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DIREITO PENAL I

Maria Fernanda Palma | 葡京的法律大学 | 大象城堡


Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma
2015/2016

A Sebenta está feita com base, no pensamento da Professora Regente,


nos fascículos que tinha publicados na AAFDL e que tive o trabalho de
atualizar.

A professora, entretanto, publicou um livro atualizando-o.


1
Se usarem a sebenta atentem criticamente às atualizações.

E LEIAM O PROFESSOR TAIPA DE CARVALHO SE NÃO CONSEGUIREM ACOMPANHAR A


PROFESSORA E O PROF. FIGUEIREDO DIAS nos seus livros (sendo excelentes, acabam por ser
muito densos).

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma
2015/2016

I – Definição do Direito Penal1

Definição do Direito penal: o problema nas suas vertentes: o Direito Penal é um conjunto
de normas que se autonomizam no Ordenamento Jurídico por atribuírem a certos factos
descritos pormenorizadamente – os crimes – consequências jurídicas profundamente graves –
as penas e as medidas de segurança. Os elementos identificadores das normas penais são,
consequentemente, o crime, a pena e a medida de segurança. Os crimes constituem o conteúdo
da previsão da norma penal, as penas ou as medidas de segurança correspondem à sua
estatuição. Não poderemos reconhecer uma norma como penal apenas porque o legislador 2
designou os factos que previu como crimes e as sanções que estatuiu como penas. O crime e a
pena têm um conteúdo pré-legislativo indisponível. Essa indisponibilidade revela já uma relação
entre a definição material de Direito Penal e a temática da legitimidade constitucional. E essa
relação postula que o Direito Penal português não poderá ter qualquer conteúdo. O crime e a
pena são entidades produzidas por instâncias socias antes de serem moldadas pelo legislador
como tais. Há uma vinculação (embora não rígida) entre a noção de crime dos diversos grupos
sociais e a definição legislativa. Assim, as representações sociais comuns sobre o que é uma
atividade criminosa são normalmente reproduzidas pelo legislador. E a aceitação das decisões
legislativas depende da receção das representações sociais dominantes por aquelas decisões.
Por estas razões, não é correto afirmar que uma conduta é criminosa porque é punida, nem no
âmbito da ciência jurídica, nem num plano científico geral. Tal afirmação só seria correta à custa
da convicção errónea de que o Direito cria, absolutamente, o seu objeto – a realidade a regular.
A afirmação de que um comportamento constitui um crime porque é punido deve ser
substituída pelo reconhecimento de que só é criminoso o comportamento que mereça uma
pena. Este reconhecimento apela à legitimação constitucional do Direito Penal e remete para o
estudo da realidade sócio-psicológica do crime. Pretende-se apenas que as representações
sociais sobre o crime, pré-juridicamente conformadas, constituem (como factos sócio-
psicológicos) pontos de referência do legislador penal na definição jurídica do crime. A teoria do
Direito Penal não poderá, por consequência, definir o crime só em função da atribuição de uma
pena – e por isso como um nada, intrinsecamente – mas terá de encontrar o sentido jurídico
último do crime e da pena, que perita não os confundir, enquanto manifestações de ilícito e de
sanção, com outras realidades. É uma expressão normal deste desiderato a consideração do
Direito Penal como ramo do Direito Público em que à lesão dos bens jurídicos essenciais para a
vida em sociedade são atribuídas as sanções mais graves do Ordenamento Jurídico (esta é uma
noção dominante desde o advento do pensamento liberal sobre a necessidade da pena,
representado por Beccaria). Na noção de essencialidade dos bens está compreendida aquela
imagem social da pré-compreensão do crime que nos permite identificar materialmente o
Direito Penal. Uma outra forma de determinar o sentido último do Direito Penal consiste em
investigar as funções das penas, de modo a poder identificar as condutas e os agentes que
merecem sofrer a consequência jurídica da sua aplicação.

O problema da definição pré-jurídica de crime: sua importância para o Direito Penal:


os estudos científicos não jurídicos sobre o crime como fenómeno social podem ser
genericamente definidos como Criminologia. Quando se procura uma definição operatória de
crime, recusa-se, naturalmente, uma formulação jurídico-formal e apela-se às forças não

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Palma, Maria Fernanda; Direito Penal, parte geral; AAFDL; Lisboa, 1994.

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jurídicas do controlo social do comportamento humano, definindo-se, por exemplo, o crime


como comportamento antissocial (Mannheim). A característica da antissocialidade ou da
irregularidade social, porém, é sempre referida às valorações sociais dominantes, de modo que
uma das teorias criminológicas menos antigas, o label-approach, veio retirar ao conceito
estático de crime qualquer função de objeto científico para em seu lugar colocar os processos
sociais de criminalização de condutas. O crime e a criminalidade como factos sociológicos seriam
assim o resultado de um processo de seleção social, segundo a qual o legislador, a policia, os
tribunais, e todas as chamadas instâncias formais de controlo elegeriam umas e não outras
condutas como criminosas ou pessoas como delinquentes, e, finalmente, os grupos sociais,
como instâncias não formais de controlo, etiquetariam certas pessoas como potenciais ou 3
efetivas autoras de crimes. Encetando esta via, a sociologia criminal admitiria, contudo, o total
relativismo quanto ao que é designado socialmente como crime e renunciaria definitivamente
à explicação do sentido e função social da conduta delinquente e da sua génese, para se
preocupar fundamentalmente com os processos de seleção social. Através desta última
perspetiva, a tese de Durheim segundo a qual os crimes são «parte integrante da sociedade sã»,
determinados pela própria estrutura social (e variáveis segundo ela) tornar-se-ia inoperante
para as ciências do crime. A aceitação de uma função social do crime está, todavia, associada a
desenvolvimentos importantes da Criminologia. Assim Merton, desenvolvendo o conceito de
Durheim, pelo qual exprimia a indiferença relativamente às regras vigentes numa certa
sociedade, explicá-lo-ia, enquanto fenómeno central da criminalidade, pelo desfasamento entre
as metas sociais gerais e os caminhos para as alcançar. Sellin, com a teoria dos conflitos de
cultura, ou Cohen, com o conceito de subcultura delinquente, radicariam o crime na eticidade
produzida, igualmente, pela estrutura social. E, numa outra perceção das coisas, Sutherland,
com a teoria da associação diferencial, tinha á, no princípio do século, definido a criminalidade
como aprendizagem de modelos de conduta, compreendendo tanto as técnicas como a
orientação dos móbeis, racionalizações e conceções que enformam a conduta delinquente. Pese
embora a excessiva abstração dos modelos propostos por estes estudos, eles permitem
simultaneamente explicar as causas do crime e elaborar ações para o seu controlo pela
sociedade. A Criminologia, ao investigar os problemas do crime, terá, assim, de utilizar uma
noção pré-legal de crime, eventualmente crítica das soluções legais e capaz de debater as
questões de descriminalização e neo-criminalização. E as tentativas que tem empreendido para
atingir tal conceito material revelam que uma noção operatória de crime engloba: o
comportamento humano irregular por violar regras éticas ou jurídicas – o comportamento
desviado de Sutherland; o comportamento humano danoso socialmente por atingir bens
necessários à conservação ou ao desenvolvimento da sociedade – perspetiva de Mannheim.

O conceito material de crime no pensamento jurídico: o pensamento jurídico tem


partilhado com a Criminologia a preocupação de definir materialmente o crime. A divergência
teórica que mais se repercute, hoje, no conceito material de crime é a que se configurou, a partir
do século XIX, relativamente ao objeto da infração criminal. As grandes alternativa que se
perfilharam foram, então, a definição do objeto da infração criminal como violação de certos
direitos subjetivos (Feuerbach) e como violação de determinados bens jurídicos (Birnbaum). O
confronto com estas duas perspetivas revela-nos uma diferença quanto ao elemento a que se
refere a legitimidade do Direito Penal. No primeiro caso, trata-se da estrutura liberal-
contratualista que somente justifica a intervenção penal onde os direitos humanos básicos que
o contrato social visa assegurar, e que o legitimam, foram violados. No segundo caso, a
referência legitimadora é já uma estrutura estatal, não liberal, a comunidade e os seus valores..

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A perspetiva de Feuerbach dissolve a infração criminal na proteção da liberdade individual; a


perspetiva que se iniciou com o conceito de bem jurídico de Birnbaum define a infração pela
lesão objetiva de valores da comunidade. Segundo Birnbaum, o Direito vincula-se a elementos
objetivos, mas simultaneamente pré-positivos ou de direito natural. Apesar de acentuar a
objetividade, Birnbaum não deixa de procurar uma fundamentação da proteção jurídica que
merecem certos bens nos fins do Estado. Posteriormente, Binding viria a reduzir o bem jurídico
aos valores ou condições de vida da comunidade jurídica, tal como são definidos pelo legislador,
numa perspetiva de puro positivismo legalista. Estas duas visões objetivistas viveriam em
permanente tensão no seio do debate sobre o conceito material de crime, mas foi, sem dúvida,
a postura inicial que tornou mais profícuo o conceito de bem jurídico na ciência do Direito Penal. 4
Von Liszt desenvolveu esta última postura definindo o bem jurídico como interesse humano vital,
expressão das condições básicas da vida em comunidade. No seu entendimento, o bem jurídico
é um conceito legitimador do Direito Penal (e do Direito em geral), descomprometido com a
norma legal. Em Von Liszt, o conceito de bem jurídico ainda tem, no entanto, um conteúdo
individualista liberal. Na realidade, a consideração do bem jurídico pode permanecer no quadro
de referência do modelo de Estado liberal ou ser transportada para uma conceção de Estado e
de Direito supra individualista ou mesmo transpersonalista. Esta última conceção, representada
pelo Estado hegeliano e mais recentemente pelas ideologias totalitárias, considera que os
valores da personalidade e do indivíduo estão necessariamente ao serviço dos valores coletivos.
Os bens jurídicos (mesmo como substrato individual) são protegidos pelo interesse que
representam para a comunidade. O bem jurídico em geral torna-se uma abstração
desontologizada e sem substância, designando fins do Estado e não as coisas de que os
indivíduos ou a sociedade carecem. Esta controvérsia entre diferentes conceções de bem
jurídico não é solucionável segundo critérios científicos, pois o pomo da discórdia é uma
determinada conceção do Estado e dos seus fins. Somente num plano ideológico é, por isso,
possível encarar uma decisão sobre se o bem jurídico deve assumir uma ou outra natureza. Tem
sido, no entanto, constante no pensamento penal a preocupação de apoiar numa perspetiva
científica o conceito de bem jurídico. Procura-se, geralmente, situar na estrutura social,
independentemente da instância política ou da decisão política, os critérios que tornam
necessária a incriminação de determinadas condutas e a proteção de certos bens. A procura dos
fatores sociológicos constantes que erigem certas realidades em bens jurídicos – a delimitação
dos bens necessários à preservação das sociedades – não conduz à validade universal das
condições de existência. Por essa razão, o conceito de bem jurídico, enquanto elemento natural,
pré-jurídico, de validade absoluta, tende a ser absorvido pelos fins concretos que cada sociedade
deverá realizar, segundo a sua própria escolha. Os sistemas sociais são autoreferentes,
constroem a sua legitimidade através dos traços da sua identidade. E, por esta via, a teoria da
sociedade chega ao ponto de partida recusado, o de uma subordinação do conteúdo da norma
penal à pura escolha normativa. É esse, na realidade, o desfecho a que a metodologia sociológica,
incapaz de definir com universalidade condições de existência humanas e necessidades sociais,
conduz o pensamento penal. Expressão daquele desenlace é, como se verá, o funcionalismo. O
funcionalismo parte das conceções de Luhmann sobre a análise das sociedades humanas como
sistemas sociais. Em breves linhas, a teoria sistemática diz o seguinte: A sociedade não é um
fenómeno pura e simplesmente politico, a koinonia politique, como a entendia a tradição
aristotélica e a filosofia política europeia, cuja expressão máxima se traduziu na teoria do
contrato social. A sociedade é antes um sistema social. Isto é, a sociedade desempenha
determinadas funções, cuja análise permite caracterizá-la como um sistema. Essas funções
consistem na institucionalização da redução da complexidade. Redução da complexidade

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significa, aplicada às relações sociais, que o conjunto destas relações se organiza em diversos
níveis autónomos, de acordo com as respetivas funções, progressivamente diferenciadas. Todos
os níveis (subsistemas) se interrelacionam, gerando grande complexidade nas relações sociais.
Finalmente, a sociedade seria a ultima função social concebível, da qual resultaria que a enorme
complexidade da inter relação dos agentes sociais – proveniente de as condutas humanas se
processarem em diversos níeis – fosse reduzida, assegurando-se assim a própria interação social.
Torna-se claro o que seja esse fenómeno de redução de complexidade se se confrontar uma
sociedade arcaica, comportando formas tradicionais de interajuda dos seus membros para a
satisfação das respetivas necessidades, com uma sociedade moderna. Nas sociedades modernas,
aquelas formas são substituídas pelo crédito financeiro, assegurado juridicamente, através do 5
qual novas espécies de combinações com riscos e vantagens mais elevados são possíveis. A
função de auxílio social desvincula-se da interajuda familiar ou da vizinhança, passando a existir
um sistema diferenciado para cumprir essa função. Com uma tal diferenciação de funções,
tornam-se mais complexas as relações sociais e mais difícil a previsão pelos agentes dos
comportamentos dos outros agentes. É então necessário reduzir esta complexidade,
institucionalizando condutas que podem ser geralmente aceitas e assegurando juridicamente a
sua prática. Com isto garante-se, afinal, a interação social. Se se considerar que a multiplicação
destes fenómenos de diferenciação de funções produz outros tantos sistemas diferenciados,
conclui-se que a inter relação social tem de tomar em conta, de um modo geral, todos os dados
provenientes dos diversos sistemas, pelo que se torna necessário um nível superior de redução
de complexidade: a sociedade através do seu Direito (Luhmann). O Direito é a estrutura da
sociedade que regula e assegura a institucionalização de relações de sentido constantes entre
ações. A sua função é, precisamente, selecionar entre as expectativas de ação aceitas com um
certo grau de generalidade aquelas cuja generalização deve ser institucionalizada. Assim, a partir
de uma nova conceção de sociedade chega-se a uma nova definição de Direito. O Direito não é
um dever moral ou um imperativo político mas apenas a institucionalização de expectativas de
ação – o que o liga, certamente, à necessidade de estabilização dos possíveis conflitos interiores
ao sistema social e reduz o problema da legitimação do Direito à dimensão da funcionalidade.
Em face disto, toda a conduta desviada em relação à norma surge como uma frustração das
expectativas de comportamento asseguradas juridicamente. Mas esta frustração não é, em si,
disfuncional ou exterior ao sistema de interação social. Como conduta associal, ela é antes uma
consequência das decisões básicas variáveis do sistema social. Ela é produzida através dos
mesmos processos sociais que indicam a conduta conforme ao Direito – é, portanto, uma reação
normal. Além disso, a conduta desviada busca o seu sentido na ordem dominante, pois é
simplesmente impossível uma subcultura criminosa, como um contradireito, sem qualquer
referência à ordem dominante. E, finalmente, o que é mais significativo é que a conduta
divergente desempenha funções positivas e é útil como fator de afirmação da ordem vigente.
Esta conceção da função do Direito conduz à função simbólica da pena e do Direito Penal de
Jakobs. O ponto de vista de que o Direito Penal visa proteger bens jurídicos é substituído,
absolutamente, pela função de estabilização contrafática das expectativas geradas pela violação
de uma norma incriminadora. O crime esvai-se como problema real, dano social objetivo, para
se tornar pretexto da afirmação de modelos de ação. A aplicação da pena é vista como
oportunidade de controlar a interação social. Assim, o funcionalismo, na versão de Jakobs,
destrói a legitimação do Direito Penal num conceito material de crime. Mas será o conceito
material de crime uma ideia ancorada, metodologicamente, num direito natural universalista
que a teoria da sociedade ultrapassou definitivamente? A visão funcionalista baseia-se em
dados objetivos irrecusáveis, quando reconhece que não há definição puramente naturalística

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das necessidades sociais ou individuais e que os sistemas são auto referentes. Mas esse
reconhecimento permite ainda discutir criticamente as decisões legislativas de incriminação de
condutas na ótica dos fins do sistema. E, por isso, viabiliza um controlo de legitimidade do Direito
Penal. Permanecem, por essa via, válidos o significado e a função classicamente conferidos ao
bem jurídico. A incriminação de condutas lesivas da moralidade social, como a pornografia não
reflete uma necessidade do núcleo de condições essenciais de existência na nossa sociedade,
pois a coesão social não se define a partir da moral sexual, mas sim a partir da liberdade
individual. Quando a pornografia, porém, contribuir para diminuir a capacidade de decisão no
domínio sexual ameaça a auto determinação da pessoa e o seu pleno desenvolvimento. Nestas
hipóteses, já o Direito Penal poderá intervir. Em resumo: a visão funcionalista não anula a função 6
crítica do conceito material de crime, pela referência de toda a legitimidade da proteção
jurídico-penal aos fins sociais. E, na medida em que a definição destes fins não é produto de uma
arbitrária decisão normativa, mas surge apenas como efeito objetivo da ação dos indivíduos –
enquanto subsistemas, eles próprios, vocacionados para a auto realização –, o funcionalismo,
como teoria, não exclui a discussão crítica do objeto da infração criminal.

O conceito material de crime e a doutrina do bem jurídico: qualquer


limitação ou diretriz, para o legislador, quanto aos factos que ele deve, ou não deve,
sancionar penalmente só pode resultar de um conceito material de crime anterior ao
Direito Penal positivo e do conceito de bem jurídico que lhe serve de base, os quais
estão indissociavelmente ligados à função do Direito Penal (assegurar a proteção
subsidiária de bens jurídicos fundamentais à sobrevivência da sociedade). Essa
função do Direito Penal retira-se da própria função do Estado de Direito democrático
(das tarefas que a Constituição lhe assinala) que, nos termos do artigo 2.º CRP, se
funda no respeito pelos direitos individuais – os quais, segundo o artigo 18.º, n.º2
CRP, a lei só pode restringir nos casos expressamente previstos na Constituição,
devendo essas restrições limitar-se ao estritamente necessário para salvaguardar
outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. É a partir do conceito
material de crime que podemos encontrar resposta para a questão de saber se o
legislador está, ou não, vinculado a respeitar determinadas limitações ou exigências,
no que respeita ao âmbito dos factos puníveis. Por um lado importa saber se o
legislador está proibido de estabelecer a punibilidade de determinados factos e, por
outro, há que averiguar se ele está obrigado a declarar puníveis alguns outros.
Apoiado no conceito material de crime, o movimento de descriminalização tem
conhecido um intenso desenvolvimento. No que respeita ao movimento de
descriminalização que teve como contrapartida a criação ou alargamento do âmbito
as contraordenações, podem referir-se, como reflexo ou expressão desse movimento
no nosso país, nomeadamente, a criação do Direito de mera ordenação social. A
fundamentação normalmente invocada para as exigências de descriminalização

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baseia-se num conceito material de crime, ou seja, um conceito de infração que


congregue a indicação das características que deve apresentar um comportamento
humano para que o Estado esteja legitimado a declará-lo punível. Como é evidente,
um tal conceito material de crime não pode extrair-se da lei ordinária, tem que ser
transcendente ao ordenamento jurídico-penal. Terá que ser encontrado na
ordenação axiológico-constitucional, pois só a Constituição limita o legislador penal
ordinário. O conceito material de crime subjacente ao movimento de
7
descriminalização assente em determinado entendimento da doutrina do bem
jurídico, conjugado com a exigência de que o Estado só sujeite a sanções penais
condutas socialmente danosas, para tutelar bens jurídicos indispensáveis ao livre
desenvolvimento da personalidade de cada homem e ao funcionamento do sistema-
social global. O conceito de bem jurídico, postulado pela primeira vez, em 1834, por
Birnbaum, tem sido uma evolução histórico-dogmática acidentada. Importa apenas
referir, para o afastar como base possível de um conceito material de crime, o
conceito metódico de bem jurídico, propugnado por Honig, que considerava o bem
jurídico apenas uma forma abreviada de exprimir o sentido e a finalidade de um
conceito legal, ou seja: uma expressão sintética do espírito da lei, da ratio legis.
Como é evidente, o conceito metódico de bem jurídico não pode, em caso algum,
servir de base à censura, dirigida ao legislador, por ter cominado sanções penais
para comportamentos que não ofendem bens jurídicos. É que, entendendo-se o bem
jurídico como expressão sintética da ratio legis, nunca poderá haver preceitos
incriminadores que não protejam bens jurídicos, pois todo o preceito prossegue
sempre um determinado objetivo, tem sempre uma ratio legis. O conceito metódico
de bem jurídico é, em suma, imanente ao Direito Penal positivo e apenas útil como
instrumento da sua interpretação. Mas só um conceito de bem jurídico
transcendente ao Direito Penal positivo pode servir de base a uma apreciação crítica
das soluções estabelecidas pelo legislador penal. Pois, como nota Roxin, se o
conceito material de crime visa fornecer ao legislador um critério político-criminal
limitativo do poder de punir, isto é, que limite o poder punitivo do Estado e o vincule
quanto às condutas a punir, então o conceito material de crime terá que partir de um
conceito de bem jurídico-penal (ou bem jurídico com dignidade penal), dedutível da
Constituição, que é a única limitação imposta ao legislador num Estado de Direito,
assente nos princípios Constitucionais. Esta ideia é hoje absolutamente dominante.
Como já referimos, o movimento de descriminalização das últimas décadas, apoiado

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num conceito material de crime donde resulta que o Estado só pode incriminar
condutas humanas para tutelar bens jurídicos fundamentais à convivência pacífica
entre os cidadãos, tem-se feito sentir, nomeadamente, na exigência de redução do
âmbito dos crimes sexuais. A este respeito, há a assinalar o aparecimento na
literatura penalista, há quase quatro décadas, uma corrente de opinião, que hoje
conta numerosíssimos defensores no estrangeiro e em Portugal (Figueiredo Dias e
Taipa de Carvalho), segundo a qual não é legítimo ao Estado declarar puníveis atos
8
com significado sexual que, por muito imorais que sejam, não violam a liberdade
sexual de ninguém nem são praticados em público ou noutras circunstâncias de que
possa resultar qualquer ofensa de interesses atendíveis de terceiros, numa
sociedade pluralista. A outra exigência consiste na criação e ampliação do âmbito de
aplicação das contraordenações. Os primeiros desta exigência foram Goldschimdt e
Erick Wolf – assentavam na ideia de que o Direito Penal só deve punir condutas
ético-socialmente relevantes e tutelar bens jurídicos cuja existência seja anterior
aos comandos estaduais que visam a sua proteção – como acontece com a vida ou
a integridade física e a generalidade dos bens que são objeto dos direitos individuais-
Já não deveriam, porém, ser abrangidas pelo Direito Penal condutas cuja relevância
ético-social é consequência das próprias injunções que as proíbem e não atingem
quaisquer bens que já existam anteriormente a essas injunções. Nesta linha de
orientação, surgiram na Alemanha – já em 1949 – diplomas legais que criaram e
regularam a figura da contraordenação, que veio a ser introduzida em Portugal pelo
Decreto-Lei n.º 232/79, 24 agosto. Está, porém, longe de ser pacífica, na literatura
penalista atual, a resposta a dar à questão de saber se os crimes se distinguem das
contraordenações de acordo com um critério qualitativo – como o de Goldschmidt e
Erick Wolf, que, no essencial, é o que vem sendo sustentado entre nós, desde 1969,
por Figueiredo Dias – ou com base num critério puramente quantitativo, estabelecido
em função da gravidade do ilícito e/ou da sanção, ou, por último, de um critério misto,
propugnado, em termos divergentes entre si, por Jakobs, Jescheck e Roxin. Estamos
inteiramente de acordo quanto à necessidade de se excluírem do âmbito do Direito
Penal atos como, por exemplo, a homossexualidade praticada entre adultos, de livre
vontade e sem ofensa dos interesses atendíveis de terceiro, ou qualquer conduta
imoral não lesiva de bens jurídicos. A resposta terá de procurar-se na Constituição,
à qual o legislador penal, como legislador ordinário, está sujeito. É a Constituição
que fornece o quadro de valores fundamentais da ordem jurídica, nomeadamente

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através da definição dos direitos, liberdades e garantias, no respeito dos quais se


funda o Estado e que só podem ser limitados na medida do estritamente necessário
para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
Esses valores fundamentais são a base dos princípios de política criminal que hão-
de inspirar a atividade do legislador penal e, ao mesmo tempo, servir de critério
delimitador do Direito Penal. As opções axiológicas expressas na Constituição terão
de ser respeitadas pelo legislador quando decide incriminar um conceito de bem
9
jurídico em que se apoie um conceito material de crime vinculativo para o legislador.
O conceito material de crime terá de resultar, pois, de um conceito de bem jurídico
prévio ao Direito Penal positivo, mas não prévio à Constituição. Ora, dos princípios
acolhidos na nossa Constituição e das valorações a ela subjacentes, pode retirar-se
um conceito de bem jurídico capaz de servir de suporte a um conceito material de
crime vinculativo para o legislador ordinário. Esse conceito de bem jurídico pode ser
definido nos seguintes termos: bens jurídicos são entes (individualizáveis no plano
ôntico e/ou no plano axiológico) ou objetivos (finalidades), úteis à livre expansão da
personalidade dos indivíduos, no âmbito de um sistema social global orientado para
essa livre expansão, ou ao funcionamento do próprio sistema. De tal definição retira-
se que é vedado ao legislador incriminar um comportamento, quando a incriminação,
à partida, não possa ser útil à livre expansão da personalidade dos indivíduos nem
ao funcionamento de um sistema social em que a livre expansão da personalidade
de cada um deva co-existir com a da personalidade dos outros. Isto exclui, desde
logo, incriminações arbitrárias ou incriminações que prossigam objetivos meramente
ideológicos, ou incriminações de atos que, apesar de imorais não afetam a liberdade
de ninguém.

A subsidiariedade da tutela de bens jurídicos: a exigência de que a


incriminação de um comportamento se destine a tutelar bens jurídicos, no sentido
apontado, é apenas uma das consequências do conceito material de crime que
podem extrair-se da Constituição. A outra consequência, que se infere, sobretudo do
artigo 18.º, n.º2 CRP, corresponde ao princípio da subsidiariedade do Direito Penal,
também denominado princípio da mínima intervenção do Estado em matéria penal
ou da máxima restrição das penas. Binding falava a este respeito no caráter
fragmentário do Direito Penal. Todas estas expressões têm como conteúdo a
asserção de que a cominação de sanções penais há-de constituir sempre a ultima
ratio da política social. Só é lícito ao legislador incriminar um comportamento quando

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a tutela do bem ou bens jurídicos que ele tem em vista proteger com a incriminação
não puder ser conseguida através do recurso a outros meios menos gravosos,
nomeadamente a meios próprios do Direito Privado, ou de Direito Administrativo, ou
do Direito das Contraordenações. Como diz Figueiredo Dias, «o direito penal só pode
intervir onde se verifique lesões insuportáveis das condições comunitárias
essenciais de livre desenvolvimento e realização da personalidade de cada homem».
É que as sanções penais constituem a mais grave intromissão do Estado na esfera
10
de liberdade dos indivíduos e são também aquelas que têm efeitos estigmatizantes
mais intensos (atingindo, portanto, em regra, mais marcadamente do que quaisquer
outras formas de intromissão estadual, o bom nome e a reputação das pessoas a
que são aplicadas). O artigo 18.º, n.º2 CRP, ao estabelecer que as restrições aos
direitos, liberdades e garantias, devem limitar-se ao necessário para salvaguardar
outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, consagra, implícita,
mas claramente, o caráter subsidiário da tutela jurídico-penal. Este princípio da
subsidiariedade do Direito Penal implica ainda que mesmo aqueles bens jurídicos
que devem ser protegidos pelo Direito Penal, não o devem ser contra quaisquer
agressões, mas apenas contra as formas mais graves de agressão. Manifestação
disso, no nosso ordenamento jurídico-penal, é, por exemplo, a não punição do dano
negligente (artigos 212.º e seguintes CP), ou a não punição do furto do uso de
quaisquer objetos, mas apenas veículos motorizados, barcos, aeronaves e bicicletas
(artigo 208.º CP). Além disso, o princípio da subsidiariedade determina que a
gravidade da pena seja proporcional à gravidade da ofensa e aos valores protegidos
pela incriminação. Implica, portanto, um princípio de proporcionalidade. Afloramento
deste princípio encontramo-lo em várias disposições do nosso Código Penal. É neste
requisito do conceito material de crime, refletido no princípio da subsidiariedade do
Direito Penal – e não a ideia de que as contraordenações não ofendem qualquer bem
jurídico – que se funda, a nosso ver, a legítima reivindicação de que sejam excluídos
do âmbito do Direito Penal os comportamentos ilícitos que puderem ser eficazmente
combatidos como contraordenações (cujas sanções nunca podem ser privativas da
liberdade, e não têm efeito estigmatizante). Claro que a margem de atuação livre do
legislador, quanto a este segundo requisito do conceito material de crime, é
forçosamente maior do que em relação ao primeiro requisito, que impõe a existência
de um bem jurídico a tutelar. Isso deve-se a que, em regra, é bem mais fácil e seguro
detetar, por exemplo, uma incriminação arbitrária, ou uma incriminação de atos

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imorais que não ofendem qualquer bem jurídico, do que afirmar com segurança que
determinados comportamentos ilícitos, lesivos de bens jurídicos, poderiam ser
eficazmente combatidos por meios menos severos do que os do Direito Penal. Estará
o legislador vinculado a punir determinados comportamentos? O tema ultrapassa o
Direito Penal e, como nota Roxin, só pode ser cabalmente tratado em conexão com
a problemática dos deveres de proteção constitucionalmente impostos ao Estado
(artigo 9.º CRP). A questão de saber se o legislador está constitucionalmente
11
obrigado a incriminar determinados comportamentos tem sido discutida, sobretudo,
a propósito do aborto, mas pode, evidentemente, colocar-se relativamente a outros
comportamentos gravemente lesivos de bens jurídicos fundamentais à sobrevivência
da sociedade. Em nosso entender – e tendo presente que o Direito Penal deve
limitar-se à proteção subsidiária de bens jurídicos fundamentais à sobrevivência da
sociedade – pode dizer-se que, de um modo geral, o legislador deverá incriminar
aqueles comportamentos tão gravemente lesivos de bens jurídicos fundamentais
que impedem as condições mínimas essenciais da vida em sociedade, desde que
não possam ser combatidas eficazmente através do recurso a meios menos gravosos
do que os que são próprios do Direito Penal. Se o não fizer, estará a violar (por
omissão) o dever de assegurar a coexistência pacífica dos indivíduos na comunidade
estadual. Poderá afirmar-se então, com Batista Machado, «que a ideia de estado de
direito se demite da sua função quando se abstém de recorrer aos meios preventivos
e repressivos que se mostrem indispensáveis à tutela da segurança, os direitos e
liberdades dos cidadãos».

Fins das penas2: outra das grandes questões através das quais se indaga o sentido último do
Direito Penal e do merecimento criminal (dignidade punitiva) das condutas humanas é a vexata
quaestio dos fins das penas. A pena tem uma conotação mágica ou sagrada que lhe foi conferida
pelo processo histórico e que ainda hoje persiste, revelando-se sempre como imposição de um
mal para a pessoa do criminoso e para a sua honra (e não apenas para o seu património). Três
grandes conceções se digladiaram: a retribuição, a prevenção geral e a prevenção especial. As
teorias retributivas foram, nas suas primeiras formulações, teorias absolutas, por justificarem a
pena pela compensação do mal do crime, independentemente de qualquer fim pragmático. Já
na antiguidade grega é relatada uma conversa entre Anaxágoras e Péricles em que se manifesta
a conceção retributiva. Durante a idade média, o pensamento retributivo desenvolveu-se com
a conceção cristã de responsabilidade ética individual e assume o auge da sua elaboração em
Kant ou Hegel. Kant assume o pensamento retributivo, justificando a pena independentemente
de quaisquer fins, no magnífico exemplo da punição do último condenado à morte numa ilha
em que o Estado se dissolveu. Hegel, por seu turno, considera a pena como um modo de honrar

2
Palma, Maria Fernanda; Direito Penal, parte geral; AAFDL; Lisboa, 1994.

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o criminoso e não como um instrumento o serviço da sociedade, através do qual a dignidade do


criminoso como pessoa possa ser prejudicada. Por outro lado, a pena é em Hegel uma
consequência lógica do crime, pois sendo a negação deste constitui a reafirmação dialética do
Direito. A ideia retributiva não abandonou o pensamento contemporâneo mas tende a justificar-
se hoje pela eficácia preventiva-geral do Direito Penal. Assim, a defesa da ideia retributiva faz-
se, presentemente, sobretudo na perspetiva de que a retribuição é o único modo de demonstrar
a eficácia das penas e garantir as expectativas dos cidadãos relativamente à punição dos
criminosos. A teoria retributiva parte de uma ideia de responsabilidade individual baseada no
liberum arbitrium indiferentiae, que o conhecimento científico não permite comprovar.
Somente é aceitável presumir que as pessoas são livres na medida em que a sociedade e o 12
Direito reconhecem a responsabilidade individual (aceita-se a causa na medida em que se
assume a consequência). E mesmo que se reconhecesse, em abstrato, a liberdade da vontade,
ter-se-ia de nega-la na maior parte dos criminosos que chegam ao crime por um processo social
conhecido da criminologia. De qualquer modo, um pressuposto tão frágil não será suficiente
para legitimar uma teoria retributiva radical. Por outro lado, há uma segunda crítica decisiva,
que provém do terreno jurídico-constitucional: a retribuição tem um pressuposto – a culpa ética
–, surgindo como sua consequência necessária. Ora a intervenção do Estado investido do seu
poder punitivo não pode servir para sancionar esta culpa. Na verdade, nem os meios do
processo penal podem atingir este nível profundo, nem a própria pena é adequada a uma
intervenção na personalidade de cada criminoso. Aliás, não cabe ao Estado promover a Ética ou
a Moral em si mesmas, mas apenas na medida indispensável à preservação das condições sociais
de existência. O chamado princípio da necessidade da pena, consagrado no artigo 18.º, n.º2 CRP,
postula que a pena só seja aplicada quando for necessária para a preservação da sociedade.
Uma outra perspetiva sobre os fins das penas é a da prevenção geral. A prevenção geral justifica
a pena pela intimidação dos cidadãos relativamente à violação da lei penal. É esta a linha de
pensamento que já se encontra em Platão (Protágoras) e que foi desenvolvida por Anselm Von
Feuerbach. Segundo este autor, a pena serviria para impedir (psicologicamente) quem tivesse
tendências contrárias ao Direito de se determinar por elas. A prevenção geral contém, apenas,
na sua lógica interna, um pensamento de intimidação, mas justifica-se, mais profundamente,
pelo fortalecimento dos juízos de valor social dos cidadãos, que depende da cominação e da
aplicação de penas. À prevenção geral negativa associa-se, assim, uma prevenção geral positiva,
que consiste no fortalecimento das expectativas sobre a eficácia da justiça penal. Também é
inegável que a pena preenche necessidades de retribuição, explicáveis num plano psicanalítico,
cuja não observação pode pôr em perigo a paz pública. A satisfação destas necessidades produz
um efeito apaziguador, constatável empiricamente, embora seja discutível se é a severidade ou
sobretudo a prontidão da aplicação das penas que gera o efeito inibidor e o fortalecimento da
crença na validade do Direito. As principais críticas contra a prevenção geral dirigem-se à sua
legitimidade, enquanto fundamento e medida exclusiva das sanções criminais. A primeira crítica
observa que o interesse público não pode justificar que se inflija ao indivíduo qualquer pena. A
pessoa humana não é, em caso algum, um meio ao serviço de fins sociais. O artigo 1.º CRP, ao
consagrar a essencial dignidade da pessoa humana, inibir-nos-ia de adotar esta posição sobre
os fins das penas. Uma outra crítica salienta que este pensamento não consegue justificar a
atribuição da pena ao criminoso por algo que ele tenha feito e com base na medida da gravidade
do facto – a pena deixaria de poder ser vista como consequência do crime. Finalmente, a
prevenção especial ou individual considera que o fim das penas é a intervenção sobre o cidadão
delinquente, através da coação psicológica, inibindo-o da prática de crimes ou eliminando nele
a disposição para delinquir. O pensamento preventivo-especial sedia-se no entendimento

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filosófico de que a virtude se aprende e se ensina (Protágoras). Mas o desenvolvimento global e


coerente desta conceção só foi possível a partir do século XVII, com uma nova visão da pena
privativa de liberdade e com a fundamentação do Direito no contrato social, que levou a
procurar como sentido da pena a sua necessidade estrita (só a pena necessária é legítima – V.
Liszt). Von Liszt distingue, conforme a personalidade do agente, três funções preventivas-
especiais da pena: a intimidação, o melhoramento e a eliminação do criminoso. Mas também a
prevenção especial é inaceitável como fim exclusivo das penas, por várias razões: ela conduz a
consequências difíceis de aceitar, tanto no plano ético como ao nível jurídico-constitucional.
Crimes muito graves poderiam ficar impunes se não existisse perigo de reincidência e crimes
menos graves poderiam justificar a prisão perpétua ou a morte. A investigação empírica não 13
permite apoiar em dados seguros a prognose sobre a delinquência futura. Por outro lado, a pena
é criminógena, de modo que as próprias condenações aumentam as probabilidades de
reincidência. A prevenção especial entra em conflito com o princípio da necessidade da pena
(artigo 18.º, n.º2 CRP), na medida em que é discutível que justifique a criminalização de condutas.
Se a recuperação ou a intimidação do delinquente são falíveis, será legítimo utiliza meios tão
graves para a realização incerta desses fins?.

