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Canto X

Recomendações finais (uso da apóstrofe e de atos de fala diretivos) e oferta dos seus serviços
(Poeta) ao Rei D. Sebastião, apelando à sua benevolência, pretendendo por ele ser aceite, assim
como o seu “canto” (epopeia), daí a insistente valorização da arte (em que se inclui a Literatura) e
a crítica aos antecessores deste rei e a ilustres seus contemporâneos, que a não valorizaram.

Estrofes 145-148 (Já saíram em exame) - O poeta confessa-se cansado de “cantar a gente surda e
endurecida” que não sabe apreciar o seu canto épico, que não reconhece nem se orgulha dos letrados, mas
antes anda “metida / no gosto da cobiça e na rudeza / Dhua austera, apagada e vil tristeza”. Ou seja,
mostra-se cansado da imagem do Portugal de então, que ele apresenta com alguma mágoa e até sarcasmo,
azedume. O poeta exorta D. Sebastião a ser grande e a continuar os feitos grandiosos dos seus
antecessores, lembrando-lhe que tem “vassalos excelentes”, que demonstram grande força e coragem,
pois enfrentam perigos, obedecem às suas ordens com prontidão e alegria, e farão dele sempre um
vencedor e não um vencido.

Nota: A parte que se segue ainda não saiu em


exame.
149- Por isso (Rei) deveis protegê-los, recebê-los
bondosamente e aliviá-los de leis pesadas: é esse
149 procedimento que leva à santidade. Deveis
Favorecei-os logo, e alegrai-os escolher para vossos conselheiros os homens
Com a presença e leda humanidade; que juntam a experiência ao valor, porque esses
De rigorosas leis desalivai-os, sabem as oportunidades das coisas.
Que assi se abre o caminho à santidade.
Os mais experimentados levantai-os, (O caminho para a santidade é tratar os homens
Se, com a experiência, têm bondade com humanidade. Para entender este verso é
Pera vosso conselho, pois que sabem preciso ter em conta que outros «caminhos de
O como, o quando, e onde as cousas cabem. santidade», como a castidade, a severidade da
justiça, eram inculcados a D. Sebastião por
150 conselheiros que Camões ataca noutros
Todos favorecei em seus ofícios, momentos.)
Segundo têm das vidas o talento*;
Tenham Religiosos exercícios 150. Favorecei cada um segundo o seu ofício e
De rogarem, por vosso regimento, vocação. E que os clérigos se ocupem em rezar e
Com jejuns, disciplina, pelos vícios fazer penitência pelos pecados de todos,
Comuns; toda ambição terão por vento, deixando (pondo de lado) qualquer ambição de
Que o bom Religioso verdadeiro glória ou dinheiro.
Glória vã não pretende nem dinheiro. *vocação

151- Estimai os cavaleiros, pois não só alargam a


fé à custa do seu sangue mas também o império
do rei. E os que o vão servir em regiões remotas
vencem dois inimigos: os homens que os atacam
e os padecimentos que sofrem.
151
Os Cavaleiros tende em muita estima,
Pois com seu sangue intrépido e fervente 152. Fazei, Senhor, que nunca Alemães,
Estendem não sòmente a Lei de cima, Franceses, Italianos e Ingleses, possam dizer
Mas inda vosso Império preminente. que os Portugueses foram feitos para ser
Pois aqueles que a tão remoto clima mandados e não para mandar. Tomai conselho
Vos vão servir, com passo diligente,
só com homens experientes, porque os teóricos
Dous inimigos vencem: uns, os vivos,
podem saber muito, mas só os práticos
E (o que é mais) os trabalhos excessivos.
entendem das coisas concretas.
152
(Alguns ministros do rei eram acusados de
Fazei, Senhor, que nunca os admirados
Alemães, Galos, Ítalos e Ingleses, abuso de poder. No canto VIII, estrofe 99, e no
Possam dizer que são pera mandados, canto IX, estrofes 28 e 93, Camões ataca a
Mais que pera mandar, os Portugueses. “tirania” que faz leis em favor do rei e contra o
Tomai conselho só d' experimentados*, povo. Quanto aos povos nomeados é uma
Que viram largos anos, largos meses, referência à sua rebeldia em relação ao poder
Que, posto que em cientes muito cabe,
papal em contraste com a obediência
Mais em particular o experto sabe.
*experientes portuguesa.)

