1976) 84-98); Y. CONGAR, A Brief His­
tory of the Forms of the i\fagisterium and its Relations with Scholars, in: Ibidem, p. 314-331 (original fran­
cês: RvScPhTh 60 (1976) 99-112);]. DORil, L'institution du magistêre, RvScRel 71 (1983) 13-36;]. M.
GRES-GAYER, Toe Magisterium of the faculty ofTheology of Paris in the seventeenth century, ThSt 53
(1992) 424-450.
10 M. SECKLER, Glaubenssinn, in: LThK IV, p. 945-948; M. LÕHRER, i\frsterium Saiutis 1/3, p. 53-61;J.
COULSON, O magistério da Igreja una e sua relação com o "Sensus fidelium", Concilium (1975 /8) nº
108, p. 975-983; L. SARTORI, Quais os critérios para um adequado recurso ao "Sensus fidelium", Con­
º
cilium (1981 /8) nº 168, p. 1101-1107; AA. VV., Osfiéis também ensinam na Igreja, Concilium (1985 /4) n
200; B. SESBOÜE, Le "Sensus Fidelium" en morale a la lumiêre de Vatican II, l..e Supplémenl (1992) nº
181, p. 153-166.
11 H. FRlES, Existe o magistério dos fiéis?, Concilum (1985 /4) nº 200, p. 458-459.

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José Roque )unges

O sensusfidelium é um lugar teológico bem conhecido dos santos padres,


que apelam, muitas vezes, a ele como um argumento para determinar a fé ver­
dadeira 12. Podem-se ressaltar dois pontos: 1) é impossível que a fé de toda a
Igreja caia no erro; 2) o testemunho da fé dos fiéis pode justificar uma doutri­
na controvertida ou uma prática da Igreja. Em suma, a fé dos fiéis não tem so­
mente um papel passivo, mas também ativo.
O Concílio Vaticano II recuperou o papel ativo dos fiéis ao afirmar: O
povo santo de Deus participa também do munus profético de Cristo, pela difusão do seu tes­
temunho vivo, sobretudo através de uma vida defé e caridade, e pelo oferecimento a Deus do
sacrifício de louvor,fruto de lábios que confessam o Seu nome (cj Hb 13, 15). O C01!Jttnto dos
fiéis, ungidos que são pela unção do Santo (cf 1 ]o 2,20 e 21), não pode enganar-se no ato de
fé. E manifesta essa sua peculiar propriedade mediante o senso sobrenatural dafé de todo o
povo quando, desde os Bispos até os últimosfiéis leigos, apresenta um consenso universal so­
bre questões defé e costumes. Por esse senso dafé, excitado e sustentado pelo Espírito da ver­
dade, o povo de Deus - sob a direção do sagrado Magistério, a quemfielmente respeita - não
já recebe a palavra de homens, mas verdadeiramente a palavra de Deus (cj 1 Ts 2, 13); ape-
ga-se indefectivamente àfé uma vezpara sempre transmitida aos santos (cj ]d 3); e, com reto
juízo, penetra-a mais profundamente e mais plenamente a aplica na vida (LG 12).
Fato notável é que se fale do sensusfidei e da infalibilidade in credendo ao
tratar do conjunto do povo de Deus, que precede a distinção entre hierarquia e
leigos. O conjunto dos batizados, ungidos pelo Espírito Santo e formando o
corpo da Igreja, antepõe-se à distinção entre Igreja docente e discente. Todos,
hierarquia e fiéis, precisam ser discentes da palavra de Deus e da voz do espíri­
to e são, ao mesmo tempo, docentes pelo sensusfidei. O não pode enganar-se no ato
de fé refere-se à infalibilidade in credendo, que é a expressão primeira e funda­
mental do carisma da infalibilidade da Igreja. Esse carisma é vivido sob a con­
dução do magistério. Mas este último é infalível enquanto expressão da
infalibilidade de toda a Igreja. A infalibilidade in docendo fundamenta-se na in­
falibilidade in credendo, isto é, o movimento passa do conjunto da Igreja aos
seus ministros 13 .

12 Para um dossié patrístico sobre esse ponto: Y. CONGAR, Jalons pour une théologie du laical, Paris: Cerf,
1953, p. 450-453.
13 B. SESBOÜE, op. cit., p. 156-157; L. BOFF, i", justificada a distinção entre Ecclesia docens e Ecclesia
discens?, Concilium (1981 /8) n" 169, p. 1.089-1.095.

218
Evento Cristo

O papel do sensusfidelium atinge os dois domínios clássicos do magisté­


rio da Igreja: de rebusfidei et morum (fé e costumes). Se os fiéis têm algo a contri­
buir para a intelecção da fé, muito mais têm para sua vivência. Alguém poderia
dizer que as questões de fé necessitam de uma competência de conhecimentos
e intelecção que os fiéis, muitas vezes, não têm. Mas, em questões práticas- de
espiritualidade, liturgia e moral-, li gadas à vivência da fé, possuem uma compe­
tência mais original através do testemunho da vida concreta. Para ter valor, o
sensus fidelium deve dar sinais da sua universalidade no espaço e no tempo. O
senso dos fiéis deve expressar-se num consenso universal14•
O problema é quem participa desse consenso: todos os batizados -
mesmo aqueles que não vivem a sua fé - ou somente os cristãos mais conscien­
tes e engajados na Igreja. Na Igreja antiga e medieval, a voz do povo era ouvi­
da para a escolha do bispo. Vox populi designava a pars sanior - a parte mais
sadia - da Igreja. Aqui também o consenso é feito a partir dos cristãos leigos
de fé explícita ligados a uma certa questão. Por exemplo, o testemunho de
cristãos leigos ligados aos movimentos de espiritualidade conjugal e à pastoral
matrimonial tem o seu valor para a formação do ethos cristão sobre o matrimô­
nio. Eles têm mais condições de ter presente a experiência concreta dos cônju­
ges. A opinião de pesquisadores, médicos e enfermeiros cristãos deve ser
levada em consideração, quando se quer propror uma ética médica cristã 15.
O desafio é consultar não só os que de antemão estão de acordo com a
posição oficial, mas principalmente os que dela discordam. Mas, em geral, es­
tes são discriminados. A importância de auscultar o sentir dos cristãos aponta
para o papel da opinião pública na Igreja, ressaltada pelo documento Commu­
nio et Progressio, de 197416.
No Sínodo de 80 sobre a família, quando se registraram os comporta­
mentos constatados na base da Igreja e a insuficiente coerência com a doutri­
na oficial, incluída a Humanae Vitae, algu ns padres tiveram a coragem de
recorrer ao sensusfide/ium. O cardeal Ratzinger dizia que o critério da doutrina deve
ser o senso dafé do povo de Deus, a experiência dos esposos... 17.

14 B. SESBOÜE, op. cit, p. 158-159.


15 Ibidem, 160.
16 nº 114-121.
17 L 'Ossem,tore Romano de 8 de outubro de 1980, p. 2.

219
José Roque ]unges

No domínio da moral, a forma de expressão do sensusfidelium se daria em


ambos os níveis: prático e teórico. No nível prático, o comportamento moral do
conjunto dos cristãos de fé mais explícita expressa um juízo comum sobre a
moralidade ou imoralidade de uma prática em determinada vida moral. Pode ser
que esse juízo se expresse também no nível teórico através de escritos de cunho
discursivo ou, na maioria das vezes, narrativo. Esse juízo é sempre um apelo à
consciência moral, que, nesses casos, tem um papel mais primordial do que no
âmbito das questões doutrinais, que se fundamentam sobre a fé no mistério da
Igreja. As obrigações morais da fé cristã concernem particularmente à consciên­
cia dos fiéis leigos. Eles lidam mais plenamente com as três esferas da ética cris­
tã: vida familiar (moral conjugal e sexual), vida econômica (profissão, deveres de
justiça), vida política (exigências do bem comum, respeito pelos direitos huma­
nos); por isso, devem contribuir efetivamente para a formação do ethos eclesial1 8•
O protagonismo dos leigos, ressaltado por Santo Domingo, precisa atingir tam­
bém este âmbito.
Outra maneira de os fiéis serem sujeitos do ethos eclesial é através da re­
cusa ou integração criativa de uma lei ou prática, considerada como posição
oficial da Igreja. É o instrumento eclesiológico conhecido como recepção, ao
qual a tradição dá valor jurídico 19. Seria o que se poderia chamar de uma moral
ou teologia dos fatos consumados. Fatos e costumes não têm força normati­
va. Contudo, podem revelar-nos a existência de outras convicções e motivos,
mais ocultos, que explicam as mudanças na conduta. É verdade que o povo
pode ser manipulado pelos meios de comunicação, mas isso não explica tudo. Se­
ria mais cômodo fechar-se e simplesmente condenar as novas práticas presentes
entre o povo do que assumi-las como desafio para prosseguir a reflexão20.
As mudanças nunca acontecem a partir da autoridade, como se ela ti­
vesse de abrir novos caminhos. As novas orientações provêm da base, con­
vencida de que a resposta tradicional não resolve determinado problema. A

18 B. SESBOÜE, op. cil., p. 159-160.


19 Y. CONGAR, La "réception" como réalité écclésiologique, fu,ScPhTh 56 (1972) 369-403 (Resumo em
º
Concilium (1972 /7) n 77 ); H. JUROS, Die Rezeption ethischer Normen, Theologisches Quarlalschrifl 169
(1989) 111-122: E. LANNE, La notion eclésiologique de récéption, RvThL 25 (1994) 30-45.
20 E. LÓPEZ /\ZPITARTE, La raíz popular en reflexión teológico-moral, in: INSTITUTO SUPERIOR
DE CIENCIAS l\!OR.ALES, La moral ai semicio del pueblo, Madrid: PS editorial, 1983, p. 119-121.

220
Evento Cristo

transgressão 21, não como expressão de radicalismo e contestação, mas como


tentativa de sair de um beco sem saída, pode ser um caminho de abertura para so­
luções melhores. Por isso, buscam-se novas pistas, intentando novas práticas,
muitas vezes à revelia da posição oficial. As novas orientações poderão ser fu­
turamente confirmadas pelo magistério. Mas antes foram discutidas e pratica­
das em âmbitos inferiores22.

2.1.2.2 Reflexão dos moralistas23


A reflexão teológica teve sempre um papel central para a evangelização
e o governo apostólico da Igreja. Na antigüidade cristã, os santos padres eram,
ao mesmo tempo, pastores e teólogos. Posteriormente, principalmé'nte na
Idade Média, os carismas se separaram. Havia o magistério dos pastores e o
magistério dos doutores. Nos últimos séculos, o magistério hierárquico pro­
curou reservar para si os dois carismas, sem, contudo, negar a importância da
função dos teólogos na Igreja. Se a reflexão teológica é central para o anúncio
e a explicitação da fé, é muito mais ainda para sua vivência e prática. Assim, a
reflexão dos teólogos moralistas é indispensável para conhecer as exigências
éticas da fé e da natureza humana e para ajudar a consciência na sua concreti­
zação.
Portanto, os teólogos moralistas estão a serviço do povo de Deus, par­
ticularmente do querer moral dos fiéis cristãos. Sua obrigação e responsabili­
dade se relaciona, antes de mais nada, à fé do povo de Deus e, concretamente,
à vivência prática das exigências éticas desta fé. A ajuda dos teólogos moralis­
tas ao magistério insere-se nesse contexto, enquanto este está igualmente e de
um modo mais autoritário a serviço do crescimento espiritual e humano do
povo de Deus. Essa mútua colaboração foi, em muitos casos, frutuosa; em
outros momentos, conflitiva. Em Trento e no Vaticano II houve uma harmoniosa

21 Cf. AA. VV. Morale et transgression, Supplémenl (1982) nº 140.


22 E. LÓPEZ AZPITARTE, op. cit., p. 114-119.
23 J. l\l. TILLARD, Théologie et vie ecclésial, in: B. LAURET /F. REFOULÚ, Initiation à la pratique de la
théologie, Tomei: lmroduction, Paris: Cerf, 1982, p. 161-182;]. FUCHS, Vescovi e teologi moralisú, in:
Idem, Etica cristiana in una società secolarizzata, Casale Monferrato(J\L): Ed. Piemme, 1984, p. 187-21 O; X.
THÚVENOT, lntervención dei teólogo católico en ética, Selecciones de Teología 25 (1986) 101-112;J. R.
FLECHA, Estatuto eclesial dei teólogo moralista, Mora/ia 1 O (1988) 445-466; B. HARING, La función
dei moralista católico, Mora/ia 13 (1991) 299-330.