Fins das penas e princípios constitucionais do Direito Penal: nenhuma das teorias dos fins
das penas logra, pelas suas forças exclusivas, dar uma resposta satisfatória ao problema da
legitimidade da pena. As teorias sobre os fins das penas pretendem resolver um problema mal
colocado – o dos fins ideais das penas. A esses fins ideiais contrapõem-se a amarga necessidade
de punir, devendo toda a discussão sobre os fins das penas estar condicionada pelo seu
conteúdo histórico e pela sua função social. O ponto de partida da discussão é, deste modo, a
realidade da pena e não aquilo que ela idealmente deveria ser. Não terá cabimento,
consequentemente, proclamar que a pena não deve ser retributiva onde a primeira necessidade
humana que a pena pública satisfaz é a da substituição psicológica da vingança privada. O
problema fundamental será, então, saber se a pena poderá cumprir aquele destino
racionalmente (e de forma eticamente aceitável) e ser instrumento de efeitos sociais uteis, para
além das razões ancestrais da sua instituição. Esta última análise não implica o apelo a uma pura
racionalidade de fins, mas a uma racionalidade ditada pelas razoes de organização social. Há,
assim, uma ligação visceral da reflexão sobre os fins das penas às teorias sobre o fundamento e
a legitimidade do Estado. Essa ligação tem sido estabelecida através da doutrina contratualista.
Tanto Beccaria como Von Liszt proclamaram como premissa de todo o pensamento sobre a pena
a ideia de que só a pena necessária é legítima. A legitimidade era, para estes autores, referida à
necessidade, na perspetiva da proteção da liberdade de cada cidadão – base racional do
contrato social. A existência da comunidade social tem, todavia, uma sedimentação mais
profunda do que a lógica contratualista supõe. As necessidades que justificam a comunidade
estatal não se reduzem à liberdade de cada um e não são livre e renovadamente discutíveis por
cada indivíduo, sempre e a todo o tempo, dependendo antes de consensos temporários ou de
maiorias contingentes. O contratualismo apela ao mito de um estado original anterior à
formação do Estado (mito e argumento racional apenas e não histórico), sonegando a integração
dos indivíduos na comunidade como facto histórico e o reconhecimento de que a máxima
realização individual pode ser realização de fins coletivos pelo indivíduo. Mesmo a eleição da
máxima realização individual como fim social não está vinculada a uma lógica contratualista. Ela
é, tão só, o produto da história que gerou comunidades igualitárias e democráticas que prezam
a sua identidade e os seus valores. As razões da organização social são, deste modo, ideias
culturais em que se baseia a comunidade social. Estas ideias são o cimento da validade do

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sistema jurídico e adquirem a sua expressão formal na Constituição. A substituição psicológica


da vingança privada que a pena assegura enquanto retribuição racionaliza-se através de dois
princípios constitucionais: o princípio da culpa, derivado da essencial dignidade da pessoa
humana (artigo 1.º CRP), e o princípio da necessidade da pena (artigo 18.º, n.º2 CRP). A
retribuição justifica-se racionalmente, na verdade, por basear a pena na dimensão ética do facto
praticado. Mas a retribuição excederá a legitimidade do ius puniendi do Estado, quando
prosseguir como um fim em si a expiação moral do delinquente. Assim, a retribuição ancora-se
na necessidade social em dois planos: ao nível do controlo das emoções geradas pelo crime – da
pacificação social – e ao nível da proteção perante o delinquente. A pena retributiva só é, deste
modo, legítima se for necessária preventivamente. Por outro lado, quer a prevenção geral, quer 14
a prevenção especial apenas se legitimam, como fins das penas, através da pena da culpa. A
culpa funciona como limite da pena preventiva. Em suma, tanto a retribuição como a prevenção
se articulam, obrigatoriamente, com os princípios constitucionais (da culpa e da necessidade da
pena, nomeadamente), acabando por conduzir a soluções coincidentes quanto aos limites das
penas.

As antinomias entre os fins das penas e os modelos de política criminal: à controvérsia clássica
entre as teorias dos fins das penas sucedeu, contemporaneamente, o confronto entre os
modelos de política criminal. A política criminal é o conjunto das soluções normativas ou
puramente estratégicas tendentes a uma otimização do controlo do crime, na definição
compreensiva de Kaiser. A pena desapareceu como premissa do controlo do crime e a discussão
sobre os seus fins legítimos foi relativizada, por se reconhecer que a sua aplicação é
absolutamente necessária. A política criminal não é, no entanto, uma descoberta
contemporânea. A um modelo fundamentalmente retributivo, que Figueiredo Dias designa de
azul, em que a política criminal se ocultava sob a linguagem ética, sucedeu um modelo
preventivo-especial, o modelo vermelho, e a estes dois a própria crise, a descrença e a
desorganização dos modelos de política criminal. Na realidade, contestada a conceção penal
retributiva, assente numa conceção metafísica da pena, por ser inadequada aos fins legítimos
da intervenção penal, e frustrada a via preventiva-especial, por ter sido simultaneamente
inoperante e atentatória da dignidade da pessoa humana, assoma na crise da política criminal o
que Figueiredo Dias designa como paradigma emergente, o modelo verde, que organiza o
controlo do crime a partir de uma teia de princípios constitucionais (legalidade, culpa,
necessidade da pena) e de uma estratégia de descriminalização, desjudiciarização, socialização
e diversificação (substituição da pena de prisão por sanções alternativas). Os modelos de política
criminal têm relações antinómicas entre si, pois as soluções que propugnam são, em certos
casos, necessariamente contraditórias. A ideia central a partir da qual se constroem permite, no
entanto, que os diversos fins das penas sirvam a lógica uns dos outros. Mas, em todo o caso,
não haverá uma harmonia absoluta entre as soluções dos modelos, pois nem sempre a pena
retributiva é justificada pela prevenção e nem sempre a pena preventiva é justificada pela
retribuição. As antinomias entre os fins das penas permanecem, pois, nos modelos politico-
criminais. Ao modelo verde, fortemente apoiado na prevenção geral positiva, contrapõe-se a
própria renúncia à política criminal. O estado atual da discussão caracteriza-se por uma
contraposição fundamental entre o sem e o não á política criminal. Contra a política criminal
como conjunto de estratégias de controlo do crime funcionalizadoras do próprio Direito Penal,
pronunciam-se aqueles que rejeitam quaisquer soluções distintas da resposta ao crime pela
pena da culpa, quer em nome da ética e da dignidade da pessoa humana, quer em nome de um
modelo realista e operativo da própria prevenção geral. Consequentemente, a ideia de que só

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o modelo verde conseguirá realizar os princípios constitucionais da culpa e da necessidade da


pena e assegurar a racionalidade do poder punitivo do Estado democrático e social de direito
torna-se também discutível. Aliás, a um único paradigma emergente deve contrapor-se a
desconstrução dos velhos modelos à luz do estado atual da discussão. E, por outro lado, a
própria emergência de um novo paradigma só se verifica no confronto com a descrença global
na política criminal, como já se referiu. O modelo verde baseia-se, por outro lado, em premissas
que exigem discussão. Desde logo, a prevenção geral de integração utiliza, ao que parece, a
função psicanalítica da pena – a representação de estabilidade e segurança que ela gera –,
função meramente simbólica, como fundamento da pena, na perspetiva agora objetivista da
necessidade. Porém, a própria função psicanalítica da pena poderia justificar, através de uma 15
abordagem científica da mesma natureza (psicanalítica), a rejeição pura e simples do plano
tradicional da necessidade da pena. Onde a necessidade resultar apenas da procura de uma
terapia simbólica contra a insegurança gerada pelo crime, a pena surgirá como resposta a
carências várias que eticamente não devem ser satisfeitas por esse meio. E mesmo que se rejeite,
como Figueiredo Dias, uma fundamentação psicológica da prevenção geral de integração,
contrapondo-se-lhe a ideia de que as expectativas geradas pelo crime não devem ser
praticamente conexionadas com o clamor social da pena mas normativamente implicadas com
a incolumidade da crença social na validade e na vigência da norma violada, nada nos diz que a
representação dessa mesma incolumidade exige apenas o funcionamento célere e eficaz da
justiça penal e já não a dureza do castigo exemplar. Ora, o que é essencialmente criticável é que
a privação de liberdade, embora confinada aos limites da culpa, se justifique pela manutenção
de uma crença. A prevenção geral só será critério racional de definição dos fins das penas se se
basear um efeito objetivo constatável, de alguma forma mensurável – a tradicional intimidação
–, mesmo que ele seja alcançado pelos mecanismos psicanalíticos da crença na validade da
norma violada. Na realidade, a prevenção geral positiva ou de integração, quando parece trilhar
os caminhos da renúncia à investigação empírica e à análise do efeito dissuasor das espécies
particulares de penas, é um discurso evasivo. A prevenção geral positiva só pode corresponder
a um meio de intimidação. E a possibilidade de esta se operar nos diversos grupos de cidadãos
é o único parâmetro objetivo e científico da necessidade de punir. Igualmente discutíveis são a
desjuridicização e a diversificação propostas pelo modelo verde. As dúvidas que tais soluções
suscitam são geradas pela duvidosa legitimidade de um modelo anti-processual e pela
substituição do poder dos juízes pelo poder dos grupos sociais. Se o fracasso dos modelos de
política criminal reintegradora, a cargo de instituições estatais, desembocou na anulação
organizada da pessoa do delinquente, a institucionalização do poder dos grupos não promoverá,
ainda em maior grau, tal anulação?

Conclusão sobre o sentido e a função do Direito Penal: argumentação sobre a


legitimidade da incriminação e da punição de condutas; os princípios no Direito Penal :
a abertura da ciência jurídico penal a uma perspetiva específica de legitimação, historicamente
veiculada pelo conceito de bem jurídico, tem persistido, nos dias de hoje, através da aceitação
de uma pluralidade de pontos de vista. A seleção das condutas incriminadoras no Estado de
Direito democrático e social pressupõe não só a tradicional fundamentação na necessidade, de
raiz liberal, mas também uma fundamentação de oportunidade ou de estratégia política-
criminal. E a par destes dois topoi surge ainda uma relação do Direito Penal com a ética geral e
com a ética da democracia, através da ideia de um consenso amplo que impede a opressão das
minorias. Estes pontos de referência da discussão legitimadora apenas indicam uma perspetiva
sobre a seleção de condutas criminosas. Não são, na verdade, critérios, mas meros pontos de

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vista relevantes na lógica do Estado de Direito democrático e social. Alguns exemplos permitem
ilustrar legitimador que se orienta por esta via. A discussão sobre a necessidade de proteção do
bem jurídico surge a propósito da incriminação de condutas meramente contrárias à Moral,
segundo as representações sociais dominante. Como sustenta Roxin, a proteção de normas
éticas só se justificaria, no Estado de Direito, para evitar efeitos danosos para a sociedade. O
problema da necessidade de proteção devido a importância para a sociedade do efeito visado
antecede, ou substitui mesmo, uma discussão ociosa sobre se as próprias normas éticas são
bens jurídicos. Há outras condutas que, embora possam afetar bens necessários à preservação
da sociedade, não carecem de cominação penal porque tais bens são protegidos eficazmente
(ou mais eficazmente) de outra forma. A exigência de relevo ético prévio das condutas impedirá 16
que condutas tidas como eticamente neutras e normalmente aceites, como fumar, sejam
incriminadas. A necessidade de amplo consenso deverá obstar a que o Direito Penal se torne
arma política da maioria e ignore as perspetivas de parte da população. A contradição axiológica
entre a incriminação de certas condutas e outras soluções do sistema jurídico revelar-se-á, por
exemplo, na incriminação de condutas contra a preservação das espécies animais, associada à
irrelevância penal das condutas manipuladoras ou destrutivas da vida humana em formação
numa fase pré ou extra uterina (artigo 139.º CP). Estes exemplos não são, porém, expressão de
um programa de política criminal, mas simples modos de abordagem da legitimidade das
incriminações: o processo de legitimação do Direito Penal no Estado de Direito democrático e
social não exige um Código Penal com uma única espécie de tipos criminais, mas sim uma forma
de justificar racionalmente os tipos criminais consagrados pelo legislador. No entanto, não se
deve confundir a legitimação com a mera formulação de princípios. A legitimação tem de ser,
pela própria natureza das coisas, extra-sistemática, isto é, constituída por razões que explicam
a instituição histórica do sistema, a sua continuidade e a sua vigência no momento presente,
enquanto os princípios são mera expressão de uma racionalidade inerente a um conjunto de
normas ou objetivos gerais do sistema. Deste modo, também em certo sentido os princípios
terão de ser legitimados, como é claramente visível, hoje em dia, quanto ao princípio da culpa.
Há, no entanto, uma vocação de cruzamento entre as temáticas da legitimação e dos princípios
que consiste na moldagem do conteúdo dos princípios do sistema, e portanto da racionalidade
interna do mesmo, por aquilo que torna compreensível que o princípio da culpa tenha adquirido
sentidos e funções não decorrentes direta e necessariamente do seu conteúdo original, ou que
o princípio da necessidade da pena tenha aumentado a sua importância orientadora nos
sistemas jurídico-penais de hoje. Deveremos então definir algumas perspetivas sobre os
princípios que presidem à realização prática das normas do Direito Penal, à sua interpretação e
à sua aplicação.

Colocação da questão tratada sob a rubrica fins das penas e das medidas
de segurança: identifica-se, por vezes, no manuais, a questão de saber qual a
função que o Direito Penal desempenha, ou deve desempenhar, em determinada
ordem jurídico-social, com a questão de saber como se justifica que fim ou fins são
de atribuir à pena cominada a cada crime em particular. Isto explica-se porque existe
uma íntima conexão entre as duas questões, uma vez que, a legitimação e finalidades
da pena, num Direito Penal moderno, não pode abstrair da função que desempenha
o Direito Penal num Estado de Direito democrático. Trata-se, no entanto, de duas

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questões distintas que convém tratar autonomamente, embora tendo sempre


presente a sua interligação. A função do Direito Penal, que se retira dos fins que a
Constituição assinala ao Estado de Direito democrático é, como vimos, a proteção
subsidiária de bens jurídicos e, desse modo, da livre expansão da personalidade do
indivíduo e da manutenção do sistema social global orientado para essa livre
expansão. Daqui infere-se a resposta à questão de saber que comportamentos está
o Estado legitimado a considerar crime e ameaçar com pena. É, portanto, uma
17
questão que diz respeito à criação dos crimes em abstrato. No âmbito da teoria do
fins das penas o que se trata de averiguar não é a função do Direito Penal, nem é a
questão de saber que comportamentos devem ou não ser criminalizados atendendo
àquela função; trata-se, sim, de determinar de que modo deve atuar a pena para
realizar a função do Direito Penal. É a resposta a esta questão que se procura
encontrar com a teoria dos fins das penas.

As teorias tradicionais sobre os fins das penas: são, fundamentalmente, três


as conceções sobre os fins das penas que desde a antiguidade clássica se opõem e
que ainda hoje, em diversas combinações, determinam a discussão nesta matéria e
procuram apresentar uma explicação convincente para a imposição ao homem desse
mal que é a pena: a teoria da retribuição, a teoria da prevenção especial e a teoria
da prevenção geral.

a. A teoria da retribuição ou da expiação: segundo a qual a pena visa retribuir


ou reparar o mal do crime e é medida por esse mal, pelo mal passado. A ideia
de retribuição significa que se impõe um mal a alguém que praticou outro mal.
O seu sentido está ligado à ideia de castigo, expiação, o que tem a ver com a
ideia religiosa de punição por um certo pecado.

b. Teoria da prevenção geral: nos termos do qual a pena visa evitar a prática
de futuros crimes da generalidade das pessoas.

c. A teoria da prevenção especial: segundo a qual a pena tem por fim evitar a
prática de futuros crimes pelo próprio delinquente que a sofre.

Teorias da retribuição: segundo as teorias retributivas, o sentido ou fim da pena


funda-se em que o mal da pena se causa ao criminoso surge como consequência,
estabelecida pelo Direito, de uma falta culposamente realizada. A justificação para
a imposição desse mal não depende de quaisquer fins a alcançar com a pena, mas,

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tão só, da realização de uma ideia de justiça. A pena contém, portanto, o fim em si
mesma, justifica-se por si própria. É «um imperativo categórico de justiça» (Kant),
ou «a negação da negação do Direito» (Hegel). A ideia de que a pena contém o fim
em si mesmo, de que ela é exigida para alcançar a realização da justiça, está bem
patente na formulação de Kant. Para este autor a pena é algo que se impõe ao
homem, que é indiscutível e não necessita de fundamentação. Não visa realizar
quaisquer fins utilitários exteriores a ela; contém «o fim em si mesma» que é o castigo
18
do indivíduo por ter praticado um facto ilícito culposamente. O sentido da pena não
está, portanto, na prossecução de qualquer fim socialmente útil mas sim em que ela,
através da imposição de um mal ao delinquente, expia, compensa, retribui de modo
justo, a culpa que o autor carrega sobre si pelo seu facto. A culpa do agente pelo
facto praticado tem, portanto, que ser compensada pela imposição de uma pena
justa que corresponda na sua duração e severidade à gravidade do crime. É o velho
princípio taliónico «olho por olho, dente por dente», que na prática é inexequível. A
formulação de Hegel, tal como é apresentada historicamente, significa o mesmo que
a de Kant. Para Hegel a pena justifica-se pela necessidade de restabelecer a
concordância da vontade geral, representada pela Ordem Jurídica, com a vontade
especial do delinquente, concordância essa que foi quebrada pelo delito. Isso
consegue-se negando (com a pena) a negação da vontade geral pela vontade
especial do delinquente, de acordo com o método dialético de Hegel. A pena é,
portanto, a afirmação do Direito negado pelo delinquente ao praticar o crime; é a
negação da negação do Direito. O crime é negado, expiando, destruído, pelo
sofrimento da pena imposta ao delinquente, restabelecendo-se assim o Direito
violado. Hegel levava a sua construção ao extremo, a ponto de defender a pena como
direito do delinquente, porque foi através de um ato livre da sua vontade que ele
praticou o crime, que ele negou o Direito, e que, portanto, exigiu que lhe fosse
aplicada uma pena, para repor o Direito. Hegel distingue-se de Kant, na medida em
que substitui o princípio de Talião pelo princípio da igualdade do valor do crime e da
pena. Mas, em plena concordância, também não reconhece à pena quaisquer fins
preventivos, quer gerais, quer especiais.

 Crítica à teoria da retribuição: A teoria da retribuição é hoje insustentável


do ponto de vista científico. Pois, se é verdade que a função do Direito
Penal consiste na proteção subsidiária de bens jurídicos, então o Direito
Penal não pode servir-se, para realizar a sua função, de uma pena que

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abstrai expressamente de todos os fins sociais. Além disso, a ideia de


retribuição também exige a pena quando ela é desnecessária para a
proteção de bens jurídicos. Ora, dado que a teoria da retribuição assenta
na compensação da culpa do agente através da imposição do mal da pena,
esta seria de exigir sempre que houvesse culpa para compensar ou
retribuir. Nesta perspetiva, a pena deixa de servir a função do Direito
Penal e perde a sua legitimação social. Acresce que, a ideia de que se
19
pode compensar ou anular um mal com outro mal é "um puro ato de fé
irracional", como diz Roxin. Diga-se ainda que, a suposição de uma culpa
que deve ser retribuída não pode, só por si, levar à aplicação de uma pena;
a culpa individual está ligada à existência da liberdade da vontade (o livre
arbítrio), que é indemonstrável, como, de resto, admitem os próprios
partidários da teoria da retribuição. Essa impossibilidade de
demonstração da liberdade da vontade impede que ela possa funcionar
como único fundamento da intervenção do Estado. Contra a teoria da
retribuição falam, por último, as suas indesejáveis consequências político-
criminais. Uma execução da pena que parta do princípio da imposição de
um mal não pode ser terapêutica adequada para a falta de integração
social, que muitas vezes é a causa do crime, e, por isso, não é meio
apropriado para a luta contra o crime. Também não é aceitável a "teoria
da expiação", como reformulação da "teoria da retribuição”. É evidente
que o conceito da expiação é apenas uma palavra diferente para definir a
retribuição. No entanto, muitas vezes, com a palavra expiação quer-se
significar que o autor aceita interiormente a pena como justa
compensação da culpa, assimila espiritualmente o seu comportamento
delituoso, purifica-se e recupera a sua integridade humana e social
através da expiação, através do castigo. Tudo isto é, naturalmente
desejável, mas não pode servir para justificar a pena retributiva, porque
emoções desse tipo, além de raramente acontecerem, constituem atos da
personalidade moral de cada um que não se impõem à força e que, de
resto, também podem verificar-se quando a pena, em vez de retributiva,
vise fins utilitários. Há, no entanto, que reconhecer às teorias retributivas
ou absolutas o mérito de terem erigido o princípio da culpa – o princípio
de que toda a pena tem como pressuposto a culpa e a medida da pena

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tem como limite a medida da culpa - em pedra basilar e inultrapassável


da aplicação da pena. Mas não podemos esquecer que, se toda a culpa
pressupõe a pena, nem toda a culpa exige a aplicação de uma pena.

Prevenção especial: No extremo oposto da teoria da retribuição está a teoria da


prevenção especial, segundo a qual o fim da pena é prevenir que o autor cometa
novos delitos no futuro. Ao contrário da conceção absoluta da teoria da retribuição,
a prevenção especial é uma teoria relativa, porque está ligada aos fins de prevenção 20
de crime. Na sua moderna formulação a teoria da prevenção especial remonta à
época do iluminismo. Expandiu-se entre os finais do Séc. XVI e o Séc. XIX. Mas no
Séc. XIX retrocedeu por influência do idealismo alemão, face à teoria da retribuição.
Nos finais do Séc. XIX Von Liszt e a sua escola fazem-na ressurgir. A prevenção
especial pode ser realizada, segundo os seus defensores, por três formas:

a) Corrigindo o que é corrigível (ou seja, ressocializando);

b) Intimidando o que é intimidável;

c) Inocuizando (tornando inofensivo) mediante a privação da liberdade, os que


nem são corrigíveis nem intimidáveis.

Esta conceção depara com dificuldades de diversa ordem. A sua maior falha está no
facto de não fornecer qualquer princípio para a medida da pena, podendo levar a que
o delinquente seja condenado numa pena de duração indeterminada, que dure até
ele ser ressocializado. Isso levaria a que, a delitos de pouca gravidade, quando
constituíssem sintoma de uma perturbação profunda da personalidade, pudesse ser
imposta uma pena de prisão por muitos anos. Além disso, nos termos desta teoria
nada obstaria a que fosse aplicada uma pena ressocializadora quando alguém
mostrasse uma forte perigosidade criminal, sem que se provasse que a pessoa tinha
cometido um facto punível concreto. Ela permitiria limitar a liberdade individual muito
para além do que é admissível e desejável num Estado de Direito democrático. Outra
objeção que tem sido colocada à teoria da prevenção especial é que, não se vê com
que direito pode o Estado educar e corrigir homens adultos. Kant e Hegel viam nisto
uma ofensa à dignidade humana. E, de facto, esta teoria deixa o cidadão mais ao
arbítrio do poder Estatal do que a própria teoria da retribuição. Acresce que esta
teoria não dá explicação para a aplicação da pena a delinquentes que não
necessitam de ressocialização

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Teoria da prevenção geral: É também uma teoria relativa que visa fins
preventivos mas, ao contrário da anterior, não vê o fim da pena na sua influência
sobre o delinquente que cometeu o crime, mas sim nos seus efeitos intimidatórios
sobre a generalidade das pessoas. A pena tem por fim intimidar as pessoas para que
elas não cometam crimes. Modernamente a teoria da prevenção geral encontrou o
seu grande precursor em Feuerbach, para o qual o fim da pena "na lei é a intimidação
de todos …. O fim da aplicação da mesma é fundamentar a eficácia da ameaça penal.
21
Na Doutrina actual distinguem-se duas vertentes da prevenção geral - a prevenção
geral negativa ou de intimidação e a prevenção geral positiva ou de integração . 3.5.1
A prevenção geral negativa ou de intimidação vê o fim da pena na intimidação dos
cidadãos que estão em perigo de cometer crimes idênticos. A pena funciona para
evitar a repetição de crimes, protegendo-se, desse modo, os bens jurídicos. A
prevenção geral positiva ou de integração entende que o fim da pena é manter e
reforçar a confiança dos indivíduos no Direito, evitando-se, desse modo, a prática de
crimes e, portanto, a lesão de bens jurídicos. A pena tem, assim, a função de mostrar
a solidez da Ordem Jurídica face à comunidade e, desse modo, de fortalecer a
confiança jurídica da população, ou, como diz Figueiredo Dias, a pena é a forma de
que o Estado se serve para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade
e na força de vigência das suas normas de tutela de bens jurídicos e, assim, no
ordenamento jurídico-penal. A este ponto de vista positivo é atribuído hoje muito
maior importância do que ao dos puros efeitos intimidatórios. Na prevenção geral
positiva compreendem-se três fins e efeitos principais:

 um efeito pedagógico-social, o exercício de fidelidade ao Direito que é


provocado na população pelo funcionamento da justiça penal;

 um efeito de confiança, que se verifica quando o cidadão vê que o Direito


se impõe;

 um efeito de satisfação, que se produz quando a consciência jurídica geral


se tranquiliza com base na sanção pela violação do Direito e vê resolvido
o conflito com o autor.

A doutrina defende hoje, maioritariamente, a prevenção geral positiva.

 Crítica: Kant e Hegel diziam contra esta teoria que, se o fim da prevenção
geral é intimidar os outros, então utiliza-se o delinquente como exemplo

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para os outros; transforma-se a pessoa em objeto para se alcançar um


fim, o que é incompatível com a dignidade humana. Esta é a crítica
tradicional à teoria da prevenção geral. Outra crítica de que tem sido alvo
a prevenção geral é a de que ela, tal como a prevenção especial, não
apresenta qualquer critério de limitação da duração da pena, podendo, no
caso concreto, ser ultrapassada a medida da pena desejável e permitida
num Estado de Direito democrático. Portanto, haveria sempre o perigo de
22
a prevenção geral se transformar em terror estatal, pois as penas mais
graves são mais intimidativas. Por outro lado, não se conseguiu provar até
agora os resultados práticos da prevenção geral. O homem médio, em
situações normais poderá deixar-se influenciar pela ameaça da pena, mas
os delinquentes profissionais, ou os delinquentes impulsivos ocasionais,
não são motiváveis pela ameaça da pena. Acresce que a prevenção geral
partilha o defeito da teoria da retribuição de não poder atribuir à execução
da pena qualquer significado no sentido da recuperação do delinquente.
Isto vale para as duas formas de prevenção geral na medida em que ela
se dirige à generalidade das pessoas e não ao autor. Mas atinge
particularmente a prevenção geral negativa, porque uma execução da
pena que vise a simples intimidação dos cidadãos mais promove a
reincidência do que a impede e, portanto, mais prejudica do que beneficia
o combate contra a criminalidade. É certo que a prevenção geral positiva
apresenta evidentes vantagens em relação à prevenção geral negativa.
Mas ela só é sustentável num Estado de Direito democrático se se recorrer,
como faz, entre nós, por exemplo, Figueiredo Dias, a princípios de garantia
do Estado de Direito para lhe restringir os efeitos funestos. Pois, senão, a
sua lógica pura leva a considerar o sistema social como bem supremo e
os cidadãos como objeto de prevenção, como destinatários de uma ação
do Estado que serve para exercitar a segurança e a confiança no Direito.
Para o Prof. Figueiredo Dias, «a pena só pode ter finalidades relativas de
prevenção geral e especial, não finalidades absolutas de retribuição e
expiação" e a "prevenção geral positiva ou de integração, isto é, de reforço
da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança
face à violação da norma ocorrida», assume o primeiro lugar como
finalidade da pena. A culpa funciona como limite da pena, é um

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pressuposto da aplicação da pena e um limite inultrapassável desta. É


pressuposto indispensável «por razões de limitação ao poder punitivo do
Estado ligadas à necessidade de garantia dos direitos individuais e
liberdades», imposta pelo Estado de Direito democrático.

As teorias ecléticas ou unificadoras retributivas: Estas teorias consistem


numa combinação das conceções até agora expostas. Veem a retribuição, a
prevenção geral e especial como fins que a pena deve prosseguir simultaneamente. 23
Ainda hoje se acentua, frequentemente, que só se pode falar de uma verdadeira
teoria unificadora, no sentido tradicional, quando os fins preventivos não atinjam o
carácter retributivo da pena e sejam prosseguidos conjuntamente, apenas no âmbito
traçado pela retribuição.

 Crítica: Esta teoria é de rejeitar porque, como simples modificação da


teoria da retribuição, está exposta a todas as objeções contra ela aduzidas
e, por isso, tal como ela, também não pode hoje ser seguida.

