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Estudante: Marcos Roberto Ribeiro de Freitas.

TEIXEIRA, Carla Costa. A honra da política: decoro parlamentar e cassação de


mandato no Congresso Nacional (1949 –1994). Rio de Janeiro, Relume-Dumará /
NuAP - Coleção Antropologia da Política, 1998.

O presente texto tem por objetivo explicitar de maneira sistematizada uma breve
reflexão sobre a tese de doutorado da pesquisadora Carla Costa Teixeira defendida no
ano de 1997, orientada por Mariza Peirano, intitulada: A honra da política – Decoro
parlamentar e perda de mandato no congresso nacional (1949-1994). Não é intenção
do texto uma resenha sobre o conteúdo especificamente, mesmo que certas questões
precisem ser contempladas para melhor entendimento da pesquisa como um todo.
Privilegiaremos o foco em questões relacionadas a estruturação da tese, sua proposta,
seus argumentos, vínculos com as fronteiras do conhecimento já estabelecidas, entre
outras estratégias analíticas e metodológicas presentes. As questões até aqui
pronunciadas estarão também em diálogo com debates e leituras conduzidas na ocasião
do curso de Teorias e Métodos Avançados de Pesquisa em Sociologia, realizado no
Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal Fluminense.

O texto da pesquisadora se destaca pela clareza na forma como manifesta todas


as questões relacionadas a proposta de sua investigação sociológica. A primeira frase
do texto exprime, de forma resumida, porém consistente, o objeto de pesquisa, o
objetivo central e o caminho a ser tomado para alcançar tal objetivo. A pesquisa
consiste em: a partir de uma perspectiva antropológica compreender as conexões
fundamentais entre honra e política. Delimitada a questão central – relação entre honra
e política – a autora passa a delimitar o objeto empírico que será analisado já que honra
e política são abstrações, conceitos que podem ser identificados, parcialmente, em
distintas manifestações empíricas. No mesmo esforço científico empreendido por
Durkheim em “Da Divisão do Trabalho Social” ao identificar as formas de
solidariedade que produzem coesão social, manifestas no Direito; a antropóloga volta
seu olhar para a representação política no Congresso Nacional e para o decoro
parlamentar, dispositivo jurídico normativo descrito no artigo 55 da Constituição
Federal, e presente no regimento interno de cada uma das casas do Congresso Nacional.
Acerca dos caminhos que conduziram a pesquisadora a seu tema e seu objeto,
é importante ressaltar que muitas vezes - arrisco insinuar que na maioria das vezes - a
construção do objeto de pesquisa pode passar por desvios de rota, imprevistos inclusive
bem-vindos, que irão dar mais clareza e consistência a proposta do pesquisador. Carla
Teixeira revela que seu interesse inicial na questão do exercício da representação
política acabou por definir o campo no qual desenvolveria sua pesquisa, mas o foco na
questão do decoro surge no curso de sua investigação. Aqui, ressalta-se a importância
do pesquisador de estar aberto as novidades que o próprio desenrolar da pesquisa irá
trazer, mas não no sentido de que o campo ou o material empírico dirá algo por si só,
tendo em vista que o objeto se constrói a partir das mediações feitas pelo pesquisador
- com seu referencial teórico prévio – e os dados que a empiria poderá trazer. No caso
da pesquisa em questão, a leitura dos processos de cassação de mandatos oriundos da
“CPI do Orçamento” revelou a centralidade da figura do decoro parlamentar. Temos
assim o estabelecimento concreto do material empírico que será trabalhado pela
pesquisadora: processos de cassação de mandatos que envolvem a questão do decoro.
Demarca, assim, os limites referentes as questões presentes nos referidos processos em
termos de conteúdo, e delimita também o recorte temporal já que, em sua pesquisa,
identifica a primeira vez que a categoria “decoro parlamentar” foi acionada, no ano de
1949 contra o deputado Barreto Pinto. Dessa forma, propõe-se a analisar todos os
processos motivados pela questão do decoro parlamentar entre 1949 e 1994.

Se é a partir da leitura desses processos que a autora da tese poderá extrair as


informações relevantes para construção da sua tese, tal construção só se torna possível
quando as informações são pensadas a partir de um quadro teórico que reúna os
argumentos necessários para construir respostas para as perguntas que a autora está se
fazendo. Desse modo, Carla Teixeira passa a desenvolver melhor - após apresentar ao
leitor o problema de construção do objeto de pesquisa – como seu trabalho se vincula
ao corpo de conhecimento já produzido nas ciências sociais.

