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Texto para uso exclusivo dos alunos de teologia da FAJE. Está expressamente proibido
de ser compartilhado, pois, será publicado em breve.

Os pobres e seus rostos na profecia de Amós


Jaldemir Vitório SJ

A identidade do profeta Amós chama a atenção, ao considerarmos sua linguagem


incisiva e sua coragem em face das pessoas e das instituições de sua época. Originário
de Técoa (2Sm 14,1-24), povoado a uns 9km ao sul de Belém, nas proximidades do
deserto de Judá, é apresentado como um nôqed (pastor de gado miúdo, cabras e
ovelhas) (Am 1,1). Entretanto, ao falar de si mesmo, diz ser um bôqer (pastor de gado
graúdo, bois e vacas) e bôles shiqmîm (cultivador de sicômoros) (Am 7,14). Tratam-se de
duas profissões muito distintas: uma nomádica e outra sedentária. A dupla atividade
profissional exigia dele fazer contínuos deslocamentos dentro do território de Judá e,
quiçá, para além dele. Seu profundo conhecimento de fatos relacionados com as nações
vizinhas (Am 1,3–2,3), bem como a situação social, política e econômica de Judá e Israel
(Am 2,4-16) pode ter origem no contato direto com a realidade de injustiça e com
pessoas que partilharam com ele os dramas de seus povos.
A escuta atenta e o discernimento dos fatos permitiram-lhe tomar consciência da
realidade numa profundidade dificilmente encontrada em seus companheiros pastores.
Ao falar de sua vocação, recordou uma experiência que transtornou sua vida. Certo dia,
quando pastoreava seu rebanho, foi arrebatado por Deus que lhe disse: “Vai, profetiza
a meu povo Israel” (Am 7,15). Dois elementos complicadores entravam no jogo da
obediência à voz de Deus. Por um lado, não era profeta nem filho de profeta (Am 7,14);
portanto, faltava-lhe respaldo institucional para falar em nome de Deus; por outro,
sendo originário do Reino do Sul e enviado a pregar no Reino do Norte, via-se diante da
exigência de se dirigir a uma terra onde, com grande probabilidade, poderia ser
rejeitado e desqualificado.
Uma metáfora exprime com precisão a determinação de Amós em ser fiel ao Deus
de sua fé, expressão de sua consciência vocacional. “O leão ruge: quem não temerá? O
Senhor Deus falou: quem não profetizará?” (Am 3,8). Tem-se a impressão de o profeta
ter sido tomado por uma força irresistível, que o compeliu a deixar sua pátria, família e
profissão e se lançar numa aventura, em nome de Deus, que o levou a profetizar com
firmeza contra o rei de quem anteviu a morte pela espada e a deportação de seu povo
(Am 7,10-11) e a ser expulso de Betel por Amasias, sacerdote-chefe do santuário real da
Samaria (Am 7,12-13).
As entrelinhas da profecia de Amós revelam-no altamente sensível ao sofrimento
dos pobres. Sua condição de pastor camponês, vindo do interior, deve tê-lo feito
experimentar os efeitos da política levada a cabo pelo rei e sua corte em favor dos ricos
e privilegiados, em detrimento de quem estava na base de uma sociedade piramidal.
Este texto tem o objetivo de retomar a profecia amoseana e detectar o esquema de
injustiça alimentado pela classe alta de Israel e explicitar quem são os agentes da
injustiça e os variados rostos dos pobres vitimados pela insensibilidade e pela ganância
2

de quem, respaldado por uma falsa segurança religiosa, se esquece de como o Deus de
Israel está atento para o modo como seu santo nome é profanado (Am 2,7).

1. A fé com dimensões sociais

Os editores da profecia de Amós cuidaram de situá-la no tempo e no espaço, de


forma a mantê-la distante de todo tipo de abstração. O profeta escuta, abraça e faz a
Palavra de Deus ecoar na história. O enraizamento histórico da Palavra exige que a
resposta humana, igualmente, aconteça na história. O culto ocupa um lugar secundário,
pois a Deus interessa que “o direito flua como água e a justiça como torrente
permanente” (Am 5,24).
As palavras do profeta correspondem a seu discernimento “a respeito de Israel”,
quando aí reinava Jeroboão II, entre 786-746 a. C., “dois anos antes do terremoto” (Am
1,1)1. Apesar de seu longo reinado, a historiografia reserva-lhe alguns poucos versículos,
com uma avaliação altamente crítica (2Rs 14,23-29). É quando “o Senhor ruge de Sião e
de Jerusalém levanta sua voz” (Am 1,2), na pessoa do profeta. Esse rei de Israel
conseguiu o grande feito de restabelecer “as fronteiras de Israel, desde a entrada de
Emat até o mar de Arabá” (v. 25), num período de decadência do Império Assírio, do
qual soube tirar proveito2.

“Em menos de vinte cinco anos, Jeroboão II foi capaz de tomar uma nação que estava
a ponto de morrer e transformá-la em uma das grandes potências do momento. [...]
A calmaria das campanhas militares assírias permitiu-lhe mover-se na direção da
Síria praticamente sem dificuldades. Quando as coisas estavam boas, ele estava
muito, muito bem” (KAISER, 1998, p. 352).

A situação social, econômica e política está nas raízes do ministério profético


amoseano. A dimensão religiosa é considerada em estreita relação com a dimensão
sociopolítica. A visão unitária da realidade, no âmbito do pensar semita, não permitia
ao profeta desconectar a prática da religião de seu contexto. Quem usufrui as benesses
do atual momento de bem-estar econômico, “está despreocupado em Sião e sobre os
montes da Samaria”, gloriando-se de pertencer à “primeira das nações”, ou seja,
considera-se abençoado por Deus que lhe concede riqueza e bem-estar (Am 6,1). Na
contramão, está o profeta que detecta a injustiça e a violência contra os indefesos como
infidelidade à fé de Israel a ponto de mover o Senhor a tirá-lo de suas atividades
profissionais e mandá-lo denunciar os desvios de conduta da liderança do povo,
despreocupada com os desdobramentos sociais da falsa segurança religiosa (Am 7,14).
Se Deus toma a iniciativa de enviar seu profeta para denunciar as mazelas sociais, deve-
se ao fato de se sentir tocado pelos desmandos sociais, cujas vítimas primeiras são os
indefesos.

