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Valor e Norma Moral - JUNGES Roque. Evento Cristo e Ação Humana - P. 205-255
Valor e Norma Moral - JUNGES Roque. Evento Cristo e Ação Humana - P. 205-255
1 A. SANCHEZ VAZQUES, L�tica, Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1985, 8. ed., p. 121.
2 P. VALO RI, L'esperienza mora/e. Saggio di una fondazione fenomenologica dell'etica, Brescia: Morcelli
ana, 19762, p. 179.
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1 Acesso ao valor
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por outro, comunicado como um ideal do ethos (resposta ao valoi"). O valor é co
nhecido na práxis e transmitido através do ethos. A mediação entre esses dois
momentos acontece na internalização dos valores numa estimativa moral. Só
assim existe verdadeira compreensão e comunicação dos valores na consciência
e no ethos.
Essas duas perspectivas apontam para dois sentidos: algo tem valor, e
algo é valor. No primeiro, o valor é uma qualidade da ação, isto é, a práxis tem
valor. Assim, ele é concreto, histórico, relativo e sui?Jetivo. No segundo, o valor torna-se
uma entidade objetivada, isto é, o ideal é valor. Dessa forma, é abstrato, absoluto,
universal.
As duas perspectivas fundam dois diferentes atos: valorar e avalit:tr. Valo
rar significa discernir se algo é valor. Avaliar significa ponderar se algo tem va
lor. Valorações dizem respeito a ideais e princípios e recebem sua mediação
no ethos. Avaliações referem-se a atos e atitudes e são mediadas pelas normas.
Portanto, toda norma é a mediação de um valor3 •
Todo valor ou princípio moral é sempre, ao mesmo tempo, um ideal
transcendental jamais plenamente realizado, mas também uma realidade da
experiência concreta da pessoa. O valor ou princípio caracteriza-se sempre
como absoluto (impõe-se como um ideal) e relativo (apresenta-se historicamente
situado); como universal (exigido como universalmente válido) e particular (con
cretizado numa cultura e vivência particular); como oijetivo (possuidor de um
conteúdo objetivo) e sui?J'etivo (internalizado numa experiência subjetiva);
como cogente (obrigatório, racionalmente necessário, que se impõe ao agir) e li
bertador (mediação da liberdade humana fundamental).
2 Conteúdo do valor
3 M.-J. BOREL, Argumentation et valeurs, Revue de théologie e/ de philo,ophie 123 (1991), p. 164-166 (fra
ta-se de um número monográfico sobre valores).
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2.1 Bens
Bens (Bona plysica/ Güter) são dados reais que existem fora do sujeito
agente e independentes do nosso querer e pensar pessoais. Eles são prévios ao
agir e, portanto, realidades pré-morais, mas podem tornar-se morais quando
se desenvolve uma práxis em relação a eles. Bens pré-morais são, por exem
plo, a vida, a saúde, a sexualidade, a procriação humana, a propriedade, o poder, o matri
mónio e a família enquanto instituições, o Estado e a sociedade civil enquanto
instituições, etc. Podem ser, portanto, naturais e culturais. Todos são bens
contemplados pelo direito. São bensjurídicos a serem defendidos. Existem pré
via e independentemente do agir humano, o que não acontece com os valores.
2.2 Valores
Valores (Bonum mora/e/ Wene) são atitudes valorativas ou vinudes, uma quali
dade real do querer humano, uma qualificação do agir que depende da intencio
nalidade humana. Valores são, por exemplo, ajustiça, a solidariedade, a responsabi
lidade, a fidelidade, a veracidade, a sinceridade, etc. Não existem independentemente
da práxis humana: são sempre uma qualidade do agir. Enquanto objetivado ou
hipostasiado, o valor é aquilo em cuja base o homem orienta o seu comportamen
to moral (sentimento, convicção, mentalidade, ação). Os valores têm caráter
normativo e interpelativo enquanto motivações, mas não são normas.
4 F. BÓCKLE, Moral fundamental, S. Paulo: Loyola, 1984, p. 253-255; Idem, Werte und Normbcgrün
dung, in: Christlicher Glauhe in moderner Gesellschaft, vol. XII, Freiburg/Basel/Wien: Herder, 1981, p. 61.
A distinção entre bens e valores é o ponto de partida deJ.-C. PIGUET, Transmission des valeurs, Revue
de théologie e/ de philosophie 123 (1991), p. 147-158.
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XI - INDIVIDUAÇÃO DA NORMA MORAL
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um bem que realiza um valor. Por isso, ela tem sempre como contéudo um
bem a defender ou promover. Assim, temos normas proibitivas e prescritivas,
dependendo se elas são negativas (a norma "Não tirar a vida de um inocente"
diz respeito à defesa do bem da vida) ou positivas (a norma "O médico deve
sempre agir em benefício do enfermo" quer promover o bem da saúde). As
normas operativas devem continuamente adaptar-se ao surgimento de uma
mais autêntica compreensão cultural dos bens jurídicos e correspondentes va
lores exigidos por uma autêntica humanização. Esses bens, em geral, estão ex
pressos nos direitos humanos.
As normas não caem do céu; são sempre fruto da experiência humana e
surgem a partir de um contexto cultural e social. Não são absolutas no sentido
de ser independentes de lugar, tempo e outras circunstâncias e de ser univer
salmente aplicáveis. São absolutas no sentido de não ser arbitrárias.
