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Introdução
O presente artigo tem por finalidade refletir acerca do trabalho docente realizado
na Idade Moderna no intuito de contribuir para a compreensão de como este é realizado
na atualidade. Para tanto, apresenta-se alguns elementos da organização social e
econômica deste período, tendo como pressuposto que a educação encontra-se
intrinsecamente relacionada com o que acontece ao seu entorno. Deste modo, num
primeiro momento apresentamos alguns apontamentos acerca das transformações
sociais ocorridas na modernidade e, posteriormente, busca-se refletir sobre o trabalho
docente pautado nos trabalhos de Comenius e Jean-Jacques Rousseau, tendo como pano
de fundo o modo de produção capitalista e como subsídio bibliográfico os registros de
intelectuais que se dedicaram à reflexão dessa problemática.
Com a tomada de Constantinopla, em 1453, que marca o início a Idade
Moderna, que vai até a Revolução Francesa, em 1789, “fecha-se um longo ciclo
histórico e prepara-se outro, igualmente longo e talvez ainda inconcluso, que é
geralmente designado como Modernidade” (CAMBRI, 1999, p. 105). Nesta
perspectiva, Monroe afirma que a transição entre uma velha cultura e a nova nunca
ocorre de modo repentino. Mesmo em face do surgimento e triunfo de um novo espírito
não acarreta o desaparecimento repentino do velho e isso, “tanto nos interesses
educativos quanto nos mais amplos que envolvem o intelecto e o espírito humanos, os
velhos métodos de pensamento, e as velhas ideias e ideologias continuaram ativos por
muitos séculos” (MONROE, 1970, p. 148). Ou seja, enquanto o “momento novo”
aparece como superação do “momento que passou”, também há permanências de
elementos do “momento velho”, que vão transmutando-se, articulando-se com novos
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Professor da Rede Estadual de Educação (SEED), concursado nas disciplinas de História e Filosofia.
Mestre em Educação e estudante de pedagogia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná
(UNIOESTE).
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Professor Associado da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), com mestrado e
doutorado pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Líder do Grupo de Pesquisa em
História, Sociedade e Educação no Brasil – GT da Região Oeste do Paraná – HISTEDOPR.
elementos, configurando-se o movimento e a transformação. Assim, se “o velho” já vai
carregando germes novos, “o novo” não significa a eliminação por completo do velho.
No entendimento de que o trabalho docente é condicionado pelo que ocorre na
sociedade, num primeiro momento expõe-se sobre a organização social na Idade
Moderna e, na sequência, trata-se do trabalho docente nesse período em específico.
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Segundo Tom Bottomore, “a extração de mais-valia é a forma específica que assume a EXPLORAÇÃO
sob o capitalismo, a differentia specifica do modo de produção capitalista, em que o excedente toma a
forma de LUCRO e a exploração resulta do fato da classe trabalhadora produzir um produto líquido que
pode ser vendido por mais do que ela recebe como salário” (2001, p. 227, grifos do autor). Em resumo a
mais-valia é o trabalho não pago ao trabalhador.
força de trabalho. Neste sentido, a obra de Thomas More (1477-1535) Utopia serve
como um documento histórico que retrata essa mudança, a prática de “cercamento”,
pois, conforme o autor, para a criação de animais “basta um pastor ou vaqueiro” (1993,
p. 28). Dessa forma, os camponeses ingleses ficaram privados das condições materiais
para produzirem e reproduzirem sua existência. De acordo com Virgínia Fontes “este
momento original corresponde ao tortuoso e violento processo histórico no qual o
campesinato europeu viu-se despojado da capacidade de assegurar sua própria
subsistência” (2008, p. 11) e dos camponeses expulsos de suas terras serem
transformados em empregados demitidos e estes, transformarem-se “inevitavelmente,
em mendigos ou ladrões” (MORE, 1993, p. 29) 5.