Teixeira se propõe a uma investigação que dialoga com a compreensão


weberiana da política. Segundo a própria autora o estudo se presta a estudar a partir da
antropologia uma certa categoria específica do universo político brasileiro: decoro
parlamentar. Em seguida passa a descrever e caracterizar o decoro parlamentar como
um dispositivo útil para pensar algumas relações e valores vigentes no mundo político
brasileiro. Trata-se então de um exercício intelectual em que a categoria é pensada a
partir de um conjunto de referência não para ser explicitada por si só, mas para que as
relações presentes naquele universo possam ser mais bem compreendidas.

Para realizar o diálogo entre a reflexão weberiana e a perspectiva apresentada


em sua tese acerca do decoro parlamentar, a autora assume um acesso à Weber a partir
das análises de um especialista no pensamento weberiano, Wolfgang Schluchter. Além
do autor mencionado, o trabalho se ancorou em outros como Wright Mills e Gerth
(Weber 1974), Tragtenberg (Weber 1980 e 1993) e Gabriel Cohn (Weber 1986).
Através da interpretação de Schluchter, a autora demonstra como a perspectiva
weberiana se conecta com a questão do decoro parlamentar ao observar como a esfera
política distingue-se conceitualmente das outras por operar em termos de honra e
vergonha. Ao tratar da noção de “pessoa”, a autora distancia-se de uma polaridade
entre indivíduo e pessoa – trabalhada por tradições antropológicas distintas como a
tradição britânica e da escola francesa - para aproximar-se da concepção weberiana de
personalidade. Tal perspectiva ajuda na inserção da questão da honra na esfera política.
É com essa delimitação da ferramenta teórica que a autora vai mergulhar no campo
objeto de observação etnográfica e suas particularidades: Congresso Nacional.

É através da combinação de duas noções postas por Weber – honra e dignidade


– que a autora propõe uma formulação conceitual capaz de colaborar com a
compreensão da dinâmica política dentro de sociedades modernas: honra moderna

“Trata-se, antes, de uma dinâmica atribuidora de valor social que se


estrutura a partir do sistema de valores de cada sociedade e que sempre
implica reconhecimento, portanto, algum tipo de pertencimento. Aquele que
fosse anônimo e radicalmente desenraizado, estaria fora do alcance da
dinâmica de honra e vergonha. (p24)”

A autora, partir da leitura de Schluchter, deriva do conceito weberiano de


“personalidade política”, o sentido de “honra” e “vergonha”, a partir de onde
consegue propor que a honra moderna se expressa de modo privilegiado na esfera
da política e, se substancializa na ética da responsabilidade. Entendendo que a
“honra é um mecanismo social que implica em reconhecimento e pertencimento”
a autora vai se indagar sobre as razões pelas quais dentro do mundo público a honra
é o critério distintivo da política. Passando então a dissertar brevemente sobre a
busca da compreensão da honra como singularidade histórica que alcança um local
privilegiado na esfera política.
“Ao institucionalizar a honra como critério distintivo da política, a noção de
decoro incorporou a vida pública e a vida privada, regulamentando-as,
ignorou a segmentação de papéis sociais, integrando-os à política e, desse
modo, o decoro afirmou a autonomia da política em face do ambiente
normativo abrangente” (p.32)

Destaca-se então o objetivo específico de analisar de que forma esse englobamento da


esfera política sobre as demais se verifica em diferentes contextos de quebra de decoro
parlamentar, bem como os limites e possibilidades desta categoria. Portanto relatar,
analisar, discutir esses eventos relativos ao decoro parlamentar é, em sua tese, a via
privilegiada para acessar o universo de valores e práticas que constituem o decoro.

Tendo definido seu tema, seu objeto, a problemática teórica e o material


empírico que serviu de fonte para realização da investigação científica, a pesquisadora
inicia a construção da sua argumentação conjuntamente com a explanação do caminho
metodológico que seguiu. A opção da autora em trazer para sua pesquisa uma
triangulação metodológica foi muito bem-sucedida. Em primeiro lugar por trazer uma
diversidade de elementos mesmo que todos eles tenham uma natureza em comum. Com
a abordagem adotada tornou-se viável uma análise diacrônica e ao mesmo tempo
sincrônica do mesmo objeto. Foi possível, mesmo com todas as limitações inerentes às
pesquisas, abordar a mesma questão, utilizando o mesmo material empírico, sem
necessariamente ter que escolher profundidade ou extensão.