1
“O terremoto seria o que os arqueólogos descobriram no nível VI de Hazor, o qual datam por volta de
760 a.C.” (SIMIAN-YOFRE, 2002, p. 32). Esse abalo sísmico foi recordado por Zc 14,5, que se refere a um
“terremoto nos dias de Ozias, rei de Judá”.
2
“’Lebo Hamath’ refere-se ao Vale do Bekaa, um vale entre o Líbano e as montanhas do Ante-Líbano, a
parte sul cujo corredor estava aproximadamente na cidade de Dan. O mar da Arabá é o mar Morto”
(Kaiser, 1998, p. 351).
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O profeta vive sua fé no coração de uma sociedade marcada pela infidelidade a


Deus, cujos sintomas mais perceptíveis, em sua análise teológica, são os desmandos das
lideranças e dos poderosos, incapazes de perceber os desdobramentos sociais de sua
vida desregrada, pretensamente respaldada pelo Deus de sua fé. O gloriosamente
esperado “Dia de Javé”, quando os inimigos de Israel seriam punidos, haveria de assumir
uma inesperada configuração (REIMER, 2000b, p. 26-34). “Ele é trevas e não luz... Não é
o dia do Senhor trevas, e não luz? E obscuridade, sem claridade?” (Am 5,18.20), pois a
luz da justiça se apagou pelas injustiças praticadas contra os que vivem à margem do
sistema. Será impossível escapar da ira divina (Am 5,19). O ansiado dia de alegria se
transformará em tempo de luto e tristeza, como por ocasião da morte de um ente
querido, “pois engana-se quem conta com a salvação divina quando campeia a injustiça”
(VITÓRIO, 2016, p. 184). Deus mesmo intervirá para pôr um basta à alegria cínica dos
ricos. “Farei que o sol se ponha ao meio-dia e escurecerei a terra à luz do dia. Converterei
vossas festas em luto e todos os vossos cantos em lamentação3. Vestirei a todos com
pano de saco e tornarei calva toda cabeça. Estabelecerei isso como luto pelo filho único;
seu fim será como um dia amargo” (Am 8,9-10). A intervenção divina na história tem
como objetivo colocar limites à maldade de quem atropela o direito de seu próximo,
seguro de ter Deus a seu favor.

Os benefícios de Deus no passado (eleição, libertação do Egito, aliança do


Sinai etc.) não fomentavam a generosidade, mas a segurança e o complexo
de superioridade. A aliança com Deus se transformou em letra morta,
recordada durante as celebrações litúrgicas, mas sem a menor influência na
vida diária. Apesar de tudo, o povo esperava “o dia do Senhor”, numa
intervenção maravilhosa de Deus em favor de Israel para cumulá-lo de
benefícios e situá-lo no comando das nações (SICRE DIAZ, 2016, p. 168).

Um claro indício de uma fé inconsequente encontra-se na tranquilidade como


que os adoradores do Senhor “se estendem junto a todo altar sobre vestes tomadas
como penhor” e “bebem, na casa de seu Deus, vinho dos que foram multados” (Am 2,8).
Em Israel havia a proibição de conservar consigo o manto tomado em penhor, para que
o próximo “durma com o seu manto” e não venha a padecer o frio (Dt 24,12-13). Por
outro lado, Deus não poderia se comprazer com o vinho consumido em sua “casa”,
obtido por vias ilícitas. Existe algo de equivocado quando a fé se desconecta da justiça.

Os contemporâneos de Amós não pecavam por falta de religião, mas sim pela
consciência equivocada, fruto da incapacidade de sintonizar o querer de Iahweh. O
culto corria paralelo à vida. O trato respeitoso com Deus estava longe de se
desdobrar em atitudes misericordiosos nas relações com os mais fracos da sociedade
(VITÓRIO, 2016, p 178).

Eis porque os cultos pomposos desagradam a Deus profundamente, a ponto de


serem rejeitados pela própria divindade. “Odeio, rejeito vossas festas e não encontro
prazer em vossas assembleias. Pois, se fazeis subir a mim holocaustos, em vossas

3
A “antevisão de um fim trágico para Israel faz-se presente na pregação de Amós pelo recurso ao gênero
literário ‘invectiva’, usado para veicular a sua mensagem. Seu componente literário ‘ai dos que...’ não
deixava margem para equívocos. O pano de fundo sociocultural era o lamento fúnebre (qinah),
obrigatório por ocasião do falecimento de uma pessoa, seja ela quem fosse” (VITÓRIO, 2003, p. 126).
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oferendas não encontro agrado e os sacrifícios pacíficos de vossos animais cevados não
contemplo. Tira de diante de mim o vozerio de teus cantos, a música de tuas harpas não
ouvirei” (Am 5,21-23). Deus manifesta seu desconforto com o culto desprovido da
correspondente prática da justiça, pois “toda vida deveria ser percebida como cúltica”,
isto é, “a performance no culto não possui valor desvinculada da performance em defesa
da vida dos mais fracos” (ROSSI, 2018, p. 89).

2. A crítica social à luz da fé

O senso crítico do profeta advindo de sua fé “tornou-o sensível ao descompasso


entre o querer de Deus e a realidade socioeconômica. A fé abriu-lhe os olhos” (VITÓRIO,
2011, p. 79). Assim, sua leitura da história, na qual identifica toda sorte de maldade,
decorre do compromisso com Deus de quem se faz porta-voz. A fórmula introdutória
dos oráculos – “Assim diz o Senhor” – tem como pano de fundo a consciência de Amós
de estar a serviço de um Deus preocupado com os rumos dados à sociedade à revelia de
seu querer.