221
José Roque ]unges

conspiratio entre os bispos e os teólogos, mas, em outras ocasiões, a relação é de conflito24 .


Um exemplo famoso de conflito é o que aconteceu, depois do Concílio, com
um dos seus mais renomados colaboradores, B. Haring. Seus escritos foram
colocados sob suspeita, e ele teve que responder a questões, vindas à luz so­
mente em 1989, por expressa vontade do acusado, como modo de chamar
atenção sobre o clima de fechamento reinante na lgreja25.
Essa constatação estrutura a questão da liberdade de investigação e ex­
pressão teológica dentro da Igreja. No Vaticano II, houve uma defesa corajosa
da liberdade. Ao tratar da promoção da cultura, a Gaudium et Spes fala da im­
portância da reflexão teológica. Chama a atenção para dois aspectos: a necessi­
dade da abertura aos sinais dos tempos e a conveniência de que muitos leigos
tenham formação teológica. Termina afirmando: Para que consigam desempenhar
o seu dever, sefa reconhecida aosfiéis, clérigos ou leigos, ajusta liberdade de investigação e de
pensamento, bem como ajusta liberdade de exprimir as suas idéias com humildade efirme­
za, nos assuntos de sua competência (GS 62).
A liberdade é uma exigência da própria vocação do teólogo, que nasce
da fé e está a serviço da fé. A teologia oferece a sua contribuição para que a fé
seja compreensível e comunicáve_l. Ela obedece ao dinamismo da verdade,
que tende a explicitar-se e comunicar-se. Isso exige do teólogo intensificação
da vida de fé, abertura aos sinais dos tempos, inserção na cultura de sua época,
para que saiba falar a língua do seu tempo e, assim, tornar a fé comunicável. O
teólogo deve estar atento às exigências epistemológicas da sua disciplina e às
exigências do rigor crítico, mas deve saber recorrer às aquisições das ciências
humanas. Se isso é exigido de todo teólogo, muito mais ainda do teólogo mo­
ralista, que trata mais de perto os desafios e problemas atuais do ser humano.
Isso só se pode realizar num clima de liberdade, não só de pesquisa, mas tam­
bém de expressão. É evidente que tal liberdade deve ser exercida no interior
da fé do povo de Deus, a serviço da qual está o carisma do moralista26 .
O modo de entender a teologia moral determina o papel reservado ao
teólogo moralista. Numa moral dependente das leis canônicas, o moralista an-

24 J. M. TILLARD, op. cit. p. 174.


25 B. HARING, Fé - T-fistória - Moral (Entrevista com G. Licheri), S. Paulo: Loyola, 1990; U. SANCHEZ,
El teólogo moralista)' su comunión con la Iglesia. EI leslimonio dei B. 1-ltiring. bfemerides Mexicana 8 (1990)
205-234.
26 CONGREGAÇAO P1\RA 1\ DOUTRINA DA FI °,, Instrução sobre a vocação eclesial do teólogo, n'" 6-12.

222
Evento Cristo

dava a reboque do canonista. Sua função era ajudar na aplicação concreta das leis
morais e jurídicas. Surgiram, assim, os célebres casus conscientiae. A moral ficou
praticamente reduzida à casuística. Esse modelo casuístico corresponde ple­
namente à concepção legalista da moral e foi, com razão, criticado duramente
pela moral renovada. Mas o problema não estava na casuística e sim na con­
cepção que lhe deu origem. Hoje se redescobre o valor da casuística em outro
horizonte de compreensão, sem negar as deficiências do modelo tradicio nal27.
No horizonte de compreensão, aberto pela moral renovada, o papel do
teólogo moralista na formação do ethos eclesial é ampliado e aprofundado. Não
está tanto a serviço da concretização da norma moral, mas da competência da
consciência do sujeito moral. Fornece elementos que possam ajudar a consciên­
cia, iluminada pela fé, a discernir os desafios e chegar a decisões pertinentes.
Assim, o papel dos teólogos moralistas é estabelecer as relações entre o ethos, o or­
denamento moral e afé, cuidar da leitura hermenêutica da Bíblia em relação às questões mo­
rais, reler hermeneuticamente as tradições morais desenvolvidas no deco1Ter do tempo,
aprofundar e explicitar os valores morais, motivar certos princípios e normas morais como
credíveis e adequadas, esclarecer a importância de certos resultados das ciências para a com­
preensão da retidão de comportamentos morais, afrontar novos problemas morais, eté28•
A teologia moral é, portanto, antes de mais nada, um serviço media­
dor29 . Mediado da mensagem bíblica, deve saber explicitar as exigências éticas
da antropologia cristã, situar uma determinada diretiva moral da Bíblia no seu
contexto cultural, distinguindo entre o princípio que lhe serve de base e a sua
aplicação concreta e interpretando-o para o aqui e agora. Mediadora crítica da
tradição, deve saber distinguir entre a tradição ética da fé e as tradições morais
e apontar os condicionamentos históricos de algumas normas morais.
O moralista é também mediador do sentir moral dos fiéis, porque ajuda
a explicitar a sua experiência ética sobre determinadas questões. Daí a necessi­
dade de caminhar com o povo através de uma prática pastoral inserida, que o

27 1 ê. HAi\11 êL, Valeur et limites de la casuistique, in: Idem, I _,0i 11a/t1rdle e/ /oi du Chrisl, Bruges/Paris: Des­
clée de Brouwer, 1964, p. 45-77; K. DI êi\li\lER, I êrwagungen über den Segen der Kasuistik, Gregoria-
1/1111163 (1982) 133-140; A. K. RUF, O modelo casuístico. A norma é ministrada pela Teologia, in: Idem,
C11rsoj,111dat11e1Jtal dr Teologia moral. Volume 1: Lei e norma, S. Paulo: Loyola, 1991, p.151-166; PH.
SCHi\llTZ, Kasuistik. Ein wiederentdecktes Kapitel der Jesuitenmoral, Throl��ie 1111d Philosophie 67
(1992) 29-59.
28 J. FUCHS, op. cit., p. 195-196.
29 (; o ponto de ,·ista de HARING no artigo "La función dei teólogo moralista católico", cf. nota 21.

223
José Roque )unges

ponha em contato com as dores e os sofrimentos, os anseios e as esperanças


dos homens e mulheres de nosso tempo. Devem ser mestres inspirados, antes
de mais nada, pela misericórdia e estar sempre dispostos a aprender. É ainda
mediador da inculturação da mensagem ética cristã para a cultura atual, para
que ela seja comunicável e compreensível para as pessoas de hoje das diferen­
tes culturas. Por isso, deve estar aberto às implicações do pluralismo cultural.
Enquanto mediadores da mensagem bíblica, da tradição ética, do sentir
moral dos fiéis e dos desafios éticos da cultura atual, os teólogos moralistas são
também mediadores com relação ao magistério hierárquico. Eles encontram-se
entre o sensusftdelium e o magistério. As diferentes mediações pretendem prestar
um serviço ao carisma de ensinar em questões éticas. Para que o ensino tenha
pertinência e relevância, é necessário que o magistério esteja atento aos sinais
dos tempos e à experiência ética dos fiéis e saiba interpretar exegeticamente as
exigências éticas centrais da mensagem bíblica e da tradição. A teologia moral
fornece esses elementos necessários ao carisma de ensinar, para que o ensino se
dê em linguagem apropriada e seja capaz de chegar a formular um ethos eclesial.
Além de assessorar o magistério na formulação do ethos eclesial, o teó­
logo moralista é confrontado com um ethos já formulado, ou melhor, com nor­
mas concretas já estabelecidas pelo magistério. No tocante às intervenções do
teólogo moralista neste caso30 , em geral, se quer saber a sua opinião sobre nor­
mas estabelecidas, postas em questão pela mudança dos costumes e a introdu­
ção de novas práticas. Assim, o núcleo das intervenções do moralista não são
tanto as exigências éticas universais, mas a particularidade das normas operati­
vas. Que normas estabelecidas já estão superadas? Que outras novas é neces­
sário propor? Quer-se transformar o moralista em um especialista em normas
morais, o que o deixa molesto, porque fica a impressão de que a moral se re­
duz a um conjunto de normas. Contudo, ele não pode desimcumbir-se do
exame e da elaboração de normas morais, por elas serem necessárias.
A norma é uma condensação de experiência humana na busca da hu­
manização da pessoa e da sociedade, em vista à sua transmissão nas circuns­
tâncias atuais. A norma traça o caminho mais habitual de humanização em um
determinado setor da realidade humana. Comunicando a experiência do pas-

30 1� sobre isso que se refere X. THi',VENOT em seu artigo "lnten-ención dei teólogo católico em ética",
citado na nota 21.

224
Evento Cristo

sado, fornece à consciência moral competência para responder às exigências


do presente.
Por ser a norma portadora de uma experiência sociocoletiva, o recurso
à norma frustra a tentação do subjetivismo e situacionismo. É um juízo sobre
a incidência de certa prática na pessoa do outro e no tecido social. Portanto, a
norma é uma garantia de respeito à alteridade do outro e da sociedade.
Mesmo sendo muito consciente dos riscos de reduzir a moralidade ao
cumprimento da norma 31 , o teólogo moralista não pode abdicar da análise,
justificação e elaboração de normas operativas. É a expressão atualizada da ca­
suística. Não é pura reedição da casuística tradicional, porque o horizonte de
compreensão mudou radicalmente. A casuística está a serviço da compc;:tência
da consciência moral (autonomia) e da construção do consenso social (solida­
riedade). O teólogo moralista tem em vista esses dois pólos de referência
quando elabora uma casuística normativa.

2.1.2.3 Ensino do magistério eclesia/32


O magistério teve sempre papel central na Igreja, através do munus de
santificar, governar e ensinar. Santificar significa levar os fiéis a viverem a sua
vocação à santidade, tendo como mediador e modelo Cristo. Governar signi-

31 Sobre esses riscos: X. THÚVENOT, op. cit., p. 104-108.


32 W. J. LEVADA, Infallible Church Afagisterium and the Natural Law (Excerpta ex dissertatione ad lauream
in Facultate Theologiae) Roma: Pontificia Uni,·ersitas Gregoriana, 1971; J. P. MACKEY, La funzione
dei magistero nel campo della fede e della morale, in: AA. VV., II magistero mora/e: compiti e limiti, Bologna:
Ed. Dehoniane, 1973, p. 153-183; K. DEMMER, La competenza dei magistero ecclesiastico in morale,
in: K. DEMMER/B. SCHÜLLER (a cura di), rede cristiana e agire mora/e, Assisi: Citadella, 1980, p.
144-170; CH. A. CURRAN/R. A. McCOR.MICK (Edd.), Readings in MoralTheolo!!J, nº 3: The Magiste­
rium and Morality, New York: Paulist, 1982;]. SCHUSTER, Ethos und kirchliches Lehramt. Zur Kompe­
tenz des Lehramtes in Fragen der natürlichen Sittlichkeit, (Frankfurter Theologische Studien nº 31)
Frankfurt a. M.: Knecht, 1984;]. MAHONEY, 'Teaching with authority', in: Idem, The making ofMoral
Theology. A Study of the Roman Catholic Tradition. Oxford: Clarendon, 1990, 2. ed., 116-174; A.
NAUD, II magistero incerto (Biblioteca di Teologia contemporanea nº 62) Brescia: Queriniana, 1990; B.
LEERS, Moral cristã e autoridad,, do magistério eclesiástico. Conflito-diálogo (Teologia moral na América Latina
nº 7) Aparecida (SP): Sanruário, 1991;J. FAMERÚE, La fonction du magistere ecclésial em morale, Nou­
velle Revue Théologjque 107 (1985) 722-739; X. TH!lVENOT, Magisterio y discemimiento moral, Selecciones
d,, Teología 25 (1986) 113-118; E. LÓPEZ AZPITARTE, Magisterio de la Iglesia y problemas éticos: dis­
cusiones acruales, Razóny 1--e 213 (1987) 371-381; I"'1m., E! magisterio moral de la Iglesia: tensiones acrua­
les, Sal ten-ae 75 (1987) 503-514; F. BÔCKLE, Le magistere de l'Úglise en matiere morale, Revue théologique
d,, Louvain 19 (1988) 3-16; \Y/. SPOHN, The Magisterium and Morality, ThSt 54 (1993) 95-111.