As normas têm sempre um caráter funcional, isto é, estão sempre a ser
viço da humanização do ser humano e da sociedade. Esse objetivo fundamen
ta a sua validade. Significa, do ponto de vista da fé, que toda norma só se
justifica como mediação do amor. O sentido da norma é explicitar as exigências
do amor para um determinado setor da vida humana. Por isso, trata-se de uma
norma operativa que visa à concretização do amor para uma determinada situa
ção. Se ela não alcança este objetivo ou se serve até de subterfúgio para negar
ou desfigurar as exigências do amor, precisa ser criticada e desmascarada,
como Jesus o fez com a norma do sábado.
As normas têm igu almente uma função pedagógica. Em primeiro lugar,
em relação aos valores, ajudam a preservar a sua relevância para o ethos e a des
pertar o senso moral para seu significado. Através das normas, o ethos educa
para os valores que quer defender. Em segundo lugar, as normas operativas
têm uma função pedagógica em relação à consciência, porque servem de dire
triz para encontrar a norma concreta, que será o imperativo pessoal para o su
jeito moral.
É necessário que a norma seja promulgada no âmbito da consciência,
para que se imponha como obrigatória ou seja concebida como dever. Não
basta puro conhecimento conceptual-legal; é necessário um conhecimento
valorativo-ponderativo. Segundo S. Tomás, para que haja um ato moral, é ne
cessário que se seja livre. Assim, quem age espontaneamente age livremente
porque o princípio do agir está no sujeito moral; mas quem recebe impulso de
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outrem não é livre. Quem evita o mal por causa de um preceito do Senhor não é li
vre. Em compensação, quem evita o mal por ser um mal, este sim é livre, e o
seu agir tem densidade moral. Quem cumpre apenas a materialidade da nor
ma, sem uma compreensão formal do seu significado, não age moralmente (ln
Epistolam II ad Corinthios, cap. III, lect. III).
O sistema ético expressa-se em três níveis: universal, particular e singu
lar . A articulação entre essas dimensões é essencial para uma moral equilibra
!
da. A dimensão universal aponta para os grandes princípios que têm validade
para sempre e em toda parte. São absolutos e imutáveis. Identificam-se com
os princípios éticos e evangélicos como, por exemplo, Faz o bem e evita o mal ou
Ama o próximo como a ti mesmo. Eles valem para todo o sempre. Têm erfl vista os
grandes valores e os fins últimos que todos devem levar em consideração para
a realização humana. Constitu�m o desefável integral 2 para todo ser humano.
Querem levar o ser humano à perfeição. Em virtude disso, a dimensão univer
sal é uma dimensão utópica. Por serem universais e abstratos, esses princípios
são vazios de conteúdo concreto. Não dizem o que é fazer o bem e evitar o
mal ou amar o próximo no contexto atual e numa situação determinada. Por
isso, é necessário introduzir a dimensão particular.
Consciente de que nunca é possível concretizar plenamente o des�jável
integral, a moral procura considerar a realidade de uma determinada sociedade
e de uma determinada época e chegar àquilo que se poderia chamar de des�jável
habitual. É a dimensão particular. Por isso, elabora normas operativas que jus
tamente condensam o desefável habitua/3. Este fato aponta para a eventual cadu
cidade das normas, porque são a realização da utopia para determinado
momento e lugar. Esse indivíduo ou esse grupo social verificam que uma de
terminada conduta tem efeitos construtivos ou destrutivos a curto ou longo
prazo e chegam a declarar que tal ou qual conduta deve ser seguida ou evitada.
Desse modo, a história e a reflexão crítica mostram-nos que é normal que em cada época hqja
conflitos entre as normas das moraisjá adquiridas ou constituídas e as normas das morais
que estão se impondo.(..) No plano das normas particulares, a evolução ética é des�jável.
X. TH(,VENOT, Que moral para o nosso tempo. Segunda parte: Pontos de referência para uma nova
"construção moral", Revis/a de catequese 12 (1989) nº 48, p. 6-1 O.
2 O termo é tirado de Thévenot: Ibidem, p. 6.
3 Ibidem, p. 7.
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Caso contrário, a moral torna-se imoral porquefechada, porque não abre mais espaço à vida
e à novidade do Espírito4 •
Toda pessoa é única e singular. Nenhuma norma particular consegue
prever e indicar concretamente como a pessoa deve agir em determinada situa
ção. As situações humanas são, quase sempre, conflitantes e cheias de ambi
güidades. Daí a importância da dimensão singular. É necessária a intervenção
da consciência moral para que se chegue criativamente ao imperativo pessoal
que vale para esse indivíduo singular. Nenhuma moral pode dispensar esta in
tervenção e prescindir da responsabilidade pessoal. A pessoa ou grupo responsável
procura, então, não mais o desqável integral ou habitual, mas aquilo que é efetivamente pos
sível, para aproximar-se do desqavel integral. O sonho delineado nos princípios, a sabedoria
expressa nas normas, esba1,am na complexidade do real absolutamente único, que é vivido
num determinado momento e num determinado lugar5 •
Para entender o lugar da norma no edifício da ética, poder-se-ia propor
o seguinte esquema:
4 Ibidem, p. 8.
5 Ibidem, p. 9.
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2.1 Fé (Revelação)
2.1.1 Bíblia6
Apesar da insistência do Vaticano II em que a teologia moral alimente
mais sua reflexão na Sagrada Escritura (OT 16), a Bíblia não pode ser transforma
da em código de normas. Ela não é um receituário de soluções acabadas para pro
blemas morais; é antes uma mensagem fundamental e transcendental que permite
uma nova autocompreensão do ser humano. Expressa uma antropologia salvífica
que ressalta certos elementos importantes para o agir. Abre um novo horizonte de
compreensão da realidade, que terá seus efeitos sobre a práxis.