Apesar de Amós não fazer uma referência direta à questão da eleição e da aliança,
toda a questão da justiça social gira em torno desses temas, sendo por isso
abordados de forma inovadora e mais concreta na vida do Povo. Tanto a injustiça
como o luxo são atentados ao código da aliança e manifestações de orgulho e
arrogância face à única e exclusiva soberania de Yahwé (CATARINO, 2014, p. 32).

O profeta “vê” as injustiças praticadas pelos reinos vizinhos de Israel. Damasco


“pisoteou Galaad com debulhadoras de ferro” (Am 1,3). Gaza “deportou para o exílio a
todos [prisioneiros de guerra] para entregá-los a Edom” (Am 1,6). Tiro “entregou todos
os exilados a Edom e não se lembrou da aliança de irmãos” (Am 1, 9). Edom “perseguiu
com a espada seu irmão e suprimiu sua misericórdia. Sua ira despedaçou sem cessar e
conservou seu furor para sempre” (Am 1,11). Amon “rasgou o ventre das grávidas em
Galaad para estender suas fronteiras” (Am 1,13). Moab “queimou os ossos do rei de
Edom até ficarem calcinados” (Am 2,1).
Os malfeitos cometidos por Judá, também, estão na mira do profeta. Esse “rejeitou
a lei do Senhor e não guardou seus decretos. Suas falsidades, atrás das quais seus pais
andaram, o desencaminharam” (Am 2,4).
Entretanto, ao profeta interessam os pecados cometidos em Israel. Se Deus está
atento para o que se passa com os vizinhos de seu povo, tanto mais estará com a
situação social ao interno de seu povo escolhido. Aqui a injustiça tem muitas caras. O
ser humano perde seu valor ao ser aviltado (Am 2,6-7). Opressão e violência campeiam
(Am 3,9-10; 8,4-6). A classe alta vive um estilo de vida cínico e inconsequente (Am 4,1-
2; 6,4-6). A religião acoberta os desmandos dos grandes (Am 4,4-5; 5,4-7), impede-os de
captar os “sinais dos tempos” e se converterem (Am 4,6-12). As sentenças dos tribunais
são tendenciosas (Am 5,10).

Israel não precisa sair de suas fronteiras para oprimir e explorar. Desde o princípio
aparece dividido em dois grandes grupos: poderosos e fracos, ricos e pobres,
vendedores e vendidos (2,6-16). Apesar de sua aparente paz e prosperidade, é
sociedade consumida no terror, em guerra civil encoberta. Assim afirma o texto mais
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radical de Amós (3,9-11), radical precisamente porque não denuncia fatos concretos,
mas o resultado definitivo” (SICRE, 1990, p. 185).

A contundência das palavras do profeta “vaqueiro e cultivador de sicômoros”


chama a atenção. O ambiente profissional agropastoril dificilmente poderia oferecer-lhe
chave para uma leitura tão consistente da realidade. Quiçá tê-lo-ia permitido constatar
a situação criada por um sistema privilegiador dos estratos sociais mais altos da
sociedade do Reino de Israel em detrimento dos estratos inferiores. Entretanto, suas
constatações permeadas de referências ao Deus de sua fé apontam para a origem de
sua consciência da realidade. Nem mesmo a instituição profética, cujos ícones eram os
profetas Elias e Eliseu, serviu-lhe de referência. A declaração – “Eu não sou profeta nem
filho de profeta; mas o Senhor tomou-me de detrás do rebanho e me disse: ‘Vai,
profetiza a meu povo Israel’”. (Am 7,14) – revela-o colocado à sós com seu Deus, de
quem se faz porta-voz. Essa experiência religiosa alarga-lhe os horizontes e permite-lhe
ler a realidade para além das aparências de bênção e proteção da divindade,
simbolizadas pela prosperidade econômica dos detentores do poder. Seu olhar aguçado
antevê o futuro sombrio de uma sociedade que caminha na contramão do Deus de
Israel.

Em Amos, a crítica social e o anúncio do juízo divino articulam a visão de um Deus


que toma partido pelas pessoas pobres e oprimidas na sociedade do próprio povo
de Israel e também nos povos vizinhos (1,3.6.12; 9,7). Verifica-se uma profunda
defesa dos fracos e empobrecidos e uma luta pelos seus direitos (REIMER, 2000a, p.
190).

3. Os agentes da injustiça na mira do profeta

O profeta denuncia um amplo conjunto de promotores de desigualdade social. A


simples alusão aos malfeitos permitia que os ouvintes identificassem, sem dificuldade,
quem estava sendo denunciado. Dessa forma, a pregação de Amós não corria o perigo
de se tornar palavreado vago, sem alvo definido.

Amós dirige-se aos opressores e não aos próprios pobres, que jamais estão na
posição de sujeitos, atores livres, antes são apresentados como vítimas da
desumanização, por serem tratados como mercadorias do circuito comercial, como
fontes de lucro. [...] Esse desprezo total da pessoa é o que mais parece afetar o
profeta: torna-se ainda mais gritante no caso de seres sem defesa e
economicamente vulneráveis, mas pode dizer respeito a outras categorias de
pessoas menos desemparadas (FOURNIER-BIDOZ, 1994, p. 44).