225
José Roque ]unges

fica promover a unidade e apostolicidade da Igrej�. Ensinar sign ifica defender


e explicitar o conteúdo da revelação.
O magistério teve, principalmente nos últimos séculos, um papel pre­
dominante na formação do ethos eclesial. Esse fato pode ter levado a uma hi­
pertrofia da sua função e a uma subvalorização da contribuição do sensus
fidelium e da reflexão dos teólogos moralistas. Por isso, devido à importância e
predominância do ensino do magistério na formação do ethos eclesial, é necessá­
rio definir e delimitar claramente o seu papel.
Quanto ao ensino do magistério em questões de fé, não existe nenhu­
ma dúvida, porque faz parte da preservação do depositumfidei. O problema apa­
rece quando se fala do ensino em questões de moral. Não se contestam o
direito e até o dever de o magistério pronunciar-se também sobre problemas
morais. Mas é necessário esclarecer algumas questões.
A primeira é o que se entende por questões de moral. Referem-se à di­
mensão universal, particular ou singular da moral? Englobam princípios éticos,
fundamentação de atitudes morais, exigências transcendentais ou também nor­
mas operativas e particulares, juízos e decisões singulares?
Partindo de que a moral se fundamenta essencialmente na lei natural, a
competência do magistério em questões de moral é a mesma da fé, que se ba­
seia no dado revelado? Aceitando a existência dessa competência, o peso das
afirmações do magistério é a mesma nas diferentes dimensões da moral?
A fórmula tradicional que expressa o ensino do magistério é servir de
gu ia in rebusfidei et morum. A fórmula tem uma história longa. Os dois termos
têm um sentido diferente no Concílio de Trento e nos dois Concílios Vatica­
nos. Aqui se trata de saber o que significa res morum. A questão central é se mo­
res refere-se especificamente à lei natural e se, portanto, o magistério tem uma
competência particular e privilegiada em lei natural3 3•
O contexto em que aparece o tema defides et mores em Trento é a discus­
são sobre escritura e tradição, em que não cabia levantar a pergunta se mores se
refere à lei natural ou não. A fórmulafides et mores diz respeito à salutaris veritas e
à disciplina morum, correspondente ao credenda etfacienda. A preocupação é com
as tradições que eram negadas pelos reformadores ao colocarem o acento na
sola scriptura. Trento declara que as tradições vinham da época apostólica e

33 P. FRANSEN, A short history of the meaningof the formula "Fides et mores", I...St 7 (1979) 270-301.

226
Evento Cristo

eram uma explicitação do Evangelho. Algumas eram claramente matéria de fé:


outras referiam-se às práticas litúrgicas e cerimoniais e incluíam costumes que
poderiam mudar com o tempo. Portanto, mores não é simplesmente equivalen­
te a princípios e normas morais, mas inclui a idéia de costumes e práticas que
caracterizam o modo de vida cristã. Certamente não exclui a idéia de uma mo­
ralidade evangélica como fonte das tradições e englobadora da lei natural34.
No Vaticano I, o contexto é outro. O ponto de referência para enten­
der o sentido defides et mores é a discussão sobre a infalibilidade papal. O Con­
cílio propõe claramente que a prerrogativa da infalibilidade se aplica às
definições sobre o que está contido no depósito da fé. A partir dos debates
dos padres conciliares, infere-se que o conceito mores da expressãojidf.l et mores
não é usado simplesmente no sentido de princípios morais de ordem natural e
não-pertencentes ao depósito da fé. Assim como em Trento, a expressão fides
et mores seria melhor traduzida porfé e suaspráticas do quefé e moral. Das discus­
sões conciliares, parece correto concluir que os padres não queriam referir-se
à lei natural, no sentido de meros princípios filosóficos de moral natural como
fazendo parte do objeto da infalibilidade35 .
Somente o acento na determinação do objeto da infalibilidade está pri­
mariamente no depósito da fé. Secundariamente, está incluído também o que
é necessário para sua salvaguarda. A que se refere esse objeto secundário?
Pode incluir, por exemplo, a lei natural no seu sentido teológico, isto é, exigên­
cias éticas de uma antropologia teológica, já que está excluída da infalibilidade,
enquanto moral puramente filosófica. O Concílio quis delimitar muito bem
esse objeto, para impedir interpretações maximalistas e minimalistas. A ênfase
é posta totalmente no depósito da fé e na sua salvaguarda.
Apesar do alargamento do objeto da infalibilidade nas décadas posterio­
res ao Vaticano I, o Vaticano II procurou voltar ao sentido preciso do Concí­
lio anterior. A Lumen Gentium 25, ao falar da infalibilidade, declara: Esta
infalibilidade, porém, da qual quis o Divino Redentor estivesse sua Igreja dotada ao definir

34 W. J. LEVADA, op. cit., p. 36-37. Essa tese inspira-se, nesse caso, principalmente nas pesquisas de M.
B(\VENOT, Faith and Morais in the Councils of Trent and Vatican !, The Heythrop ]ouma/ 3 (1962)
15-30; Idem, Traditiones in the Council of Trent, The Hqthrop Journa/ 4 (1964) 333-347; M. ZALBA,
"Omnis salutaris ,·eritas et morum disciplina". Sentido de la expresión "mores" en el Concilio de Tren­
to, Greg 54 (1973) 680-714.
35 W. J. LEVADA, op. cit., p. 62-63.

227
José Roque ]unges

doutrina defé e moral tem a mesma extensão do depósito da Revelação divina, que deve ser
santamente guardado e .fielmente exposto. Esta ê a i,ifàlibilidade de que goza o Romano
Pontijice, o chefe do Colégio dos Bispos, em virtude de seu Call,O, quando, com ato definitivo,
como pastor e mestre supremo de todos osfiéis que confirma seus irmãos nafé (if. Lc 22,32),
proclama uma doutrina sobre afé e os costumes.
Há elementos a destacar. A infalibilidade é primariamente um carisma
da Igreja e, enquanto ta� também do papa. Ele é infalível não enquanto pes­
soa, mas em virtude do seu cargo. O exercício da infalibilidade acontece quan­
do existe um ato definitivo do papa como pastor e mestre supremo de todos
os fiéis. O seu objeto não vai além do depósito da fé.
O problema reduz-se à questão da competência do magistério em rela­
ção à lei natural. Existem três posições sobre essa questão 36.
1) A posição tradicional defende que a autoridade da Igreja e a respectiva
competência do magistério se estendem igualmente ao domínio da lei natural.
Identifica mores simplesmente com lei natural. A Igreja tem uma missão salvífica
e, por isso, foi dotada da autoridade de guiar os fiéis no caminho da salvação.
Isso implica competência sobre a vivência moral de que fazem parte conteúdos
de lei natural. A justificação dessa competência é teológica. Entre revelação e lei
natural (realidade da criação) há uma relação teologal, porque é o mesmo Deus
que se revela de duas maneiras análogas que constituem uma unidade dialética.
O problema dessa posição é que o acento na unidade faz esquecer as diferenças.
Não se pode colocar, no mesmo nível, a compreensão da lei evangélica fundada
na revelação e a interpretação da lei natural baseada na racionalidade. Para esta é
necessário recorrer às contribuições da filosofia e das ciências humanas, e o ma­
gistério não tem competência especial, como no caso da fé.
2) A maioria dos teólogos atuais estima que o magistério não tem compe­
tência particular e privilegiada em matéria de lei natural. Sua autoridade depende
do caráter convincente de seus argumentos racionais. O acento coloca-se no cará­
ter mediado da interpretação magisterial da lei natural e na necessidade do recurso
às contribuições da filosofia e das ciências. Esta posição separa drasticamente fé e
razão, esquecendo a circularidade dialética que existe entre as duas.
3) A terceira posição, chamada de dialética ou hermenêutica, parte justa-

36 J. FM,íERÚE, op. cit., p. 729-733.

228
Evento Cristo

mente da circularidade entre fé e razão37 . A relação dialética entre fé e razão, ou


melhor, a analogia entre /ex Christi e /ex natura/is funda a competência originária
do magistério na ordem da interpretação da lei natural. A lei de Cristo e a lei na­
tural não são duas realidades paralelas. O Cristo encarnado é a expressão antro­
pológica perfeita do ser humano. O que Cristo propõe responde às exigências
de humanização presentes no ser humano. O que se manifesta como lei natural
é uma expressão da vocação de todo ser humano em Cristo. Portanto, a inter­
pretação da lei natural refere-se às atitudes éticas fundamentais que são um re­
flexo da antropologia cristológica. O aspecto decisivo, na competência moral
do magistério, é a capacidade originária de descobrir as exigências éticas de hu­
manização que se deduzem do Evangelho. Significa interpretar a'1ei natural à luz
da fé, porque se trata de exigências de humanização. A capacidade de pô-lo em
prática é outra coisa e não se relaciona imediatamente com essa competência. A
mediação da interpretação da lei.natural em normas morais operativas é algo di­
verso. Neste caso, trata-se de competência subsidiária e não originária.
A competência do magistério in re morali estendeu-se neste século preli­
minarmente para o âmbito da lei natural. Não se trata de negá-la, mas de deli­
mitá-la muito bem. Quanto à tradição criada pelo magistério e que difere do
puro dado revelado, muitos autores distinguem entre 1) tradição de fé in remo­
rali, que tem ligação direta com a revelação, e 2) tradição de doutrina moral,
criada humananente, isto é, dependente da racionalidade, embora sob a luz da
fé. A primeira compreende as exigências éticas fundamentais de uma antropo­
logia cristológica; a segunda refere-se à elaboração de normas operativas con­
cretas, que são uma mediação histórica e contingente dessas exigências.
Quanto à primeira, existe competência originária; quanto à segunda, compe­
tência subsidiária. No primeiro caso, o magistério goza do carisma da infalibi­
lidade, porque se trata de preservar o depósito da revelação. No segundo caso,
não, porque a justificação e a formulação dessas normas operativas dependem
da racionalidade e da historicidade.
Por isso, a teologia sempre distinguiu diferentes graus de peso teológico
nos documentos emanados pelo magistério. As distinções clássicas são: 1) ensino
extraordinário: refere-se às definições ex cathedra do papa e às emanadas por um
Concílio em união com o papa; 2) ensino ordinário e universal.- acontece quando os

37 (, a posição de K. D Elvli\fER, op. cit.

229
José Roque )unges

bispos, unidos ao papa, põem-se de acordo no mund? inteiro no sentido de en­


sinar algum ponto de doutrina; 3) ensino ordinário ou autêntico: contempla diversos
atos do governo pastoral do papa, diretamente ou através dos serviços da Cúria.
Abrange diferentes tipos e graus de documentos. Por magistério ordinário de­
signam-se também as intervenções dos bispos em suas dioceses38 .
Nas questões de moral concreta, quando se elaboram normas operati­
vas, é preferível falar de declarações não-definitivas do magistério ordinário
ou autêntico. As declarações não exigem o mesmo consenso exigido das infalí­
veis e definitivas. Diante de declarações do magistério sobre questões morais
concretas, o cristão deve estar sempre propenso a presumir a verdade, se não
existirem fortes razões de consciência para dissentir. Foi o princípio aplicado,
por vários Episcopados, ao caso da norma operativa da Humanae Vitae.
Esse dissentimento respeitoso 39 em relação a declarações do magistério
ordinário não-infalível e não-definitivo deve ser, ao menos, possível, porque
seria desonesto exigir uma submissão completa, quando não se pode impor
uma doutrina pela fé, e existem sérios obstáculos para sua fundamentação ra­
cional4º. Diante de um texto magisterial de moral, pode-se distinguir o assenti­
mento a dar às conclusões ou aos argumentos. Pode ser que se aceitem as
conclusões, mas a argumentação usada não convence. Porém, pode acontecer
que a dificuldade no assentimento refira-se igualmente às conclusões. Nesse
caso, estamos diante de um conflito de consciência.
Quem dissente deve rodear-se de certas precauções, para purificar as
motivações da objeção. Antes de mais nada, deve pôr-se numa atitude de hu­
mildade e num clima de oração e abertura à ação do espírito; conhecer o peso
teológico do documento de que se distancia e buscar diálogo com a autoridade
eclesial; entrar numa busca intelectual séria para conhecer os seus pressupos­
tos e estar disposto a reformular a sua posição41.