Nesta mesma perspectiva, Hannah Arendt, destaca duas condições para o
surgimento da economia capitalista: “a expropriação, o fato de que certos grupos foram
despojados de seu lugar no mundo e expostos, de mãos vazias, às conjunturas da vida,
criou o original acúmulo de riqueza e a possibilidade de transformar essa riqueza em
capital através do trabalho” (1991, p. 267). Ou seja, expulsou-se os camponeses em
direção ao trabalho livre e assalariado das cidades, em que a partir do período da
manufatura, segundo Luiz Antonio Carvalho Franco, “começa a concentrar os
trabalhadores num único local de trabalho, sob o seu controle e vigilância” (1987, p.
11).
Evidencia-se, deste modo, que a acumulação de riquezas, nas mãos de uma
minoria, faz parte da natureza intrínseca do modo de produção capitalista em que “o
produto é propriedade do capitalista, não do produtor imediato, o trabalhador. O
capitalista paga, por exemplo, o valor diário da força de trabalho” (MARX, 1994, p.
209). Logo, com o fortalecimento da burguesia houve o “estabelecimento do comércio
mundial e com o aparecimento de enormes massas de ‘trabalhadores livres’ que
ofereciam à venda a sua força de trabalho, surgiram os alicerces do novo regime”
(PONCE, 2005, p. 137). Trata-se do regime burguês “em que o capitalista dá ao
trabalhador muito menos do que o valor do objeto produzido” (idem, p. 137). Se antes
do século XVI (1501-1600), o camponês que temporariamente alugava os seus braços
era também dono de uma pequena extensão de terra, capaz de sustentá-lo em casos
extremos, com o trabalho assalariado, a partir do século XVI, converte a força dos seus
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Para se compreender um pouco mais sobre esta expropriação sofrida pelo camponês e as dificuldades
deste homem possuidor apenas de sua força de trabalho em adaptar-se enquanto proletário às fábricas,
recomenda-se a obra literária de Victor Hugo: Os Miseráveis, tradução de José Maria Machado, São
Paulo: Hemus Livraria Editora Limitada, 1979.
braços no seu único meio de subsistência. Expulso da terra6 o camponês torna-se um
proletário, sem os meios de produção e fica dependendo da “sorte” para que alguém lhe
dê trabalho.
A legislação promulgada nos fins do século XVI no Oeste da Europa visou
caracterizá-los como criminosos, vagabundos e pobres, sem considerar que:
Compreende-se, deste modo, que houve vezes “em que aldeias inteiras foram
destruídas, e os camponeses, que ficaram arruinados, depois de perderem as suas terras,
dirigiam-se às cidades para procurarem trabalho nas manufaturas” (MANFRED, 1982,
p. 57). Segundo Marx e Engels a burguesia onde quer que tenha conquistado o poder
“jogou por terra as relações feudais, patriarcais e idílicas. Despedaçou sem piedade
todos os complexos e variados laços que prendiam o homem feudal a seus ‘superiores
naturais’, para só deixar subsistir, entre um homem e outro, o laço do frio interesse, as
duras exigências do ‘pagamento à vista” (1987, p. 78). Compreende-se isso, pelo fato de
que a burguesia para manter-se enquanto classe hegemônica precisar da “mudança
permanente, para a perpétua sublevação e renovação de todos os modos de vida pessoal
e social” (BERMAN, 1986, p. 93).
Dentro desse contexto, de acordo com Eric Hobsbawn, a burguesia “não era
evidentemente uma classe dirigente no sentido em que o velho tipo de senhor de terra o
era, numa posição que proporcionava, de jure ou de facto, o direito de governo sobre os
habitantes de seu território” (1996, p. 345). O novo modo de produção, o capitalismo,
“estimula, ou melhor, força o autodesenvolvimento de todos, mas as pessoas só podem
desenvolver-se de maneira restrita e distorcida” (BERMAN, 1986, p.95), porque tudo é
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Importa destacar, referente à importância da terra, a afirmação explicativa de Friedrich Engels de que a
alienação da terra é uma imoralidade só ultrapassada pela alienação de si mesmo. Ao partir da premissa
de que a terra é a condição primeira da existência do homem compreendeu que “a monopolização da terra
por um pequeno número, a exclusão dos outros daquilo que é a condição da sua vida, não tem nada a
invejar em imoralidade à venda ulterior do solo” (1981, p.66).