A Bíblia mostra uma via moral, porque apresenta as respostas dos pri
meiros cristãos às questões morais. Esse ethos primitivo serve de paradigma,
mas não no sentido literal, porque as soluções que apresenta não constituem
6 CH. CURRAN/R. McCORMICK (Edd.), Readings in Mora/Theology, n" 4: The use ofScripture in Moral
Theology, New Yok: Paulist Press, 1984.
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uma resposta acabada e pronta para o mundo hodierno. Fornecem uma ma
iêutica que ajuda o cristão de hoje a individuar, à luz do Evangelho, a resposta
adequada aos problemas atuais.
Nas soluções dadas pelos primeiros cristãos aos problemas morais, é
necessário distinguir entre o princípio ético, que fundamenta a solução e mantém
sua validade, e a aplicação prática, que depende da cultura da época. Portanto,
não podemos procurar na Escritura normas operativas concretas, mas antes
princípios éticos ou exigências transcendentais (Ziel-Gebote), que são absolutos
e uruversa1s.
7 Sobre a relação entre concepção eclesiológica e visão moral: H. SCHLÔGEL, Kirche ,md sittliches Han
deln. Zur Ekklesiologie in der Grundlagendiskussion der deutschsprachigen katholischen Moraltheolo
gie seit derjahrhundertwende ((Walberberger Stuclien 11) Mainz: Mathias Grünewald, 1981; Sobre as
fontes da moral na Igreja: H. LEPARGNEUR, Fontes da moral na Igrqa. O papel da Hierarquia, dos teó
logos e da prática popular na elaboração da norma moral. (Coleção "Cadernos de Teologia e Pastoral"
nº 10) Petrópolis: Vozes, 1978.
8 B. FRALING, Hypetrophie lehramtlicher Autoritat in Dingen der Moral? Zur Frage der Zustandigkeit
des Lehramtes aus moraltheologischer Sicht, in: P. HÜNERMANN (Hrsg), Lehramt und Sexual-moral
(Schriften der katholischen Akademie in Bayern, Band 137), Düsseldorf: Patmos, 1990, p. 95-129.
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9 Para toda essa questão consultar: Y. CONGAR, A Semantic History of the Term "Magisterium" in: CH.
CURRAN/R. McCOR.MlCK, Readings in Mora/Theology n' 3: The Magisterium and Morality, New York
Paulist Press, 1982, p. 297-313 (original francês: RvScPhTh 60 (1976) 84-98); Y. CONGAR, A Brief His
tory of the Forms of the i\fagisterium and its Relations with Scholars, in: Ibidem, p. 314-331 (original fran
cês: RvScPhTh 60 (1976) 99-112);]. DORil, L'institution du magistêre, RvScRel 71 (1983) 13-36;]. M.
GRES-GAYER, Toe Magisterium of the faculty ofTheology of Paris in the seventeenth century, ThSt 53
(1992) 424-450.
10 M. SECKLER, Glaubenssinn, in: LThK IV, p. 945-948; M. LÕHRER, i\frsterium Saiutis 1/3, p. 53-61;J.
COULSON, O magistério da Igreja una e sua relação com o "Sensus fidelium", Concilium (1975 /8) nº
108, p. 975-983; L. SARTORI, Quais os critérios para um adequado recurso ao "Sensus fidelium", Con
º
cilium (1981 /8) nº 168, p. 1101-1107; AA. VV., Osfiéis também ensinam na Igreja, Concilium (1985 /4) n
200; B. SESBOÜE, Le "Sensus Fidelium" en morale a la lumiêre de Vatican II, l..e Supplémenl (1992) nº
181, p. 153-166.
11 H. FRlES, Existe o magistério dos fiéis?, Concilum (1985 /4) nº 200, p. 458-459.
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12 Para um dossié patrístico sobre esse ponto: Y. CONGAR, Jalons pour une théologie du laical, Paris: Cerf,
1953, p. 450-453.
13 B. SESBOÜE, op. cit., p. 156-157; L. BOFF, i", justificada a distinção entre Ecclesia docens e Ecclesia
discens?, Concilium (1981 /8) n" 169, p. 1.089-1.095.
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dava a reboque do canonista. Sua função era ajudar na aplicação concreta das leis
morais e jurídicas. Surgiram, assim, os célebres casus conscientiae. A moral ficou
praticamente reduzida à casuística. Esse modelo casuístico corresponde ple
namente à concepção legalista da moral e foi, com razão, criticado duramente
pela moral renovada. Mas o problema não estava na casuística e sim na con
cepção que lhe deu origem. Hoje se redescobre o valor da casuística em outro
horizonte de compreensão, sem negar as deficiências do modelo tradicio nal27.
No horizonte de compreensão, aberto pela moral renovada, o papel do
teólogo moralista na formação do ethos eclesial é ampliado e aprofundado. Não
está tanto a serviço da concretização da norma moral, mas da competência da
consciência do sujeito moral. Fornece elementos que possam ajudar a consciên
cia, iluminada pela fé, a discernir os desafios e chegar a decisões pertinentes.