Sicre (1990, p. 186-189) identifica oito grupos de denúncias, atrás das quais se
podem detectar ações de indivíduos e de grupos sociais mancomunados na prática do
mal.
a. Os militares cruéis e inescrupulosos no trato com as populações vencidas, que
dizimavam sem piedade, até seu total aniquilamento “com debulhadoras de
ferro” (Am 1,3), perseguiam com a espada, mesmo em se tratando de povos
irmãos (Am 1,11), rasgavam o ventre das mulheres grávidas (Am 1,13) e
tratavam com impiedade os restos mortais dos reis adversários, queimados até
ficarem calcinados (Am 2,1). Esse conjunto de denúncias tem como alvo reinos
6

vizinhos de Israel. “Trata-se sempre de delitos contra a humanidade”, à margem


de “toda impostação nacionalista” (SOGGIN, 1982, p. 71).
b. Os proprietários de escravos que comercializavam seres humanos,
transformados em mercadoria por ocasião das guerras à revelia do senso de
fraternidade (Am 1,6.9). Mas, igualmente, pessoas forçadas a se tornarem
escravas por motivo de dívidas e, por consequência, desvalorizadas, a ponto de
terem o mesmo valor de “um par de sandálias” (Am 2,6; 8,6).
c. Os abusadores das pessoas fragilizadas, sem condições de se defenderem,
devendo satisfazer os caprichos de seus tiranos (Am 2,7).
d. Os usurários que tomam como penhor até mesmo o que a Lei proíbe, sem
demonstrar qualquer sinal de compaixão com o irmão carente (Am 2,8).
e. Os cobradores de impostos ávidos por se enriquecerem às custas da exploração
do próximo, multado de maneira arbitrária (Am 2,8) e tributado com extorsão,
para além do que é devido (Am 5,11).
f. Os ricos desfrutadores de riquezas, que usufruem suas “casas de inverno”, suas
“casas de verão”, suas “casas de pedra lavrada”, cujos móveis são adornados
com marfim (Am 3,15; 5,11); levam uma vida dissoluta de bebedeira (Am 4,1);
“estão deitados em leitos de marfim e se estiram em seus divãs; que comem
cordeiros do rebanho e bezerros do meio do estábulo; que cantam ao som da
harpa, como Davi inventam para si instrumentos de canto; que bebem vinhos
em taças, ungem-se com os mais finos óleos” (Am 6,4-6), mas, “não sabem fazer
o que é reto” (Am 3,10), tampouco, “se afligem com a ruína de José!” (Am 6,6).
O profeta chama de “vacas de Basã” as mulheres ricas do “monte de Samaria”,
(Am 4,1), cuja influência negativa incentivava os maridos a praticar o mal4.

“A corte, concentrada na cidade-capital, com seu consumo exagerado, seus gostos


exuberantes e suas necessidades para o artesanato citadino, é um dos fatores mais
importantes para a opressão e a exploração do campesinato através da tributação
em espécie. Os agentes são o rei e suas mulheres-damas, seus funcionários e as
famílias destes. [...] Os mecanismos para garantir a ‘dolce vita’ e eternizar a
exploração e opressão dos camponeses são a tributação em espécie, o trabalho
forçado temporário (corveia), a coação religiosa e a coerção pelas armas” (REIMER,
1992, p. 55).

g. Os corruptores dos tribunais e suas ações maléficas que sentem repugnância “de
quem fala com integridade” (Am 5,10), aceitam suborno para beneficiar os ricos
em detrimento do direito dos pobres (Am 5,12), “convertem o direito em absinto
e lançam a justiça por terra” (Am 5,7) e se recusam a “odiar o mal e amar o bem
e estabelecer o direito à porta” (Am 5,14).

Como os fracos são abatidos em seus direitos, o suborno seguramente vem


dos economicamente poderosos. Amós vai a juízo com a jurisprudência local
controlada pelos economicamente fortes. O inquirido não pode ser o povo,
mas, sim, os juízes leigos responsáveis pela corrupção junto ao “portão”
(SCHWANTES, 2013, p. 101).

4
Basã, situado “entre o Hermon e o Yarmuk, era célebre por suas pastagens. Os ‘touros de Basã” (Ez
39,18; Sl 22,13) bem como os ‘carneiros de Basã’ (Dt 32,14) são proverbiais por sua força” (BOVATI;
MEYNET, 1994, p. 85).
7

h. Os comerciantes, com sua falsa piedade, anseiam para que o repouso sabático
passe o mais rápido possível, de modo a poderem voltar a comercializar o grão
e o trigo, porém, “diminuindo o efá, aumentando o siclo e enganando com
balanças fraudulentas”, sem escrúpulos de tornar os pobres objeto de comércio
e vender, até mesmo, o refugo do trigo (Am 8,4-6), na contramão da Lei que
prescrevia, por ocasião da colheita, “esquecer um feixe” no campo, para ser
recolhido pelo estrangeiro, pelo órfão e pela viúva (Dt 24,17-21). Os
comerciantes gananciosos ganhavam dinheiro, até mesmo, com as sobras do
trigo, de modo a não deixar nada para os indigentes.
Para Reimer (1992, p. 57) não se trata de uma denúncia contra “fraudes no
comércio em geral”, tampouco na mira do profeta estão os comerciantes no
sentido próprio dessa palavra. Antes, havia camponeses que armazenavam
cereais e se dispunham a “oferecê-lo como empréstimo a quem necessitar”.
Esses, ao usarem meios fraudulentos, dificultavam “a devolução do empréstimo
pelos pobres” e, com facilidade, acabavam por se apropriar do pedaço de terra
do “camponês empobrecido”.
Amós denuncia “a falta de sensibilidade social, que leva ao desprezo da gente
humilde ou a permitir-se toda espécie de luxo”, origem de “injustiças manifestas”,
muitas vezes, respaldadas “por instituições e costumes, como no caso da escravidão,
dos empréstimos e dos impostos, de modo a originar uma “injustiça legalizada” (SICRE,
1990, p. 186)5.