A teoria dialética unificadora da prevenção: Esta teoria recusa a retribuição


como fim da pena. Segundo ela, a pena só tem fins preventivos gerais e especiais. O
seu precursor foi Roxin, segundo o qual a teoria procura afastar a posição absoluta
de qualquer dos critérios preventivos, através de um sistema de mútua
complementaridade e limitação de modo a obter uma conceção preventiva
abrangente que inclua os aspetos positivos das teorias preventivas e a eliminar os
aspetos negativos das mesmas. Roxin sustenta que «o ponto de partida de todas as
teorias da pena tem que estar no reconhecimento de que o fim da pena só pode ser
um fim de prevenção». Pois, como as normas penais só são justificadas se visarem
a proteção da liberdade individual ou de uma ordem social que a sirva, a pena
concreta só pode servir para realizar essa função se prosseguir fins preventivos. Daí
resulta que a prevenção geral e especial têm de permanecer uma ao lado da outra
como fins da pena. Pois, como os factos puníveis tanto podem ser impedidos pela
atuação sobre o delinquente como sobre a generalidade das pessoas, ambos os
meios de atuação são igualmente legítimos e devem ser ordenados num fim
abrangente. A prossecução simultânea dos fins de prevenção geral e especial não é
problemática quando a pena aplicada na condenação em concreto é adequada a
atingir ambos os fins. A conceção também não depara com dificuldades, quando, no
caso concreto, apenas a componente de prevenção geral fundamenta a sanção, dado

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que, o fim preventivo da pena se mantém mesmo que não seja necessária a
prevenção simultaneamente em todos os seus aspetos. Mas este pensamento é
importante, antes de mais, quando o delinquente se recusa a aceitar uma
colaboração na execução de uma pena ressocializadora. Uma pena que pretenda
eliminar a associalização do autor só pode ter êxito pedagógico quando é
estabelecida uma relação de cooperação com o delinquente. Uma "socialização
forçada" não é admissível face aos artigos. 1º, 2º, 18º, nº 1 e 2, 25º, nº. 2, entre outros,
24
da CRP. s. Se o delinquente recusa a sua colaboração na ressocialização, deve, é
certo, ser despertada a sua disposição para isso, na medida do possível, mas não lhe
pode ser imposta à força. A pena tem que ser, naturalmente, também executada
nesses casos, mas então bastarão as necessidades de prevenção geral para a
justificar. Quando ambos os objetivos (de prevenção geral e especial) exigem
medidas da pena diferentes pode surgir um conflito entre os dois tipos de prevenção.
m tais casos é necessário ponderar os fins de prevenção geral e especial e
estabelecer uma ordem de prioridades. Por outro lado, deve dar-se primazia às
necessidades de prevenção especial apenas na medida em que ainda sejam
satisfeitas as necessidades mínimas de prevenção geral. A pena não deve, portanto,
por causa dos efeitos de prevenção especial, ser tão reduzida que já não seja levada
a sério pela população, uma vez que isso abalaria a confiança na ordem jurídica e
impeliria à imitação. Em muitos casos, (embora nem sempre), o limite mínimo da
medida legal da pena cuida já da observância do mínimo de prevenção geral. O
significado da prevenção geral e da prevenção especial é também diferentemente
acentuado durante o processo de imposição do Direito Penal. O fim da ameaça penal
é, num primeiro momento de pura prevenção geral (incriminação). No momento da
imposição da pena na sentença, pelo contrário, são de considerar do mesmo modo
as necessidades de prevenção geral e especial. Finalmente, no momento da
execução da pena, a prevenção especial toma lugar proeminente. Isto não deve,
contudo, ser entendido no sentido de que os fins da pena se repartem, numa
separação rigorosa, pelos diversos estádios de realização do Direito Penal. Não se
trata de uma estratificação, mas sim de uma diferente importância relativa desses
fins ao longo do processo de imposição do Direito Penal. A "teoria dialética
unificadora da prevenção" chama, portanto, para primeiro plano, ora um, ora outro
dos pontos de vista. É certo que avança para primeiro lugar o fim preventivo especial
de ressocialização quando ambos os fins estão em conflito; mas, em compensação,

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a prevenção geral domina as cominações penais e justifica, só por si, a pena quando
faltem ou falhem os fins de prevenção especial, enquanto que, não pode haver uma
pena preventiva especial sem qualquer objetivo de prevenção geral, apesar da
dominância absoluta dos fins ressocializadores durante a fase da execução da pena.
A teoria unificadora da prevenção, tal como é defendida por Roxin, enquadra ambos
os fins num sistema cuidadosamente ponderado que só no entrelaçar dos seus
elementos dá fundamento teórico à punição estatal. Mas recusa, em absoluto, o fim
25
de retribuição. Mas a recusa da retribuição como fim da pena não implica que a culpa
não tenha qualquer papel a desempenhar na teoria unificadora da prevenção. Ao
contrário, o princípio da culpa desempenha um papel decisivo na limitação da pena.
A pena não pode ultrapassar, na sua duração, a medida da culpa, mesmo que tal seja
desejável para satisfação dos interesses de prevenção geral ou especial. O princípio
da culpa tem uma função liberal, totalmente independente de qualquer ideia de
retribuição e essa função tem de se manter intacta num Direito Penal moderno. Tal
princípio constitui um limite ao poder de punir do Estado, na medida em que, seja
qual for a pena exigida por necessidades de prevenção, a sua medida não poderá ser
superior à medida da culpa. Esta constitui o limite máximo até ao qual pode ir a
privação da liberdade do delinquente, sem violação da dignidade humana. Esta
exigência de que a pena em caso algum poderá ser superior à culpa do autor é hoje
geralmente aceite, tal como é, em geral, reconhecido que este princípio tem
consagração Constitucional, nomeadamente nos artigos. 1º e 25º, nº 1. Mas se
nenhuma pena pode ir para além da culpa do agente, nada impede que a pena possa
ficar aquém dos limites da culpa, na medida em que os fins preventivos o admitam.
Esta teoria permite ainda eliminar as objeções que, em geral, são levantadas à
utilização do conceito de culpa em Direito Penal, com base em que ela pressupõe o
livre arbítrio que é indemonstrável. Na verdade a culpa pressupõe a liberdade do
homem para se poder comportar de outro modo. Mas se a culpa não é vista como
fundamento do poder de punir do Estado, mas apenas como um meio de o limitar na
utilização da pena com fins preventivos, a legitimidade do seu reconhecimento como
meio de preservar a liberdade dos cidadãos, não depende da sua comprovabilidade
empírica. A sua suposição é um pressuposto normativo, uma "regra de jogo social",
que se não pronuncia sobre a questão de saber como é configurada a liberdade
humana. Simplesmente prescreve que o homem deve ser tratado pelo Estado, em
princípio, como livre e capaz de responsabilidade. A questão da existência real de

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uma liberdade da vontade pode e deve ser mantida entre parenteses porque é
objetivamente indemonstrável. E como o princípio da culpa só serve como
instrumento de limitação da prevenção, isso não ofende o indivíduo, antes o protege.

O problema dos fins das penas e a doutrina do Estado, nomeadamente à luz da sua
evolução em Portugal3: se o problema das finalidades das penas se conexiona diretamente com
a questão da legitimação do direito de punir estatal, então é seguro toda esta questão se encontra
co-naturalmente ligada à própria doutrina do Estado e à sua evolução. O caso português é, a este
propósito, exemplar a vários títulos. Presente embora desde sempre na discussão teórica, bem
26
se compreende que o problema dos fins das penas só se tenha ganho um explícito
relacionamento com a doutrina do Estado desde que se iniciou a história da codificação em
sentido moderno; quando precisamente começou também a questionar-se, em termos racionais
secularizados, a própria fundamentação e legitimação do poder punitivo estatal. Bem podendo
afirmar-se que até aí se procurava compreender teoricamente a pena como instrumento de
justiça divida delegada, enquanto praticamente ela se assumia como instrumento destinado a
cumprir – quantas vezes pelo terror – a vontade e os propósitos políticos do soberano. Assim
aconteceu também em Portugal, sem prejuízo de dever assinalar-se que uma certa tradição de
compilação das leis penais – no sentido permitido pelas conceções jurídicas medievais – se
instaurou praticamente desde os primeiros tempos da nacionalidade. Já na Espanha visigótica o
chamado Codex Legum Visigothorum, que chegou a exercer influência direta nos primeiros
tempos também do reino de Portugal, continha inúmeras disposições jurídico-penais, tendentes
sobretudo a combater as formas privadas de reação criminal. É verdade que cedo este conjunto
de disposições foi subvertido, na sai aplicação prática, pelo Direito consuetudinário, com o
recrudescimento inevitável dos instituto da vingança privada e da perda de paz. Com o
fortalecimento do poder público e o renascimento do Direito Canónico e Romano, no entanto,
desde 1221 que se restaurou a tendência para a publicização do ius puniendi, à qual correspondeu
um esforço de elaboração legal, embora casuística, de todo o Direito Penal. As Ordenações
Afonsinas (1446) compilaram, reformaram e complementaram esta legislação extravagante,
contendo no seu Livro V (o chamado Liber Terribilis) aquilo que bem pode considerar-se o
primeiro Código Penal e Processual Civil Português. A estas Ordenações se seguiram as
Ordenações Manuelinas (1521) e as Ordenações Filipinas (1603), que vigoraram, no que ao
Direito Penal respeita, até ao Código Penal Português de 1852. A legislação penal das Ordenações
era caracterizada pela ausência de parte geral, por uma parte especial de natureza
eminentemente casuística e por penalidades em regra não previamente fixadas,
desproporcionadas, desiguais e cruéis. Na evolução da sempre renovada discussão entre
doutrinas retributivas e preventivas podem divisar-se certos períodos fundamentais. O primeiro
determinado pela receção, a nível jurídico-penal, da ideologia própria do Estado liberal e
individualista, corresponde à vigência do CP 1852. O seguinte, iniciado com a publicação da
Reforma Penal de 1884, encontra expressão no CO 1886 e, se bem que com múltiplos
aditamentos e modificações, estende-se até 1982. O último período tem início com a entrada em
vigor deste CP, reformado a 1 outubro 1995; e pretende traduzir a Constituição político-criminal
própria de um Estado de Direito contemporâneo, de cariz social e democrático.

3
Dias, Jorge Figueiredo; Direito Penal, Parte Geral, tomo I; Coimbra Editora, 2.ª Edição; Outubro 2012,
Coimbra.

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As finalidades e a justificação da pena na época das Luzes e no CP 1852: foi a Constituição


Portuguesa de 1822 que, também no domínio do Direito Penal, veio pôr fim à ideologia própria
do ancien régime e propiciar a introdução dos princípios humanísticos e racionais do Iluminismo.
Declarando solenemente, no artigo 10.º, que «nenhuma lei, muito menos a penal, será
estabelecida sem absoluta necessidade»; e no artigo seguinte que «toda a pena deve ser
proporcionada ao delito e nenhuma deve passar da pessoa do delinquente. Ficam abolidas a
tortura, a confiscação dos bens, a infâmia, o baraço e o pregão, a marca de ferro quente e todas
as penas cruéis e infamantes», a Lei Fundamental portuguesa dissociava definitivamente a Direito
Penal das suas origens místicas, que clara e fortemente o haviam domando durante toda a Idade
Média e mesmo durante a inteira vigência das Ordenações; para o tomar na sua correta veste de 27
instituição humana estatal, subordinada a uma política criminal imanente e a uma teleologia
racional. Assim o colocava, numa palavra, mesmo no centro histórico-espiritual daquilo que havia
constituído o poderoso movimento – tão poderoso que ainda hoje se deve considerar longe de
esgotado – do Iluminismo Penal. O seu propósito politico principal era dirigido à eliminação das
penas arbitrárias e à limitação do poder do Estado absoluto no que respeita à medida da pena. A
legitimação do direito de punir só podia provir agora dos termos do contrato social e conduzia a
assinalar à pena uma finalidade primária de prevenção geral de intimidação; limitada, em todo o
caso, por uma ideia de proporcionalidade com a gravidade do crime e a culpa do agente. Nesta
medida se podia dizer que a finalidade da pena residira em alcançar a prevenção geral
indispensável através daquilo que se considerava uma justa retribuição. Em 1883 José Manuel da
Veiga apresentou um Projeto de Código Criminal que – atenuando decididamente o rigor punitivo
das Ordenações e mesmo do Projeto de Mello Freire, eliminando as penas bárbaras e fazendo da
pena de prisão o nódulo de todo o sistema sancionatório – representava a primeira manifestação
legislativa coerente e concertada do Liberalismo Penal. Este projeto, porém, se bem aprovado
em 1837, não chegou a ser posto em execução. A primeira codificação penal portuguesa só teve
lugar por intermédio do CP de dezembro 1852, que veio finalmente pôr termo à vigência foral do
Direito Penal medieval das Ordenações. Aquele Código foi considerado pelos seus principais
comentadores como uma cópia – pouco mais que mera tradução, que de resto nem sempre teria
sido cuidada e fiel – do CP napoleónico de 1810. Um tal juízo representa uma exageração,
cientificamente inadmissível, e uma ideia exata: a de que o CP 1852 mergulhava bem as suas
raízes no mesmo património ideológico que presidira ao CP napoleónico e, nomeadamente, no
património ideológico do Iluminismo Penal. Mas apresentava em todo o caso notáveis diferenças
logo no ponto que aqui muito particularmente se encontra em consideração: o do sentido e das
finalidades da pena. Tal como o Código Napoleónico, o CP português 1852 concebia a pena como
instrumento visando primariamente finalidades de prevenção geral e, na verdade, de prevenção
geral de intimidação. Dele se não pode porém dizer – como se pode do seu modelo gaulês – que
fosse um Código de penas fixas, de intimidação geral tarifada e, por conseguinte, de todo
estranho a ideias de limitação, no que toca à pena e à sua medida, do intervencionismo estatal.
Bem pelo contrário – em virtude da influência que sobre a sua feitura exerceram o CP brasileiro
1830 e o espanhol de 1848 – se algumas penas fixas consagrava, a generalidade delas eram
todavia penas temporárias ou variáveis, cuja medida abstrata oscilava entre um máximo e um
mínimo legalmente estatuídos e onde o encontro da medida concreta das penas variáveis, ele
continha já extensas listas de circunstâncias, agravantes e atenuantes, que serviam para graduar
a pena consoante a influência que exercessem na culpa do criminoso. O que isto significa para o
nosso problema é agora óbvio. A conceção das finalidades da pena que presidia ao diploma
português de 1852 não pode de modo algum dizer-se o de um prevenção geral de intimidação
sem limites , mas era – como afinal correspondia rigorosamente ao pensamento de Montesquieu

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e de Beccaria – uma prevenção geral limitada por um princípio estrito de proporcionalidade e, na


verdade, segundo a sua forma mais perfeita, pela ideia de culpa; se bem que certamente uma
culpa que nada ficava a dever a considerações absolutas de retribuição ou expiação. O que talvez
possa justificar a conclusão de que aquele Código, vilipendiado como tradução medíocre do
Código Francês, era afinal muito mais do que isso, a saber, a expressão mais pura do património
ideológico-cultural do Iluminismo Penal.

As finalidades e a justificação da pena na época liberal e no CP 1886: as críticas de que o CP


1852 foi objeto, provenientes de setores importantes da doutrina portuguesa, foram de tal
ordem que ainda em 1852 foi nomeada uma comissão com o encargo de proceder à sua revisão!
Foi assim que em 1861 se elaborou um Projeto que, depois de corrigido, haveria de ser
28
oficialmente proposto aos poderes públicos em 1864. Sob influência das doutrinas
correcionalistas de Roeder . que terão sido carreadas sobretudo por Levy Maria Jordão –, o
projeto revelava claramentge uma orientação de prevenção especial, privilegiando a inclinação
do Direito Penal para a correção e o melhoramento do delinquente. Donde se propusesse um
adoçamento substancial das penas e a eleição da pena de prisão como núcleo de todo o sistema
punitivo, para além de pela primeira vez se erigir um sistema penitenciário coerente, baseado no
chamado sistema de Filadélfia (isolamento quanto possível total do detido, com trabalho celular,
como forma ótima de alcançar a sua indispensável metanoia ou reforma espiritual e interior); e
também se propusesse já a criação de estabelecimentos correcionais e de refúgio de menores e
institutos como os da liberdade condicional, da deteção suplementar, do patronato e do registo
criminal. Nenhum dos mencionados projetos de reforma entrou em vigor. Mas nem por isso as
principais inovações neles sugeridas deixaram de ser consagradas em leis especiais: a lei de 1863
relativa ao registo criminal e a de 1 julho 1867 que, para além de abolir (até hoje!) as penas de
morte e de trabalhos forçados, adotou o modelo penitenciário de Filadélfia. Todo este regime se
manteve em vigor até 1913. Apesar das reformas assinaladas, o CP 1852 persistia como lei vigente,
revelando uma cada vez mais funda dessintonia entre os postulados em que repousava,
nomeadamente na questão dos fins das penas, e uma nova compreensão dos supostos filosóficos
e jurídico-políticos em que assentava a doutrina do Estado. Toda a doutrina do Estado Liberal da
segunda metade do século XIX não pôde, efetivamente, manter-se estranha à formidável
influência da filosofia idealista alemã da Kant e Hegel, tanto mais quando ela, ao menos na
interpretação então dominante, servia os interesses e os propósitos da burguesia em ascensão e
já, em alguns lados, triunfante. O que não podia deixar se de repercutir na compreensão básica
da ciência penal. Sem abandono dos princípios fundamentais que haviam sido introduzidos pelo
constitucionalismo na esteira do iluminismo penal e haviam conduzido a um primeiro estádio da
que mais tarde ficaria conhecida como a Escola Clássica da ciência penal, esta assume agora uma
nova caracterização essência, que lhe é emprestada pela elevação da conceção ético-retributiva
a elemento essencial das finalidades das penas. Isto ocorreu no pensamento jurídico-penal
português, no entanto, com duas notas características. Por um lado a resultante da circunstância
de aquela elevação se fazer em nome de uma certa influencia hegeliana, antes que kantiana. Por
outro lado, e sobretudo, a que derivava do acolhimento que em Portugal haviam merecido, desde
o primeiro momento, as teses correcionalistas da prevenção especial. Teses que antecipavam de
algumas décadas a Escola Moderna ou Escola Positiva que, pelo dobrar do século, havia de se
impor em Itália – sobretudo pela mão de criminólogos como Lombroso – e na Alemanha –
sobretudo por obra de Franz Von Liszt; que haveriam de conduzir à substituição do referente
ético-retributivo pelo especial-preventivo em matéria de justificação e de finalidades da pena. O
que, seja relembrado, assinalou o momento inicial de uma acerada luta de escolas que haveria

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de marcar toda a evolução da ciência penal até aos anos 60 do século XX. Assim se compreende
que a referida evolução tivesse determinado a morte do CP português de 1852. Mas que esta não
tivesse conduzido à substituição da sua conceção de pena por uma conceção ético-retributiva,
antes tivesse dado origem a um ponto de vista eclético quanto aos fundamentos do direito de
punir, onde a ideia ético-retributiva se procurava casar com as novas orientações da prevenção,
sobretudo da prevenção especial correcioniista. Foi isto o que no essencial se passou com a Nova
Reforma Penal de 1884 que, aplicada ao CP português de 1852, havia de conduzir a uma nova
codificação penal, o chamado CP 1886. Assim se aproximou a reforma, em matéria de finalidades
da pena, da teoria da reparação moral de Welcker, através da qual se procurava harmonizar,
como finalidades da sanção criminal, a retribuição, a prevenção especial e a própria prevenção 29
geral: nos limites de uma pena retributiva visava-se satisfazer tanto as necessidades de reinserção
social do delinquente, como as exigências de intimidação individual e coletiva. A ideia que, deste
modo, se imputa ao CP 1886 de erigir a retribuição em fundamento e finalidade da pena não
pode aceitar-se. Pelo contrário, não é difícil censurar-lhe, ao fim e ao cabo, uma regressão,
relativamente ao CP 1852, do pensamento da culpa, sobretudo na medida em que o catálogo de
penas constante do seu artigo 55.º e seguintes e continha uma generalidade de penas fixas, como
tais insuscetíveis de tomarem em consideração a culpa do agente. Com o que, de resto, não
deixavam de eliminar-se praticamente as vantagens que se poderiam esperar da circunstância de
se consagrar pela primeira vez um critério de medida (de determinação concreta ou judicial) da
pena em função da gravidade do crime. Por isso deve concluir-se que a confissão, constante do
relatório da reforma, a favor das doutrinas retributivas não passava da afirmação de um princípio
– que todavia nem sequer conduziu, da parte da lei e da própria jurisprudência, à eliminação da
responsabilidade penal objetiva ou sem culpa – de fundamentação ou justificação filosófica da
pena; enquanto na questão concreta das suas finalidades persistia e mesmo se acentuava uma
orientação preventiva, nomeadamente de prevenção especial de correção. A conclusão a retirar
de quanto em síntese ficou exposto relativamente à longa época do Estado liberal português
(1820-1926) é a de que a doutrina da pena e das suas finalidades – correspondente embora, no
essencial, aos pressupostos subjacentes à chamada Escola Clássica – não assumiu nunca o carater
rígido, absoluto e intolerante que constituiu, na ciência jurídico-penal de outros países, como que
a imagem de marca desta orientação. Tal ficou sobretudo a dever-se à particular permeabilidade
da ciência e da legislação jurídico-penais portuguesas, desde estádios particularmente precoces
da evolução, ao pensamento da prevenção especial positiva, sob a égide do pensamento
correcionista. Pensamento este – e não será ocioso sublinhá-lo, desde já – que todavia se não
autonomizou, no sentido de transformar todo o Direito Penal português em um Direito de pura
prevenção especial, de tratamento do delinquente, livre das barreiras ético-jurídicas da culpa,
como haveria de ser pretensão da Escola Positiva; mas antes se manteve sempre, em geral,
dentro dos limites garantísticos e de respeito pelos direitos individuais que constituíram
património inalienável do Iluminismo e do Liberalismo penais e da chamada Escola Clássica.

As finalidades e a justificação da pena na Época do Estado corporativo: não parece


cientificamente legítimo afirmar que os pressupostos antidemocráticos e antiliberais que
caracterizaram o chamado Estado Corporativo ou Estado Novo influenciaram em geral e
diretamente a doutrina ou mesmo a legislação jurídico-penais portuguesas, no sentido de as
aproximar das que, com diferentes características, foram esboçadas ou se consolidaram em
Estados totalitários. Em todo este longo período (1926-1974) os pressupostos garantísticos
essenciais – como os do princípio da legalidade, da culpa e da humanização do sistema punitivo
– foram mantidos tanto na legislação, como na doutrina, e em certos casos e em certas épocas

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mesmo acentuados. Para isso terá contribuído em larga medida a pretensão de se assumir aquilo
que se considerava o caráter e a missão éticos do Estado e que levaram a que a conceção
retributiva da pena não tivesse sido nunca posta radicalmente em causa; como levaram a que
nunca fossem abandonados os limites que todo o pensamento preventivo a si mesmo tem de se
impor em nome da defesa da dignidade da pessoa. O que caracterizou todo este período de
evolução da conceção da pena no ordenamento jurídico português não foi nunca, por isso, uma
conversão às teses puramente especial-preventivas da escola moderna ou positiva; mas o desejo
de levar tão longe quanto fosse possível a compatibilização entre uma fundamentação ético-
retributiva da pena, que se desejava manter a todo o custo, e uma sua finalidade de prevenção
especial positiva ou de socialização à qual o direito penal português nunca se mostrou disposto a 30
renunciar. A questão fulcral era assim a de saber como poderiam articular-se, sem contradição,
as exigência de que a culpa (que se pensava estar co-naturalemente ligada a uma conceção ético-
retributiva da pena) continuasse a ser considerada fundamento da punição; e de que à prevenção,
sobretudo na forma de prevenção especial de sociabilização, fosse concedido o espaço
necessário para que todo o sistema punitivo desse resposta mínima às necessidades político-
criminais correta e razoavelmente entendidas. Uma tal articulação foi tentada, na ciência jurídico-
penal portuguesa – com claros reflexos na legislação – através da referência da culpa, antes que
(ou não só) ao facto, à (ou também à) personalidade do agente. E esta tentativa foi em Portugal
levada à exaustão dogmática por doutrinas como a do monismo prático as penas e medidas de
segurança de Beleza dos Santos. De tal modo e a tal ponto que este conjunto de conceções,
qualquer que seja a concordância ou discordância que hoje elas devam merecer, passou a
constituir um dos traços mais característicos e mesmo, em larga medida, mais originais da
doutrina portuguesa do Direito Penal. Mais originais e, no fim, mais dignos de apreço quando se
repare como, por esta via, se cortava o passo a eventuais tentativas de (des)consideração dos
delinquentes especialmente perigosos, imputáveis ou inimputáveis, como objetos da intervenção
penal: tentativas hoje de novo na ordem do dia. Se quisermos, em jeito de conclusivo, reduzir a
uma fórmula o sentido e as finalidades que presidiram à compreensão da pena durante todo este
período, ela não poderá andar longe da seguinte: pena retributiva com finalidades de prevenção
especial. Prevenção especial que todavia, relativamente a casos particulares (os casos de especial
perigosidade, nos quais lamentavelmente se incluía por presunção – é preciso não o esquecer –
toda a criminalidade política e onde a prevenção especial se exprimia, praticamente de forma
exclusiva, com um cariz puramente negativo, como prevenção especial de segurança), assumia
valor autónomo; sem prejuízo de ser limitada, em toda a medida possível, por uma ideia de culpa
referida à personalidade do agente.

A evolução posterior à institucionalização do Estado de Direito: por ser assim, não seria exato
pensar que a democratização da vida pública portuguesa após o 25 de abril de 1974 teria
introduzido uma modificação sensível nestas matérias da fundamentação e das finalidades da
pena. O Projeto da Parte Geral de um novo CP, elaborado por Eduardo Correia em 1963, era,
neste tema como em outros, o espelho fiel e expressivo do pensamento político-criminal e
dogmático do seu Autor. O artigo 2.º daquele Projeto continha, numa fórmula lapidar, a
conclusão acima exposta: «quem age sem culpa não é punível. A medida da pena não pode
exceder essencialmente a culpa do agente pelo seu facto ou pela sua personalidade criminalmente
perigosa». Esta conceção era compatível, em boa parte, com os princípios do Estado de Direito,
tomado este tanto na sua vertente liberal, como na social. Embora não o fosse completamente,
porque aqueles princípios impõem que em caso algum a medida da pena exceda, essencialmente
ou não, a medida da culpa. As razões da entorse continham-se, todavia, em limites ainda

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suportáveis à época: quando, na maioria do Direito Penal legislado das mais consolidadas
democracias, o princípio da culpa não tinha ainda ganho ilimitada validade. E era tanto mais
suportável quanto, como se disse, a entorse era motivada não por razões de prevenção geral
negativa, muito menos e utilidade ou de pragmatismo políticos, mas pelo vasto campo que se
pretendia conceder à prevenção especial de socialização e a uma política criminal nela assente.
Residindo aqui porventura a mais funda razão porque os Projetos de Eduardo Correia não
conseguiram consagração legislativa os tempos da ditadura corporativa. Quando por isso, depois
do Movimento de 25 abril de 1974, em 1976, os trabalhos de revisão do CP foram retomados, os
fundamentos em que assentava a conceção da pena no Projeto de 1963 não foram
essencialmente questionados. Já porém quando, em 1982, o novo CP foi finalmente publicado, 31
uma circunstância importante perturbou a clareza com que as opções político-criminais
fundamentadoras da pena se encontravam vertidas no Projeto. Essa circunstância é
compreensível. Dado o caráter então ainda não definitivamente institucionalizado da democracia
portuguesa e as ainda estreitas margens dos consensos comunitários alcançados, o CP 1982
procurou – atento o particular condicionalismo sócio-cultural e político em que foi aprovado e
entrou em vigor – apresentar-se como um diploma descomprometido até ao limite possível de
supostos subjacentes tanto em matéria político-criminal, como dogmática; o que – entre outras
alterações – fez com que desaparecesse o citado artigo 2.º ProjPG, sem que ele fosse substituído
por qualquer outro preceito à luz do qual se pudesse ganhar clareza sobre o problema que nos
ocupa. Se um tal propósito, todavia, terá facilitado o processo político da aprovação, a breve
trecho teve de reconhecer-se que ele dificultava em elevadíssimo grau a interiorização das
opções político-criminais e dogmáticas que ao novo código continuavam a presidir. Até um grau
tão elevado que conduziu a erros de aplicação diretamente relacionados com a pena, a sua
fundamentação, o seu sentido e as suas finalidades; e que conduziu, nos pontos mais
fundamentais, mesmo a um – quase sempre latente, mas sempre patente – processo ilegal de
desaplicação da lei. Matérias como as da medida da pena e da sua fundamentação, da
subsidiariedade da pena de prisão, da aplicação de penas de substituição ou mesmo (se bem em
menor grau) de medidas de segurança são exemplos frisantes do que acaba de afirmar-se. A
Comissão Revisora de 1991 – de cujas propostas resultou a Reforma do CP 1995 – trabalhou num
quadro sócio-cultural e político inteiramente diverso daquele em que havia decorrido a parte final
da elaboração e aprovação do diploma de 1982: num quadro típico já de uma democracia e de
um Estado de Direito estabilizados e consolidados. Ela pôde, por outro lado, servir-se da
inestimável experiência do que foram as dificuldades, os êxitos e os fracassos de aplicação do
Código durante o primeiro decénio da sua vigência. Estava, por isso, em condições de apresentar
com clareza o seu programa político-criminal e dogmático, bem como a sua leitura do programa
político-criminal e dogmático subjacente à codificação de 1982, nomeadamente em tema de
fundamentação, de sentido e de finalidades da penas.

Finalidades e limite das penas criminais:


1. A natureza exclusivamente preventiva das finalidades da pena: a base da solução aqui
defendida para o problema dos fins das penas reside em que estes só podem ter natureza
preventiva – seja de prevenção geral, positiva ou negativa, seja de prevenção especial,,
positiva ou negativa –, não natureza retributiva. O Direito Penal e o seu exercício pelo
Estado fundamentam-se na necessidade estatal (hoc sensu, contratualista social) de
subtrair à disponibilidade (e à autonomia) de cada pessoa o mínimo dos seus direitos,
liberdades e garantias indispensável ao funcionamento, tanto quanto possível sem
entraves, da sociedade, à preservação dos seus bens jurídicos essenciais; e a permitir por

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aqui, em último termo, a realização mais livre possível da personalidade de cada um


enquanto indivíduo e enquanto membro da comunidade. Se assim é, então também a
pena criminal – na sua ameaça, na sua aplicação concreta e na sua execução efetiva – só
pode perseguir a realização daquela finalidade, prevenindo a prática de futuros crimes.
Desta conceção básica resulta que se não justifica, nem é conveniente, nem eficaz,
assinalar à pena ou só finalidades de prevenção geral, ou só de prevenção especial. Umas
e outras devem combinar-se e coexistir da melhor forma e até ao limite possíveis, porque
umas e outras se encontram no propósito comum de prevenir a prática de crimes futuros.

2. Ponto de partida: as exigências da prevenção geral positiva ou de integração:


primordialmente, a finalidade visada pela pena há-de ser a da tutela necessária dos bens 32
jurídico-penais no caso concreto; e esta há-de ser também por conseguinte a ideia
mestra do modelo de medida da pena. Tutela dos bens jurídicos não obviamente num
sentido retrospetivo, face a um crime já verificado, mas com um significado prospetivo,
corretamente traduzido pela necessidade de tutela da confiança (de que já falava Beleza
dos Santos) e das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma
violada; sendo por isso uma razoável forma de expressão afirmar como finalidade
primária da pena o restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime.
Uma finalidade que, deste modo, por inteiro se cobre com a ideia de prevenção geral
positiva ou prevenção de integração; e que dá por sua vez conteúdo ao princípio da
necessidade da pena que o artigo 18.º, n.º2 CRP consagra de forma paradigmática. A
ponto de se poder defender que onde a aplicação de uma pena – e a determinação da
sua medida – não fosse essencialmente comandada por esta finalidade, aí se divisaria
uma infração ao espírito (se não à própria letra) da referida norma constitucional. A
Günter Jakobs se fica devendo a fórmula – emitida na esteira de Luhmann – segundo a
qual a finalidade da pena reside na estabilização contrafática das expectativas
comunitárias na validade da norma violada. Afirmar que a prevenção geral positiva ou de
integração constitui a finalidade primordial da pena e o ponto de partida para a resolução
de eventuais conflitos entre as diferentes finalidades preventivas traduz exatamente a
convicção de que existe uma medida ótima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas
comunitárias que a pena se deve propor alcançar; medida esta que não pode ser exercida
(princípio da necessidade) por considerações de qualquer tipo, nomeadamente por
exigências (acrescidas) de prevenção especial, derivadas de uma particular perigosidade
do delinquente. É verdade, porém, que esta medida ótima de prevenção geral positiva
não fornece ao juiz um quantum exato de pena. Abaixo do ponto ótimo ideal outros
existirão em que aquela tutela é ainda efetiva e consistente e onde portanto a pena
concreta aplicada se pode ainda situar sem que perca a sua função primordial de tutela
dos bens jurídicos. Até se alcançar um limiar mínimo – chamado defesa do ordenamento
jurídico –, abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem
se pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar de bens jurídicos. Bem podendo
assim dizer-se a concluir, que é a prevenção geral positiva que fornece uma moldura de
prevenção dentro de cujos limites podem e devem atuar considerações de prevenção
especial; e não a culpa, como tradicional e ainda hoje maioritariamente se pensa, que
fornece uma moldura de culpa. Fica por esta via esvaziada de conteúdo uma das questões
mais vivamente discutidas a propósito do papel da prevenção geral na doutrina dos fins
das penas: a de saber se seria lícita uma qualquer elevação da pena em nome de
exigências de prevenção geral negativa ou prevenção de intimidação da generalidade. A

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intimidação da generalidade, sendo sem dúvida um efeito a considerar – e seria hipocrisia


desconhece-lo ou ocultá-lo – dentro da moldura de prevenção geral positiva, não
constitui todavia por si mesma uma finalidade autónoma da pena, somente podendo
surgir como um efeito lateral (porventura, em certos ou em muitos casos desejável) da
necessidade da tutela dos bens jurídicos.

3. Ponto de chegada: as exigências da prevenção especial, nomeadamente da prevenção


especial positiva ou de socialização: dentro da moldura ou dos limites pela prevenção
geral positiva ou de integração – entre o ponto ótimo e o ponto ainda comunitariamente
suportável de medida da tutela dos bens jurídicos (ou de defesa do ordenamento jurídico)
– devem atuar, em toda a medida possível, pontos de vista de prevenção geral, sendo 33
assim eles que vão determinar, em última instância, a medida da pena. Isto significa que
releva neste contexto qualquer uma das funções que o pensamento da prevenção
especial realiza: seja a função positiva de socialização, seja qualquer uma das funções
negativas subordinadas de advertência individual ou de segurança ou inocuização. A
medida da necessidade de socialização do agente é no entanto, em princípio, o critério
decisivo das exigências de prevenção especial, constituindo hoje – e devendo continuar
a constituir no futuro – o vetor mais importante daquele pensamento. Ele só entra em
jogo porém se o agente se revelar carente de socialização. Se uma tal carência se não
verificar tudo se resumirá, em termos de prevenção especial, em conferir à pena uma
função de suficiente advertência; o que permitirá que a medida da pena desça até perto
do limite mínimo da moldura de prevenção ou meso oque com ele coincida (defesa do
ordenamento jurídico).

4. A culpa como pressuposto e limite da pena: se a retribuição não tem qualquer palavra a
dizer em matéria de finalidades da pena, a ela pertence, segundo a sua história e segundo
o seu conteúdo, o mérito indeclinável de ter posto em evidência a essencialidade do
princípio da culpa e do significado deste para o problema das finalidades da pena.
Segundo aquele princípio «não há pena sem culpa e a medida da pena não pode em caso
algum ultrapassar a medida da culpa». A verdadeira função da culpa no sistema punitivo
reside efetivamente numa incondicional proibição do excesso; a culpa não é fundamento
da pena, mas constitui o seu pressuposto necessário e o seu limite inultrapassável: o
limite inultrapassável por quaisquer considerações ou exigências preventivas – sejam de
prevenção geral positiva de integração ou antes negativa de intimidação, sejam de
prevenção especial positiva de socialização ou antes negativa de segurança ou de
neutralização. A função da culpa, deste modo inscrita na vertente liberal do Estado de
Direito, é, por outras palavras, a de estabelecer o máximo de pena ainda compatível com
as exigências de preservação da dignidade da pessoa e de garantia do livre
desenvolvimento da sua personalidade nos quadros próprios de um Estado de Direito
Democrático. E a de, por esta via, constituir uma barreira intransponível ao
intervencionismo punitivo estatal e um veto incondicional aos apetites abusivos que ele
possa suscitar. Na realidade das coisas, conflitos frequentes podem surgir entre a culpa
e a prevenção especial, seja negativa ou mesmo positiva, bem como entre a culpa e a
prevenção geral de intimidação. Mas já não será fácil excogitar hipóteses em que o ponto
ótimo ou ainda aceitável de tutela dos bens jurídicos venha a situar-se acima daquilo que
a adequação à culpa permite. Com efeito, como insistentemente tem acentuado Roxin,
as razões de diminuição da culpa são, em princípio, também comunitariamente
compreensíveis e aceitáveis e determinam que, no caso concreto, as exigências de tutela

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dos bens jurídicos e de estabilização das normas sejam menores. Em princípio pois não
se anteveem conflitos insanáveis entre culpa e prevenção geral de integração. O que não
significa todavia que a prevenção de integração seja apenas um outro nome, ou uma
outra perspetiva, da mesma realidade que seria a culpa. De toda a exposição anterior
resulta que se trata ali de realidades diferentes, que possuem diferentes fundamentos e
exercem funções diferenciadas dentro do sistema e dentro do problema das finalidades
da pena. Assim entendidas as coisas, parece dispensável – se não for mesmo equívoca –
a ideia de que (não as finalidades, mas) a legitimação da pena repousa substancialmente
num duplo fundamento: o da prevenção e o da culpa; e isto porque a pena só seria
legítima «quando é necessária de um ponto de vista preventivo e, para além disso, é 34
justa», não se tratando deste modo de uma «união eclética de elementos heterogéneos»,
mas de uma «justificação cumulativa». Esta acumulação, na parte em que é exata, já
encontra plena tradução na ideia de que a culpa é pressuposto indispensável e limite
inultrapassável da pena, não se tornando necessário turvar a limpidez da natureza
exclusivamente preventiva das finalidades da pena com exigências (se bem que
justificadas) de justiça e de merecimento da sua aplicação. Toda a pena que responda
adequadamente às exigências preventivas e não exceda a medida da culpa é uma pena
justa.