Assim, o papel dos teólogos moralistas é estabelecer as relações entre o ethos, o or
denamento moral e afé, cuidar da leitura hermenêutica da Bíblia em relação às questões mo
rais, reler hermeneuticamente as tradições morais desenvolvidas no deco1Ter do tempo,
aprofundar e explicitar os valores morais, motivar certos princípios e normas morais como
credíveis e adequadas, esclarecer a importância de certos resultados das ciências para a com
preensão da retidão de comportamentos morais, afrontar novos problemas morais, eté28•
A teologia moral é, portanto, antes de mais nada, um serviço media
dor29 . Mediado da mensagem bíblica, deve saber explicitar as exigências éticas
da antropologia cristã, situar uma determinada diretiva moral da Bíblia no seu
contexto cultural, distinguindo entre o princípio que lhe serve de base e a sua
aplicação concreta e interpretando-o para o aqui e agora. Mediadora crítica da
tradição, deve saber distinguir entre a tradição ética da fé e as tradições morais
e apontar os condicionamentos históricos de algumas normas morais.
O moralista é também mediador do sentir moral dos fiéis, porque ajuda
a explicitar a sua experiência ética sobre determinadas questões. Daí a necessi
dade de caminhar com o povo através de uma prática pastoral inserida, que o
27 1 ê. HAi\11 êL, Valeur et limites de la casuistique, in: Idem, I _,0i 11a/t1rdle e/ /oi du Chrisl, Bruges/Paris: Des
clée de Brouwer, 1964, p. 45-77; K. DI êi\li\lER, I êrwagungen über den Segen der Kasuistik, Gregoria-
1/1111163 (1982) 133-140; A. K. RUF, O modelo casuístico. A norma é ministrada pela Teologia, in: Idem,
C11rsoj,111dat11e1Jtal dr Teologia moral. Volume 1: Lei e norma, S. Paulo: Loyola, 1991, p.151-166; PH.
SCHi\llTZ, Kasuistik. Ein wiederentdecktes Kapitel der Jesuitenmoral, Throl��ie 1111d Philosophie 67
(1992) 29-59.
28 J. FUCHS, op. cit., p. 195-196.
29 (; o ponto de ,·ista de HARING no artigo "La función dei teólogo moralista católico", cf. nota 21.
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30 1� sobre isso que se refere X. THi',VENOT em seu artigo "lnten-ención dei teólogo católico em ética",
citado na nota 21.
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33 P. FRANSEN, A short history of the meaningof the formula "Fides et mores", I...St 7 (1979) 270-301.
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34 W. J. LEVADA, op. cit., p. 36-37. Essa tese inspira-se, nesse caso, principalmente nas pesquisas de M.
B(\VENOT, Faith and Morais in the Councils of Trent and Vatican !, The Heythrop ]ouma/ 3 (1962)
15-30; Idem, Traditiones in the Council of Trent, The Hqthrop Journa/ 4 (1964) 333-347; M. ZALBA,
"Omnis salutaris ,·eritas et morum disciplina". Sentido de la expresión "mores" en el Concilio de Tren
to, Greg 54 (1973) 680-714.
35 W. J. LEVADA, op. cit., p. 62-63.
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doutrina defé e moral tem a mesma extensão do depósito da Revelação divina, que deve ser
santamente guardado e .fielmente exposto. Esta ê a i,ifàlibilidade de que goza o Romano
Pontijice, o chefe do Colégio dos Bispos, em virtude de seu Call,O, quando, com ato definitivo,
como pastor e mestre supremo de todos osfiéis que confirma seus irmãos nafé (if. Lc 22,32),
proclama uma doutrina sobre afé e os costumes.
Há elementos a destacar. A infalibilidade é primariamente um carisma
da Igreja e, enquanto ta� também do papa. Ele é infalível não enquanto pes
soa, mas em virtude do seu cargo. O exercício da infalibilidade acontece quan
do existe um ato definitivo do papa como pastor e mestre supremo de todos
os fiéis. O seu objeto não vai além do depósito da fé.
O problema reduz-se à questão da competência do magistério em rela
ção à lei natural. Existem três posições sobre essa questão 36.
1) A posição tradicional defende que a autoridade da Igreja e a respectiva
competência do magistério se estendem igualmente ao domínio da lei natural.
Identifica mores simplesmente com lei natural. A Igreja tem uma missão salvífica
e, por isso, foi dotada da autoridade de guiar os fiéis no caminho da salvação.
Isso implica competência sobre a vivência moral de que fazem parte conteúdos
de lei natural. A justificação dessa competência é teológica. Entre revelação e lei
natural (realidade da criação) há uma relação teologal, porque é o mesmo Deus
que se revela de duas maneiras análogas que constituem uma unidade dialética.
O problema dessa posição é que o acento na unidade faz esquecer as diferenças.
Não se pode colocar, no mesmo nível, a compreensão da lei evangélica fundada
na revelação e a interpretação da lei natural baseada na racionalidade. Para esta é
necessário recorrer às contribuições da filosofia e das ciências humanas, e o ma
gistério não tem competência especial, como no caso da fé.
2) A maioria dos teólogos atuais estima que o magistério não tem compe
tência particular e privilegiada em matéria de lei natural. Sua autoridade depende
do caráter convincente de seus argumentos racionais. O acento coloca-se no cará
ter mediado da interpretação magisterial da lei natural e na necessidade do recurso
às contribuições da filosofia e das ciências. Esta posição separa drasticamente fé e
razão, esquecendo a circularidade dialética que existe entre as duas.
3) A terceira posição, chamada de dialética ou hermenêutica, parte justa-
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38 X. THl \VENOT, op. cit., p. 117. A instrução da Congregação para a Doutrina da Fé sobre a vocação eclesial
do teólogo tem uma ,·ariante nessa tipologia do ensino magisterial: 1) ensino infalível; 2) ensino definitivo;
3) ensino não-definitivo; 4) inten-enções prudenciais (n º' 15 a 19). Tomando em consideração esses dife
rentes rú,·eis, pode-se dizer 9ue a competência originária refere-se aos dois primeiros; e a subsidiária, aos
dois últimos. As 9uestões de matéria moral não entram no primeiro caso. Fazem pane do ensino definitivo,
não definitivo e prudencial.