Amós parece supor um estado de injustiça generalizada nos diversos estratos sociais.
Não apenas acusa os juízes e dirigentes de perverterem a justiça (5,12.15), mas
também recrimina o público em geral porque, ao invés de se interessar em melhorar
a situação dos pobres, os roubavam e lhes tiravam a possibilidade de conseguir suas
justas aspirações. Ainda mais, os desprezavam, pisoteavam, oprimiam e vendiam
como escravos. Consideravam-nos como mercadoria barata (2,6-7; 4,1; 5,11.12;
8,4.6). Mas o que, para Amós, faz transbordar a taça da iniquidade era que os
poderosos impediam os profetas de falar (2,12) (NARDONI, 1997, p. 111).

4. As vítimas da injustiça e seus “rostos”

Sicre (1990, p. 189-195), do mesmo modo, elenca as vítimas da injustiça


perpetrada pelas classes privilegiadas de uma sociedade de exclusão, onde os
pequenos se viam impotentes em face de seus carrascos.
a. O ´ebyôn (necessitado, indigente), “o socialmente frágil” (SCHWANTES, 2013,
p. 34), transformado em mercadoria, tinha o valor de “um par de sandálias”
(Am 2,6; 8,6); sofria os maltratos das mulheres ricas da Samaria (Am 4,1); era
defraudado em seus direitos (Am 5,12) e pisado pelos comerciantes
gananciosos (Am 8,4).

5
“As críticas de Amós ao Estado tributário em Israel enfocam, no concreto, os três âmbitos dessa
instituição: o exército, o culto nos santuários estatais e a ‘dolce vita’ na corte citadina em Samaria. O
exército funciona como instância coercitiva e a religião nos santuários estatais tende a legitimar
religiosamente os tributos que se tornam abusivos” (REIMER, 1992, p. 53). [Inverti a ordem original das
frases para melhor se adaptarem a essa nota.]
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b. O dal (fraco, pequeno, de escassos bens), cuja cabeça era pisada “sobre o pó
da terra” (Am 2,7), “forma plástica de mostrar como o humilde era
maltratado” (SOGGIN, 1982, p. 75), sofria a opressão das madames
samaritanas (Am 4,1); era pisoteado pelos juízes iníquos que lhe tomavam o
tributo de trigo (Am 5,11); padecia a violência de ser comprado a troco de
dinheiro (Am 8,6)6.
c. O `anaw (humilde, piedoso) não tem seu direito reconhecido, pois os
opressores “desviam o seu caminho” (Am 2,7), de modo a ser exterminado
da terra pela ação de seus exploradores (Am 8,4).
d. O sadîq (cidadão livre, com direito à justiça e ao culto7), vocábulo também
traduzido por justo, ao perder sua liberdade, vê-se na deprimente situação
de ser vendido por dinheiro (Am 2,6) e vilmente explorado (Am 5,12).
e. A na´ara (moça, jovem), reduzida à condição de escrava por dificuldades
financeiras familiares ou adquirida como despojo de guerra, era abusada
sexualmente por pais e seus filhos, sem nenhum respeito, numa evidente
“profanação do nome santo de Deus” (Am 2,7)8.
f. O mokih (defensor do próprio direito) é odiado pelos juízes iníquos, a quem
acusa por seu desvio de conduta, em aberto desrespeito ao querer divino
(Am 5,10). “Os poderosos odeiam a justiça pois esta é a única que pode fazer
prevalecer os direitos do pobre sobre os poderosos e por isso procuram
pervertê-la” (CATARINO, 2014, p. 34).
g. O dober tamîm (íntegro, correto, verdadeiro) igualmente sofre as
consequências de sua boa conduta, quando confrontado por juízes
perversos, desprovidos do senso da justiça (Am 5,10).

O vocabulário variado com o qual Amós designa os pobres tem um conteúdo


concreto: refere-se a uma realidade social de indigência e de vulnerabilidade. Visam-
se menos indivíduos que um grupo social cuja emergência se explica pelo contexto
econômico, em particular o processo de enriquecimento de grupos próximos do
poder, que criam uma ruptura no equilíbrio da sociedade (FOURNIER-BIDOZ, 1994,
p. 51).

Schwantes (2004, p. 90-96) reconhece que os pobres referidos por Amós “não são
mendigos”, “não são propriamente escravos”, “não são gente da cidade”. Tratando-se
de pessoas com o direito de apresentar seus pleitos na porta da cidade (Am 5,12.15),
deveriam ser “homens livres”, com “acesso à terra, à herança”, que se tornaram “a fonte
das riquezas citadinas”. Podem ser caracterizados como “gente empobrecida”, por ter
sido explorada, num processo de pauperização. São “lavradores empobrecidos”, que se

6
Nessa categoria “incluem-se não apenas aqueles que são carentes de bens materiais (Lv 14,21; Ex 30,15),
mas também os enfraquecidos fisicamente (2Sm 13,4), os magros (Gn 41,19), os politicamente
insignificantes (Jz 6,15; 2Sm 3,1) e, em todo caso, também quem sofre uma fraqueza espiritual e moral (Jr
5,4, em paralelo com quem não conhece o caminho do Senhor)” (SIMIAN-YOFRE, 2002, p. 52).
7
Para Sicre (1990, p. 192), “ao perder o direito de participar no culto, na justiça e no exército, perdem
também a relação imediata com Deus, pois Javé, como Deus de Israel, é o Deus de seus homens livres”.
8
“A moça não é apresentada como meretriz nem como prostituta sagrada; parece ser uma moça israelita
desonrada por essa dupla relação. [...] Por se tratar de uma israelita [...], sua desonra redunda em desonra
do nome santo, que quis honrar e garantir as relações sexuais honestas” (ALONSO SCHÖKEL; SICRE DIAZ,
1980, p. 966; cf. ARANGO, 1992, p. 49-51).
9