5. Conclusão: a teoria penal aqui defendida pode resumir-se do modo seguinte:


a. Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial;

b. A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa;

c. Dentro deste limite ela é determinada no interior da uma moldura de prevenção


geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto ótimo de tutela
dos bens jurídicos e cujo limite superior é constituído pelas exigências mínimas de
defesa do ordenamento jurídico;

d. Dentro dessa moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é


encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou
de socialização, excecionalmente negativa, de intimidação ou de segurança
individuais.

O programa político-criminal que, na sua extensão enorme, se consubstancia nas


proposições conclusivas acabadas de enunciar decorre diretamente, repete-se ainda
uma vez, do artigo 18.º, n.º2 CRP e foi coerentemente assumido pelo legislador penal
português de 1995, que o precipitou nos n.º1 e 2 do artigo 40.º CP. O n.º1 declara
paradigmaticamente que «a aplicação das penas (…) visa a proteção de bens jurídicos e
a reintegração do agente na sociedade»; e o n.º2 estatui, em termos absolutos, que «em
caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa». É a confirmação plena, por parte
de um texto legislativo, do percurso doutrinário que acaba de percorrer-se e das
conclusões a que conduziu. A acusação de que uma disposição deste teor inscrita num
CP excederia a competência de qualquer legislador, porque teria a singular pretensão de
decidir da milenar controvérsia filosófico-doutrinal dos fins da pena, tem de ser
repudiada como infundamentada. É ao legislador democraticamente legitimado – e,
entre nós, exclusivamente à AR (artigo 165.º, n.º1, alínea c) CRP) – que compete vazar
proposições de política criminal do modus da validade jurídica.

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Os princípios constitucionais de Direito Penal4:


1. Princípio da legalidade: a racionalidade das normas que constituem o Direito Penal e
o modo da sua aplicação estão de tal forma condicionados por este princípio que bem
se poderá dizer que ele é a proposição jurídica fundamental do sistema penal,
impregnadora até do conteúdo de outros princípios. Segundo o princípio da legalidade,
os tribunais estão vinculados a não aplicar sanções penais sem lei anterior que as reveja
(nulla poena sine lege) e a não aplicar as sanções penais previstas sem que se realizem
determinados pressupostos, igualmente descritos na lei: a perpetração de uma
determinada conduta considerada crime ou, no caso das medidas de segurança,
35
reveladora de perigosidade criminal – trata-se neste caso da máxima nullum crimen sine
lege (artigos 29.º, n.º1 e 3 CRP e artigo 1.º CP). Esta subordinação do tribunal á lei
significa, além disso, que a solução do caso concreto está totalmente vinculada a um
modelo legal, isto é, a uma articulação já feita pelo legislador entre um determinado
caso, semelhante ao verificado em concreto, e uma solução para ele prevista. Assim, o
princípio da legalidade não é somente uma exigência de utilização de padrões legais
para a qualificação de um facto como merecedor de sanção e para a aplicação de sanção,
mas também a exigência de vinculação total do ato de aplicação de uma sanção, no caso
concreto, a uma decisão já tomada previamente, com um certo grau de concretização,
pelo legislador. Por isso, o princípio da legalidade traduz-se na articulação das duas
anteriores máximas com uma outra, nulla poena sine crimen, que significa que não
poderá aplicar-se uma sanção penal sem que se verifique um caso para o qual está
previamente determinada na lei a aplicação dessa sanção, se se verificarem todos os
pressupostos previstos. Historicamente, um tal condicionamento do Direito Penal por
este princípio explica-se pelo objetivo de assegurar a liberdade do indivíduo em face do
poder do Estado, evitando a possibilidade de ela ser arbitrariamente restringida, como
até certo momento tinha acontecido (o princípio da legalidade é uma das grandes
afirmações da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da Revolução Francesa
de 1789). Consequentemente, o controlo das decisões do poder não se limita ao tribunal,
mas começa pelo próprio legislador, como se poderá inferir da citada exigência de leis
prévias que prevejam os crimes e as correspondentes sanções. O legislador vincula-se a
não criar leis penais retroativas (artigos 2.º CP e 29.º, n.º4 CRP). O modelo de lei e de
decisão que o princípio da legalidade pretende instituir funciona até certo ponto, mas
tende a criar algumas ficções. Se pensarmos nas razões históricas do princípio da
legalidade, torna-se claro que o modelo do sistema penal por ele pressuposto cria
segurança ante o Direito e limita fortemente a possibilidade de decisões arbitrárias. Mas
também é verdade que um tal processo de aplicação da lei penal, meramente
subsuntivo, não é viável em absoluto, porque entre o caso da lei e o real não poderá
haver mais do que uma semelhança ou analogia. O condicionamento da decisão limita-
se a exigir que se considere essa possível analogia e que se demonstre uma certa
similitude entre o caso da lei e o real. Aquilo que, na verdade, se passa não é a
automatização do ato de decidir, visto como sotaposição lógica de um caso real ao legal
(subsunção), mas a vinculação do ato de aplicação da pena a uma demonstração ou
justificação (argumentativa) de que a lei quereria aplicar-se ao caso concreto. A
proibição da analogia, corolário lógico do princípio da legalidade, deve, assim, ser

4
Palma, Maria Fernanda; Direito Penal, parte geral; AAFDL; Lisboa, 1994.

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compreendida num sentido mais profundo do que proibição da utilização de raciocínios


analógicos contra reo na operação de decidir. Deve ser entendida como a proibição de
que se faça uma assimilação do caso concreto pelo da lei, sem que determinados
argumentos sejam possíveis. A expressão relativamente simbólica da lei cria no
intérprete a imagem de um caso típico, que é o modelo lógico da figura abstrata descrita
como ofensa grave, violência, etc., e que, na maior parte dos casos concretos, o
processo de decisão jurídica só pode ser a revelação da essência ou razão de ser do
modelo no caso real. Mas demonstrará a natureza dos raciocínios jurídicos próprios da
interpretação da lei penal que o princípio da legalidade só tem uma aparente função de
controlo da atividade das instâncias judiciais competentes para a decisão do caso 36
concreto, escapando pelas malhas dos múltiplos raciocínios analógicos a segurança
jurídica ou, por outras palavras, o mecanismo de controlo e seleção social da
criminalidade? Com efeito, é muitas vezes a ficção de interpretação da lei criada pelo
princípio da legalidade que permite, em caso em que a norma não é suficientemente
precisa, que o intérprete siga apenas a sua intuição e prescinda até de um raciocínio de
tipo analógico. O princípio da legalidade pode criar, deste modo, duas situações
extremas: a fixação rígida às palavras da lei e, no outro extremo, a libertação do
condicionamento das palavras, e a conclusão de que cabem, na expressão vaga e
simbólica d alei, situações em que não existe verdadeira igualdade material. O que há
então que concluir é que a função de controlo da aplicação da lei, desempenhada pelo
princípio da legalidade, se exprime em termos mais complexos do que os constantes das
proposições que têm sido utilizadas para a formulação deste princípio. Uma tal função
de controlo pressupõe, sobretudo, que a aplicação d alei resulte de um processo lógico
identificável dirigido à descoberta do sentido da lei (isto é, à delimitação dos valores
positivo e negativos que explicam a incriminação de um determinado comportamento).

2. Princípio da culpa: o princípio da culpa não é objeto de uma formulação legal


tão transparente como o da legalidade. Ao nível da Constituição, ele é deduzido
da essencial dignidade da pessoa humana e do direito à liberdade (artigos 1.º e
27.º CRP). No Código Penal, só é expressamente indicado como fator de
determinação da medida da pena (artigos 72.º, n.º1 e 73.º, n.º1 CP), mas a
doutrina tem-no utilizado como fundamento de outras consequências mais
profundas, que o tornam um dos mais debatidos argumentos a que se refere a
problemática da legitimação do Direito Penal. Atualmente, o princípio da culpa
costuma assumir um tríplice significado:
a. Como fundamento da pena: o princípio da culpa não é hoje unanimemente
aceite como fundamento da pena. O argumento principal que se opõe a uma tal
função resulta de o princípio da culpa pressupor uma ideia de responsabilidade
penal alheia aos fins do Estado de Direito democrático e social. Segundo este
argumento, é irracional atribuir à culpa, como desvalor ético-social derivado da
prática de certo comportamento, a função de legitimar a realização de fins do
Estado, como a proteção de bens jurídicos ou a efetivação de prestações sociais.
Não é assim racional que se puna a prática do mal, mas somente a provocação
de um dano que, de algum modo, afete os objetivos da Sociedade representada
pelo Estado. Com esta proposição do problema da racionalidade está
pressuposta, muito claramente, uma ideia: a de que o Direito Penal é

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instrumento do poder estatal e, portanto, da sua política. Mas este plano de


justificação racional do Direito Penal não esgota toda a questão da sua
legitimação. Um Direito Penal não é já legítimo porque as suas normas realizam
os objetivos da sociedade representada pelo Estado, mas porque os seus
comandos e proibições, assim como o processo que conduz à sua aplicação,
realizam ideias culturais de justiça que enformam as expectativas dominantes
na sociedade. É neste segunda dimensão que o princípio da culpa ainda
encontra o seu lugar como fundamento do Direito Penal, apesar de parecer
inadequado a vários padrões de racionalidade. A afirmação de que o princípio
da culpa só pode ser fundamento da pena no pressuposto da realização de um 37
princípio de justiça implica, no entanto, uma questão óbvia: o que tem o
princípio da culpa a ver com a ideia de justiça? A resposta parece orientar-se em
duas direções: a mera censurabilidade ético-pessoal não torna o homem
instrumento da sociedade ou do poder (dignidade da pessoa humana) e só a
censurabilidade ético-pessoal permite a discussão do acusado com o poder. A
primeira ideia corresponde à máxima kantiana de que o homem tem de ser
tomado como um fim em si mesmo. A segunda assenta na conceção da
realização da justiça através de um processo em que sociedade e o acusado se
defrontam como partes de um conflito. Segundo este entendimento, o princípio
da culpa passa a assumir uma função de segurança jurídica, delimitadora da
intervenção penal baseada em fins utilitários do Estado – torna-se um princípio
restritivo;

b. Como fator de determinação da medida da pena: o princípio da culpa é


dominantemente aceite como critério de determinação da medida da pena.
Não é, sem dúvida, o rigor quantitativo do que seja mais ou menos em matéria
de culpa que justifica a possibilidade da sua utilização como medida, mas a
maior possibilidade de chegar a comparações entre comportamentos e agentes
através da referência à ideia de culpa do que através de outros critérios, como
os que são próprios da prevenção geral;

c. Como princípio da responsabilidade subjetiva: o princípio da culpa é o produto


de uma longa evolução da construção jurídica da responsabilidade penal, que
levou à rejeição de princípios como a versari in re ilicita, segundo o qual seriam
imputáveis a um agente todas as consequências do seu ato ilícito. A essa solução
primária contrapõe-se hoje a solução complexa de limitar a responsabilidade ao
âmbito do domínio da vontade humana. A crença na liberdade e no poder de
ação causal do homem é o seu pressuposto.

3. Princípio da necessidade da pena: costuma apontar-se como um dos grandes


princípios orientadores do Direito Penal a necessidade da pena ou a intervenção
mínima do Estado em matéria penal. Este princípio traduziu historicamente a
ideia de que a utilização pelo Estado de meios penais deve ser limitada, ou
mesmo excecional, só se justificando pela proteção de direitos fundamentais.
Tratou-se pois de uma reação contra a utilização discricionária das penas pelo
poder político, ao serviço de quaisquer fins. Na sua origem ideológica, o princípio
da necessidade da pena pretendeu ser um limite substancial do Direito Penal,

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relacionado com a ideia de contrato social, segundo a qual só se justificaria a


restrição da liberdade quando, de alguma forma, as liberdades – para cuja
proteção teria sido instituída a sociedade política – estivessem em causa. No
entanto, o conteúdo do contrato social tem-se alterado com a evolução da
realidade e das ideologias políticas da sociedade democrática: não só à proteção
das liberdades, mas também à realização de múltiplos fins sociais, como a saúde,
a educação, o bem-estar, a cultura, etc., se entende hoje que é destinada a
sociedade política. Da ideia primitiva de contrato social, aquilo que parece restar
é a aceitação de que o poder político se justifica pelo serviço aos membros da
38
sociedade. O princípio da necessidade da pena assume quase sempre uma
perspetiva social do Direito Penal. O alcance do princípio da necessidade da pena
revela-se não só na discussão da legitimidade da incriminação mas também em
problemas de determinação da responsabilidade penal. Na discussão sobre a
legitimidade da incriminação, o apelo ao princípio da necessidade surge na
discussão sobre a carência de proteção penal do bem jurídico, sobre a falta de
alternativas à penalização da conduta e, finalmente, sobre a eficácia concreta da
incriminação. A primeira será contrariada quando se tratar de um mero valor
moral sem expressão num bem jurídico determinado, como a vida, a integridade
física, a liberdade, a honra ou o património; a segunda não se afirmará quando
os meios penais não forem absolutamente indispensáveis, existindo outros
meios sociais capazes de evitar determinados comportamentos; finalmente, a
eficácia concreta da incriminação não se verificará quando o Direito Penal não
evita a prática de certas condutas e chega a ter um papel criminógeno. Quanto
à intervenção do princípio da necessidade na determinação da responsabilidade
penal dois aspetos são assinaláveis: a conformação do conteúdo de certos
conceitos valorativos ou critérios dos quais depende a responsabilização penal e
a influência na medida da pena.
4. Princípio da igualdade penal: a igualdade, consagrada no artigo 13.º CRP,
orienta profundamente as soluções do sistema penal, apesar de ser princípio
específico do Direito Penal. Para além de proscrever a discriminação entre
pessoas é a igualdade que subjaz à ideia de proporcionalidade entre a gravidade
do ilícito e da pena e é a igualdade que sustenta a mediação da pena pela culpa.
A proporcionalidade implica que os factos de menor danosidade social sejam
sancionados, necessariamente, com penas mais leves. Da proporcionalidade não
se deverá extrair, porém, qualquer exigência automática de parificação das
penas, onde os princípios da culpa ou da necessidade da pena recomendarem
que certo facto seja punido menos gravemente apesar de a sua danosidade ser
idêntica à de outros mais severamente punidos. Assim, a proporcionalidade
justifica que um pequeno furto não possa nunca corresponder a pena mais
elevada do furto qualificado (artigo 297.º, n.º3 CP). Mas já não exige
automaticamente que a pena do aborto (artigo 139.º CP) seja superior à do furto
qualificado. A proporcionalidade não é expressão da lei taliónica, mas sim da

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garantia constitucional de que ninguém pode ser punido mais severamente do


que outrem por um facto menos grave. Já o princípio inverso – o de que ninguém
pode ser punido menos severamente do que outrem por factos idênticos ou mais
grave – não se deduz, rigorosamente, da garantia constitucional da igualdade. A
igualdade só se expressa na igualdade de direitos ou na igualdade de deveres se
esta última for necessária à satisfação de direitos alheios. Ora, não é concebível
um direito a quem outrem seja mais gravemente punido como expressão do
princípio da igualdade. A proporcionalidade é, aliás, um princípio formal, cujo
conteúdo é preenchido pelos outros princípios constitucionais de Direito Penal,
39
como a culpa e a necessidade da pena. Assim idêntica necessidade de punir
idêntica culpa justificarão idênticas penas – ou, pelo menos o direito a que não
seja mais gravemente punido. A diferenciação entre as penas dos crimes contra
as pessoas e dos crimes contra outros bens jurídicos é também uma
manifestação do princípio da proporcionalidade, na medida em que a máxima
danosidade social se articula com a máxima gravidade ética – a lesão de bens da
pessoa do outro. Para além das manifestações da igualdade através do princípio
da proporcionalidade, a igualdade justifica a seleção de novos bens jurídico-
penais, que poderíamos designar como bens da igualdade. A proteção em geral
dos mais fracos na estrutura social conduz à agravação de crimes clássicos devido
à qualidade da vítima e à criação de novos crimes em função da essencialidade
da não discriminação no Estado de Direito Democrático e Social.
5. Outros princípios: Humanidade do Direito Penal e das sanções criminais e
sociabilidade: novas ideias jurídicas têm sido descobertas como emanações do Estado
de Direito Democrático e Social. A doutrina refere-se ao princípio da Humanidade como
expressão da ideia de responsabilidade social pela delinquência e disposição de
respeitar e recuperar a pessoa do delinquente. Tal princípio justificaria a rejeição de
sanções atentatórias do respeito pela pessoa humana como a pena de morte, a prisão
perpétua, a tortura e as penas cruéis e degradantes (artigos 24.º, n.º2, 25.º, n.º2 e 30,
n.º1, 4 e 5 CRP). A Humanidade é, deste modo, expressão da dignidade da pessoa
humana, ideia ética muito antiga exaltada pela cultura renascentista e retomada
contemporaneamente pelo discurso ético-político. Apela-se ao princípio da Sociedade
ou da Solidariedade numa perspetiva de orientação do sistema penal não contemplada
pelos fins tradicionais da política criminal e que explicará que a lógica impiedosa e
vertical do sistema punitivo ceda a soluções que a flexibilizam por causa da noção de
uma supremacia social de certos interesses individuais aos quais outros interesses se
deveriam sacrificar. É um tal princípio que justificará, por exemplo, causa de exclusão
da ilicitude como o direito da necessidade (artigo 34.º CP) e uma orientação geral sobre
as penas que inclua a solidariedade social como a vítima e com o criminoso, reinserindo-
o socialmente.

Delimitação do Direito Penal: o Direito Penal recorta-se perante os outros ramos do


Direito pelo modo de legitimação específico da sua criação e aplicação. A gravidade das
suas ações, como vimos, exige uma específica legitimação constitucional (de tipo
material). Esta legitimidade constitucional distingue o Direito Penal dos outros ramos do

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Direito: na sua criação há um especial controlo do sistema de fontes e da interpretação


das normas e da integração de lacunas (princípio da legalidade). Mas, como assinalámos,
também o conteúdo das normas penais e os fins da sua aplicação (conceito material de
crime e fins das penas) estão sujeitos à observância de exigências materialmente
identificáveis. Este último sistema de controlo do Direito Penal manifesta-se numa teia
de princípios, já identificados sucintamente. A par desses princípios, consagrados
constitucionalmente, encontram-se exigências de consenso, proteção de bens jurídicos
e relevo ético prévio das condutas, como argumentos legitimadores da incriminação. A
relevância prática da qualificação de um preceito legal como Direito Penal traduz-se,
40
naturalmente, na sua subordinação aos princípios referidos. Por outro lado, são aqueles
próprios princípios que orientam a indagação sobre o caráter penal de uma norma ou a
qualificação de um facto como ilícito penal. O Direito Penal é a expressão do ius puniendi
do Estado, delimitando os fundamentos e as condições de uma intervenção estatal na
esfera dos particulares que se caracteriza, especificamente, no exercício do poder
punitivo. O facto de o Direito Penal prever como crimes factos que lesam os bens
jurídicos de que as pessoas são titulares, intervindo na regulação da intersubjetividade,
não confere ao interesse do ofendido nem à sua posição jurídica perante o agressor a
qualidade de objetos da norma penal. Na verdade, o objeto do Direito Penal é a relação
jurídica punitiva, pela qual os indivíduos que praticam certos factos ficam sujeitos à
aplicação de uma pena pelo Estado. Tal como em qualquer outro ramo do Direito
Público, é o princípio da subordinação, e não o da igualdade entre os sujeitos da relação
jurídica, o que caracteriza o Direito Penal. Porém, sendo o Direito Penal um ramo do
Direito Público, os seus princípios não se confundem com os de outros ramos do Direito
Público em que se manifesta a prevalência do interesse público sobre os interesses dos
particulares e a atribuição de uma posição de sensível superioridade ao Estado. A
especificidade da função implica a atribuição de garantias especiais aos destinatários
das normas penais, tanto ao nível substantivo como no plano processual (artigo 32.º
CRP). O Direito Sancionatório Público não se esgota, todavia, no Direito Penal. O Direito
Disciplinar da Função Pública e o Direito de Mera Ordenação Social são verdadeiras
manifestações de um Direito Sancionatório Público não penal. O Direito Disciplinar da
Função Pública distingue-se do Direito Penal na medida em que visa a boa execução
pelos funcionários e agentes da Administração das suas tarefas e, consequentemente,
se manifesta pela sanção da violação dos deveres estabelecidos para a realização destes
fins. O ilícito disciplinar consiste na violação da confiança interna da Administração no
funcionário, enquanto o ilícito penal, relativamente a factos congéneres, se traduz numa
perturbação externa da autoridade do Estado. Os mesmos factos podem suscitar,
simultaneamente, a responsabilização penal e disciplinar, mas esta ocorrência derivará,
necessariamente, da violação de distintos deveres: o dever de não lesar bens jurídico-
penalmente protegidos e o dever de respeitar as obrigações funcionais. Como, na
realidade, os deveres funcionais são construídos muito amplamente e se considera que
o bom comportamento da funcionário é sempre quebrado pela prática de um facto
criminoso, o ilícito penal cometido no exercício de funções públicas implicará sempre o
ilícito disciplinar. Mas a proibição constitucional de que as sanções disciplinares sejam

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efeitos automáticos das penas (artigo 30.º, n.º4 CRP) leva a que a sanção disciplinar
baseada na prática de um crime no exercício de funções dependa de um processo
autónomo tendente a concluir qual é a sanção disciplinar concretamente aplicável. Não
deverá suceder, naturalmente, que um facto que suscite responsabilidade penal não
atinja o merecimento disciplinar, se realizado por um funcionário no exercício das suas
funções, por força da chamada subsidiariedade do Direito Penal. Como o ilícito penal se
restringe às lesões mais graves dos bens jurídicos mais importantes e o Direito Penal
apenas intervém por estrita necessidade, não será pensável que um facto que não seja
justificável ou desculpável segundo os critérios da responsabilidade penal o possa ser
41
disciplinarmente. Do Direito Sancionatório Público faz parte também o Direito de Mera
Ordenação Social. O ilícito de mera ordenação social consubstancia-se na figura das
contraordenações, oriunda da expressão germânica Ordnungwi-drigkeiten; e a sanção
respetiva designa-se coima. A qualificação de um facto como crime ou contraordenação
suscita, igualmente, a subordinação a diferentes princípios ou, pelo menos, a uma
diferente manifestação dos princípios e garantias do Direito Penal. Tais consequências
explicam-se pela diferente natureza do ilícito e das sanções respetivas. A diferente
natureza do ilícito e das sanções respetivas. A diferente natureza do ilícito foi
relacionada no início do século por Goldschmidt e Wolf, com diferentes funções do
Estado. Investido do poder punitivo, o Estado pretenderia proteger passivamente bens
jurídicos de atividades lesivas; pelo Direito de Mera Ordenação Social perpassaria antes
a função de promoção do bem estar e de outros objetivos públicos. Com o progressivo
desenvolvimento de um Direito Penal Secundário desvirtuou-se aquela distinção, de
modo que verdadeiras normas penais tutelam hoje a atividade intervencionista e
fomentadora do Estado, através do Direito Penal Fiscal ou do Económico. Segundo a
doutrina mais recente, a distinção entre o Direito Penal e o Direito de Mera Ordenação
Social reside fundamentalmente na menor gravidade do ilícito de mera ordenação social
– e, portanto, num critério quantitativo, derivado do princípio da subsidiariedade do
Direito Penal. O critério quantitativo implica, todavia, a consideração de que, a partir de
um certo quantum da gravidade ética e social, certos factos adquirem dignidade punitiva.
Se não forem detetados critérios qualitativos, a distinção entre os dois ilícitos tornar-se-
á indeterminada e deverá considerar-se inconstitucional o Direito de Mera Ordenação
Social na sua generalidade, na medida em que não lhe sejam atribuídas todas as
garantias do processo penal. A procura de um critério qualitativo torna-se, assim,
impostergável. A um critério qualitativo contrapõem-se, contudo, dois grandes
obstáculos: a falta de um único parâmetro do legislador na autonomização do Direito
de Mera Ordenação Social, que obscurece uma lógica material identificadora das suas
normas; e a dificuldade de identificar um critério científico que caracterize
intrinsecamente a infração contraordenacional, devido á mutação funcional dos
poderes do Estado e à extensão do Direito Penal a novas realidades. A primeira
dificuldade é ultrapassável pela não cedência ao positivismo legalista como método de
definir o Direito. A única premissa positiva a respeitar é a da natureza e dos fins das
coimas: o ilícito de mera ordenação social terá de se adequar a eles pela sua natureza e
gravidade. Já a descoberta dos critérios identificadores do ilícito, na sua materialidade,

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independentemente da variedade de critérios legais, condicionará a constitucionalidade


de certas normas do Direito de Mera Ordenação Social. A segunda dificuldade é a via
cruxis da doutrina penal desde Goldschmidt e Wolf. Os critérios qualitativos são,
geralmente, insuficientes para a delimitação do Direito de Mera Ordenação Social
perante o Direito Penal. Um critério próximo dos daqueles autores aponta para uma
específica função do Estado na definição e aplicação do Direito de Mera Ordenação
Social. Não contempla, todavia, uma progressiva subordinação da atividade
administrativa ao princípio da legalidade e a critérios de justiça e a própria inserção no
Direito Penal de critérios de oportunidade justificados político-criminalmente. Por seu
42
lado, o critério da neutralidade axiológica do ilícito da mera ordenação social em face
da imediata relevância ética do ilícito penal assenta, fragilmente, na convicção de que
os bens protegidos pelo Direito Penal são individuais e valiosos em si mesmos, enquanto
os bens tutelados pelo Direito de Mera Ordenação Social são sociais e só pela decisão
normativa adquirem dignidade. A ideia de que a relevância ética, no segundo caso,
deriva da violação de deveres jurídicos (fazendo do ilícito de mera ordenação social um
ilícito de desobediência) desconhece, no entanto, a dimensão social de todos os bens
jurídico-penais, incluindo os individuais, e esquece ainda que o Direito Penal integra
muitos ilícitos de mera desobediência. Um outro critério, que se norteia pelo diferente
desvalor da ação no Direito Penal, independentemente da natureza do bem tutelado,
não reflete a tradicional inclusão no Direito Penal de ilícitos de menor gravidade, como
algumas lesões patrimoniais de pequena importância. A sua degradação em Direito de
Mera Ordenação Social levaria a uma diminuição de garantias e ao abandono político-
criminal dos seus agentes. O impasse a que a procura de critérios qualitativos conduz
parece ter, naturalmente, um de dois desfechos em alternativa: a renúncia ao critério
qualitativo, aceitando-se uma distinção segundo a oportunidade, ou a renúncia (por
inconstitucional) ao Direito de Mera Ordenação Social, devido às suas limitadas
garantias processuais. A intenção normativa que presidiu à criação de um Direito de
Mera Ordenação Social exclui, no entanto, qualquer destas soluções. A atribuição à
autoridade administrativa de competência para aplicar certas sanções públicas, cujos
fins são apenas de reordenação da vida social, permite remeter para o Direito de Mera
Ordenação Social condutas que reúnam simultaneamente as seguintes características:
a. Não tenham um significado negativo segundo as normas éticas de
primeiro plano e consensualmente aceitas pela sociedade;
b. Correspondam a modos de ação ou violação de deveres de gravidade
menos intensa, por não exigirem uma decisão da personalidade contra a
Ordem Jurídica;
c. Não atinjam diretamente os bens individuais pertencentes ao núcleo
constitucional de bens jurídicos que suportam a dignidade da pessoa
humana ou os bens coletivos que fundamentam a conservação e o
desenvolvimento da sociedade.

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Em síntese, menos desvalor ético prévio da conduta, menos desvalor da personalidade


ética que fundamenta o ilícito e menor importância na ordem axiológica constitucional
do objeto direto da ação são características que formam um conjunto de argumentos
invocáveis para qualificar o facto como ilícito de mera ordenação social.

O Direito Penal Secundário: a configuração de um Direito Penal Secundário


resultou do alargamento do núcleo liberal primitivo dos bens essenciais relacionados
com a pessoa a novas realidades, que passaram a condicionar aspetos fulcrais da vida
coletiva, como, sobretudo, a organização económica da sociedade. O caráter secundário
deste Direito Penal não deriva da sua menor relevância ética, mas sim de os bens que 43
tutela e os comportamentos que proíbe não serem idênticos aos dos crimes clássicos.
Algumas características identificam o Direito Penal Secundário:
a. A sua inserção em legislação avulsa;
b. A sua relação com a atividade económica e financeira que o Estado
protege;
c. O caráter fundamental social dos bens que tutela;
d. A natureza técnica, não materialmente lesiva dos bens, das condutas
incriminadas, que são necessariamente concebidas a partir da lesão de
deveres jurídicos ou de ordens;
e. A aptidão das pessoas coletivas para, enquanto tais, praticarem estas
condutas;
f. A necessidade de sanções penais específicas adequadas à eficaz
intervenção na área económica e financeira.
Um problema afim do da delimitação do Direito Penal e o Direito de Mera Ordenação
Social é o que resulta da eventual autonomia do Direito Penal Secundário. A questão
central traduz-se em estabelecer a fronteira entre as violações de deveres jurídicos ou
ordens que apenas se insiram no Direito de Mera Ordenação Social e as que alcançam a
dignidade penal. Em certos casos, porém, a distinção é mais problemática, sobretudo se
o Direito Penal Secundário incluir a mera infração de deveres jurídicos ou ordens sem
referência a um evento lesivo ou a um dano para um bem jurídico claramente
identificável.

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II – Fontes do Direito Penal: A teoria da lei penal

As fontes do Direito Penal: dos artigos 29.º CRP e 1.º a 3.º CP resulta que os modos de
revelação do Direito Penal – as suas fontes – são estritamente vinculados no nosso sistema
jurídico. O princípio geral é o de que só a lei pode ser fonte de Direito Penal, estabelecendo-se
uma reserva relativa de competência da Assembleia da República no artigo 168.º, n.º1, alínea c)
CRP. Assim, só a Assembleia da República ou o Governo munido de indispensável autorização
legislativa, sob pena de inconstitucionalidade orgânica dos Decretos-Lei que aprovar, têm
competência em matéria penal. Este princípio só é afastado pelo artigo 29.º, nº.2 CRP, que 44
admite a legitimidade da punição, nos limites da lei interna, das ações e omissões que no
momento da sua prática sejam consideradas criminosas segundo os princípios gerais do Direito
Internacional comummente reconhecidos. Significa esta exceção que o costume internacional
também pode ser fonte do Direito Internacional Penal: a convicção generalizada na sociedade
internacional sobre o caráter criminoso de certas condutas é bastante para que, nos limites da
lei interna, uma conduta seja punida sem lei prévia à sua prática. Uma tal exceção à reserva de
lei tem origem na experiência histórica deste século, em que a perversão do poder político gerou
uma legalidade permissiva da perpetração de factos lesivos de direitos fundamentais. O
fundamento da reserva de lei – a segurança democrática – não impede que uma tal exceção
(prevista no artigo 29.º, n.º2 CRP) seja legitima. À segurança como valor formal contrapõe-se
uma segurança fundamentada no respeito pelos valores humanos essenciais: as expectativas de
não se ser incriminado ó adquirem validade quando não são fundamentadas numa legalidade
criminosa. É claro, porém, que a aplicabilidade do regime do artigo 29.º, n.º2 CRP suscita
dificuldades. Os princípios gerais do Direito Internacional não contêm, por definição, normas
penais completas e precisas – que, nomeadamente, cominem a penalidade aplicável ao crime.
Esta lacuna deve ser integrada através do recuso aos limites da lei interna: valerão, em primeiro
lugar, os limites gerais das penas estabelecidas no Código Penal (artigo 40.º e 46.º CP); e as
penas concretas serão determinadas, necessariamente, por raciocínios de analogia com crimes
identicamente graves previstos na lei, tendo-se sempre presente a exigência de
proporcionalidade entre o crime e a pena.

Formulação, âmbito e fundamento do princípio da legalidade : a conformação


constitucional mais explícita do Direito Penal deriva do princípio da legalidade. Este princípio,
que a expressão latina nullum crimen, nulla poena sine lege plasmou doutrinalmente
(introduzido por Feuerbach em 1801), é a base mínima e essencial da adequação do Direito
Penal ao Estado de Direito democrático. O princípio da legalidade é, aliás, mais do que uma ideia
geral do Direito, como costumam ser outros princípios, cuja violação só se verifica através de
lesões particularmente intensas. O princípio da legalidade exige do legislador e do intérprete um
cumprimento estrito, como sucede com qualquer comando que constitua a estatuição de uma
norma jurídica. Dos artigos 29.º CRP e 1.º a 3.º CP resulta que as instâncias de criação e aplicação
do Direito Penal têm o seguinte regime:

a. Em primeiro lugar, só a lei pode, em princípio, ser fonte de Direito Penal, prevendo-se,
como se disse, uma reserva relativa de competência da Assembleia da República, no
artigo 168.º, n.º1, alínea c) CRP;

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b. Em segundo lugar, o próprio conteúdo das normas penais terá de revelar um elevado
grau de determinação, na descrição das condutas incriminadas e das suas
consequências (artigo 29.º, n.º1 e 3 CRP);

c. Em terceiro lugar, há um condicionamento do intérprete da lei penal a quem está


vedada a analogia e, eventualmente, a própria interpretação extensiva de normas
incriminadoras (artigos 29.º, n.º1 e 3 CRP e 1.º, n.º3 CP);

d. Em quarto lugar, está consagrada a proibição de retroatividade das normas penais


(artigo 29.º, n.º1 e 3 CRP e 1.º, n.º1 CP);
45
e. Finalmente, consagra-se o princípio da retroatividade das leis penas de conteúdo mais
favorável ao arguido (artigos 29.º, n.º4 CRP e 1.º, n.º2 e 4 CP).