0
38 X. THl \VENOT, op. cit., p. 117. A instrução da Congregação para a Doutrina da Fé sobre a vocação eclesial
do teólogo tem uma ,·ariante nessa tipologia do ensino magisterial: 1) ensino infalível; 2) ensino definitivo;
3) ensino não-definitivo; 4) inten-enções prudenciais (n º' 15 a 19). Tomando em consideração esses dife­
rentes rú,·eis, pode-se dizer 9ue a competência originária refere-se aos dois primeiros; e a subsidiária, aos
dois últimos. As 9uestões de matéria moral não entram no primeiro caso. Fazem pane do ensino definitivo,
não definitivo e prudencial.
39 Sobre o dissenso com o magistério em S. Tomas ver: ln IV Sent., dist. 38, 2, 4, adfinem.
40 E. LÓPEZ AZPITARTE, l\fagisterio de la lglesia y problemas éticos: discusiones actuales, p. 374.
41 X. THÚVENOT, op. cit., p. 118.

230
Evento Cristo

Partindo do fato de que existem objeções em relação às declarações


magisteriais, é necessário propor linhas de ação para os dois pólos em conflito.
O magistério, na sua função, deveria fazer um esforço contínuo de captar as li­
nhas de fundo da busca ética das igrejas locais, independente da diversidade
cultural. Deveria também estar atento quando um documento é manifesta­
mente malrecebido por uma maioria significativa e qualificada. Quando isso
acontece, o magistério deveria convidar os objetores - especialmente teólogos
- para que expressem, com toda a liberdade, as razões do desacordo.
Os cristãos em geral, por seu lado, deveriam superar uma pura descon­
fiança, que invalida de antemão o que diz o magistério, e cultivar a convicção
de que existe uma ação do espírito no exercício do magistério. Contudo, 11 pa­
lavra do magistério não deve constituir uma realidade atrás da qual a consciên­
cia se esconde para evitar uma decisão nos inevitáveis conflitos da vida. O
magistério nunca pode substituir a consciência. É necessário seguir sempre a
consciência, como reza um dos princípios mais tradicionais da moral. Por isso,
sempre é possível surgir um conflito de consciência.

2.2 Razão (lei natural)


A teologia moral não pode ter como único interlocutor a I greja e os seus
membros. O seu papel diz respeito também à sociedade e desenvolve, assim,
uma moral missionária. 42 A teologia moral deve ter também, como interlocuto­
res do seu discurso, pessoas que estão à margem da Igreja, mas são cidadãs de
uma sociedade. Assim, o teólogo dirige-se simultaneamente, embora com ênfa­
ses diferentes, a três públicos: a I greja, a Academia e a Sociedade43 .
A teologia moral não pode privilegiar a fé como fonte de individuação
das normas morais e ter, como único ponto de referência, o ethos eclesial. Mes­
mo tendo a fé como fonte, não pode fugir da mediação da razão, que interpreta
o dado revelado e elabora suas exigências éticas. A fonte primordial para essa in­
dividuação é a razão, que interpreta a experiência com a natureza humana confi­
gurada no ethos cultural. Em muitos casos, o ethos cultural e o ethos eclesial se

42 L. MARTIN, Exílio, Sodoma e o Deserto: uma ética teológica a partir das culturas dos submundos, in:
Teologia moral e cultura, Aparecida (SP): Santuário, 1992, p.
43 Cf. D. TRACY, The Analogical Imagination: Christian Theology and lhe Culture ofPluralism, New York: Cross­
road, 1981, p. 3-46.

231
José Roque Junges

sobrepõem e formam uma unidade. O crescente processo de secularização leva


a uma sempre maior distinção entre os dois. Daí a i�portância de abordar sepa­
radamente o ethos cultural e destacar o significado do que classicamente se cha­
mava de lei natural, para a individuação da norma moral.

2.2.1 Lei natural44


Tradicionalmente havia duas tendências na interpretação da lei natural:
1) o modelo escolástico (fisicista) ou da ordem natural, que defende que a nor­
ma é encontrada mediante as leis da natureza biológica45, e 2) o modelo jusna­
turalista (racionalista) ou do direito natural, que advoga que a norma é
encontrada mediante a natureza metafísica46. Três problemas levantam-se
contra a concepção de lei natural presente nessas tendências.
1) O primeiro e principal problema é quanto ao seu caráter biológico. A
ordinatio rationis foi substituída pelas inclinationes natura/is. Não se trata de des­
cartar o biológico, mas de entendê-lo na sua relação com o espiritual. A res­
posta a essa questão é uma concepção personalista da lei natural.
2) O segundo problema é o seu caráter de universalidade e imutabilida­
de. Partindo de uma visão metafísica da natureza, quer-se captar um direito
natural de que se deduzem todas as normas e prescrições. Esse modelo esque­
ce a historicidade. Não vê a relação entre lei natural e cultura e entre lei natural
e situação em que se expressa o imperativo. A solução é relacionar a lei natural
com a historicidade e a cultura.
3) O terceiro problema é sua significação para uma antropologia cristã.
Se todo homem está orientado à salvação sobrenatural, que sentido tem falar
de lei natural? A solução é uma compreensão da lei natural a partir da história
da salvação.

44 B. SCHÜLLER, La théologie morale peut-elle se passer du droit naturel? NRTh 88 (1966) 449-475; Idem.,
Reflexiones teológicas sobre la ley natural, Seleciones de Teología 7 (1968) 309-312; E. CHIAVACCI, Ley
Natural, in: Diccionário Enciclopédico de Teologia Moral 558-567; D. LANFRANCONI, Ley Natural, in: Dicci­
onário Teológico Interdisciplinar III, 292-309; F. BÓCfCLE/E.-\Y/. BÓCKENFÓRDE (Hrsg), Naturecht in der
Kritik, Mainz: Mathias Grünewald, 1973; F. BÓCKLE (Hrsg), Der umstrittene Naturbegriff. Person-Na­
tur-Sexualitat in der kirchlichen Morallehre (Schriften der katholischen Akademie in Bayern, nº 124),
Düsseldorf: Patmos, 1987.
45 A. K. RUF, op. cit., p. 121-133.
46 Ibid., p. 135-150

232
Evento Cristo

Portanto, a compreensão da lei natural deve dar-se dentro de uma visão


per sonalista que esteja aberta à importância da sua mediação histórica e cultu­
ral e atenta ao seu significado antropológico no contexto salvífico.
O adjetivo natural, quando agregado ao conceito de lei, significa uma lei
não-revelada e também não-positiva ou escrita, isto é, não codificada ou prescriptiva. Por
lei natural entende-se o conjunto de conhecimentos morais que o ser humano
pode atingir fundamentalmente com independência lógica da revelação positiva
da palavra de Deus. É uma lei inscrita no interior do ser humano e que não vem
de um legislador exterior. É a /ex indita, que se revela no coração do ser humano.
A idéia de lei natural é uma característica da cultura grega. Não aparece
diretamente na Bíblia. Mas seu sentido aparece, quando se reflete sobre a ex­
periência humana. A literatura sapiencial, por exemplo, não é mais do que um
patrimônio que foi amadurecendo e modificando-se a partir de uma reflexão
moral sobre a experiência humana. Os enunciados do decálogo e outras nor­
mas operativas veterotestamentárias são fruto de reflexão humana, porque
podem ser encontradas também em culturas extrabíblicas da época. Apesar
disso, a moral do Antigo Testamento é uma moral da eleição ou da aliança,
que oferece o horizonte e a perspectiva a partir da qual os materiais de reflexão
humana própria ou de outros povos são assumidos em Israel.
O texto bíblico clássico que alude à lei natural é Rm 2, 14ss: Quando os
pagãos, sem ter lei, fazem naturalmente o que a lei ordena, eles própriosfazem às vezes de lei
para si mesmos, eles que não têm lei. Mostram que a obra exigida pela lei está inscrita em
seu coração; a sua consciência dá igualmente testemunho disso, assim como os seusjulgamen­
tos interiores que sucessivamente os acusam e os defendem.
É outra formulação do que Paulo disse negativamente em Rm 1,28-32:
os pagãos também têm um conhecimento correto da vontade Deus. Portanto, a
carta aos romanos afirma a existência da lei natural, porque aceita que se pode
chegar à vontade de Deus independente do dado revelado. Existe uma capaci­
dade inata, que não depende dos conhecimentos advindos da revelação47.
Os catálogos das virtudes e vícios em Paulo se baseiam na experiência
humana. São comuns à cultura helenística. O convite de Paulo a fazer o que
convém ou o que é bom é típico de uma reflexão racional. Mas o contexto em

47 A. SACCHI, La legge naturale nella lettera ai Romani, in: AA. VV. Fondamenli biblici dei/a Teologia mora/e,
Brescia: Paideia, 375-389.

233
José Roque ]unges

que são assumidos esses catálogos e em que se realiza esse discernimento é a


nova vida em Cristo. Portanto, sem referir-se diretamente à idéia de lei natural,
a Bíblia conhece o seu sentido, quando alude à capacidade do ser humano de
encontrar e descobrir a vontade de Deus, seja buscando-a em si mesmo, seja
fundando-a na experiência dos outros.

2.2.1.1 Lei natural como capacidade pessoal


Sendo a lei natural um meio de conhecimento moral que se diferencia
do que nos vem através da revelação, ela pode ser definida como a capacidade do
ser humano de refletir, raciocinar sobre o própriofim, sobre sua vocação, sobre o significado
da existência e, assim, estabelecer os critérios valorativos e fazer considerações em base aos
quais descobrir a norma para a situação concrett/t8•
A lei natural compreende, pois, dois elementos: a capacidade de refletir
- razão - e o conteúdo sobre o qual se reflete para chegar a critérios valorati­
vos - o fim ou a vocação do homem, ou melhor, a natureza humana. Assim, o
fundamento suf?jetivo da lei natural é a razão; seu fundamento oijetivo, a natureza.
Mas, enquanto o conceito de razão é claro e unívoco, o mesmo não acontece
com a categoria de natureza.
Natureza pode ser entendido em contraposição a sobrenatural (graça).
Nesse sentido, natural seria o mero fato de ser humano sem considerar o seu ser
em Cristo. Natureza pode também descrever o ser humano como algo já dado,
previamente a qualquer decisão livre. Então, estaríamos diante de uma natureza
estática e descritível em categorias imutáveis. O Vaticano II procura superar es­
sas duas interpretações. Não existe separação entre natureza e graça: o ser hu­
mano naturalmente é capaz de conhecer e amar a Deus devido à sua criação em
Cristo. A natureza do ser humano não é estática, mas operacional e vocacional.
O seu ser-já-dado-previamente é um ser-dado-como-tarefa-a-realizar.
A Gaudium et Spes diz que os critérios morais objetivos para o uso das fa­
culdades corpóreas não podem deduzir-se da natureza dos demais animais do­
tados das mesmas faculdades, mas daquilo que nos diferencia deles (nº 51). A lei
natural não se tira da natureza em geral, nem da componente biológica do ser
humano. Ela se deduz do que é distinto aos animais. A distinção está na capaci­
dade racional de refletir e no fato de a natureza humana não ser puro-dado-pré-

48 E. CHIAVACCI, Teologia mora/e 1: llforale Gene rale, Assisi: Citadella, 1979, 2. ed., p. 164.

234
Evento Cristo

via, mas ser-dado-como-tarefa. O fato de transcender o seu dado e assumir-se


como tarefa impede que se fechem as possibilidades da pessoa humana dentro
de uma rígida definibilidade da essência humana. O ser humano não está defini­
do, mas tende à realização. A verdadeira natureza do ser humano é não ter natu­
reza no sentido de algo-já-dado de uma vez para sempre. Assim, é inconcebível
querer deduzir normas operativas a partir de uma natureza fixa e impô-las desde
fora49.
Conhecer a própria natureza é autocompreender-se, e autocompreen­
der-se é assumir-se como tarefa a partir do já dado e saber a que se é chamado
em cada momento. A tarefa e a vocação consistem em ser pessoa, e isso aconte­
ce na relação e abertura aos outros. Significa desenvolver a própria dignidade
pela vivência do sentido dos seus diferentes bens e direitos correspondentes
(autonomia) e respeitar a dignidade do outro, não usurpando e defendendo os
seus direitos (solidariedade). Autocompreensão é o que define objetivamente o
ser humano em um determinado momento da sua história.
Lei natural significa, em última análise, encontrar a norma concreta
para uma determinada situação. Esta engloba uma série de valores e diretrizes
de auto-realização, que é necessário concretizar em cada opção e que se identi­
fica com a vontade de Deus. Para chegar à norma concreta, é preciso combi­
nar os primeiros princípios formais, o conteúdo dos valores morais e os dados
objetivos da situação concreta. Esses três componentes e a razão que os com­
bina e confronta constituem a possibilidade de chegar à vontade de Deus. To­
mados em conjunto, formam a lei natural.