veem às voltas como compradores inescrupulosos, que não valorizam o fruto do


trabalho alheio. “Os roceiros empobrecidos ficavam à mercê da própria violência física
dos mais abastados”. A palavra “oprimidos”, decorrente de Am 3,9, parece aglutinar o
conjunto de pessoas de quem o profeta se torna solidário. “As pessoas sofredoras não
são, pois, uma grandeza fortuita e amorfa. Não parecem ter sido citadas ao acaso”.
Uma sociedade claramente cindida revela-se nas entrelinhas da profecia amoseana.
A cisão entre pobres e ricos, opressores e oprimidos, privilegiados e penalizados
contradiz o ideal de uma sociedade de irmãos e irmãs, em conformidade com a fé de
Israel. O crivo teológico ao qual o profeta submete a sociedade samaritana move-o a
tomar partido de quem sofre as consequências da ganância dos ricos, da corrupção dos
juízes e da perversidade dos que respaldam uma realidade social incompatível com o
ideal de fraternidade. Uma sociedade alicerçada na injustiça está fadada a desaparecer!

5. A sorte de uma sociedade sem direito e sem justiça

O profeta anuncia, sem meias palavras, o futuro da sociedade segmentada pela


injustiça perpetrada contra os fracos e indefesos, tanto Israel quanto os reinos das
redondezas9.

“O profeta está longe de querer agradar seus ouvintes. Pelo contrário, quer tirá-los
do torpor de uma religião onde Deus é reduzido às dimensões de um ídolo sem poder
de mover os fiéis a praticar a justiça. O foco de suas críticas volta-se para o modo de
agir do povo, mormente da liderança praticante de um culto equivocado” (VITÓRIO,
2016, p. 179).

No horizonte das nações vizinhas de Israel, Amós vê irromper um fogo voraz que
reduzirá a cinzas “a casa de Hazael e os palácios de Ben-Adad” de Damasco, tendo como
consequência o extermínio ou a deportação da população da capital (Am 1,4-5). Um
fogo devorará também “as muralhas de Gaza e seus palácios”; as cidades ao redor e
seus governantes, similarmente, serão alcançadas pelo braço do castigo (Am 1,7-8). As
“muralhas de Tiro e seus palácios” serão igualmente consumidos pelo fogo (Am 1,10).
Idêntico destino terá Edom (Am 1,12). Quanto a Amon, será ateado fogo nas muralhas
da capital, que consumirá seus palácios, e seus habitantes verão o rei ser conduzido para
o exílio junto com a liderança do povo (Am 1,14-15). Moab padecerá o castigo do fogo
que consumirá os palácios e matará seus habitantes, juntamente como o juiz e seus
chefes (Am 2,2-3). A insistente alusão ao fogo que tudo consome não deixa margem
para dúvida em relação ao pensamento do profeta no tocante ao destino de quem
espezinha sem compaixão os seres humanos indefesos.
O leitor de Amós, em face da descrição da trágica sorte dos reinos vizinhos, pode
imaginar o que está preparado para Israel, a quem Deus enviou o profeta com a missão
de denunciar os pecados. De fato, o profeta tem palavras certeiras para falar do que
espera a sociedade que se recusa a fazer o direito e a justiça como pauta de seu agir.
À listagem das graves faltas de Israel (Am 2,6-8) segue o anúncio do que o espera. A
imagem do chão esmagado, “como o esmaga uma carroça cheia de feixes”, sublinha a

9
Carrière (2010, p. 351) considera que “os oráculos de Amós surgiram da consciência de um fim
próximo e incontornável”.
10

profundidade da futura destruição (Am 2,13)10. O oráculo de condenação volta-se,


então, para o exército, instituição a serviço da manutenção do status quo, cujo futuro
será de dispersão, pois “de nada servirá a fuga ao ágil, o forte não manterá sua força e
o valente não porá a salvo sua vida. O que segura o arco não ficará de pé, o de pernas
ágeis não se porá a salvo, o que monta o cavalo não porá salvo sua vida; e o mais
corajoso entre os valentes fugirá nu, naquele dia” (Am 2,14-16). O leitor-ouvinte pode
imaginar a cena de um exército bem armado e adestrado sendo surpreendido por um
terremoto. A coragem, a valentia e a agilidade serão inúteis para salvar os combatentes.
A imagem militar da destruição ocorre em Am 5,3: “A cidade que sai à guerra com mil
ficará com cem; e a que sai com cem, ficará com Deus, na casa de Israel”. “O exército é
especialmente visado. É o grupo mais malhado pelos prenúncios. [...] Entre os povos o
exército é o principal culpado” pela perpetuação da injustiça (SCHWANTES, 2004, p. 63
– grifo do autor).
O terremoto, da mesma forma, é evocado ao se falar do castigo a ser infligido aos
comerciantes insensíveis no trato com as pessoas privadas de seu direito. “A terra
estremecerá e estará de luto todo o que nela habita. Como o rio toda ela se levantará,
e se agitará e se abaixará como o rio do Egito” (Am 8,8; 9,5). Os alicerces da sociedade
serão abalados!
Os “filhos de Israel e todo clã que eu fiz subir da terra do Egito” receberão o castigo
“por todas as vossas culpas”, por se recusarem a trilhar os caminhos do Senhor, embora
tenham sido escolhidos “dentre todos os clãs da terra” (Am 3,1-2). A consciência de ser
povo eleito mostrou-se incapaz de gerar um modo de proceder compatível com o querer
divino.
O conteúdo dos oráculos contra as nações vizinhas de Israel aplica-se também aos
samaritanos agentes de opressão, “que entesouram violência e destruição em seus
palácios” (Am 3,9-10). Um inimigo haverá de privá-los do poder, além de saquear seus
palácios (Am 3,11).
O culto encobridor de injustiças será eliminado, quando o Senhor castigar os altares
de Betel, arrancar os chifres do altar e lançá-los por terra (Am 3,14). Então, os ricos serão
privados de suas casas de inverno, casa de verão, casas de marfim, pois “as grandes
casas desaparecerão” (Am 4,15). O acúmulo de bens às custas da exploração dos pobres
se mostrará inútil, pois os ricos serão reduzidos à mais total indigência. A riqueza fruto
da injustiça mostra-se inútil para garantir o futuro dos ricos castigados por Deus. Isso
acontecerá com as “vacas de Basã”, quando forem levadas com ganchos e arpões e
“saírem pelas brechas, uma por uma, lançadas em direção do Hermon” (Am 4,2-3).
Os santuários deixarão de ser lugares privilegiados de encontro com o Senhor,
penhor de vida e salvação.