Assim sendo, o segundo capítulo da tese realizando uma operação de análise


comparativa entre dois casos de processo e julgamento de deputados no plenário:
deputado Ricardo Fiuza (Partido da Frente Liberal, PFL/PE) e deputado Ibsen Pinheiro
(Partido do Movimento Democrático Brasileiro, PMDB/RS). Enquanto o terceiro
capítulo dedica-se a analisar o caso conhecido como “affaire Barreto Pinto”, a partir
de uma abordagem metodológica distinta da anterior - trata-se aqui de um estudo de
caso. Ao passo que o capítulo de número 4 utiliza a uma metodologia comparativa
entre 4 processos de cassação que ocorrem distintos momentos históricos, dando a
oportunidade para a pesquisadora acompanhar a forma como seu objeto se comporta
no tempo.

A primeira argumentação traz à tona como o decoro parlamentar é uma


categoria que está pautada na correspondência entre as esferas pública e privada, mais
que em sua definição jurídica. Isso porque o esforço de comparação entre os
desdobramentos dos processos de perda de mandato de Ibsen Pinheiro e Ricardo Fiuza
revelou “a lógica que orientou a avaliação do desempenho parlamentar no episódio
da CPI do Orçamento” (p.74). A autora é bem sucedida ao apresentar através dos
relatórios da CPI do Orçamento, quais foram as estratégias adotadas pelas respectivas
defesas dos deputados, tornando inteligível o fato de que o argumento jurídico produziu
pouco ou nenhum efeito para cassação ou para a absolvição dos parlamentares. Além
da investigação de cada processo, a pesquisadora precisou – para esse capítulo –
ancorar-se em uma tradição antropológica dedicada a estudar a honra. A abordagem
teórica colaborou para as conclusões parciais do capítulo que expuseram através dos
casos relatados “O decoro parlamentar, como um código de honra, precisa se referir
aos valores de uma época e de um grupo. Daí a sua necessária imprecisão, sua
natureza avessa à plena tradução em atos especificados juridicamente” (p.74)

O capítulo posterior é um mergulho no caso em que um parlamentar “não tinha


pretensão de encarnar “o modelo de político decoroso”. Aqui a abordagem
metodológica se diferencia da anterior e volta-se para a análise de um caso específico,
para evidenciar outras questões fundamentais referentes ao decoro parlamentar. Se na
análise comparativa entre os processos de cassação de mandato de Ibsen Pinheiro e
Ricardo Fiuza a autora pode identificar como na interação entre as esferas pública e
privada ganhou relevância a questão da “visibilidade da conduta” no exercício do cargo
público, revelando a hierarquização de valores que norteou a compreensão da noção
de decoro para aquela situação; neste capítulo a autora apresenta novos aspectos acerca
do tema, especialmente acerca da imagem e da imprensa.

O caso Barreto Pinto, notório por ser o primeiro caso de cassação de mandato
por quebra de decoro, destaca-se pelo fato de que foi a construção de sua imagem, de
sua aparência de indignidade que culminou na perda do seu mandato. Carla Teixeira,
para a realização deste capítulo, utiliza-se das fontes jornalísticas além do próprio
processo de cassação, já que Barreto Pinto era além de parlamentar, jornalista. É
através dessas fontes que é possível examinar como o personagem histórico
performava uma postura considerada indecorosa, e como a própria imprensa repercutia
tal performance. A pesquisadora passa então a mobilizar uma série de autores para
tentar responder uma questão que se coloca, referente a como uma imagem ganha
destaque dentro da situação de comunicação que fora criada e para além desta. O
esforço empreendido pela pesquisadora nos leva à reflexão sobre a própria natureza da
autoridade em suas relações com a ideia de decoro e respeitabilidade institucional e
mais; ao exame da importância contraditória da imagem parlamentar.

Na sequência, o capítulo seguinte pontua a questão fronteiriça entre crime e


falta de decoro, a divisa entre campo político e jurídico. Novamente, a autora lança
mão de uma abordagem metodológica distinta das abordagens anteriores e promove
uma análise em diferentes localizações temporais.