Todos estes comandos e outros que o texto constitucional não explicitou só serão
compreendidos e formulados corretamente a partir do princípio da legalidade da Constituição.
O princípio da legalidade é uma decorrência do Estado de Direito Democrático, integrando-se
no elenco dos direitos, liberdades e garantias fundamentais. Tal como estes, é expressão da
autolimitação do Estado perante os cidadãos e da sua função primordial de proteção da pessoa.
Mas, mais intensamente do que estes, o princípio da legalidade exprime o modo constitucional
de realização da máxima segurança individual. Ideia central do princípio é, assim, a de que a
segurança dos indivíduos frente ao Estado só se realiza através do controlo da criação e
aplicação do Direito Penal pelos órgãos de representação democrática. E um tal controlo
democrático da lei penal não é um valor puramente formal, mas ainda o meio mais adequado
racionalmente para a concretização da igual dignidade da pessoa humana. São estas ideias que
explicam a extensão do princípio e, nomeadamente, a sua aplicação à previsão dos crimes, e
não só à cominação das penas: a proteção das expectativas individuais e a indicação do ilícito
criminal acresce à garantia de só se ser punido com pena prevista em lei anterior à prática do
facto. Resulta nitidamente da separação dos poderes e do controlo democrático das
interferências na liberdade individual que a nulla poena sine lege se complete com o nullum
crimen sine lege. Também é o princípio democrático que explica a articulação entre o nullum
crimen e a nulla poena sine lege, através da máxima nulla poena sine crimen. A articulação
justifica-se, precisamente, para evitar que os órgãos de aplicação do Direito estabeleçam em
concreto uma certa conexão entre crime e pena que não tenha sido definida pelos órgãos
legislativos (a este princípio se refere já Eduardo Correia, no seu ProjCP 1963). E, para dar outro
exemplo, é o princípio do controlo democrático do Direito Penal que justifica que as medidas de
segurança só sejam aplicáveis se os respetivos pressupostos estiverem fixados em lei anterior.
Verificada a relação entre o fundamento constitucional do princípio da legalidade e o seu âmbito,
poderemos agora formular as consequências do referido princípio, através das seguintes
máximas, que se alargarão a todas as reações criminais:

 Nullum crimen, nulla poena sine lege stricta (reserva de lei);

 Nulla poena sine crimen (princípio da conexão);

 Nullum crimen, nulla poena sine lege certa (princípio da tipicidade);

 Nullum crimen, nulla poena sine lege praevia (proibição de retroatividade).

A relação entre fundamento e âmbito do princípio da legalidade conduz-nos, assim, à análise


dos seus corolários.

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Reserva de lei e Direito Penal: âmbito: aplicar-se-á o princípio geral da reserva de lei apenas
às normas ou, mais amplamente, às normas incriminadoras que geram ou agravam a
responsabilidade – as normas penais positivas – ou quaisquer outras normas penais – as
negativas (que determinam a exclusão ou a atenuação da responsabilidade) – merecerão o
mesmo controlo na perspetiva da segurança e das liberdades individuais? O fundamento do
princípio da legalidade impõe que as normas penais que ampliem a incriminação, ao afetarem a
segurança e as liberdades individuais, sejam aprovadas pelo Parlamento ou, pelo menos, pelo
Governo, mediante delegação de competência. O artigo 168.º, n.º1, alínea c) CRP refere-se,
porém, apenas à definição dos crimes, penas e medidas de segurança e respetivos pressupostos.
Perguntar-se-á, deste modo, se as circunstâncias que agravam a responsabilidade ou as 46
circunstâncias eximentes ou atenuantes se incluirão nesta previsão constitucional, segundo
aquele fundamento. As circunstâncias agravantes definem o concreto facto criminoso, sendo
abrangidas pela previsão da alínea c) do n.º1 do artigo 168.º. Isto sucede nitidamente no caso
das circunstâncias modificativas, que alteram o tipo fundamental suscitando uma nova medida
legal da pena (artigo 132.º CP). Mas também no caso das circunstâncias agravantes simples (que
não alteram a medida legal, mas somente a medida concreta da pena), o facto criminoso, de
ilicitude ou culpa agravadas, é sempre diverso daquele em que a ilicitude ou a culpa são menos
graves. As razões justificativas da reserva de lei favorecem, seguramente, a aplicação da alínea
c) do artigo 168.º, n.º1 CRP a todas as circunstâncias agravantes. No entanto, o artigo 72.º CP
não consagra a tipicidade das circunstâncias a ponderar na determinação da pena concreta. Ora,
esta tipicidade parece ser incompatível com a reserva de lei, por postular a criação
jurisprudencial de novas circunstâncias. Porém, uma tal criação de circunstâncias apenas pode
valer para o caso concreto. O caráter exemplificativo do artigo 72.º CP não obsta a que a previsão
abstrata de circunstâncias agravantes (embora gerais) esteja submetida à reserva de lei. A
previsão de uma nova circunstância agravante à revelia de reserva de lei restringiria o peso das
circunstâncias atenuantes a considerar pelo julgador, modificando sempre o artigo 72.º CP.
Quanto às circunstâncias eximentes ou atenuantes da responsabilidade criminal, o problema é
bem mais delicado. Uma lógica simplificadora dirá que elas não estão submetidas à reserva de
lei por não afetarem as expectativas de segurança e a liberdade individual dos destinatários das
normas penais. Deste modo, por considerarem permitidos factos que de outra forma o não
seriam, ou desculpáveis os seus agentes, aquelas circunstâncias não exigiriam um controlo
direto pelos representantes da vontade democrática. Contra esta perspetiva, no entanto, poder-
se-á dizer que as circunstâncias eximentes da responsabilidade podem alterar a delimitação dos
direitos dos cidadãos entre si. Assim, no que respeita às causas de justificação do facto ou de
exclusão da ilicitude, a liberdade criada pela permissão de certas condutas diminuirá a liberdade
de todos os que se pretenderem opor às mesmas. O problema que resulta desta exemplificação
não pode ser resolvido num plano formal, mas pela análise da natureza da própria circunstância
eximente. Há, na realidade, eximentes que, ao permitirem certas condutas, que em geral são
proibidas, abrem uma exceção, de modo que a sua previsão afeta as expectativas gerais e
diminui a liberdade e a segurança dos cidadãos. Em outros casos, a permissão prevista decorre
de uma ideia geral, de um princípio geral da Ordem Jurídica, sendo, por isso, de direito geral.
Neste último caso, já a reserva de lei é dispensável, pois o legislador ordinário nada mais fará do
que corporizar direitos latentes no ordenamento jurídico. Este critério, que a doutrina já
invocava para a temática da proibição da analogia, será mais compreensível se tivermos em cona
que onde a analogia não é proibida não deverá valer a reserva de lei. Também quanto às
circunstâncias atenuantes da responsabilidade penal é desnecessária a reserva de lei. A
atipicidade das atenuantes gerais resulta da fórmula genérica do artigo 72.º CP e tais

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circunstâncias, influindo apenas na determinação da pena, não são suscetíveis de promover uma
restrição indireta dos direitos das vítimas de crimes.

Reserva de lei e tipicidade das normas penais. O problema da interpretação da lei


penal: o respeito pela reserva de lei não pode concretizar-se sem uma subtração das normas
penais às técnicas legislativas que conduzam à pura criação jurisprudencial do Direito, no
momento da sua aplicação. A reserva de lei penal origina, deste modo, uma especial
conformação da técnica legislativa e da interpretação, de modo a permitir que as normas penais
se apliquem estritamente de acordo com a sua definição legislativa. A decorrência destas
proposições é o chamado princípio da determinação das normas penais incriminadoras, tanto
47
no que respeita ao preceito primário como no que respeita ao preceito secundário. Segundo tal
princípio, todos os pressupostos da incriminação e da responsabilidade pena têm de estar
descritos na lei, não sendo admitidas as leis penais em branco. Este conteúdo das normas penais
implica que estas sejam descrições de figuras ou tipos, isto é, determinações do conteúdo de
certas imagens sociais relativamente concretas de comportamentos humanos, que prefigurem
com exatidão o âmbito do proibido e a respetiva consequência (sanção). O princípio da
determinação das normas penais implica o máximo preenchimento possível das figuras (ou
imagens dos factos proibidos) através de verdadeiros conceitos de espécie. O mesmo princípio
justifica o desmembramento do ilícito criminal através das várias figuras de infrações criminais,
os chamados tipos legais de crime. A principal implicação desta técnica legislativa é a chamada
tipicidade, categoria irrenunciável na determinação da responsabilidade penal. Assim, nenhum
comportamento humano pode ser considerado criminoso se não corresponder a um tipo legal
de crime, descrito com precisão por um preceito legal. A tipicidade é exatamente essa exigência
de adequação do facto a um tipo legal de crime. A organização lógica das consequências da
reserva de lei, em torno das ideias de determinação da lei penal e de tipicidade, assenta, porém,
numa relativa mitificação da separação dos poderes e do princípio do controlo democrático.
Pressupostos dessa mitificação são os dogmas do juiz autómato e da natureza concetual dos
tipos legais de crime. A ideia do juiz autómato não é já, todavia, sustentada pelo pensamento
jurídico. A sua rejeição justifica-se por ela não se adequar aos desígnios de realização da justiça
que incumbem à função judicial (e que imporão a correspondência valorativa entre o caso legal
e o real) e por ser irrealista a descrição da atividade lógica da norma ao caso concreto como uma
pura subsunção. Constata-se, na verdade, que no processo de aplicação do Direito se recorre,
necessariamente, à comparação, à analogia, entre a imagem legal e o caso concreto. Nessa
comparação, decide-se fundamentalmente se um certo facto corresponderá ao tipo de ilícito
que constitui a essência da norma incriminadora. Os conceitos típicos são, deste modo,
funcionais relativamente à imagem global da violação do Direito que se pretende retratar.
Exemplo semelhante, no Direito Penal português, é fornecido pelo conceito de substância
venenosa ou de natureza análoga, relativamente ao crime de envenenamento (artigo 146.º CP),
em que deverão caber todas as substâncias em si mesmas não tóxicas, mas que surtem o mesmo
efeito sobre o organismo humano, se forem ministradas em conjunto com outras, ou em certas
quantidades, ou contra pessoas particularmente débeis. A violação dos princípios da
determinação e da tipicidade não se dá, consequentemente, logo que o legislador utiliza
conceitos menos precisos ou que o intérprete excede um sentido puramente lógico-formal das
palavras. Tal violação dá-se quando a possibilidade de compreensão e controlo do desvalor
expresso no tipo legal de crime deixa de existir. Na verdade, a norma que previsse a incriminação
de qualquer conduta antidemocrática, sem mais, seria inconstitucional pois ofenderia
indiretamente a reserva de lei do artigo 168.º, n.º1, alínea c) e o artigo 29.º, n.º1 CRP por não

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ser controlável o seu conteúdo. Mas, disposições legais como o artigo 137.º e o artigo 171.º CP
utilizam conceitos normativos suscetíveis de um razoável consenso na linguagem jurídica, ética
e social. De qualquer modo, também neste ponto a inconstitucionalidade depende do grau de
imprecisão do conteúdo da norma, do nível de artificialismo dos conceitos e da sua inserção na
linguagem vulgar. A violação da reserva de lei começará onde a linguagem normativa permitir a
total manipulação do conceito para fins incontroláveis e onde for impossível uma perceção da
descrição legal pelos seus destinatários coincidente com os resultados de uma interpretação
teleológica. Uma outra concretização da reserva de lei verifica-se na própria interpretação da lei
penal. O artigo 1.º, n.º3 CP proíbe, expressamente, a analogia quanto às normas de que resulta
a qualificação do facto como crime, a definição de um estado de perigosidade e a determinação 48
da pena ou medida de segurança correspondentes. O fundamento desta proibição reside,
igualmente, na exclusividade da competência do Parlamento na formulação de normas
incriminadoras. Se os tribunais pudessem utilizar a analogia, formulariam normas
incriminadoras que deixariam de ser objeto de controlo democrático. Por outro lado, o caráter
fragmentário do Direito Penal impede que comportamentos análogos aos expressamente
previstos, na perspetiva da lesão do bem jurídico violado, tenham o mesmo merecimento penal.
A seleção da conduta incriminada é uma decisão legislativa inimitável pelo julgador através do
recurso à analogia. A proibição de analogia não deve, porém, ser confundida com a proibição de
raciocínios analógicos na aplicação da lei penal. A delimitação entre a analogia proibida e outras
técnicas de interpretação tem sido formulada a propósito das fronteiras entre interpretação
extensiva e analogia. O problema tem surgido através de três perguntas:

1. O que distingue a interpretação extensiva da analogia?


2. A interpretação extensiva é igualmente proibida?
3. Quais os critérios gerais que delimitam o permitido e o proibido na interpretação do
Direito Penal e como se relacionam com eles fórmulas como a interpretação extensiva
e a redução teleológica?

A categoria da interpretação extensiva baseia-se, no plano teórico, na possibilidade de referir


um certo caso não expressamente considerado pela letra da lei ao seu pensamento. Diferencia-
se da analogia, na medida em que o caso real é meramente semelhante aos casos considerados
pela lei, sem, no entanto, ter sido pensado por ela. Assim, quando o legislador tenha apenas
exprimido imperfeitamente a intenção de regular o caso haverá interpretação extensiva.
Todavia, essa distinção concebida pela doutrina tradicional assenta numa perspetiva da
interpretação jurídica como subsunção, segundo a qual seriam separáveis os momentos de pura
investigação do sentido e âmbito da lei e da sua aplicação aos casos concretos. Um tal modelo
admite uma interpretação jurídica não constitutiva o não criativa e a própria analogia é
subtraída ao pensamento inspirador do caso legal, como se a integração das lacunas não se
socorresse afinal de um fundamento jurídico derivado da própria lei que abrange casos
semelhantes. Acresce que este modelo se baseia na existência prévia ou predeterminante de
um sentido literal que se impõe à interpretação, visando a interpretação apenas esclarecer a
coincidência com aquele sentido dos elementos não literais. Todavia, é discutido se esse sentido
literal poderá ser o ponto de partida da interpretação e não terá de ser apenas o produto da
interpretação. A crítica aos pressupostos metodológicos do pensamento jurídico por que se
orientam os conceitos de interpretação extensiva e de analogia tem desferido um golpe
profundo na viabilidade científica dos mesmos, tornando-se necessária a interpretação jurídica

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da proibição legal da analogia com todos os instrumentos do pensamento jurídico que permitam
compreender a sua ratio e a sua possibilidade. Quando se descobre a razão de ser de tal
proibição na segurança jurídica e no controlo democrático da aplicação da lei penal,
compreende-se, igualmente, que a distinção entre interpretação extensiva e analogia não
permite traçar rigorosamente as fronteiras da interpretação que não ofende a segurança jurídica.
Na realidade, a própria interpretação extensiva, embora atribuível num plano lógico e objetivo
ao pensamento do legislador, pode não corresponder já a um entendimento juridicamente
aceitável das palavras. E, por outro lado, não é de excluir que se ultrapasse o pensamento do
legislador, na sua formulação histórica, interpretando-se a norma de acordo com um significado
plausível e juridicamente válidos das palavras. A categoria da interpretação extensiva não tem, 49
em si mesma, força suficiente para resolver o problema da fronteira da interpretação permitida,
devendo procurar-se um critério fundamentado na racionalidade da proibição de analogia e
desligado destas categorias tradicionais. Antes de se tentar uma superação das categorias
tradicionais da interpretação extensiva e da analogia poderemos questionar se a ultrapassagem
das dificuldades se obtém, sem mais, pela proibição da interpretação extensiva. Uma resposta
afirmativa remeteria a fronteira da interpretação permitida para a delimitação entre
interpretação declarativa e extensiva e permitiria o cumprimento do principio da legalidade
consagrado no artigo 1.º, n,º.3 CP. O artigo 1.º, n.º3 CP porém, não proíbe expressamente a
interpretação extensiva. E, por outro lado, não se poderá inferir da proibição da analogia in
malam partem pelo n.º3 do artigo 1.º CP a permissão da interpretação extensiva, através de um
raciocínio a contrario sensu. Na verdade, este raciocínio postularia apenas a analogia in bonam
partem. Aplicando os critérios tradicionais de interpretação jurídica, a proibição de
interpretação extensiva só pode ser retirada do artigo 1.º, n.º3 CP por analogia com a proibição
da própria analogia. Porém, a norma que proíbe a analogia no Direito Penal circunscreve
excecionalmente, no conjunto da Ordem Jurídica, a atividade interpretativa: a analogia só é
proibida, em geral, quanto às normas excecionais, que podem, no entanto, ser objeto de
interpretação extensiva (artigo 11.º CC). Uma limitação da atividade interpretativa mais ampla
do que a do artigo 11.º CC só se justificaria na medida em que os princípios constitucionais do
Direito Penal o impusessem indiscutivelmente – isto é, na medida requerida pela legalidade e
pela reserva de lei. Ora, a interpretação extensiva, tal como é definida tradicionalmente, como
expressão do pensamento da lei revelado pelos elementos não literais da interpretação, não
contende, necessariamente, com estes princípios. Não se poderia, por conseguinte, considerar
proibida toda e qualquer interpretação extensiva, no Direito Penal, apenas porque é difícil
praticamente delimitá-la da analogia à luz dos critérios tradicionais da interpretação. Esse
fundamento não seria sistematicamente admissível para justificar uma conclusão por analogia
com a própria proibição da analogia. Não se deve também deduzir a proibição de interpretação
extensiva do preceito constitucional que exige a expressa cominação legal das penas e medidas
de segurança (artigo 29.º, n.º3 CRP), visto que se poderia ainda entender que a interpretação
extensiva se refere a um pensamento expresso, embora imperfeitamente. De tudo isto, resulta
que a interpretação extensiva não é necessariamente proibida ou permitida em Direito Penal,
tudo dependendo da enunciação de outros critérios, derivados diretamente da ideia de
segurança jurídica inerente ao princípio da legalidade e recondutíveis, em última instância, ao
princípio do Estado de Direito democrático. As dificuldades metodológicas da delimitação entre
interpretação extensiva e analogia e a insuficiência desta distinção para realizar plenamente os
valores jurídicos que justificam o próprio princípio da legalidade conduziram a uma fase
problemática ainda não ultrapassada. Tal fase problemática caracteriza-se pela dificuldade ou
mesmo impossibilidade de cumprir o princípio da legalidade tal como ele se formula pela

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proibição da analogia e, simultaneamente, na imprescindibilidade de manter o controlo e a


segurança jurídicas impostos pelo princípio da legalidade. As respostas a este problema passa,
todas elas, pela superação da distinção entre interpretação extensiva e analogia, conduzindo o
pensamento jurídico para uma fronteira mais profunda entre interpretação permitida e proibida.
Diversificam-se, todavia, os novos modelos de abordagem da questão conforme as perspetivas
sobre o Direito, sobre a interpretação em geral, que surjam como a pré compreensão do
problema. São referíveis, basicamente, dois modos de abordagem: o pensamento antipositivista,
valorativo, teleológico e pragmático com inspiração filosófica em Heidegger e Gadamer e a
perspetiva positivista com inspiração na filosofia analítica, mais logicista e menos pragmática. A
resolução do problema da proibição da analogia e do cumprimento do princípio da legalidade é 50
alcançada, pela primeira posição, desvinculando a interpretação permitida e a significação
jurídica da análise semântica do tipo legal, orientando e controlando a interpretação jurídica por
critérios extra literais reveladores do significado fundamental da norma no sistema jurídico. Nos
segundos autores, os limites da interpretação permitida são ainda controlados
fundamentalmente por critérios de significação (e de validade da interpretação) de índole
linguística, de modo que o cumprimento do princípio da legalidade se verifica até ao ponto em
que se não ultrapasse o sentido possível das palavras. O que se discute, fundamentalmente, é
se o princípio da legalidade pode ser cumprido sem uma pré-determinação essencial da norma
por limites linguísticos extra jurídicos definidos em abstrato e vinculativos da concretização do
Direito no caso. A primeira perspetiva relativiza de tal forma essa pré-determinação semântica
abstrata que concebe que o texto jurídico deixou de ser, em absoluto, objeto da interpretação
(esfumando-se o elemento literal) para, em seu lugar, colocar a norma (a definir) do caso
concreto, cuja descoberta só é pré-determinada por um jogo de condições de validade.
Castanheira Neves propõe quatro condições de validade como critério distintivo entre a
interpretação proibida e a permitida em Direito Penal:

 a condição legal: necessidade de o concreto juízo incriminatório ter fundamento


efetivo numa norma criminal positiva, isto é, ser secundum legem;

 a determinação dogmática dos fins: corresponde à necessidade de os tipos legais


serem construídos pelo legislador de tal modo que seja possível apreender o núcleo
axiológico-normativo fundamentante, com apreciável relevo para o bem jurídico
tutelado, não bastando uma conceitualização lógico-formal e genérico-abstrata. O
tipo legal deve suscitar no pensamento jurídico modelos normativos-racionais de
compreensão sistemática e a interpretação permitida terá de referir-se a um desses
modelos, pois só assim o juízo decisório será controlável pela Ciência do Direito e
pelas instituições judiciais;

 a adequação sistemática: exclui a incoerência sistemática, de modo a que a


interpretação adotada para o caso possa ser generalizada relativamente a outros
casos sem prejuízo para a coerência do sistema;

 garantia de cumprimento do nullum crimen: deve haver uma garantia institucional


– a garantia jurisprudencial da unidade do Direito, que compete ao Supremo
Tribunal de Justiça.

As condições propostas por Castanheira Neves referem a interpretação permitida às


possibilidades de controlo legal e do conteúdo material do ilícito, a um nível sistemático e
jurisprudencial. A interpretação permitida será, assim, não só aquela que caiba no sentido

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logicamente possível das palavras da lei, mas também a que revele os valores jurídicos que a lei
pretende atingir e seja compatível com outros valores do sistema e com a unidade do Direito
definida pelas instâncias que a devem assegurar. A perspetiva proposta por Castanheira Neves
converte, todavia, o controlo da reserva de lei (modelo democrático-parlamentar) num controlo
institucional-jurisprudencial da lei penal (modelo jurisprudencial dogmático), ultrapassando a
racionalidade liberal que está na origem da proibição da analogia. Enquanto apela à coerência
sistemática e à unidade do Direito definida pela jurisprudência, o autor remete a definição dos
critérios da interpretação da lei penal para a definição de instâncias menos diretamente
controladas pelos cidadãos. A própria definição de adequação sistemática não é, contudo, um
problema de conhecimento dos valores estáticos do sistema, mas depende de redefinições 51
atualistas, que só estão ao alcance das instâncias de discussão pública e parlamentar. E é
discutível que a máxima segurança não dependa diretamente do modelo de consenso
democrático, de modo a que a interpretação proibida não seja, sempre e tão só, a que fere o
consenso constitucionalmente instituído. Por outro lado, a unidade do Direito que Castanheira
Neves atribui ao Supremo Tribunal de Justiça é uma tarefa só realizável através de um juízo de
constitucionalidade e consequentemente própria do controlo de constitucionalidade efetuado,
em última instância, pelo Tribunal Constitucional. Por outro lado, as duas últimas condições
formuladas por Castanheira Neves (sistemática e institucional) referem o problema da
interpretação proibida a uma questão mais geral, autónoma da proibição da analogia: a mera
inconstitucionalidade da interpretação de determinada norma. Na verdade, a aplicação de uma
norma por analogia não se pode confundir com uma sua interpretação contrária à unidade
material do Direito que resulta dos princípios constitucionais. E, em certos casos, a aceitação de
analogia concordante com os princípios gerais do sistema afetaria a garantia previsibilidade da
incriminação. A possibilidade de distinguir o sentido comunicado pelo legislador na norma do
plano da sua validade é uma garantia básica de segurança jurídica, pois subtrai o âmbito do
proibido aos possíveis subjetivismos valorativos. Esta sensibilidade contrária ao
institucionalismo e ao subjetivismo normativista afasta-nos, consequentemente, da
metodologia oferecida por Castanheira Neves. Mas a crítica que a solução proposta por
Castanheira Neves nos sugere contém, implicitamente, uma divergência quanto ao ser da
interpretação jurídica. A interpretação é, em geral, entendida por Castanheira Neves como
«momento da concreta e problemática decisória realização do direito», o que implica uma
redefinição do objeto tradicional da interpretação – o texto jurídico. O objeto da interpretação
deixará de ser, como se disse, o texto, para se tornar os critérios jurídicos, apreensíveis nos
textos legais, da decisão dos casos concretos. Haverá, consequentemente, uma total
relativização dos momentos tradicionais da investigação hermenêutica sobre o conteúdo dos
textos normativos. A interpretação passa a assumir-se, exclusivamente, como decisão dos casos
pela aplicação de critérios jurídicos emanados da norma e do sistema em que esta se insere.
Esta norma, porém, não se confunde cm a sua expressão, o seu texto, mas é necessariamente a
norma de decisão do caso concreto: o critério de decisão jurídica solicitado pela
problematicidade concreta do caso decidendo e que seja adequado a um sentido normativo
essencial, correspondente a uma intencionalidade de dever ser relativa a uma multiplicidade de
casos. A supressão, na interpretação, de um momento determinante de compreensão do
significado do texto normativo enfraquece o processo lógico de fundamentação da decisão
jurídica. O respeito pelas garantias dos destinatários das normas não dispensa aquele momento.
Não é, aliás, desejável encontrar a norma do caso sem investigar, previamente, a norma de um
conjunto de casos hipotéticos a que mais evidentemente se aplica a norma. A descoberta do
sentido literal e comunicacional do texto jurídico corresponde à obtenção dessa regra válida

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para os casos hipotéticos imediatamente apreensíveis, que possibilita a igualdade das soluções
e aquele raciocínio analógico (e não subsuntivo) de que Arthur Kaufmann fala a propósito do
modo de ser da adequação do caso concreto à norma jurídica. A divergência com o modelo de
interpretação jurídica que Castanheira Neves propõe não implica, no entanto, a aceitação do
modelo positivista subsuntivo tradicional, mas apenas uma perspetiva menos subjetivista e
menos normativista sobre o conteúdo do raciocínio fundamentador em que consiste a
interpretação das normas jurídicas. Tal raciocínio fundamentador da interpretação não
prescindirá nunca da relevância do texto jurídico, como ente autonomamente significativo,
devido ao valor comunicativo e de garantia que ele confere. A transposição desta análise para a
da interpretação permitida em Direito Penal implica, obviamente, que o sentido possível das 52
palavras no texto jurídico seja necessariamente fundamentante da decisão e critério jurídico
inultrapassável da norma do caso. Haverá, portanto, uma vinculação relativa ao texto, em si
mesmo, na apreensão da norma. Enquanto para Castanheira Neves, na sua inspiração platónia,
as ideia jurídicas não são moldadas pelas palavras, mas meramente indiciadas por elas, na
perspetiva agora referida as palavras são constitutivas das ideias. As palavras são o limite do
mundo5. A perspetiva do positivismo lógico-analítico, que subjaz à referência da proibição da
analogia ao sentido possível das palavras, surge, consequentemente, como polo de atração da
crítica anterior através do predomínio que na interpretação deve ser concedido ao texto jurídico.
No seu enquadramento filosófico, esta outra perspetiva não dilui o Direito nas intencionalidades
normativas ou no subjetivismo do sistema, mas antes o absorve na constituição objetiva do
mundo através da linguagem e sobretudo da linguagem da comunicação – a linguagem comum.
A convicção primeira desta perspetiva é a possibilidade de obtenção do significado válido do
texto independentemente de um contexto subjetivo ou de uma intencionalidade particular que
ao mesmo seja atribuído pelo seu autor. Isto implica a possibilidade de determinação do sentido
ou dos limites do sentido do texto legislativo previamente à das suas referências sistemáticas
ou à descoberta da intenção legislativa. Na raiz de uma tal análise, está uma teoria da
significação semântico-formal, segundo a qual a linguagem vale e significa independentemente
das intenções e ideias dos sujeitos, de acordo com o sistema de regras da linguagem – são as
prioridades formais das expressões ou as suas regras geradoras que determinam o significado e
a validade da linguagem. Menos formalmente do que esta perspetiva enquadradora, a teoria do
uso da significação de Wittgenstein concebe ainda que o significado de uma palavra é o seu uso
na linguagem, o qual está comprometido com formas de vida e de sociabilidade. Existiria uma
espécie de gramática dos jogos de linguagem que dependeria de uma prática social ou interação.
E, ainda com uma referência objetiva mais complexa, Habermas argumentará que o significado
linguístico é também constituído comunicativamente. Na medida desta comunicabilidade, o
sentido completo de uma asserção depende de uma tripla pretensão de validade – a referência
ao estado das coisas existentes no mundo objetivo (pretensão de verdade), a referência ao
mundo subjetivo das experiências a que o sujeito que fala tem um acesso particular (pretensão
de sinceridade) e a referência ao mundo social normativamente regulado das atuações
interpessoais. São estas referências que pressupõem a aceitabilidade de razões ou argumentos
por quem é destinatário de um ato linguístico que permitem a compreensão do significado do
mesmo. Desde a semântica formal até à teoria da comunicação, a significação da linguagem
constrói a sua validade com uma referência à realidade, que não se confunde com as meras

5
Assim, comentando Peirce, diz Habermas que o seu pensamento se confronta com a consequência
perturbadora de os limites da linguagem serem os próprios limites do mundo. Para Habermas, todavia, a
linguagem é uma projeção vazia que se preenche com a modificação das perspetivas sobre a realidade.

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intenções de quem fala ou com qualquer outra subjetividade (mesmo que este seja, afinal, a dos
valores do sistema jurídico). Mas mesmo que se devessem admitir linguagens privadas no
Direito Penal, o artigo 1.º CP vedaria essa possibilidade. Há um sentido geral das palavras que
se impõe ao sentido meramente jurídico, restringindo-se o voo livre de critérios jurídicos
suscitados pelo caso. A perspetiva do sentido possível do texto a que se apelou implica
esclarecimentos adicionais. Trata-se do sentido do texto, ou das palavras no texto jurídico, e não
das palavras isoladamente. O sentido possível do texto, como limite da interpretação permitida,
é o sentido comunicacional percetível do mesmo e não qualquer sentido lógico não sustentável
pela linguagem social, pelo menos na sua forma simbólica. O sentido possível do texto delimita-
se ainda, mas não se alarga, pela adequação do texto à essência do proibido de acordo com as 53
valorações do sistema que a norma diretamente exprime ou pretende exprimir. Em conclusão,
o texto jurídico, cujo significado seja determinável pela linguagem comum, torna-se, nessa
perspetiva, a condição essencialmente pré-determinante da interpretação permitida em Direito
Penal, a que se adicionam, sem dúvida, ainda outras condições. Estas outras condições
contribuem para a fixação do sentido jurídico definitivo do texto, para a delimitação da intenção
da intenção normativa que ele objetivamente revela, mas não são elas mesmas elementos de
fixação ou determinação do texto. É, todavia, possível que esse sentido normativo em que a
norma revela a expressão concretizada do sistema seja contrário às normas ou princípios
constitucionais. Nesse caso, estaremos, apenas, perante uma interpretação proibida com
fundamento na Constituição e não perante a proibição da analogia do artigo 1.º CP.

Proibição de redução teleológica incriminadora das normas que delimitam a tipicidade:


a proibição da analogia incluirá a redução teleológica incriminadora? A redução teleológica
exclui do âmbito da lei casos em que a sua letra abrangeria, por tais casos não deverem ser
abrangidos pelos fins essenciais que a lei prossegue, embora ainda pudesse ser referidos ao
pensamento do legislador. A redução teleológica será incriminadora quando essa exclusão de
casos se referir a normas que delimitam negativamente a tipicidade. A vinculação ao texto
jurídico, como fator pré-determinante de interpretação, conduzirá a uma rejeição da redução
teleológica incriminadora, pois também corresponde ao sentido possível das palavras a sua
utilização no sentido comunicacional mais amplo, isto é, englobando todas as possibilidades de
entendimento. Por outro lado, quem rejeite a interpretação extensiva de normas penais
positivas deverá, coerentemente, recusar a própria interpretação restritiva de normas que
delimitam a tipicidade.

Não proibição de analogia e de redução teleológica das normas permissivas : quanto às


normas permissivas não é proibida necessariamente a analogia, na medida em que tais normas
não são descrições típicas das condutas permitidas, mas mero afloramento dos princípios ou
critérios gerais de solução de conflitos de interesses ou direitos. Nelas, o texto jurídico não é
pré-determinante como nas normas incriminadoras. O recurso à analogia, quando justificado
pela necessidade de concretizações diferentes das legalmente previstas dos princípios
reguladores dos conflitos de interesses ou direitos, é permitido, mesmo que se ultrapasse o
sentido possível das palavras. Todavia, é fundamentalmente a analogia iuris que é admissível,
pois a norma permissiva, ao particularizar uma intenção normativa mais vasta, concretiza
critérios ou condições de permissividade não abrangentes de outras condutas que merecem ser
permitidas segundo o mesmo princípio geral. Por outro lado, a referida analogia iuris, que
envolve o apelo aos princípios fundamentais da justificação, como ensina Cavaleiro de Ferreira,
é de direito excecional e não de direito geral. Surge ainda a questão de saber se a redução
teleológica de normas permissivas é legítima. Também existe um efeito incriminador mediato

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derivado da redução teleológica de uma norma permissiva. Mas esse efeito não está
necessariamente subordinado às garantias que justifiquem a proibição da analogia de normas
incriminadoras. Consideremos, por exemplo, uma redução teleológica do artigo 32.º CP que
retire do seu âmbito «as defesas necessárias elevadamente desproporcionadas à gravidade
insignificante da agressão», com fundamento no princípio geral de que a legítima defesa implica
concretizações em que a defesa do direito é menos valiosa do que a preservação da dignidade
da pessoa do agressor. Nesse caso, o efeito incriminador não consiste num alargamento da
norma incriminadora, mas na limitação do conteúdo da norma permissiva, cuja prevalência
sobre a norma incriminadora deixa de existir no caso concreto. O alargamento das possibilidades
de incriminação, na hipótese proposta, baseia-se, contudo, na ponderação de valores 54
subjacente à norma permissiva e no conteúdo do direito de defesa que o Direito Penal não pode
autonomamente prever, mas que resulta de ponderações de valores do sistema. Somente a
consideração das causas de justificação reconhecidas no Direito Penal como direitos impediria
raciocínios deste tipo. No entanto, as causas de justificação positivadas não conferem,
necessariamente, a partir da sua configuração penal excludente da punibilidade, direitos de
intervenção.