Os caminhos percorridos em direção aos santuários de Betel, Berseba, Gilgal ou


Jerusalém, ao invés de aproximarem os peregrinos de Javé, distanciavam-nos cada
vez mais. Estamos diante de pessoas que exploravam a revelação divina a serviço de
seus próprios interesses. Narcotizavam suas mentes de tal maneira que passavam a
utilizar, consciente ou inconscientemente, a religião para justificarem seus atos de
injustiças no trato com seus semelhantes (ROSSI, 2018, p. 87).

10
“A carroça, pesadamente carregada, que cava profundas fendas na terra que ela sulca, pronta a se
quebrar, seria uma alusão ao terremoto que provoca rachaduras na terra” (BOVATI; MEYNET, 1994, p. 49;
Am 1,1).
11

Portanto, torna-se inútil buscar o Senhor em Betel, Guilgal ou Bersabeia, pois aí


impera a iniquidade (Am 5,4-5). Por “converterem o direito em absinto e lançar por terra
a justiça”, correm o risco de ver o fogo penetrar na casa de José, “sem que haja em Betel
quem o apague” (Am 5,6-7). As festas, as assembleias, as oferendas, os sacrifícios, o
vozerio dos cantos, a música das arpas serão desconsideradas pelo Senhor, que rejeita
tudo isso por ser incompatível com a injustiça que campeia no país (Am 5,21-23). Na
longa caminhada de quarenta anos pelo deserto, o Senhor jamais exigiu de seu povo
“sacrifícios e oferendas”; mesmo assim o protegeu e o guiou à Terra Prometida (Am
5,25). Deus não se compraz com o culto e, sim, com o modo de proceder fundado no
direito e na justiça, que devem fluir como água e como torrente inesgotável (Am 5,24).

As tradições teológicas, entendidas de forma inconsequente e leviana, eram


insuficientes para garantir um futuro cheio de êxitos para Israel. O elevado
componente ético daquelas tradições deveria ser levado em consideração, se se
quisesse garantir a sobrevivência histórica do povo eleito (VITÓRIO, 2003, p. 134).

Como isso não acontece, o Deus dos exércitos deportará seu povo “para além de
Damasco”, privando-o de habitar na Terra da promessa (Am 5,27). Sorte semelhante
terá quem “se deita em leitos de marfim e estão estirados em seus divãs”, num estilo de
vida cínico, comparado à situação dos explorados (Am 6,4-6). “Serão deportados à
frente dos deportados”, pondo-se fim à sua vida nababesca e inconsequente (Am 6,7).
“A cidade e tudo o que há nela” serão entregues nas mãos dos pilhadores, de modo que
ficará deserta, pois “se restarem dez homens em uma casa, todos eles morrerão”, não
sobrando um sobrevivente sequer (Am 6,9-10). O Senhor “abaterá a casa grande,
deixando-a em escombros e a casa pequena, fazendo-a em pedaços” (Am 6,11). O
Senhor agirá por meio de “uma nação que vos tiranizará desde a entrada de Emat até a
torrente de Arabá” (Am 6,14). A motivação do castigo divino é sempre o mesmo:
“Convertestes em planta venenosa o direito e o fruto da justiça em absinto” (Am 6,12).

A imagem de Deus subjacente à visão de futuro do profeta é facilmente perceptível.


Trata-se de um Deus atento à história humana, preocupado com o que aí acontece
com os empobrecidos. Exige de seus adoradores uma conduta ética, cujas pautas
são o direito, a misericórdia e a justiça. O culto não é a melhor forma de se relacionar
com ele, quando encoberta a maldade praticada contra os indefesos (VITÓRIO, 2011,
p. 84).

Os promotores de injustiça com a corrupção nos tribunais visando a se enriquecerem


serão privados de usufruir a riqueza acumulada. “Vos que construístes casas de pedra
lavrada não as habitareis; plantastes vinhas seletas, mas não bebereis o seu vinho” (Am
5,11). As “muitas transgressões” e os “graves pecados”, por meio dos quais alcançaram
bem-estar econômico e social, atraem o castigo inexorável (Am 5,12).
Até mesmo o rei e o sacerdote do santuário real estiveram na mira dos castigos
prenunciados pelo profeta. “Jeroboão morrerá pela espada, e Israel será realmente
deportado de seu território” (Am 7,11). Para o sacerdote Amasias, posto a serviço do
sistema na condição de chefe do culto no santuário real de Betel, o profeta tem palavras
duras. “Tua esposa se prostituirá na cidade e teus filhos e tuas filhas cairão pela espada;
teu território será repartido a cordel, tu morrerás em território impuro e Israel será
12