Após debater decoro parlamentar na perspectiva da honra, da dignidade, da


imagem e do reconhecimento político, a autora volta-se para outra questão premente
nos processos de cassação que é o crime, e que por sua vez direciona o debate para
questão da imunidade parlamentar. Há, segundo a autora, em muitos casos a situação
em que a quebra de decoro recobre uma conduta criminosa – dois casos são tratados
no capítulo: o caso Jabes Rabelo e o caso dos parlamentares (Nobel Moura, Itsuo
Takayama, Onaireves Moura) do PSD. Carla Teixeira argumenta que os casos
analisados revelaram que tanto o decoro como a imunidade parlamentar fazem parte
do universo da honra na política, e possuem certa primazia em detrimento do juízo
jurídico; constituindo-se assim em “mecanismos complementares de afirmação da
especificidade e autonomia da esfera política”. (p.146)

Por fim, o último capítulo da tese, trata de discutir desdobramentos que cada
um dos eventos analisados foi capaz de fomentar para uma reflexão acerca de alguns
aspectos do fazer político, no espaço do Congresso Nacional, apresentando as possíveis
conexões políticas, como vistas ao longo de toda a tese (honra, dignidade, imagem,
reconhecimento político, imunidade parlamentar) para além do decoro em si. Todo o
trabalho é sublinhado por uma abordagem teórica baseada em diálogos entre a
perspectiva de Max Weber e a tradição antropológica, principalmente trabalhos sobre
rituais. Carla Teixeira mobilizou o conceito de vocação, mas também de honra e,
através do esforço intelectual realizado elaborou o conceito de honra moderna no
intuito de que este fosse capaz de auxiliar na compreensão da forma de operar da esfera
política. O esforço de compreensão se dá a partir do exame detido dos processos de
cassação de mandatos motivados por quebra de decoro parlamentar. Weber abre a
possibilidade de pensar uma honra moderna, para além dos limites das sociedades
estamentais. De forma que a noção de honra, em Weber, passa a ser articulada em duas
formas de análise: a primeira estruturando-se enquanto conceito, e a segunda ancorada
nas realidades históricas em questão. Ainda assim, a autora deixa claro que a honra não
pode ser compreendida com a pretensão de universalidade, muito menos ser restringida
a uma única realidade histórica.

Para além das contribuições teóricas para reflexão sobre um tema importante
para antropologia política, bem como para outras áreas do conhecimento interessadas
na prática política institucional, a tese apresenta uma abordagem metodológica
valorosa ao selecionar o material empírico a ser investigado e proceder em esmiuçá-lo
por abordagens distintas. Sendo o foco da análise o decoro, foi através da análise dos
processos que a pesquisadora pôde identificar a centralidade deste “enquanto
instrumento que pode cassar um mandato”. Resultado que só pôde ser alcançado
através do diálogo com as teorias sobre honra, sobre rituais, entre outras; aliado a uma
escolha metodológica capaz de abarcar o tema em profundidade e extensão.

Mesmo não tendo como objetivo discorrer especificamente sobre a conjuntura


histórica, é importante ressaltar como a autora articula os processos analisados às suas
respectivas conjunturas históricas visto que se não o fizesse estaria, de certa maneira,
deixando de realizar parte daquilo que sua pesquisa propusera. Se a honra está
relacionada aos valores de uma época, então para boa construção do argumento faz-se
necessário situar cada caso em seu tempo histórico para que possamos melhor
compreender os sentidos dos argumentos mobilizados nos processos trabalhados na
tese. Além desse aspecto, o cotejamento entre abstração conceitual (honra, política),
sua manifestação empírica (decoro, mandatos parlamentares) e os sentidos dados pelos
sujeitos à essas manifestações em seus respectivos contextos históricos são evidências
da sofisticação do trabalho realizado.

Por fim a pesquisa possui, por todas as razões relatadas, relevância cabal para
as reflexões a serem feitas sobre a democracia moderna. O decoro parlamentar não é
uma categoria exclusiva do Brasil, existe em outras democracias mesmo que possuindo
sentidos ora mais amplos ora mais restritos. Assim sendo, a luz que a pesquisa de Carla
Costa Teixeira lança sobre o tema pode nos servir de lente, para analisar as democracias
a partir dos valores próprios do universo da honra, característica marcante da vida
política moderna.

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