39 Sobre o dissenso com o magistério em S. Tomas ver: ln IV Sent., dist. 38, 2, 4, adfinem.
40 E. LÓPEZ AZPITARTE, l\fagisterio de la lglesia y problemas éticos: discusiones actuales, p. 374.
41 X. THÚVENOT, op. cit., p. 118.
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42 L. MARTIN, Exílio, Sodoma e o Deserto: uma ética teológica a partir das culturas dos submundos, in:
Teologia moral e cultura, Aparecida (SP): Santuário, 1992, p.
43 Cf. D. TRACY, The Analogical Imagination: Christian Theology and lhe Culture ofPluralism, New York: Cross
road, 1981, p. 3-46.
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44 B. SCHÜLLER, La théologie morale peut-elle se passer du droit naturel? NRTh 88 (1966) 449-475; Idem.,
Reflexiones teológicas sobre la ley natural, Seleciones de Teología 7 (1968) 309-312; E. CHIAVACCI, Ley
Natural, in: Diccionário Enciclopédico de Teologia Moral 558-567; D. LANFRANCONI, Ley Natural, in: Dicci
onário Teológico Interdisciplinar III, 292-309; F. BÓCfCLE/E.-\Y/. BÓCKENFÓRDE (Hrsg), Naturecht in der
Kritik, Mainz: Mathias Grünewald, 1973; F. BÓCKLE (Hrsg), Der umstrittene Naturbegriff. Person-Na
tur-Sexualitat in der kirchlichen Morallehre (Schriften der katholischen Akademie in Bayern, nº 124),
Düsseldorf: Patmos, 1987.
45 A. K. RUF, op. cit., p. 121-133.
46 Ibid., p. 135-150
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47 A. SACCHI, La legge naturale nella lettera ai Romani, in: AA. VV. Fondamenli biblici dei/a Teologia mora/e,
Brescia: Paideia, 375-389.
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48 E. CHIAVACCI, Teologia mora/e 1: llforale Gene rale, Assisi: Citadella, 1979, 2. ed., p. 164.
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49 Em muitos católicos, o apego a uma concepção preceptista de lei natural deve-se a uma preocupação
autêntica com a objetividade das normas e o temor de cair em relativismo e laxismo. O problema é que
se identifica objetividade com fixidez. A verdadeira objetividade não pode ser fixa, porque imporia
normas ligadas a situações culturais e históricas transitórias. Norma moral fixa não levaria à verdade
objetiva, mas a uma verdade abstrata. A v�rdadeira objetividade está ligada à variada reflexão que a hu
manidade e a Igreja vão fazendo sobre o destino do ser humano.
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vos da situação não podem ser alcançados senão mediados pelo ethos. Daí a ne
cessidade da reflexão comum dos grupos e da -humanidade em geral sobre o
que significa ser humano. Seu resultado também pode ser chamado de lei na
tural. Neste segundo sentido, lei natural como ethos cultural deve ser dita e es
crita, não enquanto preceitos positivos que se impõem ao indivíduo, mas
como patrimônio comum de reflexão que ajudará o indivíduo a descobrir a lei
interior não-escrita. A lei natural é a experiência e a reflexão moral da humani
dade sobre si mesma, sobre a vocação e o significado da existência humana.
Por isso, pode-se dizer que a lei natural se expressa num ethos cultural. Essa
configuração não pode impor-se à consciência pela força da autoridade, mas
pela racionalidade intrínseca e pela autoridade moral de quem a propõe.
Portanto, a lei natural é, por um lado, uma presença interna no indiví
duo (razão) e, por outro, fruto da elaboração do grupo social (ethos). A lei natu
ral escrita e configurada no ethos é sempre subsidiária e subordinada à lei
natural presente no coração e, só através desta, adquire relevância. Chama-se
lei natural porque, nos dois casos, tem, como ponto de referência, a natureza
humana. É o lugar a partir do qual o indivíduo ou o grupo refletem. Algo é lei
natural porque está em conformidade com a natureza humana, ou melhor,
com o significado da vocação humana.
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51 Cf. P. BOURDIEU, Esquisse d'une théorie de la pratique, Geneve: Droz, 1972, p. 178-179 apud B.
QUELQUEJEU, Úthos historiques et normes éthiques, in: B. LAURET /F. REFOULI\ Jnitiation à la
pratique de la théologie, tome IV: Úthique, Paris: Cerf, 1983, p. 76.
52 B. QUELQUEJEU, op. cit., p. 77.
53 Ibid, p. 77-80.
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54 F.X. KAUFMANN, Normes, effondrement des normes et le probleme de la liberté en perspective so
ciologi9ue S11pplémenl de la Vie Spiriluelle, no 90 (1969) pp. 330-344, apud: B. QUELQUEJEU, op. cit.,
pp. 84-86.
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57 J. GRÜNDEL, Nom,en im Wandel. Eine Orientierungshilfe für christliches Leben heute. i\fünchen:
Don Basco, 1980, p. 93-99.
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riência e não têm, pois, um fim em si. Seu fim é o valor que elas pretendem aju
dar a realizar. Sua função é orientativa.