O princípio nullum crimen, nulla poena sine lege6:


1. Função, sentido e fundamentos: o princípio do Estado de Direito conduz a que a proteção
dos direitos, liberdades e garantias seja levada a cabo não apenas através do Direito Penal,
as também perante o Direito Penal. Até porque uma eficaz prevenção do crime, que o
Direito Penal visa em último termo atingir, só pode pretender êxito se à intervenção
estadual forem levantados limites estritos – em nome da defesa dos direitos, liberdades
e garantias das pessoas – perante a possibilidade de uma intervenção estadual arbitrária
ou excessiva. A esta possibilidade de arbítrio ou de excesso se ocorre submetendo a
intervenção penal a um rigoroso princípio de legalidade, cujo conteúdo essencial de
traduz em que não pode haver crime, nem pena que não resultem de uma lei prévia,
escrita, estrita e certa (nullum crimen, nulla poena sine lege). A norma contida no artigo
29.º, n.º2 CRP confere jurisdição aos tribunais portugueses para conhecerem de certos
crimes contra o Direito Internacional (os crimina iuris gentium), mesmo que as condutas
visadas não sejam puníveis à luz da lei positiva interna. Necessário é porém que se trate
de crimes à luz dos «princípios gerais de direito internacional comummente
reconhecidos» (artigo 8.º, n.º1 CRP) e a punição só pode ter lugar «nos limites da lei
interna», que define os termos do processo e as sanções aplicáveis. A ideia de que o
Direito Internacional pode impor diretamente deveres de natureza penal aos indivíduos
consolidou-se a partir dos julgamentos de Nuremberga e de Tóquio, onde as potências
aliadas julgaram e condenaram membros das foras do Eixo por violações graves do
Direito Internacional (crimes contra a paz e a humanidade e crimes de guerra) que não
eram punidas pela lei interna desses países. Deste modo, no artigo 29.º, n.º2 CRP parece
ter-se adotado a conceção segundo a qual a responsabilidade por crimes contra o Direito
Internacional não se encontra sujeita ao princípio da legalidade previsto no artigo 29.º,
n.º1, válido apenas para lei estadual. Porém, hoje é seguro que o princípio nullum crimen
sine lege constitui um princípio geral de Direito Internacional, embora o seu modo seja

6
Dias, Jorge Figueiredo; Direito Penal, Parte Geral, tomo I; Coimbra Editora, 2.ª Edição; Outubro 2012,
Coimbra.

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diverso, uma vez que no termo lege se inclui também o Direito (Internacional)
Costumeiro; o que não deixa de trazer problemas graves quanto à exigência de
determinabilidade das condutas puníveis. De toda a maneira, a importância do problema
tem vindo a reduzir-se progressivamente desde o fim da II Guerra por força da
cristalização positiva do Direito Costumeiro em várias Convenções Internacionais, cujas
normas os Estados vão incorporando no seu Direito Interno. Nesses casos a lei interna
deve servir a proteção do Direito Internacional. Dever que se tornou ainda mais claro
com o Estatuto de Roma e o princípio de subsidiariedade da jurisdição do TPI em relação
às jurisdições nacionais, aí contido, nomeadamente, quando esteja em causa a aplicação
extraterritorial das normas de acordo com o princípio da universalidade (artigo 5.º, n.º2, 55
alínea b)). O princípio da legalidade da intervenção penal possui uma pluralidade de
fundamentos, uns externos (isto é, ligados à conceção fundamental do Estado), outro
internos (sc., de natureza especificamente jurídico-penal). Estre os primeiros avultam o
princípio liberal, o princípio democrático e o princípio da separação de poderes. De
acordo com o princípio liberal, toda a atividade intervencionista do Estado na esfera dos
direitos, liberdades e garantias das pessoas tem de ligar-se à existência de uma lei e
mesmo, entre nós, de uma lei geral, abstrata e anterior (artigo 18.º, n.º2 e 3 CRP). De
acordo com os princípios democrático e da separação dos poderes (na sua compreensão
atual, onde a separação é pensada nos quadros da interpenetração e da
corresponsabilização), para a intervenção penal, com o seu particular peso e magnitude,
só se encontra legitimada a instância que represente o Povo como titular último do ius
puniendi; donde a exigência, uma vez mais, de lei, e na verdade, entre nós, de lei formal
emanada do Parlamento ou por ele competentemente autorizada (artigo 165.º, n.º1,
alínea c) CRP). Entre os fundamentos interno costumam apontar-se a ideia da prevenção
geral e o princípio da culpa. Com razão. Não pode esperar-se que a norma cumpra a sua
função motivadora do comportamento da generalidade dos cidadãos – seja na sua
vertente negativa de intimidação, seja sobretudo na sua vertente positiva de
estabilização das expectativas – se aqueles não puderem saber, através de lei anterior,
estrita e certa, por onde passa a fronteira que separa os comportamentos criminalmente
puníveis dos não puníveis. Como não seria legítimo dirigir a alguém a censura por ter
atuado de certa maneira se uma lei com aquela características não considerasse o
comportamento respetivo como crime. Vale a própria função de prevenção especial
positiva ou de ressocialização, no seu entendimento atual, confirma a exigência do
princípio da legalidade: o comportamento que indicia a perigosidade não é (não pode ser)
apenas sintoma ou índice da carência de socialização e ensejo para que esta intervenha,
mas tem de ser co-fundamento e limite da intervenção criminal; nesta medida
ressurgindo a exigência de legalidade estrita daquela.

2. Nullum crimen sine lege: o princípio segundo o qual não há crime sem lei anterior que
como tal preveja uma certa conduta significa que, por mais socialmente nocivo e
reprovável que se afigure um comportamento, tem o legislador de o considerar como
crime (descrevendo e impondo-lhe como consequência jurídica uma sanção criminal)
para que ele possa como tal ser punido. Esquecimentos, lacunas, deficiências de
regulamentação ou de redação funcionam por isso sempre contra o legislador e a favor
da liberdade, por mais evidente que se revele ter sido intenção daquele (ou constituir
finalidade da norma) abranger na punibilidade também certos (outros) comportamentos.
Neste sentido se tornou célebre a afirmação de Von Liszt segundo a qual a lei penal

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constitui a «magna Charta do criminoso». Tem-se argumentado que, sendo assim, a lei
penal representa uma espécie de carta de alforria para o agente mais hábil, mais refinado
e (às vezes) mais rico e poderoso, numa palavra (própria da ciência criminológica), para
o agente dotado de maior competência de ação. Será verdade. Mas importa fazer neste
contexto duas precisões: a primeira é a de que um ta agente não é, em definitivo, um
criminoso se não for como tal considerado por uma sentença passada em julgado; a
segunda a de constituir este, apesar de tudo, um razoável preço a pagar para que possa
viver-se numa democracia que proteja minimamente o cidadão do arbítrio, da
insegurança e dos excessos de que de outro modo inevitavelmente padeceria a
intervenção do Leviatã estadual. 56
3. Nulla poena sine lege: a fórmula «não há crime sem lei» é complementada pela fórmula
«não há pena (rectior, não há sanção criminal, pena ou medida de segurança) sem lei».
Na interpretação desta fórmula verificam-se todavia algumas dificuldades que devem ser
consideradas. Desde logo, cumpre dizer que – diversamente do que sucede em muitas
outras ordens jurídicas, onde a conclusão tem de ser alcançada por via interpretativa –
entre nós também este segmento do princípio tem expressa consagração jurídico-
constitucional e legal. Nesse sentido afirma logo o artigo 29.º, nº.3 CRP que «não podem
ser aplicadas penas ou medidas de segurança que não estejam expressamente cominadas
em lei anterior». No que toca às penas, estas exigências de lex praevia corresponde à
doutrina internacional dominante. Não assim já porém no que toca às medidas de
segurança, relativamente às quais se pensava que o seu fundamento de estrita
prevenção especial deveria conduzir a que pudesse aplicar-se a medida de segurança
vigente ao tempo da aplicação, porque isso seria apenas sinal de um entendimento
legislativo melhor para o (sc., mais favorável) ao agente. Uma tal conceção foi reusada
pela CRP, como se disse, e , na sua esteira, pelo artigo 2.º, n.º1 CP. Em detrimento da
ideia paternalista de que ao legislador pertenceria dizer o que seria melhor para o agente,
porquanto só considerações ilimitadas de prevenção especial estariam na base das
medidas de segurança, veio a legislação constitucional e ordinária portuguesa dar
prevalência a uma consistente proteção dos direitos, liberdades e garantias das pessoas
também face à aplicação de medidas de segurança, conferindo assim ao facto uma
função de co-fundamento da respetiva aplicação. E, por esta via, veio assegurar-se a
extensão do princípio da legalidade às medidas de segurança com âmbito análogo àquele
que ele tradicionalmente assume para as penas. Com esta extensão, o CP 1982 e a nossa
lei Constitucional deram um passo decisivo – e mesmo pioneiro – numa compreensão
moderna e democrática destes instrumentos sancionatórios. O princípio em exame
significa, por outro lado, ser completamente vedado ao juiz, seja em bora na base da mais
esclarecida e avançada consciência político-criminal, criar instrumentos sancionatórios
criminais que se não encontrem estritamente previstos em lei anterior. O princípio da
legalidade assume consequências ou efeitos em cinco planos diversos: no plano do
âmbito ou da extensão, no plano da fonte, no plano da determinabilidade, no plano da
proibição da analogia e no plano da proibição da retroatividade.

4. O plano do âmbito de aplicação: neste plano cumpre assinalar que o princípio da


legalidade não cobre, segundo a sua função e o seu sentido, toda a matéria penal, mas
apenas a que se traduza em fundamentar ou agravar a responsabilidade do agente. Sob
pena, de outra forma – isto é, se abrangesse também a matéria da exclusão ou da
atenuação da responsabilidade – de o princípio passar a funcionar contra a sua teleologia

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e a sua própria razão de ser: a proteção dos direitos, liberdades e garantias do cidadão
face à possibilidade de arbítrio e de excesso do poder estatal. Por isso, para se avançar
apenas com um exemplo, o princípio cobre toda a matéria relativa ao tipo de ilícito ou ao
tipo de culpa, mas já não a que respeita às causas de justificação ou às causas de exclusão
da culpa. De tal forma é importante esta restrição do âmbito do princípio que ela se
estende a todas as suas consequências – seja no plano da fonte (matéria em todo o caso
discutível), seja no da determinabilidade, seja no das proibições de analogia e de
retroatividade.

5. O plano da fonte: neste plano o princípio conduz à exigência de lei formal: só uma lei da
AR ou por ela competentemente autorizada pode definir o regime dos crimes, das penas 57
e das medidas de segurança e seus pressupostos. A este propósito podem todavia
suscitar-se alguns problemas que não devem deixar de ser referidos, ainda que só per
summa capita. Desde logo, o de que, em rigor, o conteúdo de sentido do princípio da
legalidade, ainda aqui, só deveria cobrir a atividade de criminalização ou de agravação,
não a de descriminalização ou de atenuação. O que deveria conduzir, por seu lado, a
considerar que o Governo possui competência concorrente com a da AR para
descriminalizar ou atenuar a responsabilidade criminal. Posto perante a questão, o nosso
TC respondeu-lhe negativamente, interpretando a definição dos crimes, penas, medidas
de segurança e respetivos pressupostos no sentido de abranger tanto a função de
criminalização (ou de maior criminalização), como a de descriminalização (ou de menor
criminalização). Não é impossível excogitar razões jurídicas de política geral, relacionadas
nomeadamente com a definição dos círculos de competência de órgãos de soberania
dotados de poderes legiferantes, que ofereçam um qualquer fundamento a esta doutrina.
O que sempre será errado é invocar, ainda qui, o princípio da legalidade penal na sua
teleologia e na sua funcionalidade específicas. Outro problema é o de saber se a exigência
de legalidade no plano da fonte deverá abranger só a lei penal sensu stricto ou ainda
também a lei extra-penal, na medida em que esta venha a ser chamada pela lei penal à
fundamentação ou à agravação da responsabilidade criminal. Para esta fundamentação
ou agravação serve-se muitas vezes a lei penal, com efeito de procedimentos de reenvio
para ordenamentos jurídicos não penais; ordenamentos estes onde não vale, logo no
plano da fonte, um princípio de legalidade equivalente ao que aqui se considera e onde,
por isso, o Governo e a Administração têm competência geral, ou mais lata do que em
matéria penal, para legislar. O que acaba por fazer crise nas chamadas normas penais em
branco, sobretudo abundantes no âmbito do Direito Penal Secundário, que cominam
uma pena para comportamentos que não descrevem, mas se alcançam através de uma
remissão da norma penal para leis, regulamentos ou inclusivamente atos administrativos
autonomamente promulgados em outro tempo ou lugar. Pressuposto, porém, evidente,
que a norma penal em branco consta de lei forma, não se veem razões teleológico-
funcionais decisivas para considerar em causa, no plano da fonte, o respeito pelo
princípio da legalidade. O que fica dito vale também para os casos em que um
Regulamento Comunitário (diretamente aplicável na ordem jurídica portuguesa – artigo
8.º, n.º4 CRP) é chamado a preencher, por remissão, o espaço em branco de uma norma
penal interna: para este efeito o regulamento encontra-se no mesmo plano dos
instrumentos legislativos nacionais não legitimados para criar proibições penais. O
problema já não se põe relativamente às diretivas comunitárias e às decisões-quadro,

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pois estes instrumentos carecem sempre de uma atividade de transposição por parte dos
legisladores nacionais, a quem caberá proceder de acordo com o princípio da legalidade.

6. A determinabilidade do tipo legal: no plano da determinabilidade do tipo legal ou tipo de


garantia – precisamente, o tipo formado pelo conjunto de elementos cuja fixação se
torna necessária para uma correta observância do princípio da legalidade –, importa que
a descrição da matéria proibida e de todos os outros requisitos de que dependa em
concreto uma punição seja levada até a um ponto em que se tornem objetivamente
determináveis os comportamentos proibidos e sancionados e, consequentemente, se
torne objetivamente motivável e dirigível a conduta dos cidadãos. Considerar crime as
condutas que ofendem o «são sentimento do povo» ou a «ordem dos operários e 58
agricultores» tornaria supérfluo um grande número de incriminações dos códigos penais;
mas não cumpriria minimamente as exigências de sentido ínsitas no princípio da
legalidade. Do mesmo modo, se e inevitável que a formulação dos tipos legais não
consigna renunciar à utilização de elementos normativos, de conceitos indeterminados,
de cláusulas gerais e de fórmulas gerais de valor, é indispensável que a sua utilização não
obste à determinabilidade objetiva das condutas proibidas e demais elementos de
punibilidade requeridos, sob pena de violação irremissível, neste plano, do princípio da
legalidade e sobretudo da sua teleologia garantística. Nesta aceção se afirma, com razão,
que a lei penal fundamentadora ou agravadora da responsabilidade tem de ser uma lei
certa e determinada; e se chama muito acertadamente a atenção, nos novos tempos,
para que é mais aqui até do que no plano da proibição da analogia ou da retroatividade
que reside o grande perigo para a consistência do princípio nullum crimen, que é neste
ponto que reside o verdadeiro cerne do princípio da legalidade. O critério para decisivo
para auferir do respeito pelo princípio da legalidade (e da respetiva constitucionalidade
da regulamentação) residirá sempre em saber se, apedar da indeterminação inevitável
resultante da utilização destes elementos, do conjunto da regulamentação típica deriva
ou não uma área e um fim de proteção da norma claramente determinados.

Proibição da analogia: toma-se neste contexto o conceito de analogia como aplicação de uma
regra jurídica a um caso concreto não regulado pela lei através de um argumento de semelhança
substancial com os casos regulados: a chamada analogia legis, não a analogia iuris. Depois de
quanto ficou dito torna-se evidente que o argumento de analogia, largamente adequado à
aplicação da lei, tem em Direito Penal de ser proibido, por força do conteúdo de sentido do
princípio da legalidade, sempre que ele funcione contra o agente e vise servir a fundamentação
ou a agravação da sua responsabilidade. Esta conclusão já resultaria evidente do texto do artigo
29.º, n.º1 CRP (e também do artigo 1.º, n.º1 CP), porque nestas hipóteses se não pode afirmar
que a lei declara punível o ato ou a omissão. Mas o CP entendeu – e bem – reforçar a proibição,
estatuindo expressis verbis, no artigo 1.º, n.º3, que «não é permitido o recurso à analogia para
qualificar um facto como crime, definir um estado de perigosidade ou determinar a pena ou a
medida de segurança que lhes corresponde».

Interpretação e analogia em Direito Penal: a proibição de analogia pressupõe a resolução do


problema dos limites da interpretação admissível em Direito Penal. Está hoje afastada
definitivamente a convicção iluminista de que o princípio da separação de poderes conduziria
logo à proibição de qualquer processo de interpretação jurídica e a conceção da função policial
que lhe subjazia. E aceita-se, pelo contrário, que praticamente todos os conceitos utilizados na
lei são suscetíveis e carentes de interpretação: não apenas os conceitos normativos, mas mesmo

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aqueles que à primeira vista se diria caracterizadamente descritivos e por isso apreensíveis
através dos sentidos. Deste modo se torna inarredável a questão de saber o que pertence ainda
à interpretação permitida e o que pertence já à analogia proibida em Direito Penal pelo princípio
da legalidade. O critério de distinção teleológica e funcionalmente imposto pelo fundamento e
pelo conteúdo de sentido do princípio da legalidade só pode ser o seguinte: o legislador penal é
obrigado a exprimir-se através de palavras; as quais todavia nem sempre possuem um único
sentido, mas pelo contrário se apresentam quase sempre polissémicas. Por isso o texto legal se
torna carente de interpretação (e neste sentido, atenta a primazia da teleologia legal, de
concretização, complementação ou desenvolvimento judicial), oferecendo as palavras que o
compõem, segundo o seu sentido comum e literal, um quadro (e portanto uma pluralidade) de 59
significações dentro do qual o aplicador da lei se pode mover e pode optar sem ultrapassar os
limites legítimos da interpretação. Fora deste quadro, sob não importa que argumento, o
aplicador encontra-se inserido já no domínio da analogia proibida. Um tal quadro não constitui
por isso critério ou elemento, mas limite da interpretação admissível em Direito Penal. A doutrina
aqui defendida não é, contra o que poderia pensar-se, arbitrária, nem muito menos filha de uma
metodologia crassamente positivista. É, pelo contrário, a posição teleológica e funcionalmente
imposta pelo conteúdo de sentido próprio do princípio da legalidade. Fundar ou agravar a
responsabilidade do agente em uma qualquer base que caia fora do quadro de significações
possíveis das palavras da lei não limita o poder do Estado e não defende os direitos, liberdades e
garantias das pessoas. Por isso falta a um tal procedimento legitimação democrática e tem de lhe
ser assacada violação da regra do Estado de Direito. É claro que, dito isto, não ficam ainda
apontados os critérios de que o intérprete se deve servir para eleger, de entre os sentidos
possíveis das palavras, aquele que deve reputar-se jurídico-penalmente imposto. Se o caso
couber em um dos sentidos possíveis das palavras da lei nada há, a partir daí, a acrescentar ou a
retirar aos critérios gerais da interpretação jurídica. O que simplesmente sucede, pois, é que há
de facto, em toda a construção – e muito particularmente na aplicação – do Direito Penal um
momento inicial de mera subsunção formal, imposta por aquele princípio (da legalidade) e pela
função de garantia ou, se quisermos, pelo tipo de garantia que daquele princípio resulta.
Ultrapassado porém este momento inicial, correspondente à operação lógico-jurídica a
incriminação, toda a posterior construção e aplicação não está submetida àquelas exigências e
deve integrar-se completamente nas duas ideias fundamentais da impostação metodológica
sugerida. Decisivo será assim, por um lado, que a interpretação seja teleologicamente
comandada, isto é, em definitivo determinada à luz do fim almejado pela norma; e por outro que
ela seja funcionalmente justificada, quer dizer, adequada à função que o conceito (e, em
definitivo, a regulamentação) assume no sistema. Perante a conceção aqui defendida parecem
improceder as objeções que se seja tentado a opor-lhe. E desde logo a velha – mas sempre
renovada – objeção segundo a qual não é logicamente possível, nem metodologicamente
legítimo distinguir entre interpretação e analogia. Decerto que o processo lógico é o mesmo;
decerto que interpretação e integração são momentos, ambos, de um processo metodológico de
aplicação fundamentalmente unitário. Mas nada disto ofusca a circunstância de que existem
processos hermenêuticos cuja conclusão se mantém no quadro dos significados comuns
atribuídos às palavras utilizadas pelo legislador e processos cuja conclusão o ultrapassa: e é isto
o essencial para observância do conteúdo de sentido legitimador do princípio da legalidade. Todo
o resto acaba por reduzir-se a uma questão terminológica desinteressante, qual seja a de saber
se em vez de distinguir a interpretação da analogia não se torna preferível distinguir uma
interpretação jurídico-penalmente permitida de uma outra proibida. Não parece, por outro lado,
que deva substituir-se a função limitadora que aqui se assinala ao teor literal da norma

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incriminadora pelo sentido e finalidade da lei, em suma, pelo apelo à ratio legis. Claro que este
sentido e finalidade assume na interpretação (também na jurídico-penal, como assinalámos) uma
função primordial. Mas, antes de ele entrar em jogo, a interpretação admissível tem de passar a
prova de fogo – para a qual pode servir a imagem do funil invertido – da sua admissibilidade face
ao teor literal da lei e aos significados comuns que ele comporta. De outro modo esfuma-se a
função de garantia da lei penal – a proteção das pessoas perante a lei penal –, não é possível
encontrar qualquer especificidade do princípio da legalidade criminal face ao princípio da
legalidade tout court e o disposto no artigo 29.º, n.º1 CRP perde inteiramente a sua função e o
seu significado. O que acaba de dizer-se não significa porem que deva aceitar-se uma cisão entre
o princípio da legalidade e a sua função político-criminal, sujeito a uma compreensão metódica 60
estritamente lógico-formal, de um lado, e a dogmática do crime, orientada por uma consideração
substancial, de outro; de tal modo que àquele princípio, uma vez ultrapassado o momento inicial
de subsunção incriminatória, não mais houvesse que reverter. Antes o conteúdo e a função
político-criminal do princípio da legalidade devem a cada momento estar presentes na
construção dogmática do crime. E, antes de tudo, no seu elemento constitutivo que se acolhe
sob a epígrafe da tipicidade ou, mais concretamente, tipo de ilícito, sendo neste que se fazem
sentir de forma mais intensa e devem portanto encontrar tradução mais cabal as exigências de
determinabilidade inerentes ao princípio da legalidade. Temas como os da exigência de uma
conexão de risco em matéria de imputação objetiva, de determinação do que sejam atos de
execução em matéria de tentativa, ou de preferência pelas doutrinas do domínio do facto em
matéria de autoria são só alguns exemplos que esperamos tornarem claro aquilo que aqui se quis
significar.

Âmbito da proibição da analogia: face ao fundamento, à função e ao sentido do princípio da


legalidade a proibição da analogia vale relativamente a todos os elementos, qualquer que seja a
natureza, que sirvam pra fundamentar a responsabilidade ou para agravar; a proibição vale pois
contra reum ou in malem partem, não favore reum ou in bonam partem. Concretamente, a
proibição abrange antes de tudo os elementos constitutivos os tipos legais de crime descritos na
Parte Especial do Código Penal ou em legislação penal extravagante. Como vale relativamente às
leis penais em branco não só no que toca à parte sancionatória (especificamente penal) da norma,
mas ainda mesmo na parte em que esta remete pra a regulamentação externa. Coisa diferente
só deverá dizer-se relativamente a conceitualizações extra-penais utilizadas pelo legislador penal
que, em princípio, este terá querido usar de forma puramente acessória e, por conseguinte, com
o sentido que elas possuem no ramo de direito a que pertencem; caso em que se compreende
que devam aceitar-se os resultados a que legitimamente se chegue pelos métodos de
interpretação permitidos nesse ramo de direito. Também relativamente à matéria das
consequências jurídicas do crime vale a proibição de analogia em tudo quanto possa revelar-se
desfavorável ao agente, isto é, no fundo, em tudo o que signifique restrição (acrescida) da sua
liberdade no sentido mais compreensivo. Por isso não tem hoje razão de ser uma doutrina,
outrora dominante, segundo a qual a proibição valeria em matéria de penas, mas já não de
medidas de segurança, por estarem aqui em causa finalidades estritas de prevenção especial
positiva. O mesmo se diga, de resto, para a parte sancionatória das leis penais em branco. A
proibição de analogia vale ainda para certas normas da Parte Geral do Código Penal: para aquelas
que constituem alargamentos da punibilidade de comportamentos previstos como crimes na
Parte Especial, nomeadamente em matéria de tentativa, de comparticipação, etc. Um problema
especial é aqui constituído pelas causas de justificação e pelas causas de exclusão (ou atenuação)
da culpa e da punibilidade. Tratando-se nelas de situações que não fundamentam ou agravam a

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responsabilidade do agente, mas pelo contrário a excluem ou a atenuam, o recurso à analogia é


legítimo sempre que o resultado seja o do alargamento do seu campo de incidência; mas já será
ilegítimo se tiver como consequência a diminuição daquele campo, se bem que haja aqui razões
para determinar de forma mais restritiva os limites da analogia proibida.

A aplicação da lei penal o tempo: a proibição de retroação in pejus7: o princípio geral da


não retroatividade das leis assume no Direito Penal a natureza de uma proibição constitucional
de retroatividade das normas penais que criem ou agravem a responsabilidade penal. Os
fundamentos de tal proibição são, quanto às normas incriminadoras, os princípios da culpa e da
segurança jurídica. A possibilidade de uma conduta ser retroativamente incriminada contradita
uma responsabilidade penal fundamentada na livre determinação do agente pela norma jurídica
61
– a culpa jurídica – e destruiria a garantia das expectativas dos cidadãos quanto ao que é
proibido – a segurança jurídica. Já quanto às sanções criminais a retroatividade afetará
sobretudo a referida segurança, permitindo quaisquer abusos do poder, pela alteração a todo o
tempo possível das espécies e limites das sanções. A proibição de retroatividade corresponde,
assim, à garantia de que o exercício do poder punitivo seja exercido de acordo com critérios e
limites conhecidos antecipadamente e não alteráveis por força de um interesse particular ou
para resolver um caso concreto antes não previsto. Desta fundamentação da proibição da
retroatividade resulta o seu âmbito no Direito Penal; contempladas com a proibição da
retroatividade:

a. As incriminações;
b. As agravações da responsabilidade criminal;
c. As penas;
d. Os pressupostos das medidas de segurança;
e. As medidas de segurança;
f. Todas as normas processuais que afetem diretamente direitos, liberdades e garantias.
Pressupostos da retroatividade: a interpretação jurídica e o problema do conceito de
retroatividade: a proibição da retroatividade importa que o conceito de retroatividade seja
discutido e delimitado normativamente. Desde logo, a retroatividade só existe se o regime
previsto numa lei se puder referir a um determinado tipo de situação anterior à sua vigência.
Segundo o artigo 3.º CP tal situação é referida ao momento da efetiva prática da ação criminosa
ou ao momento em que se produziria a ação que evitaria o resultado típico. Assim, se a lei em
causa for anterior à produção do resultado típico, mas posterior à prática da ação prevista já
haverá retroatividade. A retroatividade pressupõe que a lei penal se pretende referir, segundo
a interpretação jurídica, a certos factos anteriores. Não há, portanto, problema de
retroatividade onde o dever ser objetivo e a intenção normativa não se puderes concretizar, de
modo algum, naquelas situações. O abandono da conceção tradicional de interpretação jurídica
desligada da aplicação da norma reflete-se no conceito de retroatividade. Se, como advoga
Castanheira Neves, o texto jurídico deixar de ser o verdadeiro fundamento dos elementos extra
literais (histórico e teleológico), a retroatividade de uma lei tenderá a depender também das
definições jurisprudenciais do direito relativamente a certas categorias de casos anteriormente

7
Direito Penal, parte geral; AAFDL; Lisboa, 1994.

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decididos. Mas a desvalorização do texto que resulta desta perspetiva tende a implicar que a
proibição de retroatividade abranja as próprias mudanças de orientação na jurisprudência
incriminadora e punitiva, pois, Como diz Castanheira Neves,

«a decisão concreta em que essa mudança se verifique significa decerto a imposição


a um comportamento ou a um caso situados no passado de uma solução jurídica
que então não estava definida e não se reconhecia».

Uma tal conclusão seria, porém, excessiva, pois levaria a que toda a jurisprudência errada se
consolidasse. A proibição da retroatividade jurídica seria a única garantia possível contra
alterações jurisprudenciais absolutamente desvinculadas do texto jurídico a que a perspetiva de 62
Castanheira Neves, por força do apagamento do texto que propugna, conduz. Uma alteração de
jurisprudência que seja somente a correção de uma errada definição do direito não viola a
garantia da proibição de retroatividade das normas incriminadoras se o seu critério, ainda que
ampliador da incriminação, for o único critério jurídico possível da decisão. Não deverão ser
protegidas expectativas de uma menor punição relativamente a condutas para as quais,
objetivamente, o texto jurídico conterá um juízo de desvalor idêntico ao de outras
reconhecidamente incriminadas.

Retroatividade e medidas de segurança: a subordinação dos pressupostos das medidas de


segurança à proibição de retroatividade foi negada, no passado, em consequência de uma
conceção de medidas de segurança alheia ao Direito Penal do facto. A perigosidade do agente,
entendida como sintoma, era vista, simultaneamente, como fundamento e pressuposto da
medida de segurança, de modo que não existiria qualquer retroatividade desde que a lei que
criasse ou modificasse uma certa medida de segurança fosse contemporânea de um estado de
perigosidade já anterior e duradouro. Enquanto existisse perigosidade no presente, embora já
manifestada no passado, não se poderia conceber uma verdadeira retroatividade. Na verdade,
esta perspetiva era justificada pela convicção de que a proibição de retroatividade se baseava
no princípio da culpa, de modo que, onde se procurasse assegurar finalidades preventivas das
sanções penais, não haveria que respeitar o conhecimento pelo agente da existência ou da
medida da sanção nem que arvorar quaisquer factos em fundamento da medida de segurança.
Embora a perspetiva da retroatividade das medidas de segurança tenha influenciado o Direito
alemão, ela é hoje refutada dominantemente pela doutrina, mesmo pela alemã que a sustentou,
e foi decididamente afastada pelo artigo 29.º n.º1 e 3 CRP e pelo artigo 2.º CP. O fundamento
da proibição de retroatividade não é essencialmente a culpa, mas sim a segurança dos
destinatários do Direito própria de um Estado de Direito democrático. Quer a alteração
agravante de uma medida de segurança quer a sua criação afetam a segurança, na medida em
que permitam uma intervenção sem controlo do poder punitivo na liberdade dos cidadãos. A
ausência de limites à intervenção do Estado, mesmo que em nome da prevenção e da política
criminal, contendem com a segurança que é fundamento da proibição de retroatividade das
medidas de segurança.

Retroatividade e processo penal: do artigo 5.º, n.º1 Código Processo Penal (CPP) resulta a
aplicabilidade imediata da nova lei processual penal. O n.º2 do artigo 5.º CPP limita a
aplicabilidade imediata, relativamente «aos processos iniciados anteriormente à sua vigência»,
nos casos de «agravamento sensível da situação processual do arguido» e de «quebra de
harmonia e unidade de vários atos do processo». Há, assim, limites à aplicabilidade imediata
resultantes diretamente do princípio constitucional da proibição da retroatividade e do próprio

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subprincípio contido no artigo 5.º, n.º2. O primeiro tipo de limites exclui a aplicabilidade
imediata de todas as normas do Processo Penal que não se possam caracterizar como puras
normas processuais, mas que sejam de natureza substantiva penal numa conexão
fundamentadora da responsabilidade do arguido. A aplicabilidade imediata justifica-se, apenas,
relativamente a normas que regulem o modo de proceder dos tribunais na definição concreta
do Direito Penal e não já relativamente a normas que se refiram às condições de procedibilidade
ou causas de extinção do procedimento criminal, como acontece com as normas que regulam
os prazos prescricionais, na medida em que estas delimitem direta e exclusivamente a relação
jurídica punitiva. Assim, as normas que dilatem os prazos de procedimento prescricional,
embora não afetem verdadeiramente um direito subjetivo dos autores dos crimes a não serem 63
perseguidos após o decurso de um certo lapso, revelam uma alteração da necessidade de punir
e uma intensificação da dignidade punitiva comparativamente com a vigente no momento da
prática do crime. A aplicação imediata do prazo prescricional revelaria, deste modo, uma
apreciação, à luz do presente, da necessidade de punição de um crime praticado no passado.
Uma tal solução enfraqueceria a limitação do Estado pelo Direito que criou num determinado
momento, não assegurando a auto limitação própria do Estado de Direito. Jakobs afirma que «o
princípio da vinculação à lei e consequentemente a proibição da retroatividade atinge tanto
quanto seja necessário pela garantia de objetividade». Também é de rejeitar a aplicação
imediata da lei que transforma um crime particular ou semipúblico em público, de modo que o
facto criminoso cometido no passado contra o qual não foi deduzida queixa possa vir a ser objeto
de processo penal. Taipa de Carvalho conclui no mesmo sentido do texto embora com referência
exclusiva ao artigo 29.º, nº.1 CRP. Jeschech e Roxin não convergem nas soluções. Roxin, contra
a doutrina e a jurisprudência dominantes, defendem a proibição de retroatividade da lei
posterior da lei posterior que suprima uma exigência de queixa particular: «se a exigência de
queixa é retroativamente eliminada e se pune sem queixa, então só nesse momento é que é
constituído um direito de punição do Estado». Neste último caso, não haverá, igualmente, um
direito do autor do facto criminoso não ser submetido a processo penal, ou pelo menos um
direito subjetivo construído como proteção de um bem em atenção às finalidades da pessoa. No
entanto, a aplicação imediata da lei, no caso de não ter sido deduzida queixa antes de ela ter
entrado em vigor, não garantiria suficientemente o princípio da objetividade e vinculação do
Estado ao seu Direito. A solução deste tipo de casos deve ser, diferentemente, a aplicação pura
e simples da lei antiga.. Finalmente, a situação inversa em que o crime é convertido de público
em semipúblico (ou até particular) não se equaciona juridicamente nos mesmos termos. Aí o
princípio do Estado de Direito não será critério decisivo da solução jurídica, se o referirmos
apenas à perspetiva do arguido – isto é, se dele pretendermos extrair exclusivamente garantias
de que o Estado se vincule ao seu Direito para não agravar, arbitrária e inesperadamente, a
posição do arguido. Também a lógica da proteção da segurança jurídica não é decisiva se apenas
for lida na perspetiva do arguido. Todavia, é ainda o princípio do Estado de Direito – como regra
de objetividade, de previsibilidade e segurança jurídica geral – que impõe, neste caso, que as
expectativas do titular do direito de queixa não sejam defraudadas, dando-se-lhe oportunidade
processual de exercer o seu direito após a entrada em vigor da lei nova. Esta solução não parece
de qualquer aplicação a este tipo de casos do artigo 5.º, n.º1 CPP, isto é, do critério de aplicação
imediata da lei processual penal pois o direito de queixa tem uma valia extraprocessual e até
extrapenal. A função do direito de queixa não justifica a referência das normas que o regulam à
ratio legis do nº.1 do artigo 5.º - a adaptação do processo a soluções novas mais eficientes,
instrumental da realização da justiça. O direito de queixa é influenciado pelo chamado princípio
vitimológico, segundo o qual compete ao Direito assegurar a reparação dos danos do crime

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sofridos pela vítima em toda a sua dimensão jurídica, nomeadamente através da utilização do
processo penal. Este princípio pressupõe que a proteção penal de um bem de que alguém é
titular, embora relevante para toda a sociedade, deve ser deixado à disponibilidade do ofendido
em situações em que o valor da disponibilidade pelo seu titular seja prevalecente. A anterior
argumentação demonstra que a lei da qual resultem alterações do direito de queixa não é
apenas uma lei penal no sentido do Direito Penal como conjunto de normas direta ou
indiretamente incriminadoras e dos seus meios de aplicação processual. A natureza do direito
de queixa também não permite referir integralmente as normas que o regulam ao princípio da
retroatividade in melius consagrado no artigo 29.º, n.º4 CRP e no artigo 2.º, n.º2 CP. Finalmente,
os limites previstos no artigo 5.º, n.º2 CPP, referem-se nitidamente a normas processuais das 64
quais derive um efeito essencial para a posição processual do arguido na relação jurídica punitiva,
na sua fase processual. São normas que, embora não afetando a existência da relação jurídica
punitiva nem a modificando substancialmente, atingem a possibilidade do comportamento do
arguido realizar os direitos que lhe são reconhecidos no processo penal, como por exemplo o
direito de defesa.