2.2.1.2 Lei natural como ethos cultural


A reflexão que constitui a lei natural não é puramente individual; faz-se
com outros. Cada um confronta sua experiência com a de outros. A experiên­
cia acumulada do passado pode ajudar no discernimento da norma concreta.
A experiência reflexa dos valores morais e o conhecimento dos dados objeti-

49 Em muitos católicos, o apego a uma concepção preceptista de lei natural deve-se a uma preocupação
autêntica com a objetividade das normas e o temor de cair em relativismo e laxismo. O problema é que
se identifica objetividade com fixidez. A verdadeira objetividade não pode ser fixa, porque imporia
normas ligadas a situações culturais e históricas transitórias. Norma moral fixa não levaria à verdade
objetiva, mas a uma verdade abstrata. A v�rdadeira objetividade está ligada à variada reflexão que a hu­
manidade e a Igreja vão fazendo sobre o destino do ser humano.

235
José Roque ]unges

vos da situação não podem ser alcançados senão mediados pelo ethos. Daí a ne­
cessidade da reflexão comum dos grupos e da -humanidade em geral sobre o
que significa ser humano. Seu resultado também pode ser chamado de lei na­
tural. Neste segundo sentido, lei natural como ethos cultural deve ser dita e es­
crita, não enquanto preceitos positivos que se impõem ao indivíduo, mas
como patrimônio comum de reflexão que ajudará o indivíduo a descobrir a lei
interior não-escrita. A lei natural é a experiência e a reflexão moral da humani­
dade sobre si mesma, sobre a vocação e o significado da existência humana.
Por isso, pode-se dizer que a lei natural se expressa num ethos cultural. Essa
configuração não pode impor-se à consciência pela força da autoridade, mas
pela racionalidade intrínseca e pela autoridade moral de quem a propõe.
Portanto, a lei natural é, por um lado, uma presença interna no indiví­
duo (razão) e, por outro, fruto da elaboração do grupo social (ethos). A lei natu­
ral escrita e configurada no ethos é sempre subsidiária e subordinada à lei
natural presente no coração e, só através desta, adquire relevância. Chama-se
lei natural porque, nos dois casos, tem, como ponto de referência, a natureza
humana. É o lugar a partir do qual o indivíduo ou o grupo refletem. Algo é lei
natural porque está em conformidade com a natureza humana, ou melhor,
com o significado da vocação humana.

2.2.1.3 A lei natural é imutável? 50


Se a lei natural é um complexo de dados valorativos e situacionais que o
ser humano adquire sem a revelação e que não se impõem a partir do exterior,
mas se revelam no interior através de uma experiência originária do indivíduo
e a partir da assimilação de valores comuns a todos os seres humanos, então
ela depende essencialmente da historicidade do ser humano.
Enquanto participação na lei eterna ou vontade de Deus, a lei natural é
imutável, mas, enquanto modo segundo o qual os seres humanos a experimen­
tam no interior de um grupo, é necessário fazer uma distinção. Os primeirosprin­
cípios éticos são, evidentemente, enquanto experiência originária, imutáveis. A
experiência de alguns valoresfundamentais, na sua formulação conceitua! e hierarqui­
zação, é condicionada pela história e, por isso, muda, não porque mude a vonta-

50 E. CHIAVACCI, Teologia mora/e 1: Morale Generale, p. 178-180; F. CULTRERA, Mutabilità e immutabi­


lità deUa lef.1!,e natura/e, Napoli: Edizione Dehoniane, 1977.

236
Evento Cristo

de de Deus, mas porque o ser humano a formula dentro de experiências


históricas diversas.
A reflexão moral de um grupo social tende sempre a traduzir-se em in­
dicações ou normas morais escritas. Quanto mais se procura traduzir um valor
em modos concretos de realizá-lo, tanto maior será a sua variabilidade. O
princípio Ama o teu próximo é absoluto e invariável, mas especificar o que é
amar e o que é o próximo num contexto concreto não pode ter a mesma inva­
riabilidade. A resposta, apesar de ainda ser geral, é inevitavelmente condicio­
nada e, por isso, variável. Quanto mais concretas forem as respostas, tanto
mais variáveis. Dessa forma, a lei natural, enquanto expressão dita e escrita da
experiência e reflexão moral de um grupo, é variável nas normas operati�as.

2.2.2 Ethos cultural


Ethos cultural refere-se à moral vivida e formulada de um povo. É o agir
cotidiano ou a própria vivência do povo difusa em usos e costumes. É o que
aflora no comportamento e mantém-se implicitamente operativo nos hábitos.
Trata-se de um ethos comunitário não sistematizado em doutrina ética. Expres­
sa-se de maneira sapiencial e narrativa através de ditos históricos edificantes.
O ethos popular é um conjunto de valores humanos e espirituais, vividos e ex­
pressos em máximas, que forma uma cultura ética original, às vezes em disso­
nância com a moral oficial. Esse ethos não se enquadra numa forma definitiva,
mas é a vivência, imersa no devir histórico, que se renova continuamente atra­
vés da influência dos condicionamentos sociais e da força espiritual da fé.
Ethos é a experiência e a cultura ética do povo como fonte de conheci­
mento ético ou de individuação de normas morais. Como já foi visto anterior­
mente, é uma expressão cultural e histórica da lei natural, entendida como
patrimônio da experiência e reflexão de um grupo social ou da humanidade
em geral.
Ethos é o lugar concreto de elaboração dos costumes, da moral e do di­
reito. Ethos é o conglomerado de evidências, símbolos, mitos, valores e práticas quefunda­
mentam e regulamentam a vida individual e coletiva. É o ethos que, por um processo de
acumulação, herança, tradição epráticas suscita e institui em cada um predisposições para as
relações sociais. Essaspredisposiçõespodem ser definidas, com maiorprecisão, como sistemas
de disposições duráveis e transferíveis que, integrando todas as experiênciaspassadas, funcio­
na em cada momento como matriz de percepções, apreciações e ações. Essa matriz toma pos-

237
José Roque ]unges

sível o cumprimento de tarefas infinitamente diferenciadas graças à transferência analógica de


esquemas. Permite resolver os problemas da mesma forma e graças às con-eções incessantes
dos resultados obtidos, dialeticamente produzidos por esses resultados51 •
Essa compreensão do ethos permite, por um lado, entender o processo
de formação dos costumes sociais, das normas morais e das leis jurídicas a par­
tir de fundos simbólicos e, por outro, explica as atitudes, comportamentos e
ações dos indivíduos a partir de sistemas de predisposições adquiridas.
O ethos precede os regulamentos objetivos das morais instituídas ou os
regulamentos positivos do direito. Ele os engendra e reproduz. Por isso, se
queremos compreender as prescrições sociais, as normas morais e as regras ju­
rídicas, não podemos deixar de referi-las a este fundo de que procedem e de
onde continuam a tirar a sua eficácia propriamente prática e seu sentido efeti­
vo. As normas morais e jurídicas só serão sociologicamaente interpretáveis,
quando referidas ao seu ethos concreto, em que se condensam os fundos sim­
bólicos de evidências coletivas52.
A institucionalização do ethos em um sistema de normas morais e jurídi­
cas responde à necessidade de uma linguagem prática comum ou de um con­
senso sobre atitudes moralmente aceitáveis ou não, juridicamente prescritas
ou toleradas para que seja possível a convivência social. A constituição de um
sistema moral ou jurídico visa à delimitação protetora do consenso e à promo­
ção de valores, normas e significações geradoras de respeito à dignidade hu­
mana e de mobilização social em favor de causas comuns. A produção moral e
jurídica cumpre um papel fundamental de proteger um mínimo ético necessá­
rio para a convivência e de explicitar o significado das práticas. Funciona, por
um lado, como um código de direitos e deveres com respeito à dignidade hu­
mana e, por outro, como um código de comunicação social que permite que as
pessoas sejam entendidas nos seus atos, gestos e ações, porque o seu significa­
do está delimitado pela moral ou pelo direito53.
A estabilidade de um sistema moral ou jurídico depende da fonte que
lhe deu origem - o ethos -, já que eles são uma institucionalização deste. A

51 Cf. P. BOURDIEU, Esquisse d'une théorie de la pratique, Geneve: Droz, 1972, p. 178-179 apud B.
QUELQUEJEU, Úthos historiques et normes éthiques, in: B. LAURET /F. REFOULI\ Jnitiation à la
pratique de la théologie, tome IV: Úthique, Paris: Cerf, 1983, p. 76.
52 B. QUELQUEJEU, op. cit., p. 77.
53 Ibid, p. 77-80.

238
Evento Cristo

evolução do ethos, manifestada na mudança dos costumes, fruto do apareci­


mento de novos condicionamentos socioculturais, da emergência de novos
valores, da compreensão de novos dados antropológicos, abala a estabilidade
das suas institucionalizações. Se o sistema moral e jurídico não consegue mais
expressar o consenso social e dar significado às práticas, ele entra em crise
porque não consegue haurir eficácia dos fundos simbólicos que lhe deram ori­
gem. A legitimidade e a eficácia das formulações da moral e do direito provêm
do ethos.
A estabilidade das normas e seu valor permanente através do tempo de­
pendem da maneira como o ator social experimenta o êxito do comportamen­
to que elas propõem e da maneira como o ator social obtém ou não, agin.do
em conformidade com elas, a confirmação do que esperava. Segundo o alcan­
ce das expectativas positivas ou negativas e segundo a ocorrência ou não das
conseqüências esperadas, pode-se chegar ao seguinte quadro54 :

As conseqüências do Expectativas Expectativas


respeito à norma positivas negativas

aconteceram 1. CONflRMAÇAO 2. AMBIVALÊNCIA


ordinariamente da norma da norma

não aconteceram 3. IDEAJJZAÇAO 4. DESABAMENTO


ordinariamente da norma da norma

1. As expectativas positivas esperadas aconteceram, e a norma é confir­


mada. As instituições são sadias e estão intactas, funcionando harmonicamente.
2. As conseqüências aconteceram e são estimadas negativamente pelo
ator social. Surge o conflito entre a norma geral e a expectativa individual não
satisfeita e sentida como frustração. Se isto se torna significativo para a institui­
ção, então ela e suas normas tornam-se ambivalentes. Os valores da institui­
ção estão em conflito com as necessidades individuais. A instituição propõe

54 F.X. KAUFMANN, Normes, effondrement des normes et le probleme de la liberté en perspective so­
ciologi9ue S11pplémenl de la Vie Spiriluelle, no 90 (1969) pp. 330-344, apud: B. QUELQUEJEU, op. cit.,
pp. 84-86.