A experiência pessoal deve ser confrontada e objetivada com as tradi
ções e normas compendiadas pela experiência da humanidade, porque o su
jeito não pode abarcar toda a compreensão dos valores e não precisa iniciar
ab ovo a maneira de concretizar um valor, uma vez que a norma já lhe faculta
uma competência ao condensar a experiência feita com esse valor. A norma
orienta como realizar o valor. Por isso, a percepção pessoal das exigências de
um valor moral deve ser objetivada e confrontada com a experiência da hu
manidade transmitida pelas normas. No processo de formação da norma, a
experiência objetivada torna-se disponível a outros e reguladora do compor
tamento;s_
Há três níveis de experiência;9, que contribuem de modos diversos para
o conhecimento moral e, conseqüentemente, se relacionam de forma distinta
com a norma moral:
1) O primeiro nível é o da experiência negativa. Um acontecimento ou
vivência é experimentado como desilusão ou um não-sentido. Acontece
quando, devido a essa experiência, é necessário corrigir a compreensão de
uma verdade ou valor. Momentos negativos podem ajudar a encontrar uma
nova e melhor compreensão. A experiência negativa não é o ponto de chega
da, mas de partida para a nova síntese. Assim, o conhecimento se enriquece e
se aprofunda através da experiência de contraste. O conhecimento moral evolu
ciona principalmente através dessa via negativa do contraste.
2) A experiência negativa não esgota a totalidade da experiência. Para ex
perimentar o contraste, é necessário confrontá-lo com determinada experiência
do valor. Abrem-se novas possibilidades de ação, porque os novos dados, ema
nados da experiência de contraste, "coagulam-se" numa nova intuição de senti
do. Assim, existe uma dimensão positiva, que se manifesta como experiência de
sentido. Isso acontece quando a pessoa "cai em si" e tem uma nova luz. Essa ex
periência engendra nova compreensão de sentido de si mesmo, da realidade e
58 Ibid.. p. 99-108
59 Cf. D. MIETH, Die Bedeutung der menschlichen Lebenserfahrung, in: ID., op. cil., p. 111-134 (aqui p.
120-124) (Tradução: Sentido da experiência vital do homem. Por uma teoria do modelo ético, Conci/ium
(1976 / 10), p. 1.116-1.134 (aqui p. 1.123-1.126)).
242
Evento Cnsto
243
XII - FUNDAMENTAÇÃO DA NORMA MORAL
1 Teorias deontológicas
B. SCHÜLLER, Tipos de motivação das normas éticas, Concilium (1976 / 10) 1.159-1.169; E. CHIAVACCI,
Li fonda7ione della norma morale nella riflessione teologica contemporanea, in: AA. VV., L,fondaz!one dei/a
º
norma mora/e nella riflessione teokgica e marxista contemporanea (Coleção "Studi e ricerche" n 29). Bologna: Dehonia
ne, 1979, p. 11-52; P. KNAUER, Fundamentaletlúk: Teleologische ais deontologische Normenbegründung,
Theokgie und Phiksuphie 55 (1980) 321-360; R. RINCÓN ORDUNA, Fundamentación de las normas morales,
in: Idem., Teokgía moral Introducción a la critica. Madrid: Paulinas, 1980, p. 125-140.
2 Pode-se falar de um deontologismo do ato e da norma. O primeiro é professado pelo existencialismo (Sar
tre) e a ética de situação, quando negam a existência de critérios universais para avaliar moralmente a ação.
Em toda situação é necesário decidir, levando em consideração unicamente os elementos da própria situa
ção sem nenhum critério prévio (decisionismo). O deontologismo da norma defende, ao contrário, a aplica
bilidade de critérios gerais independente das circunstáncias. Aqui é tomado como referência apenas este se
gundo tipo de deontologismo. (Cf. W. FRANKENA, Ethics, Englewood Cliffs: Prentice-Hall, 1973 (2)
16-17; 23-28).
245
José Roque )unges
rente, suicídio, mentira e atos sexuais que impedem intencionalmente a procriação. Havia
dois tipos de argumentação deontológica em relação a esses atos:
1) O primeiro parte dos fins naturais, que devem ser absolutamente res
peitados. Existe, por exemplo, um fim natural inscrito na linguagem humana
de veicular a verdade. Logo, a mentira nurica pode ser admitida porque con
traria esse fim. O fim natural inscrito na sexualidade é a procriação. Excluir in
tencionalmente esse fim é fazer um uso indevido da sexualidade porque
contraria o seu significado e, por isso, é intrinsecamente desonesto. Esses fins
são invioláveis e devem ser realizados a todo custo. Trata-se de atos ilícitos
quia contra naturam (porque são contra a natureza).
2) O segundo defende que determinados comportamentos são contra
um direito que é pre,rogativa absoluta de Deus. A vida, por exemplo, não pertence
ao ser humano; é uma prerrogativa absoluta de Deus. Por isso, ninguém tem o
direito de tirar a própria vida ou a de outrem. Trata-se de atos ilícitos ex defectu
iuris in agente (por incapacidade jurídica do agente).
O puro deontologismo é impossível. Só seria factível num mundo onde
não existissem conflitos de deveres e onde se abstraísse do conteúdo concreto
e das condições concretas da ação. Por isso, houve sempre uma interpretação
bastante restritiva das normas deontológicas, a fim de evitar maiores danos ao
indivíduo e à sociedade. Procurou-se distinguir entre morte direta e indireta e
restringir a mentira à locução de duplo sentido, excluindo a restrictio menta/is. As
circunstâncias já estão incluídas na própria formulação da norma. Portanto,
no fundo, as normas levam em consideração as circunstâncias.
Numa ética deontológica, parece que o ser humano está a seviço da nor
ma. É dificil conciliar essa ética com a caridade, que é o único princípio deontoló
gico.