153. Podeis ver como Aníbal seria do distinto


filósofo Formião, quando este lhe falava em
153
De Formião, filósofo elegante, coisas de guerra. A arte da guerra não se
Vereis como Aníbal escarnecia, aprende nos livros nem na fantasia, mas na
Quando das artes bélicas, diante experiência, vendo, tratando e pelejando
Dele, com larga voz tratava e lia. (lutando).
A disciplina militar prestante
Não se aprende, Senhor, na fantasia, 154. Mas quem sou eu, humilde, baixo, rude,
Sonhando, imaginando ou estudando, por vós não conhecido nem sonhado? Mas é da
Senão vendo, tratando e pelejando. boca dos humildes que saem por vezes os mais
perfeitos louvores. Não me falta na vida
154
honesto estudo, misturado com longa
Mas eu que falo, humilde, baxo e rudo,
De vós não conhecido nem sonhado? experiência e com talento (expresso neste livro,
Da boca dos pequenos sei, contudo, nesta epopeia), aspetos que raramente se
Que o louvor sai às vezes acabado. veem juntos ou conjugados.
Nem me falta na vida honesto estudo,
Com longa experiência misturado, 155. Tenho braço para vos servir, mente para
Nem engenho, que aqui vereis presente, vos cantar. Só me falta ser aceite por vós. Se o
Cousas que juntas se acham raramente. Céu me conceder isso, e vós vos lançardes em
empresa digna de ser cantada, (como já se
adivinha que vai suceder, dada a vossa
155 inclinação),
Pera servir-vos, braço às armas feito,
Pera cantar-vos, mente às Musas dada;
Só me falece ser a vós aceito,
De quem virtude* deve ser prezada.
Se me isto o Céu concede, e o vosso peito
Dina empresa tomar de ser cantada,
Como a pres[s]aga mente vaticina
Olhando a vossa inclinação divina, 156. Ou fazendo com que o Atlas, perante a
vossa vista, trema ainda mais do que tremeu
*mérito pessoal quando a vista da Medusa o petrificou (o
transformou num monte), ou conquistando o
156
Império Marroquino, prometo que a minha lira
Ou fazendo que, mais que a de Medusa,
A vista vossa tema o monte Atlante, vos cantará de tal modo que sereis considerado
Ou rompendo nos campos de Ampelusa* um novo Alexandre, que não terá que invejar a
Os muros de Marrocos e Trudante, sorte de Aquiles.
A minha já estimada e leda Musa
Fico que em todo o mundo de vós cante,
De sorte que Alexandro em vós se veja,
Sem à dita de Aquiles ter enveja.
*Terra de Marrocos