239
José Roque Junges

uma coisa, e os indivíduos vivem outra. Um exemplo é a norma relativa ao uso


de contraceptivos artificiais.
3. Eram esperadas conseqüências positivas no cumprimento da norma,
mas elas não aconteceram. Esse fato não engendra necessariamente uma con­
denação da norma. A expectativa continua e provoca uma idealização da nor­
ma, a fim de preservar o valor não confirmado. Podem-se dar como exemplo
a norma da fidelidade conjugal e a norma do respeito pela dignidade de todo
ser humano.
4. O caráter normativo de um modelo desaba pelo acúmulo de com­
portamentos heterogêneos que estão em discordância com ele. Isso provoca
um enfraquecimento das sanções, e passa-se da ambivalência para o desaba­
mento do sistema normativo. Um exemplo disso foi a proibição dos juros du­
rante a Idade Média, que caiu em desuso nos tempos modernos.

3 Experiência humana como fonte principal de individuação


Todas as fontes de individuação da norma moral reduzem-se a esta últi­
ma - a experiência humana-, que é a fundamental. S. Tomás assevera: o que per­
tence à ciência moral se conhece quase sempre através da experiência55• Toda norma é
uma condensação de experiência humana com a vivência de certo valor moral.
As normas, encontradas na Bíblia ou conformadas no ethos eclesial, compendiam
experiência com as exigências éticas da fé. As normas, hauridas da lei natural
ou emanadas do ethos cultural, condensam experiência com as exigências éticas
de humanização. Assim, é a categoria de experiência que pervade os diferentes
modos de individuar as normas 56•

55 Comentário da Ética a Nicomaco, Lib. I, Lect. III, n. 38.


56 D. MIETH, Moral und Eifahrung. Beitrage zur theologisch-ethischen Hermeneutik, (Studien zur theolo­
gischen Ethik nº 2) Freiburg 1. Br.: Herder/Freiburg i.Ue.: Universitatsverlag, 1977; S. PRIVITERA,
Dall'e,perienza alfa mora/e. II problema "esperienza" in Teologia morale. Palermo: Oftes, 1985 (Recensão:
P. GRASSI, L'esperienza in Teologia Morale, RTM 22 (1990) 219-223); J. ETIENNE, Le role de
l'experienca en Moral chrétienne, StM 12 (1974) 7-54; G. SEGALLA, La triplice funzione dell'esperienza
nell'etica di Gesu, Teologia (Milão) 16 (1991) 101-146.

240
Evento Cristo

3.1 Delimitação do conceito de experiência


A experiência pode significar tanto uma vivência momentânea quanto
uma capacidade adquirida no decorrer da vida, que serve para orientar. No se­
gundo sentido, a experiência condensa-se em tradições e normas. Portanto, é
uma experiência objetivada no ethos e deve ser diferente da pura percepção psi­
cológica. Experiência é mais que pura percepção. É capacidade adquirida a
partir da apropriação e elaboração de percepções. Experiência objetivada é a
posse dessas percepções elaboradas e a possibilidade de novas percepções
mais aprofundadas. O conjunto chama-se experiência vivencial. Não é algo
passivo senão que exige atividade e elaboração, que habilitam para a compre­
ensão e intuição de novas situações.
Existe uma contínua dialética entre novas percepções e a experiência
elaborada. Esta passa por uma contínua interpretação e conseqüente enrique­
cimento. A própria experiência vai influenciar a interpretação, que, por sua
vez, vai enriquecer a experiência. Trata-se de uma dialética entre ojá elaborado
(objetivo) e a percepção (subjetiva).
A experiência da realidade acontece sempre a partir de um modelo de
compreensão da realidade já dado, que condensa a experiência objetivada de
um grupo social e internalizada pelos seus membros. Essa experiência objeti­
vada habilita para as relações sociais e permite a ação comum. Essa habilitação
confere competência e poder aos detentores da experiência, porque dominam
a "gramática" da ação 57 •

3.2 Experiência e norma moral


A experiência moral é algo inefável, porque é uma competência (capa­
cidade) do próprio sujeito. Contudo, ela é sempre mediada através do ethos ou
de uma doutrina ética e, assim, torna-se transmissível e cognoscível a outros.
A norma é uma condensação dessa experiência com vistas à sua transmissão.
Em toda experiência moral, reluz um valor a que corresponde uma
norma que pretende transmitir o significado do valor para um determinado
âmbito do agir humano. As normas não caem do céu; fundamentam-se na expe-

57 J. GRÜNDEL, Nom,en im Wandel. Eine Orientierungshilfe für christliches Leben heute. i\fünchen:
Don Basco, 1980, p. 93-99.

241
José Roque ]unges

riência e não têm, pois, um fim em si. Seu fim é o valor que elas pretendem aju­
dar a realizar. Sua função é orientativa.
A experiência pessoal deve ser confrontada e objetivada com as tradi­
ções e normas compendiadas pela experiência da humanidade, porque o su­
jeito não pode abarcar toda a compreensão dos valores e não precisa iniciar
ab ovo a maneira de concretizar um valor, uma vez que a norma já lhe faculta
uma competência ao condensar a experiência feita com esse valor. A norma
orienta como realizar o valor. Por isso, a percepção pessoal das exigências de
um valor moral deve ser objetivada e confrontada com a experiência da hu­
manidade transmitida pelas normas. No processo de formação da norma, a
experiência objetivada torna-se disponível a outros e reguladora do compor­
tamento;s_
Há três níveis de experiência;9, que contribuem de modos diversos para
o conhecimento moral e, conseqüentemente, se relacionam de forma distinta
com a norma moral:
1) O primeiro nível é o da experiência negativa. Um acontecimento ou
vivência é experimentado como desilusão ou um não-sentido. Acontece
quando, devido a essa experiência, é necessário corrigir a compreensão de
uma verdade ou valor. Momentos negativos podem ajudar a encontrar uma
nova e melhor compreensão. A experiência negativa não é o ponto de chega­
da, mas de partida para a nova síntese. Assim, o conhecimento se enriquece e
se aprofunda através da experiência de contraste. O conhecimento moral evolu­
ciona principalmente através dessa via negativa do contraste.
2) A experiência negativa não esgota a totalidade da experiência. Para ex­
perimentar o contraste, é necessário confrontá-lo com determinada experiência
do valor. Abrem-se novas possibilidades de ação, porque os novos dados, ema­
nados da experiência de contraste, "coagulam-se" numa nova intuição de senti­
do. Assim, existe uma dimensão positiva, que se manifesta como experiência de
sentido. Isso acontece quando a pessoa "cai em si" e tem uma nova luz. Essa ex­
periência engendra nova compreensão de sentido de si mesmo, da realidade e

58 Ibid.. p. 99-108
59 Cf. D. MIETH, Die Bedeutung der menschlichen Lebenserfahrung, in: ID., op. cil., p. 111-134 (aqui p.
120-124) (Tradução: Sentido da experiência vital do homem. Por uma teoria do modelo ético, Conci/ium
(1976 / 10), p. 1.116-1.134 (aqui p. 1.123-1.126)).

242
Evento Cnsto

dos valores e novas possibilidades de ação. O conhecimento moral progride


com essa nova compreensão.
3) O lugar onde se capta o peso moral de uma ação, experimentada
como portadora de sentido, é a consciência. Ela capta a ação como imperati­
vo. Assim, a consciência é experiência de motivação, isto é, intensificação do que
me obriga incondicionalmente. Se o sujeito agisse contra sua consciência, ne­
gar-se-ia a si mesmo. A apropriação da experiência de sentido acontece quan­
do ela se intensifica como experiência motivacional. Só assim terá força para
dinamizar a ação.
A experiência vivencial inicia-se, muitas vezes, com a experiência de con­
traste, constitui-se com a experiência de sentido e ativa-se com a experiêncitJ-de moti­
vação. Esses três níveis da experiência recolocam a questão da relação entre
experiência e norma. A experiência não só fundamenta e origina a norma,
como é o caso da experiência de sentido. Ela pode também servir de base para
confirmação ou reorientação da norma através da experiência da motivação ou
pode, até mesmo, falsificar ou fazer desabar uma norma através do acúmulo
de contrastes.
Há dois caminhos de individuação da norma: dedutivo e indutivo. Cada
um deles relaciona-se distintamente com a experiência. Para alguns autores, a
experiência é o ponto de referência para concretizar o conteúdo da norma, an­
teriormente deduzida dos princípios universais. O papel tradicional da casuís­
tica era realizar essa função. É o caminho da deontologia. Para outros, a
experiência é o ponto de partida para a percepção do valor a ser formulado in­
dutivamente na norma. Trata-se de a consciência captar a realização proporcio­
nal do valor numa determinada situação. É o caminho da teleologia. Assim já
introduzimos o seguinte capítulo.

243
XII - FUNDAMENTAÇÃO DA NORMA MORAL

A individuação responde à questão de como surgem as normas. A funda­


mentação explicita o modo de se posicionar diante das normas já formuladas. O
problema nasce da pergunta Por que devo? Existem dois tipos de motivação para
a norma e, conseqüentemente, duas maneiras de argumentar diante da..norma:
deontológica e teleológica. Assim, pode-se falar de dois tipos de éticas normativas 1•

1 Teorias deontológicas

As teorias deontológicas afirmam que um comportamento é moral­


mente correto ou falso, independentemente das circunstâncias e conseqüên­
cias advindas deste comportamento. Isso significa que algo é moralmente
bom ou mau em si mesmo, sem levar em conta a situação. As normas que
regulamentam esses atos são deontológicas; não admitem nenhuma exce­
ção por se tratar de atos intrinsecamente maus 2• Essas normas são prescrições
negativas - proibições que não admitem exceções - e dizem respeito a um se­
tor muito reduzido do agir humano. A moral tradicional considerava como
ações absolutamente proibidas, porque intrinsecamente más, morte de um ino-

B. SCHÜLLER, Tipos de motivação das normas éticas, Concilium (1976 / 10) 1.159-1.169; E. CHIAVACCI,
Li fonda7ione della norma morale nella riflessione teologica contemporanea, in: AA. VV., L,fondaz!one dei/a
º
norma mora/e nella riflessione teokgica e marxista contemporanea (Coleção "Studi e ricerche" n 29). Bologna: Dehonia­
ne, 1979, p. 11-52; P. KNAUER, Fundamentaletlúk: Teleologische ais deontologische Normenbegründung,
Theokgie und Phiksuphie 55 (1980) 321-360; R. RINCÓN ORDUNA, Fundamentación de las normas morales,
in: Idem., Teokgía moral Introducción a la critica. Madrid: Paulinas, 1980, p. 125-140.
2 Pode-se falar de um deontologismo do ato e da norma. O primeiro é professado pelo existencialismo (Sar­
tre) e a ética de situação, quando negam a existência de critérios universais para avaliar moralmente a ação.
Em toda situação é necesário decidir, levando em consideração unicamente os elementos da própria situa­
ção sem nenhum critério prévio (decisionismo). O deontologismo da norma defende, ao contrário, a aplica­
bilidade de critérios gerais independente das circunstáncias. Aqui é tomado como referência apenas este se­
gundo tipo de deontologismo. (Cf. W. FRANKENA, Ethics, Englewood Cliffs: Prentice-Hall, 1973 (2)
16-17; 23-28).