A aplicação retroativa de lei penal mais favorável: como limite não intrínseco à proibição
da retroatividade consagra-se nos artigos 29.º, n.º4 CRP e 2.º, n.º4 CP a aplicação retroativa da
lei penal mais favorável. O fundamento da chamada retroatividade in melius é simultaneamente
a igualdade e a necessidade da pena. A retroatividade in melius surge assim como um princípio
e não apenas como uma exceção à proibição da retroatividade. Se a lei penal posterior suprimir
uma norma incriminadora, será injusto que agentes de factos idênticos recebam tratamento
radicalmente diferente (punição e não punição), conforme tais factos sejam perpetrados antes
ou depois da revogação da norma. A lógica que subjaz ao artigo 2.º, nº.2 CP impõe assim que a
revogação da norma incriminadora tenha como consequência a extinção da pena ou do
procedimento criminal sem quaisquer limitações. O artigo 29.º, n.º4 CRP parece sugerir, embora
não expressamente, que a aplicação retroativa da lei penal mais favorável se detém perante o
caos julgado, na medida em que se refere a «leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido».
Todavia, uma eventual restrição pelo caso julgado não se adequa ao fundamento do princípio
da retroatividade in melius. Uma restrição do alcance daquele princípio não se justificaria senão
por uma lógica exterior de segurança e estabilidade das instituições que executam as penas. Por
outro lado, a referência ao arguido não é sinónima de caso julgado, na medida em que após o
caso julgado a qualidade de arguido persistirá se o processo for reativado. Não seria, no entanto,
razoável supor que a estabilidade e a segurança se realizariam, num Estado de Direito
Democrático, em contradição com a igualdade e sem qualquer apoio no princípio da
necessidade da pena (artigo 18.º, n.º2 CRP). O texto constitucional não apoia qualquer restrição
da garantia emanada do artigo 2.º CP, preceito em que o princípio da aplicação retroativa da lei
mais favorável se consagra de modo mais amplo. E, por força do artigo 17.º CRP, a amplitude da
garantia é tutelada constitucionalmente, na medida em que o direito à extinção da
responsabilidade criminal, resultante da aplicação da lei penal mais favorável desincriminadora
após o caso julgado, é de natureza análoga ao direito que se fundamenta expressa e
imediatamente no artigo 29.º, n.º4 CRP. Uma outra questão que a aplicação retroativa da lei
penal mais favorável suscita é a da abrangência da retroatividade perante leis penais posteriores
atenuantes da responsabilidade perante leis penais posteriores atenuantes da responsabilidade
penal mas não desincriminadores. Relativamente a estas, já o artigo 2.º, n.º4 CP refere
expressamente o «trânsito em julgado» como limitação da retroatividade em favor do agente.
Nesse caso, poderia pensar-se que o âmbito do princípio coincidiria com um sentido restrito que

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parece resultar do texto constitucional. Todavia, também nesta situação se impõe a aplicação
retroativa da lei que em concreto estabelece o regime mais favorável, com fundamento na
igualdade e na necessidade da pena. A reserva de caso julgado apenas se fundamenta em razões
de segurança e estabilidade das instituições penais cujo valor é necessariamente inferior à
igualdade e à necessidade da pena. O artigo 282.º, n.º3 CRP também não se refere
expressamente ao caso julgado, o que demonstra que o conceito de arguido utilizado, tanto
nesse artigo como no artigo 29.º, n.º4 CRP, não impõe uma restrição do princípio pelo caso
julgado. A aplicação retroativa da lei penal de conteúdo mais favorável impõe que se determine
em concreto o regime mais favorável para o arguido, isto é que se considere qual seria a medida
da pena mais favorável, em face de todas as causas de justificação, desculpa, atenuação, 65
agravação e procedibilidade de uma determinada lei. Uma lei posterior que agrave a medida
legal da pena poderá, ainda assim, permitir a aplicação de uma pena inferior ao agente e deverá,
nesse caso, ser aplicada retroativamente.

Aplicação retroativa da lei penal mais favorável e a delimitação da sucessão de leis no


tempo: a retroatividade in melius pressupõe uma verdadeira sucessão de leis no tempo, isto é,
que as normas penais sucessivas possam fundamentar a decisão dos mesmos casos, embora de
forma diversa. Essa unidade do pressuposto normativo das leis sucessivas exige a previsão de
uma factualidade típica idêntica ou referida a condutas humanas idênticas, nas várias leis que
se confrontam. Não haverá, deste modo, verdadeira sucessão de leis se o comportamento que
é objeto do juízo de ilicitude for parcialmente reproduzido na lei posterior, sendo, todavia,
concebível a manutenção da sua punição em concurso efetivo ou até mesmo aparente com a
do comportamento previsto na lei posterior. A sucessão de leis depende de o comportamento
anteriormente contemplado não implicar, necessariamente, a verificação da conduta prevista
na lei posterior, havendo assim, pelo menos uma revogação tácita. Também constitui uma
sucessão de leis a situação em que uma lei do direito de mera ordenação social abranja condutas
que atentem contra espécies selvagens e outra posterior, com a mesma finalidade de proteção
das espécies selvagens, exclua algumas daquelas espécies de proteção conferida. Deve notar-se
que a identidade do facto típico não é constituída apenas naturalística ou socialmente,
dependendo, igualmente, da essencial intenção normativa das leis. A situação de sucessão de
leis precedentemente referida não se verificaria se a lei posterior visasse a proteção de bens
jurídicos diversos da anterior. De qualquer forma, a diferente finalidade da lei ou da sua
essencial intenção normativa não pode justificar, artificialmente, a autonomia das factualidades
típicas. Onde a conduta humana referente não seja socialmente distinta haverá violação do non
bis in idem, pela utilização da figura do concurso ideal. O concurso ideal de infrações verifica-se
sempre que a mesma conduta (pelo menos em sentido naturalístico) lesa vários bens jurídicos
(concurso heterogéneo) ou o mesmo bem diversas vezes (concurso homogéneo). A delimitação
da verdadeira sucessão de leis é um pressuposto essencial da resolução dos problemas de
substituição da punição de certos factos no âmbito penal pelo seu sancionamento através do
direito de mera ordenação social. O problema que se coloca é, basicamente, saber se nesses
casos houve uma alteração de regime punitivo, nos termos do artigo 2.º, n.º4 CP, ou antes um
fenómeno de desincriminação, com as consequências normais do artigo 2.º, n.º2 CP. Na segunda
solução, a conversão dos crimes em contraordenação implicaria a extinção pura e simples de
qualquer responsabilidade jurídica, de modo que o desaparecimento da incriminação
corresponderia a uma extinção de toda e qualquer responsabilidade pelo facto passado. A
segunda solução implicaria, tão só, a substituição de uma forma mais grave e a correspondente
substituição de uma pena por uma coima. A solução do dilema não é meramente lógica, mas

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apela a uma compreensão valorativa da substituição e regimes. Embora numa aparente e estrita
lógica formal se pudesse concluir que a diferença qualitativa do ilícito penal relativamente ao de
mera ordenação social impediria uma verdadeira sucessão de leis no tempo, pois os critérios
valorativos de um ilícito de outra natureza suscitariam um facto jurídico novo e diferente, tal
construção desconheceria que o sentido do apelo à autonomia qualitativa do ilícito é apenas
evitar a plena utilização dos custos e vantagens dos critérios de responsabilização penal e do
respetivo processo e permitir a introdução de critérios de aferição da responsabilidade
justificados por objetivos sociais menos centrais e mais instrumentais. É incorreto, deste modo,
defender a extinção em absoluto da responsabilidade jurídica em tais situações, quando não
existir uma explícita e coerente vontade legislativa da extinção de toda a responsabilidade pelos 66
factos passados. Por outro lado, nestas situações existe, na realidade, um comportamento
humano referente essencialmente idêntico, que assegura a unidade do facto e a continuidade
normativa. A sucessão de leis que origina a conversão do crime público em semipúblico é uma
verdadeira sucessão de leis penais para efeitos da aplicação do artigo 2.º, n.º2 e 4 CP? A
pergunta justifica-se, obviamente, por se poder entender que violaria aquelas normas uma não
aplicação retroativa da lei penal posterior aos factos que foram cometidos antes da sua vigência,
sendo esta última mais favorável. Porém, como se disse, a dimensão normativa dos preceitos
que alteram o direito de queixa não é estritamente penal: a normação do direito de queixa não
é inequivocamente lei penal no sentido dos artigos 2.º, n.º2 CP e 29.º, n.º4 CRP. Sendo
justificada a retroatividade in melius pela igualdade na aplicação da pena e pela necessidade da
mesma, o âmbito do conceito de lei penal é aferido por essa ratio legis, de modo que as
alterações do direito de queixa não estão necessariamente contempladas. Isto é, a exigência de
exercício do direito de queixa para o desencadeamento do processo penal não significa
diretamente a diminuição da necessidade de punir relativamente à fase anterior nem pretende
necessariamente favorecer a posição do autor do crime, embora esses efeitos possam ser
reflexamente produzidos. Com efeito, a despublicização de crimes pode ter um fim de mera
proteção da vítima ou então revelar um desinteresse do Estado pela iniciativa processual, devido
a razões de política criminal. Nesses casos, a fundamentação normativa do direito de queixa
seria negada com uma aplicação retroativa da lei posterior que levasse a um automático
arquivamento dos processos e à total impossibilidade do exercício do mesmo direito. Nesse
sentido, nunca se poderia dizer que tais casos se submeteriam exclusivamente ao artigo 29.º,
n.º4 CRP tem difícil aplicação sua plenitude lógica. Já nos casos em que despublicização revele
uma menor intensidade do direito de punir, seria mais compreensivelmente uma decisão
segundo o artigo 29.º, n.º4 CRP, sem que, no entanto, essa aplicação pudesse ser absolutamente
limitativa dos direitos do ofendido. Assim, tanto nos últimos casos como nos primeiros (em que
o artigo 29.º, n.º4 CRP, não estaria em causa) a solução jurídica mais harmoniosa será a da
atribuição ao ofendido da oportunidade processual para o exercício do direito de queixa. Nos
casos de despublicização para proteção da vítima (que não se submetem plenamente à ratio dos
artigos 29.º, n.º4 CRP e 2.º, n.º4 CP), a ultra atividade da lei anterior (crime público) levaria a
uma desigualdade entre os arguidos pelos mesmos crimes ates e depois da despublicização, se
não se viesse a exigir o exercício do direito de queixa. Noutros casos, em que se divisa um sentido
relativamente descriminalizador (uma menor necessidade de punir), a aplicação retroativa da
lei que despubliciza implicaria uma desproteção dos titulares do direito de queixa que o artigo
29.º, n.º4 CRP, não pode em rigor produzir, impondo-se uma contenção do seu alcance pelo
princípio do Estado de Direito Democrático (artigo 2.º CRP). Por todas essas razões se impõe
uma única solução jurídica para estes casos: a atribuição de oportunidade de exercício do direito
de queixa. O seu fundamento não decorre direta e exclusivamente do artigo 29.º, n.º4 CRP, mas

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sim dos princípios jurídicos que a este subjazem – a igualdade e a necessidade da pena –,
articuladamente com a proteção da confiança emanada do Estado de Direito Democrático.
Justifica-se, simulataneamente, a aplicação imediata da lei nova e a proteção do exercício do
direito de queixa.

O problema das leis temporárias e de emergência: a retroatividade da lei penal de


conteúdo mais favorável não abrange as leis e de emergência. O artigo 2.º, n.º3 CP prescreve
que «quando a lei valer para um determinado período de tempo, continua ser punível o facto
praticado durante esse período», subtraindo, aparentemente, à retroatividade in melius essas
situações. Todavia, o conteúdo normativo do artigo 2.º, n.º3, não pretende referir-se a uma
sucessão de leis penais em sentido próprio. A doutrina a que o preceito se refere considera que
67
a lei posterior que descriminaliza a conduta (ou que lhe atribui uma pena menos grave) não
inclui entre os seus elementos típicos a situação de crie ou excecional, havendo uma alteração
essencial no ilícito típico, entre as duas leis temporalmente sucessivas, mas não sucessivas
segundo critérios jurídicos. É, na verdade, discutível que a intenção manifestada pelo legislador
quanto à vigência temporária de uma lei baste para legitimar a ultra atividade da lei e a não
aplicação do princípio da retroatividade in melius. O tempo seria, no caso de tais leis, um
elemento típico essencialmente constitutivo do ilícito penal, que orientaria as expectativas dos
destinatários para a ultra atividade antecipadamente. A exceção ao princípio da retroatividade
in melius determinada pelo caráter temporário das leis não é, todavia, uma restrição,
constitucionalmente indiscutível, ao artigo 29.º, n.º4 CRP. O caráter temporário que não esteja
associado a uma excecionalidade historicamente objetiva da situação típica prevista pelo
legislador não se subtrai pela sua própria natureza aos princípios da necessidade da pena e da
igualdade, que delimitam o conteúdo do artigo 29.º, n.º4 CRP. O artigo 2.º, n.º3 CP não pode
ultrapassar aqueles princípios constitucionais apenas apoiado na prevalência da intenção
legislativa quanto ao caráter temporário de uma lei. Assim como o legislador ordinário – não
pode legitimamente decretar que a retroatividade in melius não se aplica quando descriminaliza,
também a atribuição de caráter temporário a uma lei, em situação de leis, e situações em que
subsista uma verdadeira sucessão de leis, tem de ser disciplinada pelos princípios da igualdade
e da necessidade da pena. Por outro lado, em situações de sucessão de leis de emergência, a
aplicação retroativa da lei mais favorável deve impor-se sempre que persista como elemento
constante do tipo incriminador a mesma situação de excecionalidade. Fora desses casos, porém,
a sucessão de leis de emergência cabe na previsão do artigo 2.º, n.º3 CP.

A proibição de retroatividade. O âmbito de validade temporal da lei penal ou problema da


aplicação da lei penal no tempo8:
1. Aplicação da lei penal no tempo e princípio da irretroatividade: o plano porventura
praticamente mais significativo da refração do princípio da legalidade e aquele que
origina problemas mais complexos é o da proibição da retroatividade in malem partem,
isto é, contra o agente. Pode suceder, na verdade, que após a prática de um facto, que
ao tempo não constituía crime, uma lei nova venha criminaliza-lo; ou, sendo o facto já
crime ao tempo da sua prática, uma lei nova venha prever para ele uma pena mais grave,
ou qualitativamente ou quantitativamente. O problema da aplicação da lei no tempo é

8
Dias, Jorge Figueiredo; Direito Penal, Parte Geral, tomo I; Coimbra Editora, 2.ª Edição; Outubro 2012,
Coimbra.

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resolvido através das normas chamadas de direito inter-temporal. Este direito como que
se reduz, no âmbito penal, ao princípio que traduz uma das consequências mais
fundamentais do princípio da legalidade: o da proibição da retroatividade em tudo
quanto funcione contra reum ou in malem partem. Através dele se satisfaz a exigência
constitucional e legal de que só seja punido o facto descrito e declarado passível de pena
por lei anterior ao momento da prática do facto. Com este conteúdo e esta extensão a
proibição de retroatividade da lei penal fundamentadora ou agravadora da punibilidade
constitui uma das traves mestras de todo o Estado Democrático contemporâneo.

2. Determinação do tempus delicti: pressuposto de atuação do princípio da irretroatividade


é pois a determinação do tempus delicti, isto é, daquele que deve considerar-se o 68
momento da prática do facto. O que está longe de ser em todos os casos isento de
dúvidas: quer porque o facto pode analisar-se em uma ação, mas também em uma
omissão; quer porque nele se pode compreender não só a conduta, mas também o
resultado, podendo uma e outro ter ligar em momentos temporalmente (muito) distintos:
quer porque tanto a conduta, como o resultado se podem arrastar no tempo. Para obviar
a estas dificuldades dispõe o artigo 3.º CP que «o facto considera-se praticado no
momento em que o agente atuou ou, no caso de omissão, deveria ter atuado,
independentemente do momento em que o resultado típico se tenha produzido». Da
referida disposição legal resulta que decisivo para determinação do momento da prática
do facto é a conduta, não o resultado. O que bem se justifica à luz da função e do sentido
do princípio da legalidade, por isso que é no momento em que o agente atua (ou, no caso
de omissão, deveria ter atuado) que releva a função tutelar dos direitos, liberdades e
garantias da pessoa que constitui a razão de ser daquele princípio. Fosse decisivo a
propósito só o momento em que o resultado, a ser ele jurídico-penalmente relevante (o
que nem sempre sucede), tem lugar e estaria aberta a porta ao arbítrio e ao possível
excesso da intervenção punitiva do Estado. A segunda conclusão a tirar da
regulamentação é a de que ela vale para todos os comportamentos no facto criminoso,
venha a sua responsabilização a ter lugar a título de autores ou apenas de cúmplices
(artigos 26.º e 27.º CP). Porque tanto aqueles como estes, obviamente, são credores da
proteção e garantia que o princípio da legalidade se propõe oferecer. Problema especial
é constituído por todos aqueles crimes em que a conduta se prolonga no tempo, de tal
modo que uma parte ocorre no domínio da lei antiga, outra parte no da lei nova; e de
que é exemplo paradigmático o dos crimes duradouros, também chamados permanentes.
A melhor doutrina parece ser aqui a de que qualquer agravação da lei ocorrida antes do
término da consumação só pode valer para aqueles elementos típicos do
comportamento verificados após o momento da modificação legislativa. E solução
paralela parece dever defender-se pra o chamado crime continuado (artigo 30.º, n.º2 CP).

3. Âmbito de aplicação da proibição: tal como vimos suceder com a proibição da analogia –
e pelas mesmas razões substanciais –, também a proibição de retroatividade funciona
apenas a favor do agente, não contra ele. Por isso a proibição vale relativamente a todos
os elementos da punibilidade, à limitação de causas de justificação, de exclusão ou de
diminuição da culpa e às consequências jurídicas do crime, qualquer que seja a sua
espécie. Em muitas ordens jurídicas vigora ainda hoje a ideia de que a proibição não vale
relativamente às medidas de segurança; na base, uma vez mais, de que se trata aí de
medidas de prevenção especial positiva comandadas pelo verdadeiro bem do agente. E
a ideia teve também curso entre nós até à CRP 1976 e ao CP 1982. Hoje, porém, existem

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injunções legais, constitucionais (artigo 29.º, n.º1 e 3 CRP) e ordinárias (artigo 1.º, n.º2
CP), que terminantemente afastam uma tal doutrina. Com razão. Também relativamente
às medidas de segurança se fazem sentir exigências de proteção dos direitos, liberdades
e garantias das pessoas atingidas que substancialmente se identificam com as que se
fazem sentir ao nível das penas. De considerar é agora todavia a doutrina diferenciadora
proposta por Maria João Antunes:

«Se o tocante ao pressuposto “prática de facto ilícito típicos” vale a lei


vigente no momento da prática do facto, já quanto ao pressuposto “fundado
receio de que o agente venha a cometer outros factos ilícitos típicos” poderá
valer a lei vigente no momento da formulação deste juízo de perigosidade» 69

Por isso,

«a medida de segurança só é aplicável se o facto for descrito e declarado


passível de pena por lei anterior ao momento da sua prática; a medida de
segurança não é aplicável se o facto punível segundo a lei vigente no
momento da sua prática deixar de o ser, por uma lei nova o eliminar do
número das infrações, ainda que haja decisão transitada em julgado; a
medida de segurança a aplicar, em concreto, determina-se pela lei vigente
no momento da decisão (o momento do preenchimento do pressuposto da
perigosidade criminal do agente), excluindo-se, portanto, a lei vigente no
momento da execução; a medida de segurança a aplicar, em concreto,
determina-se pela lei vigente no momento da decisão, ainda que a lei vigente
no momento da prática do facto ilícito típico não determinasse a mesma
medida».

Questão interessante é a de saber se submetida à proibição de retroatividade está só a


lei ou também a jurisprudência. Deverá admitir-se que uma corrente de aplicação
jurisprudencial definida e estabilizada possa ser alterada – mesmo sem alteração da lei –
contra o agente? A aplicação da nova corrente jurisprudencial que determina a punição
do facto praticado ao tempo da jurisprudência anterior, que o considerava criminalmente
irrelevante, não constitui propriamente uma violação do princípio da legalidade; mas –
como conclui também Nuno Brandão – não deixa de pôr em causa valores que lhe estão
associados, pela frustração das expectativas quanto à irrelevância penal da conduta,
formadas com base numa interpretação judicial, entre nós eventualmente publicada no
DR, quando se trate de entendimento definido em recurso ordinário para fixação de
jurisprudência (artigo 444.º, n.º1 CPP). E na verdade, o que se alterou foi o conhecimento
(em direção pressupostamente a um melhor conhecimento) da teleologia e da
funcionalidade de uma certa norma jurídica: de outro modo, seria o próprio fundamento
da separação de poderes que se poria em causa. Além de que parece ser essa a solução
que de iure constituto resulta da lei processual (artigos 445.º e 446.º CPP). Todavia,
devem os tribunais ser extremamente cuidadosos (sobretudo onde – o que infelizmente
não é o caso de Portugal – existam fortes, seguras e geralmente conhecidas orientações
jurisprudenciais fundamentais) na modificação de uma corrente jurisprudencial contra o
agente, mostrando-se em tais circunstâncias ainda mais exigentes no respeito pelo
círculo máximo de significações que imputem ao texto da lei e não se furtando a um
particular ónus de contra-argumentação. Deverá, finalmente, assinalar-se que o cidadão
que atuou com base em expectativas fundadas numa primitiva corrente jurisprudencial

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não estará completamente desprotegido, já que poderá por vezes amparar-se numa falta
de consciência do ilícito não censurável, que determinará a exclusão da culpa e, em
consequência, da punição (artigo 17.º, n.º1 CP). Questão muito discutida é, por fim, a de
saber se a proibição de retroatividade se estende aos pressupostos da punição, positivos
e negativos, e aos pressupostos processuais. O problema concretamente mais relevante
situa-se em matéria de prazos de prescrição. Urge considerar, por outro lado, que em
matéria processual o nosso ordenamento jurídico dispõe, no CPP, de uma norma
especificamente dirigida à questão: a do artigo 5.º, que contém o princípio da aplicação
imediata da lei nova, mas lhe introduz decisivas limitações quando dele derive – no que
ao presente enquadramento interessa – um agravamento sensível e ainda evitável da 70
situação processual do arguido, nomeadamente uma limitação do seu direito de defesa.

4. O princípio da aplicação da lei mais favorável: a consequência teórica e praticamente mais


importante do princípio segundo o qual a proibição de retroatividade ó vale contra o
agente, não a favor dele, consubstancia-se no princípio da aplicação da lei (ou do regime)
mais favorável (lex mellior). Esta consequência é de tal modo significativa que assume
expressão não só ao nível da lei ordinária (artigo 2.º, n.º4 CP «Quando as disposições
penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das
estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se
mostrar mais favorável ao agente, salvo se este já tiver sido condenado por sentença
transitada em julgado»), como da lei constitucional (artigo 29.º, n.º4, 2.ª parte, que
manda aplicar «retroativamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido»).
Com isto ganhou o princípio um relevo jurídico adequado ao seu significado para a
salvaguarda dos direitos, liberdades e garantias das pessoas. Um relevo tal que, de uma
outra perspetiva, faz dele um princípio que, mais do que exceção ao princípio da
legalidade, possui natureza autónoma diretamente decorrente do princípio da
necessidade. Mas a sua fixação também no texto constitucional trouxe alguns problemas
que importa considerar.

a. As hipóteses de descriminalização: a primeira situação – e mais radical – será


aquela em que uma lei posterior à prática do facto deixe de considerar este como
crime (descriminalização em sentido técnico). Uma tal situação cabe em rigor
dentro do princípio de aplicação da lei mais favorável e não exigiria portanto a
sua consagração expressa; ou porque se diga que a lei mais favorável é aqui a lei
revogatória da criminalização, ou porque à conclusão se chegaria através de um
argumento de analogia (permitida). Todavia, o Código Penal contempla
diretamente o caso no artigo 2.º, n.º2 CP nos termos seguintes: «o facto punível
segundo a lei nova o eliminar do número das infrações; neste caso, e se tiver
havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os
seus efeitos penais». De acordo com o que acaba de dizer-se, a primeira parte,
que traduz a ideia de a eficácia do princípio de aplicação da lex mellior ser tão
forte que, quando se analise em uma descriminalização direta do facto, ela se
impõe, no que toca à execução e aos seus efeitos penais, ainda no caso de a
sentença condenatória ter já transitado em julgado. O que tudo se compreende
considerando que, se a conceção do legislador se alterou até ao ponto de deixar
de reputar jurídico-penalmente relevante um comportamento, não tem
qualquer sentido político-criminal manter os efeitos de uma conceção

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ultrapassada. Apesar da sua aparente simplicidade, esta regulamentação deu já


entre nós origem a uma série numerosa de dúvidas.

b. As hipóteses de atenuação da consequência jurídica: o mesmo que se expôs


para as hipóteses de descriminalização deve defender-se para o caso em que a
nova lei atenua as consequências jurídicas que ao facto se ligam,
nomeadamente a pena, a medida de segurança ou os efeitos penais do facto.
Também neste caso a lex mellior deve ser retroativamente aplicada, todavia, de
acordo com o disposto no artigo 2.º, n.º4 CP, com ressalva dos casos julgados.
Tem-se pretendido que a diferença aqui existente relativamente à lei
descriminalizadora – a de que nos casos agora em estudo o princípio já não atua 71
perante uma sentença transitada em julgado – seria inconstitucional por a
restrição não constar do artigo 29.º, n.º4, in fine CRP. Mas esta posição não
parece de aceitar. Não só ou não tanto porque também a lei fundamental tem,
na sua interpretação, de ser submetida a uma cláusula de razoabilidade – e, no
entendimento do legislador ordinário, não seria razoável, por muito dificilmente
exequível, que a totalidade das condenações penais cuja execução ou cujos
efeitos se mantêm tivesse de ser reformada todas as vezes que uma lei nova
viesse atenuar uma qualquer consequência jurídico-penal ligada ao facto. Mas
depois porque, de todo o modo, não compete à lei constitucional regular as
condições de aplicação dos seus comandos, antes pelo contrário lhe compete
deixar ao legislador ordinário o seu âmbito próprio de atuação. Devendo limitar-
se – como faz expressamente a CRP no artigo 18.º, especialmente no n.º2 – a
regular os limites deste âmbito, definindo os requisitos a que devem submeter-
se as leis restritivas de direitos fundamentais. Não pode dizer-se que a restrição
da retroatividade in bonam partem às sentenças ainda não transitadas em
julgado diminua o conteúdo essencial do preceito constitucional constante da
última parte do artigo 29.º, n.º4 CRP. Nem será inútil lembrar que em outras
ordens jurídicas este limite vale mesmo para as próprias leis descriminalizadoras,
sem que tenha sido posta em causa a sua constitucionalidade à luz do princípio
da legalidade. A conformidade com o artigo 29.º, n.º4 CRP da ressalva de casos
julgados prevista no artigo 2.º, n.º4 CP não significa, como é evidente, que a
mesma não possa ser eliminada ou restringida, fruto de uma nova opção
legislativa. Nesse sentido vai a alteração ao regime do artigo 2.º, n.º4 CP
proposta no Anteprojeto de 2007. Nesse anteprojeto a atual ressalva dos casos
julgados é substituída por uma outra, menos restritiva, do seguinte teor: «se
tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução
e os seus efeitos penais logo que a parte da pena que se encontrar cumprida
atinja o limite máximo da pena prevista na lei posterior». Desta proposta não
resulta uma imposiçãoo de reabertura do processo para nova determinação da
pena concreta no quadro da nova moldura penal aplicável, mas somente um
limite à execução da pena concreta aplicada na condenação transitada em
julgado, que coincide com o limite máximo da pena aplicável pela lei nova mais
favorável. Em todo o caso, de acordo com o novo regime processual proposto
para compatibilizar a lei adjetiva (artigo 371.º-A CPP) com esta alteração do
artigo 2.º, n.º4, «o condenado pode requerer a reabertura da audiência para
que lhe seja aplicado o novo regime». Da nova redação proposta para o artigo

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2.º, n.º4, resulta que a ressalva dos casos julgados só é afastada em caso de
execução de uma pena principal e já não de uma pena de substituição, uma vez
que só é possível avaliar se o tempo de execução corresponde à pena máxima
aplicável pela lei posterior se ambas forem da mesma espécie. Apesar destas
cautelas, resta saber se uma tal brecha na ressalva dos casos julgados não
constituirá um fator de inibição de futuras reformas legislativas com vista à
redução de penas de certas categorias de crimes em que se verifique um
elevado número de condenações e se não acabará assim por ter efeitos
contraproducentes.

c. As leis intermédias: o princípio da aplicação da lei mais favorável vale ainda 72


mesmo relativamente ao que na doutrina se chama leis intermédias; leis, isto é,
que entraram em vigor posteriormente à prática do facto, mas já não vigoravam
ao tempo da apreciação judicial. Esta solução é completamente coberta pela
letra, tanto do artigo 29.º, n.º4, 2.ª parte CRP, como, ainda mais claramente,
pela letra do artigo 2.º, n.º4, 1.ª parte CP. E justifica-se teleológica e
funcionalmente porque com a vigência da lei mais favorável (intermédia) o
agente ganhou uma posição jurídica que deve ficar a coberto da proibição de
retroatividade da lei mais grave posterior.

d. O regime: não é isento de dificuldades e de dúvidas determinar o que deve


exatamente entender-se por regime que concretamente se mostrar mais
favorável ao agente (artigo 2.º, n.º4 CP). A jurisprudência portuguesa ocupou-
se insistentemente do tema nos primeiros anos posteriores à entrada em vigor
do CP 1982; e os principais resultados a que chegou merecem concordância de
princípio. Assim, v.g., deve entender-se que uma pena de multa (mesmo
elevada) é em princípio mais favorável do que uma pena de prisão (mesmo leve).
No resto, deve aceitar-se que o juízo complexivo de maior ou menor favor não
deve resultar apenas, em princípio, da contemplação isolada de um elemento
do tipo legal ou da sanção, mas da totalidade do regime a que o caso se submete.
Como seguro é que o sopeso da gravidade dos dois regimes não pode fazer-se
só na consideração abstrata da lei, mas tem de ser feito depois de conexionada
aquela consideração com as circunstâncias concretas do caso. Já é mais
equívoca a afirmação de que o regime em definitivo aplicável não pode ser
composto pelo juiz com partes da regulamentação emanada da lei antiga e
partes emanadas da lei nova, como vem entendendo a jurisprudência
dominante, que aponta para a opção por um dos regimes em bloco. Tomada em
si mesma, a afirmação pode considerar-se exata. Mas é óbvio que ela não pode
obstar a que, considerando-se, v.g., aplicável a lei antiga à apreciação do tipo
legal ou (e) da pena, todavia acabe por aplicar-se a lei nova na parte em que
considera, diversamente da lei anterior, que o crime está já prescrito. Porque,
em definitivo, aquela conduz à responsabilização, esta à irresponsabilização
penal do agente.

e. As chamadas leis temporárias: uma exceção ao princípio da aplicação da lei


mais favorável está consagrada, no artigo 2.º, n.º3 CP, para as chamadas leis
temporárias: «quando a lei valer para um determinado período de tempo,
continua a ser punível o facto praticado durante esse período». Leis temporárias

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devem pois considerar-se apenas aquelas que, a priori, são editadas pelo
legislador para um tempo determinado: seja porque este período é desde logo
apontado pelo legislador em termos de calendário ou em função da verificação
ou cessação de um certo evento (chamadas leis temporárias em sentido estrito);
seja porque aquele período se torna reconhecível em função de certas
circunstâncias temporais (chamadas leis temporárias em sentido amplo).
Comum é a circunstância de a lei cessar automaticamente a sua vigência uma
vez decorrido o período de tempo para o qual foi editada. A razão que justifica
o afastamento da aplicação da lei mais favorável reside em que a modificação
legal se operou em função não de uma alteração da conceção legislativa – esta 73
é sempre a mesma –, mas unicamente de uma alteração das circunstâncias
fáticas que deram base à lei. Não existem por isso aqui expectativas que
mereçam ser tuteladas, enquanto, por outro lado, razões de prevenção geral
positiva persistem O que deve ser reforçada é a necessidade, a que começou
por aludir-se, de interpretação rigorosa daquilo que na verdade constitui uma
lei temporária; com a consequência de, em caso de duvida, fazer valer as regras
da proibição de retroatividade e da aplicação da lei mais favorável, nos termos
gerais.

Taipa de Carvalho

Âmbito de validade especial da lei penal:9


1. Universalidade da lei penal: a íntima associação entre o Direito Penal e os valores
essenciais da vida em sociedade implica uma tendencial universalidade no espaço da
tutela penal. A necessária legitimação do poder punitivo no Estado de Direito
Democrático e de justiça impõe uma subordinação do Direito Penal à dignidade da
pessoa humana, de modo que um Direito Penal nacionalista é incompatível com a
própria ideia de Direito e de Justiça em que assenta tal conceção de Estado. A
necessidade de coexistência espacial de diversas ordens jurídicas é, no entanto, uma
limitação natural a um desenvolvimento absoluto dos princípios, de modo que no
Direito Penal de um Estado a territorialidade tende a ser o critério básico da validade
espacial da lei penal, condicionando a apetência para a universalidade. Por outro lado,
a relação com os nacionais e com os interesses nacionais amplia a validade espacial da
lei penal para além dos limites do território segundo uma lógica ainda não universalista.
Mas, num âmbito que aumenta progressivamente, o Direito Penal de um Estado protege
valores universais para além dos limites do território e dos vínculos nacionais,
cooperando com outras ordens jurídicas e intervindo onde os critérios de validade
espacial de outras ordens jurídicas não permitem uma tutela eficaz de certos bens
jurídicos. Tal natureza universal da lei penal é o embrião de um Direito Internacional
Penal, do qual se distingue o chamado Direito Penal Internacional que corresponde ao
âmbito de validade especial do Direito Penal Português fora do território do Estado. Há
que distinguir, efetivamente, entre Direito Internacional Penal e Direito Penal
Internacional. O chamado âmbito de validade espacial do Direito Penal corresponde

9
Palma, Maria Fernanda; Direito Penal, parte geral; AAFDL; Lisboa, 1994.

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apenas à aplicabilidade com relevância internacional atingindo factos cometidos no


estrangeiro) do Direito interno, ao Direito Penal Internacional.