Análise global das estrofes finais (144 a 156) do Canto X

Na estância 144, narra-se o regresso dos marinheiros portugueses à sua pátria - concretamente a
Lisboa (“Até que houveram vista do terreno / Em que naceram…”) -, numa viagem que decorreu
tranquilamente, pois o tempo estava ameno (“Com vento sempre manso e nunca irado…” - v. 2) e o mar
calmo (“… cortando o mar sereno…” - v. 1). Entre os versos 5 e 8, o poeta alude ao prémio e à glória que os
marinheiros, com os seus feitos, alcançaram e que agora vêm entregar ao rei para seu engrandecimento e
da Pátria (“E à sua pátria e Rei temido e amado / O prémio e glória dão (…) / E com títulos novos se
ilustrou.” - vv. 6-8).
Nos primeiros quatro versos da estância 145, o poeta começa por se mostrar cansado, desiludido e
incompreendido (“a Lira tenho / Destemperada e a voz enrouquecida” - vv. 1-2), não pelo canto em si, mas
por “Cantar a gente surda e endurecida” (v. 4) (isto é, gente que não escuta as suas palavras, não valoriza o
seu poema épico, não reconhece o seu talento e mérito), visto que está corrompida pela “cobiça” e num
estado de tristeza, desânimo e apatia (“… a pátria, não, que está metida / No gosto da cobiça e na rudeza /
Duma austera, apagada e vil tristeza.” - vv. 6 a 8), o que origina uma ausência de fervor patriótico e ânimo:
“Não tem um ledo orgulho e geral gosto, / Que os ânimos levanta de contino / A ter pera trabalhos ledo o
rosto.” (vv. 2 a 4 da estância 146).
O poeta mostra-se cansado e desiludido («Nô mais, Musa, nô mais, que a Lira tenho / Destemperada e
a voz enrouquecida...» - est. 145, vv. 9-10) por o seu canto não ser escutado pela «gente surda e
endurecida», que não reconhece o seu talento e o mérito, ocupada que está na satisfação da «cobiça», com
vista a saciar o seu espírito materialista.
Por outro lado, o poeta mostra-se orgulhoso dos «vassalos excelentes» (o extraordinário povo
português que luta por causas maiores; os guerreiros e os navegadores), pois representam a glória, a
coragem e o espírito patriótico, dispondo-se a enfrentar os maiores perigos e a desenvolver os maiores
sacrifícios somente para engrandecerem o Rei e a Pátria («Olhai (...) / Quais rompentes liões e bravos
touros...» - est. 147, vv. 25-26; «Por vos servir, a tudo aparelhados / De vós tão longe, sempre
obedientes...» - est. 148, vv. 33-34).
Além disso, ele mostra-se espantado pela ausência de orgulho pátrio e de ânimo nos seus
contemporâneos, bem como pela cobiça e corrupção que os dominam («No gosto da cobiça e na rudeza /
Duma austera, apagada e vil tristeza.» - est. 145, vv. 15-16).
Perante este panorama, o sujeito poeta interpela o rei e exorta-o a reconhecer o valor dos seus
“vassalos excelentes”, os quais possuem as qualidades / virtudes necessárias à restauração da grandeza e
orgulho da Pátria:
a. coragem e determinação inexcedíveis (“Quais rompentes liões e bravos touros…” - est. 147, v. 26);
b. espírito de sacrifício e de missão, que os leva a enfrentar os mais diversos perigos e obstáculos (fomes,
vigias, guerras, climas adversos, naufrágios, a própria morte, para engrandecerem o Rei e a Pátria (“Que
vendecor vos façam, não vencido.” - est. 148, v. 40;
c. mostram-se sempre prontos, obedientes e felizes por poderem servir o rei (estância 148).
Os vassalos são apresentados como “vassalos excelentes” (est. 146, v. 8), “ledos” (est. 147, v. 1) e
caracterizados pela coragem e pelo espírito de sacrifício e de abnegação (est. 147). Além disso, mostram-se
“sempre obedientes” (est. 148, v. 2) e preparados para responder ao chamado e aos desejos do seu rei, que
executam “contentes” (est. 148, v. 4) e orgulhosos. Por outro lado, encarnam o espírito de cruzada (est.
151, vv. 1-4), revelando toda a sua coragem e resistência (est. 151, vv. 5-8).
É evidente, neste passo, o contraste que o poeta estabelece entre a situação presente da Pátria -
caracterizada pela cobiça, pela falta de ânimo e pela apatia - com o passado, representado pelos heróis que
ele canta / celebra, que se sacrificaram, enfrentando guerras e os perigos vários enumerados na estância
147, incluindo a própria morte, para engrandecer o rei e a Pátria.