245
José Roque )unges

rente, suicídio, mentira e atos sexuais que impedem intencionalmente a procriação. Havia
dois tipos de argumentação deontológica em relação a esses atos:
1) O primeiro parte dos fins naturais, que devem ser absolutamente res­
peitados. Existe, por exemplo, um fim natural inscrito na linguagem humana
de veicular a verdade. Logo, a mentira nurica pode ser admitida porque con­
traria esse fim. O fim natural inscrito na sexualidade é a procriação. Excluir in­
tencionalmente esse fim é fazer um uso indevido da sexualidade porque
contraria o seu significado e, por isso, é intrinsecamente desonesto. Esses fins
são invioláveis e devem ser realizados a todo custo. Trata-se de atos ilícitos
quia contra naturam (porque são contra a natureza).
2) O segundo defende que determinados comportamentos são contra
um direito que é pre,rogativa absoluta de Deus. A vida, por exemplo, não pertence
ao ser humano; é uma prerrogativa absoluta de Deus. Por isso, ninguém tem o
direito de tirar a própria vida ou a de outrem. Trata-se de atos ilícitos ex defectu
iuris in agente (por incapacidade jurídica do agente).
O puro deontologismo é impossível. Só seria factível num mundo onde
não existissem conflitos de deveres e onde se abstraísse do conteúdo concreto
e das condições concretas da ação. Por isso, houve sempre uma interpretação
bastante restritiva das normas deontológicas, a fim de evitar maiores danos ao
indivíduo e à sociedade. Procurou-se distinguir entre morte direta e indireta e
restringir a mentira à locução de duplo sentido, excluindo a restrictio menta/is. As
circunstâncias já estão incluídas na própria formulação da norma. Portanto,
no fundo, as normas levam em consideração as circunstâncias.
Numa ética deontológica, parece que o ser humano está a seviço da nor­
ma. É dificil conciliar essa ética com a caridade, que é o único princípio deontoló­
gico.
As teorias deontológicas dependem de uma certa concepção da ordem
natural. Antes dos fins naturais das realidades - linguagem, sexualidade -,
existe o fim natural da razão que Deus deu ao ser humano como guia. Este
pode chegar a considerar que um determinado valor é prioritário em relação a
um fim natural.
O argumento de que certos direitos são prerrogativa absoluta de Deus
manifesta uma visão tacanha de Deus e desconfiada do ser humano. Deus
continua a exercer o seu domínio sobre a vida, mesmo quando o ser humano

246
Evento Cristo

se sente autorizado a pôr fim à sua vida em virtude de uma exigência moral,
como, por exemplo, no caso da greve de fome.
A tradição católica sempre recorreu ao raciocínio fundamentalmente
teleológico também diante de normas deontológicas. As teorias deontológi­
cas, mesmo quando apresentam preceitos deontológicos, tipificam muito
bem as exceções, integrando-as na própria formulação da norma e deixando
abe rta a possibilidade de ulteriores exceções. Admitem que existe uma instân­
cia valorativa superior à norma.
Dizer que uma ação é sempre ilícita significa afirmar que sempre é pos­
sível evitá-la. Isso seria afirmar um deontologismo puro, que é impraticável e
inviável. Dizer que essa ação é ilícita nesta e em outra circunstância s-ignifica
considerá-la em relação às possibilidades materiais de observá-la ou às conse­
qüências produzidas por ela. É a maneira teleológica de raciocinar.

2 Teorias teleológicas

As teorias teleológicas defendem que, para avaliar moralmente um ato,


é necessário levar em consideração, além da natureza da ação, as conseqüências,
porque estas são a realização dos fins do ato. Não basta ter presente a norma; é
necessário entender o ato a partir de um contexto mais amplo, para chegar a
uma conclusão. Esse tipo de argumentação é também chamado, principal­
mente no mundo anglo-saxão, de conseqüencialismo, proporcionalismo e uti­
litarismo 3.
A diferença fundamental entre o utilitarismo clássico e a teleologia é
que o primeiro refere-se simplesmente ao ato, e o segundo à norma. Para su­
perar o ponto de vista utilitarista, a teleologia toma em consideração não ape­
nas ações úteis para obter um fim determinado, isto é, os resultados de bem ou mal
produzidos- caráter produtivo da ação-, mas também ações expressivas e insigni­
ficantes, isto é, sem utilidade, porque não querem produzir nenhum resultado,
mas manifestam, de forma clara e expressiva, a atitude interior de quem as rea-

3 Existem dois tipos de utilitarismo. O primeiro é o utilitarismo do alo. Defende que devo realizar o ato que
produza o máximo de bem para mim e os demais. Outro é o utilitarismo da norma (valor). Advoga que
de\'o atuar de acordo com o \'alar ou norma que, ao ser realizada, produza o máximo de bem para mim
e os demais. A argumentação teleológica refere-se somente a este segundo. O primeiro compreende o
utilitarismo tradicional anglo-saxão.

247
José Roque ]unges

liza. A ação tem um valor pelo testemunho, por exemplo, o martírio - caráter
expressivo da ação. Por último, é necessário ter presentes também ações distributi­
vas que partilham o bem e o mal produzidos, importante principalmente no
campo social, para que não aconteça que alguns usufruam unicamente as vanta­
gens e outros sofram todas as desvantagens - caráter distributivo da ação4•
Os teleólogos fundam a sua argumentação na teoria dos valores que
corporificam os fins da ação. A retidão moral de uma ação é avaliada em rela­
ção às conseqüências que produz. Não se trata apenas de resultados imedia­
tos, mas também de conseqüências a longo prazo. Se as conseqüências são a
realização de um valor, a ação deve ser considerada moralmente reta; se as
conseqüências são a realização de um não-valor, a ação é considerada moral­
mente incorreta. O valor torna-se o fim da ação; e esta, o meio para alcançá-lo.
Assim, o discurso teleológico coloca-se no contexto da relação entre meio-fim
e da avaliação do fim e do meio para alcançá-lo5 .
É desnecessário dizer que um fim moralmente mau não justifica nunca
uma ação, que é um meio, posto que a retidão moral desta depende do fim, e
nunca se pode considerar reta uma ação que produz um fim moralmente mau.
Portanto, a ação adquire sua qualificação moral do fim. Problemática, contu­
do, é a relação entre o fim bom e a ação-meio, que é objetivamente negativa
em sentido moral ou não-moral (pré-moral). Aqui, é importante ter presente a
distinção entre valor- estritamente moral- e bem- pré-moral. Não se justifi­
ca colocar uma ação-meio moralmente negativa para alcançar um fim bom.
Esse é o sentido do princípio o fim nãojustifica os meios.
Outra questão é se essa ação-meio se refere a algo negativo em sentido
não moral, isto é, pré-moral. O teleólogo sustenta que um meio negativo em
sentido não-moral fica subordinado e justificado pelo fim moralmente bom.
Por exemplo, uma intervenção cirúrgica é uma ação negativa em sentido
pré-moral, mas justifica-se pelo fim bom. A aceitabilidade da ação negativa é

4 Um teleólogo pode levar em consideração tanto o caráter produti,·o quanto o expressivo e distributivo
de uma ação. A formulação tradicional da teoria teleológica e a utilitarista esqueceram o caráter expres­
sivo de muitas ações, mas isso não impede o teleólogo de corrigir essa lacuna: também às ações expres­
sivas é preciso atribuir como fundamento e critério valores e não-valores. R. VIRT, Va/ori, norme efede
crisliana, Introduzione all'etica filosofica e teologica. Casale Monferrato: Marietti, 1982, p.137.
5 B. SCHÜLLER, la moraLité des morens. La relation de moyen à fin dans une éthique normative de ca­
ractere téléologique, RSR 68 (1980) 205-224.

248
Evento Cristo

dada pela sua propor�ionalidade em relação aos efeitos bons produzidos. Esse
é um modo típico de argumentação teleológica.
A norma é vista na perspectiva da realização do valor. Trata-se de ver se
as conseqüências são uma concretização do fim, expresso pelo valor, e se o va­
lor se manifesta como uma qualidade da ação. A desconsideração das conse­
qüências pode acarretar que os efeitos negativos sejam piores que o valor que
se pretende alcançar com seu cumprimento.
O princípio fundamental é que a obrigação ética está relacionada com
as conseqüências da ação moral, porque nelas se corporifica o fim da ação. As
teorias teleológicas defendem que as ações concretas devem ser valorizadas
em sua moralidade, primordialmente pelas suas conseqüências. Para ter uma
reta compreensão do significado das conseqüências, é necessário ter presente
que se incluem também as conseqüências a longo prazo e que a ação deve ser
colocada num contexto institucional. Deturpa-se a perspectiva teleológica, re­
duzindo as conseqüências aos resultados imediatos e isolando a ação de seu
contexto. Por exemplo, não se pode evocar a teleologia para justificar a entre­
ga de um inocente à morte para salvar um número maior de pessoas, porque
as conseqüências a longo prazo são a negação do bem da vida, que justamente
se quer defender, e a destruição das bases da convivência humana. O emprego
deste meio para salvar vidas faz desprestigiar o próprio valor da vida e, a longo
prazo, traz conseqüências negativas.
Os teleólogos justificam a sua posição, porque a ética cristã deve ser
uma ética da caridade. A caridade é a atitude fundamental do cristão. Os pre­
ceitos morais não são mais que mediações históricas que visam à concretiza­
ção da caridade. Como essa concretização acontece sempre no aqui e agora, as
normas nunca podem prever, de antemão, a sua configuração. Ela é muito
mais fruto do discernimento das conseqüências previsíveis.
Outra justificativa da argumentação teleológica é o fato de que o agir
moral acontece na contingência do mundo, onde se decide sobre a concretiza­
ção situada e finita de bens e valores. Portanto, não estão implicadas realida­
des absolutas e integralmente necessárias para o ser humano. Trata-se de
realidades pré-morais. Assim, a perspectiva teleológica refere-se a problemas
morais mistos, e não a questões puramente morais, como podem ser as exi­
gências éticas transcendentais.

249
José Roque )unges

Muitas vezes, a busca da concretização do bem não consegue evitar


a produção de um mal aceitável, porque pré-moral. A argumentação teleo­
lógica parte da consideração de que se deve fazer um esforço para evitar os
males pré-morais, mas que existem casos em que estes podem ser aceitos
se justificarem razões proporcionadas. É o sentido do princípio do duplo efei­
to6 . Só uma avaliação teleológica que tome em consideração todos os ele­
mentos implicados na ação pode sopesar a proporcionalidade entre os
bens e valores intencionados e os males pré-morais aceitos como inevitá­
veis. A ação humana, por ser contingente, não consegue realizar só bens e
valores sem causar também males pré-morais. A sua aceitação depende da
proporcionalidade em relação à realização de bens tornados pçissíveis com
essa ação. Só uma perspectiva teleológica pode justificar esse tipo de argu­
mentação.
Os deontólogos insistem apenas na natureza do ato; o fim e as circuns­
tâncias são secundários. Os teleólogos dizem que as circunstâncias e o fim não
são secundários, mas tão importantes quanto a natureza do ato. Os primeiros
insistem mais no finis operis; os outros, no finis operantis.
A controvérsia entre deontólogos e teleólogos recoloca o embate de
dois séculos atrás entre probabilioristas e probabilistas. Os primeiros defendem
mais os direitos da lei; os outros, os direitos da consciência. Numa situação de
dúvida devido ao conflito entre a lei e a consciência, os probabilioristas defen­
dem a escolha da opinião mais provável (probabilior), isto é, que se aproxima
mais da lei; os probabilistas advogam a liberdade da consciência diante de uma
lei duvidosa (!ex dubia n o n obligat: "lei duvidosa não obriga") e, conseqüente­
mente, a possibilidade de escolher qualquer opinião que tenha alguma probabi­
lidade, pois qui probabiliter agit, prudenter agit ("quem age segundo a
probabilidade, age com prudência"). O princípio que fundamentava essa solu­
ção era o axioma de B. De Medina: Si est opinio probabilis, licitum est eam sequi, licet
oposita probabilior sit ("Se a opinião é provável, é lícito segui-la, mesmo que a
contrária seja mais provável") (ln S. Th. I-II, XIX, 6). Situados em outro con­
texto e partindo de outros pressupostos, deontólogos e teleólogos recolocam

6 P. KNAUER, La détermination du bien et du mal par le príncipe du double effet, NRTh 87 (1965)
356-376 (Idem, El principio dei "doble efecto" como norma universal de la moral, SelecTeo/7 (1968)
265-273)

250
Evento Cristo

a mesma velha questão: a relação entre consciência e lei. Em qual dos pólos
colocar o acento? Probabilioristas e deontólogos acentuam a lei (finis operis);
prob abilistas e teleólogos privilegiam a consciência (finis operantis).
Pode-se dizer que não existem teorias puramente deontológicas ou teleoló­
gicas, mas teorias htbridas. A insistência é no teleológico sem excluir o deontológi­
co. A insistência é diversa no nível transcendental - modelo ético - ou categorial -
estabelecimento de normas. No nível transcendental, estamos diante de realidades
deontológicas, mas, no nível da ética normativa, devemos assumir um caráter subs­
tancialmente teleológico, porque o amor, que é o transcendental, necessita de media­
ções históricas e categoriais que devem ser justificadas teleologicamente.
Nessas mediações, o ser humano é guiado pela razão natural que cônsti­
tui o critério da auto-realização humana, segundo S. Tomás. Portanto, o ser hu­
mano tem capacidade de individuar normas e elaborar uma ética normativa.
Essa capacidade é a razão prática. Nem a Bíblia nem tampouco o magistério po­
dem ser considerados no tocante à produção de normas operativas, fontes alter­
nativas ou substitutivas da razão humana. Essa capacidade criativa do ser
humano, como indivíduo e sociedade, no processo de individuação e formula­
ção de normas e juízos, é uma participação da capacidade criativa e providente
do próprio Deus. É também o fundamento da argumentação teleológica no
âmbito da ética normativa.