regido pela lógica de mercado. Assim sendo, os talentos, aptidões, as habilidades, as
potencialidades de trabalho que interessam são aproveitadas até a exaustão e o que não é
atraente, por não ser lucrativo, é reprimido, deteriorado, impedido de manifestar-se ou é
esmagado.
Em suma, continua válida a afirmação de Engels, em seu Esboço de uma crítica
da Economia Política quando diz que “a propriedade privada faz do homem uma
mercadoria, cuja produção e destruição dependem, também elas, apenas da
concorrência, e que o sistema concorrencial massacrou deste modo, e massacra,
diariamente milhões de homens” (1981, p. 77).
Esta realidade não limita-se ao mundo do trabalho estritamente, repercute e se
reflete em todos os âmbitos da vida social, inclusive na educação e no trabalho docente.
Por isso, tendo como pano de fundo a exposição supracitada no intuito de
compreendermos melhor a relação intrínseca entre a sociedade, a educação e o trabalho
docente, também recorremos às contribuições de Comenius e Rousseau.
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Os pesquisadores são unânimes em apontar a Didatica Magna como sendo a obra Prima de Comenius e
sua maior contribuição ao pensamento educacional. Contudo Comenius escreveu, ainda, O labirinto do
Mundo (1623), Guia da Escola Materna (1630), Porta Aberta das Línguas (1631), Consulta Universal
Sobre o melhoramento dos Negócios Humanos (1657), Novíssimo Método das Línguas (1647), A Única
Coisa Necessária (1668) entre outros. Entretanto, cumpre destacar, conforme Ivone Castilho Benedetti,
tradutora da Didática Magna, que a “extensão da bibliografia comeniana não permite fazer um inventário
completo nem das obras de Comenius nem das obras a seu respeito” (2002, p. XIX).
Não obstante, uma análise do índice da Didática Magna já aponta para a
compreensão referente ao homem, a sociedade e a educação, isto é, “a pedagogia de
Comenius é conjunção de ideias religiosas e ideias realistas. Continua, de certo modo, a
corrente religiosa da Reforma e a empirista da Renascença. A parte religiosa se refere
mais aos fins da educação e a realista, aos meios” (LUZURIAGA, 2001, p. 139).
Quanto a isso, verifica-se, logo nos títulos dos quatro primeiros capítulos onde se lê: “I -
O homem é a mais elevada, perfeita e excelsa das criaturas; II - O fim último do homem
está fora desta vida; III- Esta vida não passa de preparação para a vida eterna; IV - São
três os graus de preparação para a vida eterna: conhecer, dominar e conduzir para Deus
a si mesmo e, consigo, todas as coisas” (COMENIUS, 2002, p. VI-V). Percebe-se, desta
maneira, que Comenius por meio da Didática Magna, “expõe sua doutrina a respeito da
educação e organização prática das escolas” (ROSA, 2009, p. 53), em que fica expressa
uma finalidade metafísica, a condução de todos para Deus.
Neste sentido, a convicção fundamental, de Comenius, “é que a educação, que
faz do homem um homem, é a que apesar da sua vida de pecado, o reconduz à sua
essência mais profunda” (SUCHODOLSKI, 1984, p. 33). Assim sendo, o domínio da
leitura e da escrita colocava o fiel em condições de ler as sagradas escrituras e, por
conseguinte, abria a ele a possibilidade de salvar a sua alma. Logo, “como decorrência
de um imperativo imediatamente religioso, a alfabetização foi assumida, então pela
primeira vez na história, como uma necessidade geral dos homens” (ALVES, 2007, p.