Entre as estâncias 149 e 152, o poeta faz uma série de recomendações ao rei D. Sebastião:
a. recompensá-los, favorece-los e alegrá-los com a sua presença e trato alegre e humano;
b. aliviá-los de leis rigorosas, cruéis / injustas;
c. promover os mais experientes;
d. apoiá-los todos, sem distinção, nos seus ofícios (= profissões), que exercem segundo as suas aptidões, seja
qual for a área em que se distinguem;
e. estimar os que expandiram a fé cristã e o império (apelo ao espírito de cruzada) sem temer os inimigos nem
regatear esforços;
f. velar para que ninguém possa dizer que os Portugueses constituam uma nação servil, em vez de senhorial;
g. receber conselhos apenas dos homens experientes (neste passo, Camões valoriza o conhecimento prático
em detrimento do saber livresco - apesar de os estudiosos possuírem muitos conhecimentos teóricos, os
experientes sabem mais do concreto).
Este conjunto de características configura o perfil de líder, tendo em conta também o pedido do poeta
ao rei para que não permita que os estrangeiros 8alemães, franceses, italianos e ingleses) desvalorizem a
capacidade de os portugueses gerirem o seu destino.
Com estes conselhos, o poeta espera que o rei - neste caso, D. Sebastião - saiba incentivar os seus
vassalos, que apenas esperam a sua liderança para agir. Ele anseia que o monarca exerça o poder com
humanidade e a humildade de quem procura aconselhamento junto dos mais sábios e mais experientes.
Espera ainda que o soberano saiba estimular e aproveitar as energias latentes para dar continuidade aos
feitos do passado e dar matéria a novo canto. Isto significa que a obra termina com uma mensagem
globalizante que abarca o passado, o presente e o futuro, isto é, a glória do passado deverá ser tomada
como exemplo no presente para construir um futuro grandioso (in Plural 12, texto adaptado).

A estância 153 abre com uma alusão a Formião, filósofo grego que discursou diante do general Aníbal
sobre a arte de combater e que foi escarnecido por este. Essa referência funciona como exemplo para
constatar que a arte da guerra se aprende na prática, isto é, «vendo, tratando e pelejando» (v. 8), e não
teoricamente (“Sonhando, imaginando ou estudando” - v. 7).
Na estância 154, Camões traça o seu autorretrato:
a. “humilde baxo e rudo”;
b. possuidor de “honesto estudo”;
c. misturado com “longa experiência”;
d. possuidor de “engenho” / talento;
e. disposto a servir o rei em combate;
f. disponível para cantar o rei e os seus feitos.
Ora, este autorretrato corresponde ao do homem ideal do Renascimento:
i. possuidor de um saber feito de estudo e experiência (conciliação do saber teórico e do saber prático);
ii. detentor de talento e inspiração artísticos;
iii. possuidor da lealdade, da coragem e do desapego do bom soldado, sempre disponível para servir o seu rei.
Falta apenas ao poeta ser aceite pelo monarca, pois possui virtudes que devem ser reconhecidas. De
seguida, mostra a sua disponibilidade para cantar os seus feitos futuros (“… e o vosso peito / Dina empresa
tomar de ser cantada” - est. 155, vv. 5-6).
Na última estância, o poeta incentiva o rei a prosseguir a guerra de cruzada no Norte de África e
oferece-se para a cantar, assegurando-lhe que será cantado e os seus feitos em todo o mundo e que será
mais temido em Marrocos que tudo (observar a comparação hiperbólica dos versos 1 e 2 - Atlante teria
sido transformado em pedra pela visão da cabeça de Medusa, uma das três Górgonas, que transformava
quem a contemplasse em pedra). O próprio Alexandre Magno rever-se-ia em D. Sebastião, sem invejar a
glória de Aquiles, pois a do soberano português seria muito superior.
A finalizar a análise destas últimas estâncias do poema, ficam aqui as palavras de António José Saraiva,
no prefácio de uma das edições da obra:
“Na Dedicatória, o poeta convida o moço rei a «ver» os feitos dos seus vassalos, isto é, do Gama e seus
companheiros, como se estivessem a ocorrer diante dos olhos de ambos. Há nela também referências ao
tema da Cruzada. Só depois se segue a ação. E, no final do poema, o autor volta a dirigir-se ao rei numa
longa conclusão de 10 estrofes e meia, em que outra vez o exorta a «olhar» os seus vassalos, lhe dá vários
conselhos e o incita à guerra de cruzada próxima, que o autor se oferece para cantar. Assim, a narração
insere-se entre as duas falas ao rei. O poema poderia ser interpretado como um longo discurso feito a D.
Sebastião, que é diretamente interpelado no começo e no fim.”

Com base nestas intervenções, esta epopeia pode ser vista como obra didática, na qual se estabelece um
modelo de valores que devem ser considerados como uma teoria, definindo normas morais a seguir,
enfim, um texto que critica os vícios que assolam a sociedade da época, propondo aos portugueses,
contemporâneos de Camões, que corrijam os seus vícios para atingirem um nível superior de
humanidade, ou, melhor dizendo, a perfeição.

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