As teorias deontológicas dependem de uma certa concepção da ordem
natural. Antes dos fins naturais das realidades - linguagem, sexualidade -,
existe o fim natural da razão que Deus deu ao ser humano como guia. Este
pode chegar a considerar que um determinado valor é prioritário em relação a
um fim natural.
O argumento de que certos direitos são prerrogativa absoluta de Deus
manifesta uma visão tacanha de Deus e desconfiada do ser humano. Deus
continua a exercer o seu domínio sobre a vida, mesmo quando o ser humano
246
Evento Cristo
se sente autorizado a pôr fim à sua vida em virtude de uma exigência moral,
como, por exemplo, no caso da greve de fome.
A tradição católica sempre recorreu ao raciocínio fundamentalmente
teleológico também diante de normas deontológicas. As teorias deontológi
cas, mesmo quando apresentam preceitos deontológicos, tipificam muito
bem as exceções, integrando-as na própria formulação da norma e deixando
abe rta a possibilidade de ulteriores exceções. Admitem que existe uma instân
cia valorativa superior à norma.
Dizer que uma ação é sempre ilícita significa afirmar que sempre é pos
sível evitá-la. Isso seria afirmar um deontologismo puro, que é impraticável e
inviável. Dizer que essa ação é ilícita nesta e em outra circunstância s-ignifica
considerá-la em relação às possibilidades materiais de observá-la ou às conse
qüências produzidas por ela. É a maneira teleológica de raciocinar.
2 Teorias teleológicas
3 Existem dois tipos de utilitarismo. O primeiro é o utilitarismo do alo. Defende que devo realizar o ato que
produza o máximo de bem para mim e os demais. Outro é o utilitarismo da norma (valor). Advoga que
de\'o atuar de acordo com o \'alar ou norma que, ao ser realizada, produza o máximo de bem para mim
e os demais. A argumentação teleológica refere-se somente a este segundo. O primeiro compreende o
utilitarismo tradicional anglo-saxão.
247
José Roque ]unges
liza. A ação tem um valor pelo testemunho, por exemplo, o martírio - caráter
expressivo da ação. Por último, é necessário ter presentes também ações distributi
vas que partilham o bem e o mal produzidos, importante principalmente no
campo social, para que não aconteça que alguns usufruam unicamente as vanta
gens e outros sofram todas as desvantagens - caráter distributivo da ação4•
Os teleólogos fundam a sua argumentação na teoria dos valores que
corporificam os fins da ação. A retidão moral de uma ação é avaliada em rela
ção às conseqüências que produz. Não se trata apenas de resultados imedia
tos, mas também de conseqüências a longo prazo. Se as conseqüências são a
realização de um valor, a ação deve ser considerada moralmente reta; se as
conseqüências são a realização de um não-valor, a ação é considerada moral
mente incorreta. O valor torna-se o fim da ação; e esta, o meio para alcançá-lo.
Assim, o discurso teleológico coloca-se no contexto da relação entre meio-fim
e da avaliação do fim e do meio para alcançá-lo5 .
É desnecessário dizer que um fim moralmente mau não justifica nunca
uma ação, que é um meio, posto que a retidão moral desta depende do fim, e
nunca se pode considerar reta uma ação que produz um fim moralmente mau.
Portanto, a ação adquire sua qualificação moral do fim. Problemática, contu
do, é a relação entre o fim bom e a ação-meio, que é objetivamente negativa
em sentido moral ou não-moral (pré-moral). Aqui, é importante ter presente a
distinção entre valor- estritamente moral- e bem- pré-moral. Não se justifi
ca colocar uma ação-meio moralmente negativa para alcançar um fim bom.
Esse é o sentido do princípio o fim nãojustifica os meios.
Outra questão é se essa ação-meio se refere a algo negativo em sentido
não moral, isto é, pré-moral. O teleólogo sustenta que um meio negativo em
sentido não-moral fica subordinado e justificado pelo fim moralmente bom.
Por exemplo, uma intervenção cirúrgica é uma ação negativa em sentido
pré-moral, mas justifica-se pelo fim bom. A aceitabilidade da ação negativa é
4 Um teleólogo pode levar em consideração tanto o caráter produti,·o quanto o expressivo e distributivo
de uma ação. A formulação tradicional da teoria teleológica e a utilitarista esqueceram o caráter expres
sivo de muitas ações, mas isso não impede o teleólogo de corrigir essa lacuna: também às ações expres
sivas é preciso atribuir como fundamento e critério valores e não-valores. R. VIRT, Va/ori, norme efede
crisliana, Introduzione all'etica filosofica e teologica. Casale Monferrato: Marietti, 1982, p.137.
5 B. SCHÜLLER, la moraLité des morens. La relation de moyen à fin dans une éthique normative de ca
ractere téléologique, RSR 68 (1980) 205-224.
248
Evento Cristo
dada pela sua propor�ionalidade em relação aos efeitos bons produzidos. Esse
é um modo típico de argumentação teleológica.
A norma é vista na perspectiva da realização do valor. Trata-se de ver se
as conseqüências são uma concretização do fim, expresso pelo valor, e se o va
lor se manifesta como uma qualidade da ação. A desconsideração das conse
qüências pode acarretar que os efeitos negativos sejam piores que o valor que
se pretende alcançar com seu cumprimento.