realmente deportado de seu território” (Am 7,17). Trágico fim para um servidor de
Deus!
Haverá “em todas as praças, lamúrias; e em todas as ruas dizem: ´Ai! Ai!´” e o
agricultor será “chamado para o luto” e “os que conhecem cantos fúnebres” serão
convocados para fazer lamentações, quando o Senhor passar no meio do povo (Am 5,16-
17). A intervenção de Deus na história será contundente. “Converterei vossas festas em
luto e todos os vossos cantos em lamentação. Vestirei a todos com pano de saco e
tornarei calva toda cabeça. Estabelecerei isso como luto pelo filho único e seu fim será
como um dia amargo” (Am 8,10). Então, de nada valerá buscar o Senhor, pois não se
deixará encontrar (Am 8,11-12). No momento oportuno, quando Israel foi advertido de
várias maneiras, na tentativa de que voltasse ao Senhor, “não voltastes a mim” (Am 4,6-
12). Tendo chegado ao fim o tempo da paciência divina, resta a Israel uma só coisa:
“Prepara-te para encontrar o teu Deus” (Am 4,12), de cuja presença será impossível
escapar (Am 9,1-4).
Uma imagem pastoril ilustra a sorte de Israel. “Como um pastor arranca da boca de
um leão duas pernas ou um pedaço de orelha, assim serão arrancados os filhos de Israel
que se assentam em Samaria, na borda de um leito ou num divã de damasco” (Am 3,12).
A metáfora faz alusão a Ex 22,12 para retratar a situação da Samaria. “O leão
corresponde ao exército inimigo, mas, ao mesmo tempo, trata-se do Senhor que pune
a injustiça de Israel tratando-o como presa dos predadores” (BOVATI; MEYNET, 1994, p.
81). Para Simian-Yofre (2002, p. 73), “o acento da comparação não se coloca sobre a
identidade dos que serão poupados (alguns israelitas que habitam na Samaria) nem
sobre o fato de terem sido salvos, mas sobre as dimensões da destruição”.
O profeta aponta uma saída na eventualidade de uma conversão com gestos
concretos. Se Israel odiar o mal e amar o bem e estabelecer o direito nos julgamentos
que acontecem na porta da Samaria, “talvez o Senhor, Deus dos exércitos, se
compadeça do resto de José” (Am 5,15)11. Portanto, o futuro de Israel depende de uma
opção, que está nas mãos das lideranças, desafiadas a mudar a sorte dos empobrecidos
e oprimidos por uma guinada radical no trato com eles.

6. A voz do profeta ressoa na América Latina

Tão longe no tempo e no espaço, a pregação e o testemunho do profeta Amós


revelam-se atuais em se tratando de inspiração para a vivência da fé cristã no continente
latino-americano. Sob muitos aspectos as estruturas sociais, políticas, religiosas e
econômicas do passado repetem-se no presente.
O escândalo da concentração de rendas nas mãos de uns poucos em detrimento de
imensas faixas da população supera hiperbolicamente aquela do séc. VIII a.C., na
Samaria. A escancarada existência de ricos cada vez mais ricos e pobres cada vez mais
pobres clama os céus.
A corrupção do poder judiciário, tendente a julgar em favor dos poderosos e
endinheirados, bem como, a dificuldade de acesso dos mais pobres aos tribunais para

11
“Talvez se pressuponha que Israel tenha sido, afinal, reduzido apenas ao planalto central, tendo perdido
os territórios da Galileia e das planícies (José é, de fato, o nome coletivo de Efraim e Manassés, que
habitavam tal planalto)” (SOGGIN, 1982, p. 121).
13

garantir seus direitos faz com que a injustiça cometida contra eles seja encoberta com
o manto da impunidade.
O neoliberalismo com o seu dogma do lucro obtido a qualquer custo, acoplado à
ideologia da pós-modernidade e sua supervalorização do consumo e do prazer, abre
espaço para a ganância dos comerciantes, inescrupulosos em sua praxe de enganar os
incautos consumidores no preço, na medida, na qualidade e na quantidade. O lucro
obtido pelo caminho do engano não faz pesar a consciência de quem explora.
A triste realidade do tráfico e do comércio de seres humanos, mormente mulheres,
uma das grandes fontes de lucro no mercado internacional, corresponde a uma chaga
incurável no coração da humanidade. A violência sexual de pais e filhos servindo-se da
mesma jovem empregada, sem qualquer direito, encontra paralelos em milhões de
mulheres prostituídas, sem qualquer direito ou respeito por sua dignidade,
transformada em fábricas de prazer para clientes ávidos.
O fenômeno da escravidão também se perpetua numa incontável multidão de
homens e mulheres fadados a trabalhar em condições subumanas, como se fossem
escravos, para saciar a ganância de latifundiários e empresários, mas também, nas
mansões das famílias ricas, onde se encontram as “vacas de Basã” modernas, que lhes
negam os direitos mínimos de trabalhadores. São muitas as capas que encobrem a
escravidão, impedindo que lhe seja dado o verdadeiro nome: trabalhadores sem carteira
assinada, prestadores de serviço cujo pagamento está aquém do que merece,
trabalhadores sazonais trazidos de longe e obrigados a se contentarem com o mínimo
em vista de economizar dinheiro a ser enviado às famílias etc.
A religião tem sido instrumentalizada em favor da manutenção do status quo,
gerando falsa segurança tanto na consciência dos agentes da injustiça, travestidos de
líderes religiosos, quanto na consciência das milhões de pessoas que se deixam iludir
com suas promessas de riqueza e prosperidade. A injustiça deu origem a um estilo de
religião totalmente aderente a seu esquema desumanizador.
Fica a pergunta: Onde estão os Amós latino-americanos, prontos a lutar pelo direito
e pela justiça em favor dos mais pobres? Onde está quem, em nome da fé, coloca-se na
contramão dos esquemas perversos de opressão, abençoados e confirmados por um
modelo de religião feito de propósito para justificar a injustiça que vitimiza os mais
pobres? Onde estão as mentes lúcidas capazes de discernir a realidade e perceber o
triste fim de um projeto de sociedade que exclui e marginaliza os estratos inferiores,
fadado a se contentar com as migalhas que caem da mesa dos ricos?
Voltar ao testemunho do pastor de Técoa será uma opção sensata para os discípulos
e discípulas de Jesus de Nazaré, comprometidos com o advento do Reino de Deus.

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