3 Epiquéia7

Toda norma é fruto de um processo de generalização que parte da ex­


periência com casos particulares e chega a uma formulação transmissível e

7 R. EGENTER., Über die Bedeutung der Epikie im sittlichen Leben, Ph] 53 (1940) 115-127; ID., Epikie, in:
LThK III, col. 934-935;]. GIERS, Epikie und Sittlichkeit. Gestalt und Gestaltwandel einer Tugend, in: R
HAUSER/F. SCHOLZ (Hrsg), Der Mensch unlerAnmf und Ordnung, Düsseldorf, 1958, p. 51-67; HAMEL,
La ,·ertu d'épikie, in: Idem, Loi nalun:lle e/ /oi du Chrisl, Bruges/Paris: Desclée de Brouwer, 1964, p. 79-106; Idem,
I lpiqueya, in: Diccionario Enciclopédico de Teologío moral, i\ladrid: Paulinas, 1978, p. 298-306; F. D'AGOSTINO,
I lpiqueya, in: Diccionario Teológico Interdiscip/;nar li, Salamanca: Sígueme, 1982. pp. 358-371;J. FUCHS, Eccezi­
oni - Epikeia e norme morali di legge naturale, in: Idem., clica crisliana in una socielà secolarizzala, Casale llfon­
ferrato (AL): Piem me, 1984, p. 139-155; B. LEERS, Epikéia na tradição moral, in: Idem,Jeilo brasileiro e nonna
absoluta, Petrópolis: Vozes, 1982, p. 77-87; G. VIRT, F..pikie - veranlwortlicher Un,gang mil Nonnen. Eine histo­
risch-systematische Untersuchung. i\lainz: i\lathias Grünewald, 1983.

251
José Roque Junges

universalmente aplicável. Essa caractenstlca universalizante impede que a


norma operativa possa prever as situações singulares. Por isso, deve entrar em
ação a consciência moral, que faz emergir a norma concreta para essa situação.
Essa norma concreta é uma aplicação criativa da norma operativa. A epiquéia
refere-se justamente a tal atitude diante da norma ou lei.
Historicamente, houve duas maneiras de compreender a epiquéia: uma
tradicional, presente na moral manualística, que entende a epiquéia como uma
exceção em relação à lei positiva; outra, presente na moral renovada, que per­
cebe a epiquéia como uma virtude, referida à lei natural. A primeira reporta-se
a Suarez (Tractatus de Legibus ac Deo Legislatore); a segunda, a S. Tomás de Aqui­
no (Summa theologiae II-II, q. 120).
Os moralistas da primeira tendência relacionam a epiquéia com o direi­
to positivo. Ela funciona como uma flexibilização da lei diante de situações
concretas, mas sempre leva em conta a mente do legislador. O sujeito moral
tem o direito, em certos casos, de abrir para si uma exceção na aplicação da lei,
referindo-se à mente do legislador, que, se estivesse presente, o indultaria nes­
te caso concreto. Trata-se de uma interpretação benigna do pensamento do le­
gislador. Portanto, o ponto de referência para a epiquéia é a mente do
legislador. Os três casos clássicos de aplicação tradicional da epiquéia eram os
seguintes8:
1) Se, pelo concurso de uma série de circunstâncias imprevisíveis, a
aplicação da lei acarretasse grave perigo espiritual para o próprio sujeito e os
outros, o legislador perde o poder de fazer executar a lei. Escapando a situação
de sua jurisdição, a interpretação da lei passa para o subordinado.
2) Se existe um conflito entre o interesse pessoal daquele que deve obe­
decer à lei e a letra da lei, porque o cumprimento desta torna-se muito onero­
so, de difícil observância, nocivo e originando mais mal do que bem, a
consciência pode escusar-se, porque a submissão à lei imporia um sacrifício
desproporcional em relação ao que pretende o legislador. Ele não pode exigir
um heroísmo injustificado dos sujeitos. O que está em jogo ainda é o poder do
legislador.

8 E. HAMEL, La ,·ertu d'épikie, p. 87-88.

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Evento Cristo

3) Se o subordinado, a rigor, pudesse submeter-se à lei positiva sem co­


meter falta, como acontece no primeiro caso, e tampouco fosse vítima de uma
injustiça, como sucede no segundo caso, mesmo assim ele poderia julgar-se
escusado, referindo-se à mente do legislador. Aqui a epiquéia está referida a
urna interpretação razoável da mente do legislador. Não se trata de uma falta
de poder da parte do legislador, mas de presumir que ele não quer intervir nes­
te caso. Estritamente falando, o legislador poderia urgir a aplicação da lei, mas
0 sujeito acredita que, se ele conhecesse a situação difícil em que se encontra,
inclinar-se-ia mais pela moderação e indulgência, movido pela virtude da eqüi­
dade.
O que fundamenta a legitimidade da epiquéia é o caráter forçosamente
imperfeito da lei positiva. O viver em sociedade implica submeter-se a legisla­
dores humanos. Sem leis que funcionam, pelo menos como balizas de com­
portamento, a convivência social tornar-se-ia impossível. Além disso, a lei
positiva não se funda na natureza das coisas, mas na realidade tal como a per­
cebe o legislador, que é limitado. A lei positiva não contempla todos os casos
particulares. Como tal, tem um caráter geral, estático e abstrato. Essas notas
da lei positiva impedem que se caia na arbitrariedade e parcialidade. Mas a
conseqüência é que ela se torna precária porque não é aplicável a todos casos.
Essa primeira tendência entende a epiquéia a partir e em vista da lei po­
sitiva, esquecendo que estas duas instâncias, a lei e a epiquéia, respondem a ló­
gicas diversas9 . A lei busca a paridade e a igualdade, identificando os sujeitos a
que se refere. Somente subordinando-se às leis gerais, os seres humanos po­
dem ter a garantia de que serão respeitados na sua reciprocidade e tratados
como iguais. A lógica estrutural da epiquéia está precisamente no lado oposto.
Para ela, cada caso concreto, a ser regu lado, é tão individual e singular que se
considera injusta a submissão a uma lei generalizante. Cada pessoa ou cada si­
tuação é um caso à parte.
Para a lei, vale a lógica da paridade; para a epiquéia, a da diversidade.
Por isso, não se pode colocar a epiquéia em função da lei, porque se acaba ne­
gando a lógica da primeira em favor da segunda. Ao ligar epiquéia e lei positi­
va, ao invés de resguardar a lei contra possíveis abusos no uso da epiquéia,
acaba-se por tirar, ou melhor, confundir a lógica própria de cada uma e suas

9 F. D'AGOSTINO, op. cit., p. 362-364.

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José Roque )unges

funções específicas. Por isso, é necessário redimensionar a epiquéia em vista


de outro quadro de referência.
É o que acontece com a segunda tendência. Ela procura retomar a defi­
nição aristotélico-tomista, que compreende a epiquéia como correção da lei, e
não puramente como exceção à lei. O ponto de referência é a lei natural. A
epiquéia torna-se virtude10. Os moralistas apresentam três casos em que a epi­
quéia se aplica segundo essa segunda tendência11:
1) Se o legislador não tem mais o poder de fazer executar a lei, o subor­
dinado não somente pode, mas deve deixar a letra da lei em nome de exigências
superiores da lei natural. É o caso de uma pessoa que deixa de cumprir o pre­
ceito dominical para assistir a um enfermo. O que está em jogo é a lei superior
da caridade.
2) Se, em uma dada circunstância, a obediência à lei positiva exige um
heroísmo injustificado, a lei natural intervém em favor do sujeito, pois estão
implicados princípios superiores da mesma lei natural.
3) Nos casos em que o uso da epiquéia é inteiramente facultativo, o su­
jeito é livre de obedecer à letra da lei ou descartá-la. Para certos autores, em
tais circunstâncias a epiquéia deixaria o terreno da justiça estrita, como aconte­
ce nos dois primeiros casos, e se apresentaria como eqüidade. Esta situa-se
numa zona intermediária entre a justiça e a caridade.
Nesta segunda tendência, o ponto de referência não é a mente do legis­
lador, mas o primado da lei natural. O uso da epiquéia não é um afrouxamento
da lei positiva em favor do interesse pessoal, mas uma virtude que soluciona
os conflitos entre a lei positiva e a lei natural. A epiquéia, para esta segunda
tendência, não se limita unicamente ao campo jurídico, mas se estende ao âm­
bito da moralidade. Ela é concebida como uma virtude que corrige, guiada
pela prudência e fundada na lei natural, a lei positiva, que se apresenta como
incompleta devido ao seu caráter universal 12.

1 O S. Tomás afirma: Unde pote/quod epieikeia esl pars subiectiva iustitiae. Et de ea iustitia per prius diciturquam dele­
-�ali: nam lega/is iustitia dirigitur secundum epieikeiam. Unde epieikeia esl quasi superior regula humanorum acluum
("Daí decorre que a epiquéia é a parte subjetiva da justiça. Refere-se antes a ela do que a justiça legal:
pois a justiça legal é orientada pela epiguéia. Por isso a epiquéia é praticamente a regra mais elevada dos
atos humanos") (Summa Theologiae II-II, q. 120, a. 2, c).
11 E. HAi\fEL, op. cit., p. 88-89.
12 Idem, Epigueya, p. 300.

254
Evento Cristo

Na perspectiva da moralidade, a epiquéia amplia o seu raio de ação e


adquire um sentido novo e mais profundo. Ela aponta para a atitude necessá­
ria diante de qualquer norma, porque esta, sendo uma diretriz que visa à con­
cretização do valor, precisa ser interpretada em vista do valor que quer
realizar. A função da epiquéia é, em última análise, a mediação entre o valor e a
liberdade, e a 'tradução da norma está a serviço dessa mediação. A interpreta­
ção criativa da consciência, dando um conteúdo pessoal ao valor, é o exercício
dessa função da epiquéia. Assim, a epiquéia é entendida como atitude virtuosa
diante da norma, ou melhor, como mediação entre o mundo da norma e o
mundo da ação, entre o ideal e a realidade, entre a virtude e ato moral 13.
Alguns autores apresentam outro caso de aplicação renovada da -epi­
14
quéia . Trata-se da sua ampliação na linha jurídica, acomodando o seu signifi­
cado ao domínio social. A epiquéia coloca-se a serviço da justiça social. Quer
ultrapassar a pura justiça legal em vista da construção do bem comum, funda­
do no direito natural. O papel da justiça social, para esses autores, é proteger e
assegurar o respeito aos direitos humanos insuficientemente definidos na le­
gislação civil. Assim, por sua função criativa, a justiça social aproxima-se da
epiquéia. Em presença de uma lei civil insuficiente e injusta, a epiquéia obri­
ga-nos a recorrer ao direito natural, que é anterior a qualquer lei escrita e fun­
damento dos direitos humanos. Dessa forma, a epiquéia quer assegurar o bem
comum e estar a serviço da justiça social.

13 (, a perspectiva de G. VIRT, Epikie - vmmtwortlicher Umgang mil Normen, p. 261-268.


14 R. EGENTER, op. cit., p. 124;). GIERS, Epikie und Sittlichkeit, p. 63; E. HA.i\lEL, La vertu d'épikie,
p. 93-94.

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