O princípio fundamental é que a obrigação ética está relacionada com
as conseqüências da ação moral, porque nelas se corporifica o fim da ação. As
teorias teleológicas defendem que as ações concretas devem ser valorizadas
em sua moralidade, primordialmente pelas suas conseqüências. Para ter uma
reta compreensão do significado das conseqüências, é necessário ter presente
que se incluem também as conseqüências a longo prazo e que a ação deve ser
colocada num contexto institucional. Deturpa-se a perspectiva teleológica, re
duzindo as conseqüências aos resultados imediatos e isolando a ação de seu
contexto. Por exemplo, não se pode evocar a teleologia para justificar a entre
ga de um inocente à morte para salvar um número maior de pessoas, porque
as conseqüências a longo prazo são a negação do bem da vida, que justamente
se quer defender, e a destruição das bases da convivência humana. O emprego
deste meio para salvar vidas faz desprestigiar o próprio valor da vida e, a longo
prazo, traz conseqüências negativas.
Os teleólogos justificam a sua posição, porque a ética cristã deve ser
uma ética da caridade. A caridade é a atitude fundamental do cristão. Os pre
ceitos morais não são mais que mediações históricas que visam à concretiza
ção da caridade. Como essa concretização acontece sempre no aqui e agora, as
normas nunca podem prever, de antemão, a sua configuração. Ela é muito
mais fruto do discernimento das conseqüências previsíveis.
Outra justificativa da argumentação teleológica é o fato de que o agir
moral acontece na contingência do mundo, onde se decide sobre a concretiza
ção situada e finita de bens e valores. Portanto, não estão implicadas realida
des absolutas e integralmente necessárias para o ser humano. Trata-se de
realidades pré-morais. Assim, a perspectiva teleológica refere-se a problemas
morais mistos, e não a questões puramente morais, como podem ser as exi
gências éticas transcendentais.
249
José Roque )unges
6 P. KNAUER, La détermination du bien et du mal par le príncipe du double effet, NRTh 87 (1965)
356-376 (Idem, El principio dei "doble efecto" como norma universal de la moral, SelecTeo/7 (1968)
265-273)
250
Evento Cristo
a mesma velha questão: a relação entre consciência e lei. Em qual dos pólos
colocar o acento? Probabilioristas e deontólogos acentuam a lei (finis operis);
prob abilistas e teleólogos privilegiam a consciência (finis operantis).
Pode-se dizer que não existem teorias puramente deontológicas ou teleoló
gicas, mas teorias htbridas. A insistência é no teleológico sem excluir o deontológi
co. A insistência é diversa no nível transcendental - modelo ético - ou categorial -
estabelecimento de normas. No nível transcendental, estamos diante de realidades
deontológicas, mas, no nível da ética normativa, devemos assumir um caráter subs
tancialmente teleológico, porque o amor, que é o transcendental, necessita de media
ções históricas e categoriais que devem ser justificadas teleologicamente.
Nessas mediações, o ser humano é guiado pela razão natural que cônsti
tui o critério da auto-realização humana, segundo S. Tomás. Portanto, o ser hu
mano tem capacidade de individuar normas e elaborar uma ética normativa.
Essa capacidade é a razão prática. Nem a Bíblia nem tampouco o magistério po
dem ser considerados no tocante à produção de normas operativas, fontes alter
nativas ou substitutivas da razão humana. Essa capacidade criativa do ser
humano, como indivíduo e sociedade, no processo de individuação e formula
ção de normas e juízos, é uma participação da capacidade criativa e providente
do próprio Deus. É também o fundamento da argumentação teleológica no
âmbito da ética normativa.
3 Epiquéia7
7 R. EGENTER., Über die Bedeutung der Epikie im sittlichen Leben, Ph] 53 (1940) 115-127; ID., Epikie, in:
LThK III, col. 934-935;]. GIERS, Epikie und Sittlichkeit. Gestalt und Gestaltwandel einer Tugend, in: R
HAUSER/F. SCHOLZ (Hrsg), Der Mensch unlerAnmf und Ordnung, Düsseldorf, 1958, p. 51-67; HAMEL,
La ,·ertu d'épikie, in: Idem, Loi nalun:lle e/ /oi du Chrisl, Bruges/Paris: Desclée de Brouwer, 1964, p. 79-106; Idem,
I lpiqueya, in: Diccionario Enciclopédico de Teologío moral, i\ladrid: Paulinas, 1978, p. 298-306; F. D'AGOSTINO,
I lpiqueya, in: Diccionario Teológico Interdiscip/;nar li, Salamanca: Sígueme, 1982. pp. 358-371;J. FUCHS, Eccezi
oni - Epikeia e norme morali di legge naturale, in: Idem., clica crisliana in una socielà secolarizzala, Casale llfon
ferrato (AL): Piem me, 1984, p. 139-155; B. LEERS, Epikéia na tradição moral, in: Idem,Jeilo brasileiro e nonna
absoluta, Petrópolis: Vozes, 1982, p. 77-87; G. VIRT, F..pikie - veranlwortlicher Un,gang mil Nonnen. Eine histo
risch-systematische Untersuchung. i\lainz: i\lathias Grünewald, 1983.
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José Roque )unges
1 O S. Tomás afirma: Unde pote/quod epieikeia esl pars subiectiva iustitiae. Et de ea iustitia per prius diciturquam dele
-�ali: nam lega/is iustitia dirigitur secundum epieikeiam. Unde epieikeia esl quasi superior regula humanorum acluum
("Daí decorre que a epiquéia é a parte subjetiva da justiça. Refere-se antes a ela do que a justiça legal:
pois a justiça legal é orientada pela epiguéia. Por isso a epiquéia é praticamente a regra mais elevada dos
atos humanos") (Summa Theologiae II-II, q. 120, a. 2, c).
11 E. HAi\fEL, op. cit., p. 88-89.
12 Idem, Epigueya, p. 300.
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