63). Isto se torna perceptível, ao analisarmos a exposição de Luzuriaga, sobre as
principais ideias de Comenius, que se resumem em: “a) a do método conforme a
natureza, isto é, conforme o desenvolvimento do homem. b) a da escola para todos, da
escola única. c) a da graduação e continuidade da educação, numa unidade da escola
maternal à universidade” (2001, p. 143).
Pode-se perceber – dentre outras coisas – que apesar da pedagogia de Comenius
fazer concessões às necessidades da vida presente nas crianças, do respeito a cada fase
de desenvolvimento do homem, da articulação das diversas fases pelas quais passa o
homem etc, esta pedagogia encontra-se inserida “no vasto campo da pedagogia da
essência, em relação à qual constitui uma forma moderna, porque se liga à análise
psicológica do homem, muito embora esteja ainda carregada de noções tradicionais e
religiosas” (SUCHODOLSKI, 1984, p. 33).
Enfatiza-se, portanto, que no capítulo IX, Comenius defende que “toda
juventude de ambos os sexos, deve ser enviada à escola”, sob a seguinte justificativa:
A quem um dia caberá comandar outros, como reis, príncipes,
magistrados, pastores e doutores da Igreja, a estes, mais que a
ninguém, é necessária a educação profunda na sabedoria, assim como
os guias precisam ter os olhos treinados, e os intérpretes a língua, a
trompa precisa ser capaz de tocar, e a espada de cortar. Do mesmo
modo, os súditos precisam ser iluminados, para que saibam obedecer
com prudência os que comandam com sabedoria: não por obrigação e
com servil obséquio, mas de bom grado e por amor à ordem
(COMENIUS, 2002, p. 76).
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Adam Smith, no livro II, em Riqueza das Nações, ao tratar Da Acumulação do Capital, ou do Trabalho
Produtivo ou Improdutivo afirma que “o trabalho de um manufatureiro acrescenta, geralmente, ao valor
dos materiais que ele trabalha, o de sua própria manutenção, e o lucro de seu patrão” (2001, p. 151).
Evidencia-se que a manufatura articula-se em função da concentração da riqueza nas mãos do capitalista.
modo a todos os homens, pois, a educação precisa ser dosada na medida certa, para que
o povo saiba ler e interpretar a Bíblia, no intuito de tornar-se fiel a Deus e às lideranças
na terra (civis e religiosas). Percebe-se, deste modo, que todo homem, escritor (ou não),
é condicionado pelas condições sociais, políticas, econômicas, religiosas, culturais do
tempo histórico em que viveu.
Jean-Jacques Rosseau [1712-1778], por conseguinte, fornece outro
direcionamento no modo de entender o trabalho docente quando em sua obra Emílio,
ou, Da Educação - logo no primeiro capítulo – destaca a sua concepção de educação ao
afirmar: “Tudo está bem quando sai das mãos do autor das coisas, tudo degenera entre
as mãos do homem. Ele força uma terra a alimentar as produções de outra, uma árvore a
carregar os frutos de outra” (1999, p. 7). Portanto, segundo Rousseau, a educação deve
ser a própria vida da criança, que precisa ser respeitada no seu desenvolvimento
concreto, nos seus impulsos, sentimentos e pensamentos.
Nesta perspectiva, Roger Gal, refere-se a Rousseau como o “responsável e o
autor desta espécie de revolução copérnica da educação que colocou a criança, e a
criança como indivíduo, no centro de todas as considerações pedagógicas” (1976, p.
85). Isto se percebe na medida em que analisamos a seguinte afirmação: “O homem
nasceu livre e por toda parte está agrilhoado. Aquele que se crê senhor dos outros não
deixa de ser mais escravo que eles” (ROSSEAU, 1989, p. 9). A partir disso, pode-se
inferir que o verdadeiro trabalho docente para Rousseau é aquele que procura auxiliar
evitando qualquer outra interferência no vir a ser destas crianças. No que diz respeito a
isso assinala Suchodolski:
Referências