2. O princípio da territorialidade da aplicação da lei penal portuguesa: o princípio geral


da aplicação do Direito Penal português no espaço é o princípio da territorialidade da
prática do facto, seja qual for a nacionalidade do agente e salvo convenção em contrário.
A aplicação da lei penal portuguesa por força da territorialidade depende do que se
entenda por território português e do que se considere praticar um facto em território
português. Território Português é o espaço definido como tal pela Constituição (artigo
5.º, n.º1 e 2 CRP) e pela lei, incluindo o espaço terrestre, marítimo e aéreo. São ainda
território português s navios e as aeronaves portuguesas (princípio do pavilhão, artigo 74
40.º, alínea d) CRP). Praticar um facto em território português é, segundo o artigo 7.º
CP, «ter atuado (total ou parcialmente, e sob qualquer forma de comparticipação),
dever ter atuado (no caso de omissão) ou ter sido produzido o resultado típico em
território português». O legislador penal recorre à teoria da ubiquidade, segundo a qual
basta que um dos dois elementos essenciais do tipo objetivo (ação e resultado) se tenha
verificado em território português para que a lei penal portuguesa se possa aplicar,
como emanação da soberania do Estado português através do seu poder punitivo,
alcançando-se um vasto âmbito de aplicação da lei penal portuguesa. Compreende-se
que o critério estabelecido pela lei penal para a determinação do lugar da prática do
facto, baseado no objeto do máximo alcance da soberania punitiva do Estado, seja
diverso do que se estabelece para o momento da prática do facto (artigo 3.º), orientado
pelo princípio da legalidade. Mas a lei portuguesa não poderá ser aplicada apesar de se
ter produzido um resultado típico em território português, quando, por força do critério
de aplicação no tempo, o facto não seja punível por não estar previsto em lei anterior à
realização da ação em território estrangeiro. OS critérios dos artigo 2.º e 3.º CP,
derivados diretamente do artigo 29.º, n.º1 CRP, aplicam-se, assim, independentemente
do princípio da ubiquidade que apenas pretende estabelecer a validade espacial da lei
penal portuguesa. Exemplo da situação referida é, pois, o de uma sucessão de leis no
tempo em que o resultado seja produzido em território português num momento em
que passou a vigorar uma lei que vem punir o facto, quando no momento em que o
facto foi praticado, no estrangeiro, não era punido em Portugal. Nesse caso, o artigo 7.º
determina, ainda assim, a aplicabilidade ao facto da lei penal portuguesa, embora nos
termos do artigo 2.º, n.º1 CP e do artigo 29.º, n.º1 CRP, o facto não possa ser punido. A
aplicabilidade da lei penal portuguesa nos termos dos artigos 4.º e 7.º CP não dispensa
a observância de todos os princípios a que a mesma se subordina (aplicação no tempo,
proibição da analogia, etc.). Deve entender-se, igualmente, que o artigo 7.º se basta
com a tentativa inacabada, mas não já com a prática de atos preparatórios não puníveis
(artigos 21.º e 22.º CP), para a definição do lugar da pratica do facto. Todavia, é
discutível se a mera possibilidade da ocorrência do dano em território português é
suficiente para a aplicação da lei penal portuguesa ao facto. Como a doutrina penal tem
entendido que a tentativa é um crime de perigo concreto e que os crimes de perigo
concreto são crimes de resultado caberá no artigo 7.º CP a mera possibilidade da
ocorrência do resultado no nosso território, quando toa a ação criminosa se desenrola
no estrangeiro. A resposta a esta questão deve ser positiva. O perigo, nos crimes de
perigo concreto, é um elemento integrante da factualidade típica, algo que ultrapassa a
ação típica e que se imputa objetivamente àquela, significando um acontecimento

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relevante para o Direito para além da ação típica. O perigo afronta assim a Ordem
Jurídica e põe em causa a segurança dos bens e a confiança no Direito, clamando pela
soberania punitiva do Estado, do mesmo modo que a ação ou o resultado. Questão que
subsiste ainda é a de saber se a mera ocorrência do dano (lesão do bem jurídico) sem
que o resultado típico se verifique em Portugal permite considerar praticado em
território português o facto. O dano nunca é uma lesão ideal do bem jurídico totalmente
desligada de um certo evento contraponível e imputável à ação típica. Embora esse
evento não seja necessano para a tipicidade, porque o resultado típico pode
corresponder a uma fase menos concretizada e avançada da lesão do bem jurídico, todo
o dano pressupõe, nos crimes de resultado, uma manutenção do resultado típico ou a 75
sua intensificação. Apesar de bastar para a definição do local da prática do crime a
realização do resultado típico, esse primeiro momento (ou esse momento mínimo) não
afasta a conexão com a ordem jurídica portuguesa, quando apenas se relacione com ela
a perduração do mesmo resultado. Deste modo, naqueles tipos legais de crimes em que
a tipicidade se consuma com um resultado anterior à lesão efetiva do bem jurídico, a
produção do dano é elemento de conexão com a lei penal portuguesa, pressupondo
uma intensificação ou um desenvolvimento do evento típico.

3. Princípio da defesa dos interesses nacionais: a territorialidade da lei penal não permite
estabelecer exaustivamente uma conexão entre o poder punitivo e a defesa de bens
jurídicos essenciais à preservação de certas condições essenciais da organização e da
segurança da sociedade, sempre que ocorram lesões de bens exteriores ao território
português, mas que façam perigar as condições referidas. O artigo 5.º, n.º1, alínea a),
indica um elenco de normas que correspondem a essas possibilidades mais frequentes.
A realidade de novos espaços extra territoriais de titularidade de interesses nacionais é
especialmente notória em matéria ambiental, em que a ação e o resultado são, por
vezes, extra territoriais, mas em que o perigo para os bens jurídicos nacionais justificaria
imediata intervenção penal.

4. Princípio da universalidade da aplicação da lei penal portuguesa: consagra o artigo 5.º,


n.º1, alínea c) CP, o princípio da universalidade, segundo o qual a validade espacial da
lei penal portuguesa se delimite pela necessidade de cooperação do Estado português
na proteção penal de bens da humanidade de valor universal. Os crimes a que o artigo
5.º, n.º1, alínea c), se refere são alguns crimes, especialmente suscetíveis de não
vinculação espacial, contra a liberdade e a autodeterminação sexual, os crimes contra a
paz e certos crimes contra a humanidade. O elenco dos crimes contra a humanidade
previsto no Código Penal não é todo ele integrado na previsão da alínea c) do artigo 5.º
CP. A seleção operada resulta de convenções entre os Estados na comunidade
internacional, de um maior grau de implicação da ofensa à comunidade internacional
como um todo por certos crimes e da maior facilidade de subtração dos agentes ao
poder punitivo de várias ordens jurídicas internacionais em determinadas infrações. O
legislador poderia, porém, incluir ainda os outros crimes contra a humanidade em
homenagem à esma ideia de ofensa à comunidade internacional através de certas
condutas. A interposição de uma eventual legalidade interna de certas condutas ou de
situações de guerra entre povos tornaria, por vezes, difícil que o papel punitivo pudesse
ser assumido por um só Estado. De alguma forma, a universalidade de certas infrações
pressupõe uma transnacionalidade das instâncias punitivas ou pelo menos uma
cooperação convencionada entre os Estados na repressão de tais formas de infração. A

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questão que se coloca é saber até onde a validade espacial das leis internas pode e deve
ir sem que o princípio da cooperação entre as ordens jurídicas inerente se adultere,
potenciando a conflitualidade entre os Estados.

5. O princípio da nacionalidade: finalmente, o princípio da nacionalidade vem consagrado


no artigo 5.º, n.º1, alínea e). A lei penal portuguesa aplica-se a factos praticados fora do
território nacional por portugueses (princípio da nacionalidade ativa) ou por
estrangeiros contra portugueses (princípio da nacionalidade passiva) , desde que certos
requisitos (artigo 5.º, n.º1, alínea e), i), ii), iii), ou alínea b)) se verifiquem. Em geral, o
princípio da nacionalidade justifica-se pelo vínculo dos cidadãos portugueses à
soberania punitiva do seu próprio Estado (nacionalidade ativa) e pelo dever de o Estado 76
português conceder proteção aos bens jurídicos de que os cidadãos portugueses sejam
titulares, ainda que no estrangeiro (nacionalidade passiva). Todavia, o princípio da
nacionalidade ativa dá expressão ao princípio da não extradição de nacionais
consagrado no artigo 33.º, n.º1 CRP. Na verdade, a contrapartida da proibição da
extradição de nacionais, na ordem internacional, só pode ser o dever de o Estado
português assegurar a perseguição penal ou o julgamento dos factos criminosos
praticados pelos cidadãos portugueses no estrangeiro. A aplicação da lei penal
portuguesa a portugueses ou estrangeiros, por força do princípio da nacionalidade,
obedece, como se referiu, a certos requisitos. O artigo 5.º, n.º1, alínea e) CP, indica três
requisitos cumulativos, que exprimem, verdadeiramente, condições de punibilidade:

i) Os agentes serem encontrados em Portugal;

ii) Os factos serem também puníveis pela legislação do lugar em que tiverem sido
praticados, salvo quando nesse lugar não se exercer poder punitivo;

iii) Os factos constituírem crimes que admitam extradição e esta não possa ser
concedida.

Estes requisitos limitam o âmbito de influência do poder punitivo do Estado português


com um duplo fundamento. Por um lado, a aplicação da lei penal portuguesa pressupõe
um mínimo de respeito pelas expectativas dos agentes envolvidos e pelo sentido de
desvalor (de ilícito) das suas condutas no estrangeiro, bem como pela igualdade entre
aqueles agentes e os estrangeiros que a lei penal portuguesa não possa abranger. Assim,
os agentes terão de ser puníveis pela legislação do lugar em que os factos foram
praticados. Por outro lado, os agentes terão de ser encontrados em território português
e não poderão ser extraditados. Deve estar-se perante uma situação em que só o Estado
português possa punir aqueles agentes, por razões materiais e jurídico-constitucionais.
O Estado português não só terá possibilidades materiais de os punir (presença em
território português) como também, por força dos seus princípios constitucionais (artigo
33.º, n.º1, 2 e 3 CPR), estará colocado numa posição em que só ele pode punir. A alínea
b) do n.º1 do artigo 5.º CP ainda que alarga o poder punitivo do Estado português às
situações em que portugueses cometam factos no estrangeiro contra portugueses, sem
que o requisito da punibilidade pela legislação do lugar se verifique, desde que tais
agentes vivam habitualmente em Portugal ao mesmo tempo da prática desses factos e
aqui sejam encontrados. Esta última manifestação do princípio da nacionalidade
reporta-se a situações em que os agentes praticam os factos no estrangeiro para se
subtraírem propositadamente ao poder punitivo do Estado português, sem que, no

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entanto, estejam determinadas pela irrelevância penal das suas condutas, não tendo
cabimento assegurar expectativas ou proteger a igualdade na proteção jurídica entre
esses agentes e os estrangeiros. A interpretação da alínea e) do artigo 5.º levanta alguns
problemas, que terão de ser resolvidos de acordo com a ratio legis e com o próprio teor
do princípio da nacionalidade. Assim, pode desde logo questionar-se quais os contornos
concetuais e o âmbito da exigência de punição no lugar em que os factos tiverem sido
praticados. Perguntar-se-á se será exigida uma punibilidade em abstrato (as meras
tipicidade e ilicitude) ou em concreto a inexistência de causas de exclusão da culpa ou
da punibilidade reportadas à pessoa do agente. A lógica imanente ao princípio da
nacionalidade bastar-se-ia, em rigor, com a tipicidade e a ilicitude dos factos no 77
território estrangeiro, isto é, com a sua contrariedade objetiva à ordem jurídica
estrangeira, pois só estas categorias fundamentariam expectativas quanto à irrelevância
do facto, ao seu não desvalor. Todavia, uma aplicação da lei penal portuguesa de que
decorresse uma punibilidade de factos não puníveis em concreto no estrangeiro (devido
a certas condições do agente) redundaria numa violação do princípio da aplicação da lei
penal estrangeira mais favorável, expresso (ainda que restritamente e referido às
situações do n.º1 do artigo 6.º CP) no artigo 6.º, n.º2 CP. A melhor interpretação do
artigo 5.º, n.º1, alínea e), ii) CP, imporá que a lei penal portuguesa seja aplicável, por
força do princípio da nacionalidade conjugado com o da aplicação da lei penal
estrangeira mais favorável, somente nos casos em que o facto seja em concreto punível
no país estrangeiro. A circunstância de o artigo 6.º, n,º.1 CP, impor a aplicação da lei
penal estrangeira mais favorável nos casos em que o agente foi julgado no estrangeiro
(e se subtraiu à condenação) ou não foi julgado no estrangeiro impõe, por maioria de
razão, que onde o agente nem pudesse ter sido julgado no estrangeiro (por força de
uma condição objetiva ou subjetiva de punibilidade, ou de uma condição de
procedibilidade) ou em que, se fosse julgado nunca poderia ter sido condenado (em
virtude de causa de exclusão de culpa, por exemplo), nem sequer deva ser submetido à
aplicabilidade da lei penal portuguesa. Outra questão de interpretação que o artigo 5.º,
n.º1, alínea b) CP, suscita é saber o que é que deve ser entendido por crime contra
portugueses. Apesar de, historicamente, o preceito da alínea b) do n.º1 do artigo 5.º CP
ter tido como objetivo complementar crimes como a bigamia e o aborto, pergunta-se,
hoje, se este último crime pode ser entendido como crime contra portugueses, sem o
recurso a analogia, no caso do aborto consentido previsto no artigo 140.º CP, já que o
feto parece não ser, no sentido normal das palavras, um cidadão português. A cidadania
não implica, todavia, o reconhecimento de personalidade jurídica nos termos da lei civil,
mas a irreversibilidade da aquisição dessa personalidade, como acontecerá durante o
parte, antes ainda do corte do cordão umbilical. Ora, apesar de o aborto consentido
proibido ter como objeto da ação típica o próprio feto e o bem jurídico protegido ser a
vida intra-uterina, são ainda os interesses da sociedade portuguesa como um todo,
como em qualquer outro crime, que são afetados. A vida intra-uterina de futuro cidadão
português é assim um bem cuja tutela penal se tem que justificar por um interesse
objetivo da sociedade. Não há portanto, neste caso qualquer necessidade de recorrer à
analogia, entre o conceito de feto e o de cidadão português na medida em que é possível
através de interpretação sistematicamente justificada referir o sujeito passivo do crime
e toda a sociedade, isto é, a todos os portugueses. Por outro lado, em inúmeras outras
infrações há uma mera titularidade coletiva do bem jurídico a justificar a incriminação,
como acontece nos crimes contra a vida em sociedade ou contra o Estado.

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6. Restrições à aplicação da lei penal portuguesa por força da aplicação mais favorável
do Direito estrangeiro (artigo 6.º, n.º2 CP): o artigo 6.º, n.º2 CP consagra igualmente
uma restrição à aplicação da lei penal portuguesa menos favorável, nos casos em que
ela seja aplicável por força dos princípios da universalidade e da nacionalidade, isto é,
quando não estejam em causa os princípios da territorialidade e da defesa dos
interesses nacionais (artigo 6.º, n.º1 e 3 CP) e sempre que o agente encontrado em
território nacional «não tiver sido julgado no país da prática do facto ou se houver
subtraído ao cumprimento total ou parcial da condenação». Consiste tal restrição na
exigência de naqueles casos ser aplicada a lei do país em que o facto tiver sido praticado
sempre que aquela for concretamente mais favorável ao agente (artigo 6.º, n.º2 CP). A 78
razão de ser de tal restrição à aplicação da lei portuguesa é a conjugação da
subsidiariedade do exercício do poder punitivo do Estado português nesses casos com
os princípios da culpa, da igualdade, da necessidade da pena e da segurança jurídica
(artigos 1.º, 13.º, n.º1, 18.º, n.º2 e 29.º, n.º1 CRP). Na verdade, nessas situações o Estado
português pune porque outro Estado não pôde punir, mas não deixa de conceber a
punição de acordo com os seus princípios constitucionais. A punição, em termos mais
graves, pelo Direito português não garantiria uma adequação da consciência da ilicitude
do agente ao desvalor da ação e à gravidade do ilícito para ele previsível. A ratio do
princípio da aplicação da lei estrangeira mais favorável não abrange a alínea b) do n.º1
do artigo 5.º CP, na medida em que, aí, o poder punitivo do Estado português não é de
modo algum subsidiário. Resulta assim do próprio artigo 6.º, n.º1 e 2 CP, que as
situações contempladas naquele outro preceito não deveriam ser incluídas. Na verdade,
o artigo 6.º pressupõe que o facto seja punível em país estrangeiro, enquanto a alínea
b) do n.º1 do artigo 5.º CP se baseia, exatamente, em o facto não ser punível no
território em que é praticado nem em abstrato nem em concreto ou ser menos
gravemente punível. Punição em concreto significará punibilidade efetiva do facto,
consideradas todas as circunstâncias da sua ocorrência e até mesmo os aspetos
relacionados com a culpa do autor. Deste modo, a falta de uma referência explícita à
exclusão do artigo 5.º, n.º1, alínea b) CP não impede que, pro força do próprio elemento
lógico da interpretação, se entenda afastada a aplicação do referido princípio naqueles
casos. Também a circunstância de o artigo 5.º, nº.1, alínea e), ii) CP, ter sido interpretado
com referência ao princípio da aplicação da lei penal mais favorável, fazendo uma
interpretação da punibilidade pela legislação estrangeira no sentido de punibilidade em
concreto, não contende com a referida subtração da alínea b) do n.º1 do artigo 5.º CP
ao mesmo principio, pois os casos previstos neste último nunca são, por natureza,
comparáveis (em termos de igualdade e necessidade) aos factos semelhantes
cometidos por estrangeiro no respetivo país.

7. A aplicabilidade da lei penal portuguesa e o princípio non bis in idem: o artigo 6.º, n.º1
CP exprime um condicionamento geral da aplicabilidade da lei penal portuguesa pelo
princípio do non bis in idem (artigo 29.º, n.º5 CRP). Assim, pressuposto da efetivação
dos princípios da nacionalidade e da universalidade é o facto de o agente, encontrado
em Portugal, não ter sido julgado no país da prática do facto ou ter-se subtraído ao
cumprimento total ou parcial da condenação. O n.º2 do artigo 6.º CP, por outro lado,
prevê, nos casos em que haja efetivamente lugar à aplicação da lei penal portuguesa
que a lei penal estrangeira mais favorável em concreto se imponha, sendo a pena
aplicável posteriormente convertida numa pena correspondente no sistema penal

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português ou, se a correspondência não for possível, na pena que estiver prevista para
o facto. Questão que imediatamente se levanta é a de saber se, havendo condenação
ou o cumprimento parcial da pena, no país estrangeiro, tal facto não deverá impedir o
julgamento, em Portugal, pela prática dos mesmos crimes com vista ao cumprimento
da pena (total ou parcialmente) em Portugal, por força do princípio non bis in idem.
Pressuposto da resposta a tal questão é o próprio âmbito constitucional do princípio
non bis in idem. Gomes Canotilho e Vital Moreira referem, todavia, apenas o âmbito
literal da proibição constitucional, distinguindo o duplo julgamento da dupla
penalização e concluindo que, embora só primeiro seja vedado expressamente pela
Constituição, o segundo é abrangido pelas finalidades da proibição constitucional. Ora, 79
essas penalidades não podem ser totalmente esclarecidas pelo sentido histórico do
princípio (dimensão da defesa contra o Estado e de obrigação do Estado à definição no
caso julgado material), mas terão de ser compreendidas na conexão desta proibição
constitucional com a ideia de Estado de Direito (princípio de limitação do poder do
Estado pelo seu Direito – objetividade e confiança) e com o princípio da necessidade da
intervenção penal. Abrangerá o artigo 29.º, n.º5 CRP o julgamento anterior no
estrangeiro pelo mesmo crime ou apenas o julgamento por tribunais portugueses? A
resposta a tal questão, no puro plano da constitucionalidade, impõe o reconhecimento
de que o princípio non bis in idem é a expressão penal da garantia de que a perseguição
criminal mediante o processo penal não é instrumento de arbitrariedade do poder
punitivo, utilizável renovadamente e sem limites, mas é antes um modo controlável e
garantido de aplicação do Direito Penal. Assim, tanto a repetição do julgamento pelo
mesmo crime, de que se foi absolvido ou condenado a certa pena, como a repetição da
punição de agente já condenado e punido constituem claras negações do valor geral do
processo penal e do direito do arguido a que o Estado se vincule ao desfecho do
processo penal que desencadeou. À necessidade de densificação semântica do preceito
constitucional de referem Gomes Canotilho e Vital Moreira concebendo-a a partir dos
conceitos jurídico-processuais e jurídico-materiais desenvolvidos pela doutrina do
direito e do processo penais. Todavia, o conceito de «mesmo crime» tem de se referir a
uma unidade factual pré-normativa. Não é a artificial diversificação de factos pela lei e
a analítica configuração de bens jurídicos que há-de, legitimamente, definir «mesmo
crime». O problema da semântica constitucional resolve o conteúdo jurídico material da
unidade de facto e do concurso de crimes e não o inverso. Esta lógica fundamentadora
não restringe a aplicação do princípio aos julgamentos realizados por tribunais
portugueses. Por outro lado, o poder punitivo do Estado português terá que se justificar
pela estrita necessidade de intervir (julgar e punir), nos termos do artigo 18.º, n.º2 CRP.
De um modo geral, a necessidade de intervenção do poder punitivo, quando uma
pessoa foi julgada e absolvida no estrangeiro ou já aí cumpriu a pena, não existe. Apenas
quando a intervenção penal se justifica pela proteção de interesses nacionais é legítima
a renovada intervenção punitiva do Estado Português. O princípio non bis in idem surge,
deste modo, como uma emanação de duas ideias fundamentais: a vinculação do poder
punitivo do Estado de Direito pelo desfecho do processo penal e o próprio princípio da
necessidade da intervenção penal. Este horizonte valorativo do princípio non bis in idem
assegura-lhe universalidade mas pressupõe, igualmente, uma harmonização dos
direitos que não existe na comunidade internacional. Ora, o sentido da expressão
«julgado pelo mesmo crime», no artigo 29.º, n.º5 CRP, é conferido essencialmente pelos
conceitos de processo penal e de julgamento na ordem jurídica portuguesa, de modo

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que um julgamento sem quaisquer garantias de independência e imparcialidade do


tribunal não pode em rigor impor a aplicação do princípio non bis in idem. A questão de
que se partiu sobre se a condenação e cumprimento parcial da sentença estrangeira
não obstam a novo julgamento pelos factos em Portugal tem, assim, duas respostas
possíveis. Uma resposta moderada, segundo a qual os efeitos (negativos) das sentenças
estrangeiras previstos no artigo 6.º, n.º1 CP são a máxima expressão possível e exigível
pela Constituição. Tal resposta limita o seu âmbito internacional a julgamentos
absolutórios ou em que houve cumprimento da condenação. Uma outra resposta, mais
radical, considerada o artigo 6.º, n.º1, in fine CP, incompatível com o artigo 29.º,n.º5
CRP, na medida em que em caso de subtração ao cumprimento da pena se viesse 80
renovar, em Portugal, o julgamento pelo mesmo crime. A inconstitucionalidade dessa
parte final do artigo 6.º, n.º1, seria sempre evitada, todavia, pela interpretação do
preceito no sentido de que o novo julgamento (pelo qual nunca seria aplicável lei penal
menos favorável à que fundamentou a condenação) se limitaria a rever e confirmar a
sentença estrangeira à luz da lei penal mais favorável, nos termos preconizados pelo
Código de Processo Penal. Porém, a proteção mais absoluta do non bis in idem em
situações em que não haveria qualquer acordo internacional sobre a eficácia das
sentenças estrangeiras não é exigível pela Constituição, desde que a o novo julgamento
preconizado esteja contido nos seus resultados pelo chamado princípio do desconto,
isto é, desde que a pena já cumprida seja efetivamente descontada na nova condenação
(artigo 82.º CP). Deste modo, o princípio non bis in idem atinge em absoluto um efeito
impeditivo de dupla punição, mas não um efeito impeditivo de repetição do julgamento
realizado em país estrangeiro. O artigo 6.º, n.º2 CP, estabelece ainda um sistema de
conversão da pena aplicável naquela pena que lhe corresponder no sistema português
ou que a lei portuguesa previr para o facto. Tal sistema refere-se não só à aplicação do
Direito Penal estrangeiro em sentença proferida por tribunais portugueses como
também à revisão e à confirmação de sentença penal estrangeira pelos tribunais
portugueses. A conversão é não só decorrência de um princípio de praticabilidade como
também emanação dos princípios da necessidade da pena e non bis in idem. Do primeiro
princípio decorre que só a pena correspondente é necessária. Através do segundo
princípio perpassa a ideia de que a pena aplicável nunca poderá, pela conversão, vir a
impor uma espécie de segunda punição (ou qualquer punição mais gravosa) do agente
que se subtrai total ou parcialmente à execução da pena. É à luz destes princípios que a
conversão em concreto se deverá realizar.

Conteúdo e sistema de combinação dos princípios aplicáveis:


1. O princípio básico da territorialidade:
a. Justificação e conteúdo: a generalidade dos sistemas legislativos penais dos
nossos dias assume como princípio basilar de aplicação da sua lei penal no
espaço o princípio da territorialidade, não o da nacionalidade. E é esta a posição
tradicional do Direito Penal português. Pode afirmar-se que nesta preferência
convergem razões de índole interna e razões de índole externa ou, se quiser ser-
se mais preciso, razões próprias de Direito Penal e de política criminal, de um
lado, razões de Direito Internacional e de política estadual, do outro. Começando
por estas últimas – as razões jurídico-internacionais e de política estadual –, deve
conceder-se facilmente que a assunção do princípio da territorialidade como

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base do sistema de aplicação da lei penal no espaço é a via que facilitará em


maior medida a harmonia internacional, o respeito pela não ingerência em
assuntos de um Estado estrangeiro. Se a aplicação espacial da lei penal nacional
é rigorosamente demarcada por sobre as fronteiras de cada Estado, e se a
generalidade dos Estados aceita este princípio, está então descoberto o melhor
caminho para que não se gerem conflitos internacionais – positivos ou negativos
– de competência interestadual. Se a generalidade dos Estados aceitar o
princípio base da territorialidade, um Estado que aceite o princípio pessoal ver-
se-á a cada passo confrontado com aqueles conflitos e com a acusação respetiva
de ingerência. Num momento, como o presente, em que política criminal tende 81
a universalizar-se, a consagração da nacionalidade como princípio básico de
aplicação no espaço não pode deixar, por isso, de ser considerada como
internacionalmente disfuncional. Quanto às razões jurídico-penais e de política
criminal que aqui desempenham o seu papel, deve antes de tudo dar-se ênfase
à circunstância de ser na sede do delito que mais vivamente se fazem sentir as
necessidades de punição e de cumprimento das suas finalidades,
nomeadamente, de prevenção geral positiva. É a comunidade onde o facto teve
lugar que viu a sua paz jurídica por ele perturbada e que exige por isso que a sua
confiança no ordenamento jurídico e as suas expectativas na vigência da norma
sejam estabilizadas através da punição. A estas razões (que poderiam chamar-se
substantivas) acresce (razão processual) que o lugar do facto é também aquele
onde melhor se pode investiga-lo e fazer a sua prova e onde, por conseguinte,
existem mais fundadas expectativas de que possa obter-se uma decisão judicial
justa. O princípio geral da territorialidade encontra-se entre nós consagrado no
artigo 4.º, alínea a), segundo o qual «a lei penal portuguesa é aplicável a factos
praticados em território português, seja qual for a nacionalidade do agente».
Torna-se assim indispensável determinar, por um lado, o que é território
português e, por outro, qual o locus delicti, é dizer, qual o lugar onde um facto é
praticado. Quanto à primeira questão porém ela não releva em princípio do
Direito Penal, mas do Direito Constitucional (artigo 5.º CRP). Por isso só a
segunda deve ser aqui tratada.

b. O problema da sede do delito: para determinação do locus ou sedes delicti – do


lugar ou sede do delito – rege o artigo 7.º, nos termos do qual «o facto considera-
se praticado tanto no lugar em que, total ou parcialmente, e sob qualquer forma
de comparticipação, o agente atuou, ou no caso de omissão, devia ter atuado,
como naquele em que o resultado típico ou o resultado não compreendido no tipo
de crime se tiver produzido» (n.º1); dispondo ainda que «no caso de tentativa, o
facto considera-se igualmente praticado no lugar em que, de acordo com a
representação do agente, o resultado se deveria ter produzido» (n.º2).
Diferentemente portanto do que vimos suceder com a determinação do tempus
delicti, em que o legislador optou pelo critério da conduta em desfavor do do
resultado, aqui ele cumulou os dois critérios no sentido daquilo que
doutrinalmente corre como solução mista ou plurilateral. Esta decisão é
teleológica e funcionalmente fundada. Dada a circunstância de diversos países
poderem assumir nesta matéria critérios diferentes (uns, o critério da conduta;
outros, o do resultado), daí derivarem insuportáveis lacunas de punibilidade que

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uma política criminal minimamente concertada não poderia admitir. Para tanto
bastando que o país onde a conduta teve lugar seguisse o critério do resultado
típico, enquanto o outro país onde o resultado se verificou aceitasse o critério da
conduta. A revisão do CP 1998 veio aditar ao artigo 7.º duas conexões que, em
rigor, já não seriam exigidas pela referida solução plurilateral: o local onde se
produziu «o resultado não compreendido no tipo de crime» e, em caso de
tentativa, o local onde o resultado se deveria ter produzido «de acordo com a
representação do agente». A primeira conexão diz respeito, desde logo, aos
chamados crimes tipicamente formais mas substancialmente materiais, que
atingem a consumação típica sem que todavia se tenha verificado ainda a lesão 82
que, em última análise, a lei quer evitar, proporcionando assim uma tutela
antecipada do bem jurídico. Em segundo lugar, ela abrange os chamados crimes
de atentado, ou de empreendimento, que, embora pressuponham um resultado
que transcende a factualidade típica, se consumam no estádio da tentativa.
Enfim, aquela conexão vale também para os resultados ou eventos agravantes
nos denominadas crimes agravados pelo resultado. Em todos estes casos, a
ocorrência em território português do «resultado não compreendido no tipo de
crime» fundamenta a competência da lei portuguesa, assim se retomando, de
alguma forma, o entendimento da nossa doutrina já à luz do CP 1886, o qual,
como se disse, não regulava expressamente a questão do locus deliti. Duvidosa
é a questão de saber se podem reconduzir-se àquela expressão as meras
condições objetivas de punibilidade, como pretende a doutrina alemã perante
um texto legal muito semelhante, interpretando latamente o termo «resultado».
Parece de acolher a formulação segundo a qual é necessário para tanto que tais
condições tenham sido causadas pela conduta e sirvam para fixar o sentido
antijurídico do facto. O artigo 7.º, n.º2, introduzido pela revisão do CP de 1998,
acrescentou uma segunda inovação aos critérios de determinação do locus
delicti: local do facto é também, em caso de tentativa, o local onde o resultado
deveria ocorrer segundo a representação do agente. Na prática, a grande maioria
dos casos regulados por esta norma seria também punível através das regras
(com pressupostos mais estreitos, é certo) da nacionalidade passiva e da
proteção dos interesses nacionais. De toda a maneira, no plano dogmático, não
deixa de ser estranho considerar como local da prática do facto o lugar onde o
facto não chegou efetivamente a praticar-se.

c. O chamado critério do pavilhão: o princípio da territorialidade sofre um


alargamento que se contém no artigo 4.º, alínea b) CP e parifica com os factos
cometidos em território português os que tenham lugar a bordo de navios ou
aeronaves portuguesas. Fala-se a este propósito de um critério do pavilhão,
justificado pela consideração tradicional de que aqueles navios e aeronaves são
ainda, se não faticamente, ao menos para efeitos normativos território português.
Parece todavia dever entender-se que, sempre que o navio ou aeronave estejam
surtos em porto ou aeroporto (rectior, em águas ou espaços aéreos territoriais)
de país diferente do do pavilhão, isso não retira competência à lei do lugar em
nome do princípio base da territorialidade; o que só favorecerá a necessidade
eventualmente imperiosa, de intervenção imediata de autoridades policiais ou

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mesmo judiciárias. Quando tal suceda dar-se-á, no máximo, um conflito positivo


de competências.

2. O princípio complementar da nacionalidade:


a. Justificação e conteúdo: a complementariedade do princípio da nacionalidade
relativamente ao princípio da territorialidade logo significa que se não pretende,
por meio dele, obviar a todo e qualquer crime que possa ser cometido por um
português fora do seu país. Apenas se reconhece existirem casos perante os
quais, se tudo repousasse no princípio português da territorialidade, poderiam
abrir-se lacunas de punibilidade indesejáveis para uma política criminal 83
internacional concertada e eficiente. E isto porque existe uma máxima, aceite
pelo Direito Internacional e (pelo menos até há bem pouco tempo)
comummente seguida, atinente de forma imediata a toda a matéria da aplicação
da lei penal de um país a factos cometidos por um seu nacional no estrangeiro:
a máxima da não extradição de cidadãos nacionais. Se os não extradita, então os
princípios da convivência internacional devem conduzir a que, uma vez que eles
se encontrem de novo no país da nacionalidade, o Estado nacional os puna:
dedere au punire (iudicare), o Estado ou extradita (entrega) ou, quando não
extradita, pune (julga). Esta é a principal justificação deste princípio como
complementar do da territorialidade. O que fica dito corresponde ao conteúdo
tradicional do princípio da nacionalidade que, de acordo com o fundamento e a
teleologia que lhe foram apontados, surge como princípio da personalidade ativa:
o agente é um português. Fala-se, todavia hoje também, a justo título, de um
princípio da personalidade passiva, para efeitos de aplicação da lei penal
portuguesa a factos cometidos no estrangeiro por estrangeiros contra
portugueses. É óbvio porém que este princípio da personalidade passiva radica
num fundamento e numa teleologia que – pode afirmar-se sem exagero – nada
tem em comum com aqueles em que vimos assentar o princípio da
personalidade ativa. Com efeito, a máxima da não extradição de nacionais não
desempenha aqui qualquer papel, uma vez que relevante é a nacionalidade da
vítima, não a do agente. O que oferece fundamento ao princípio da
personalidade passiva é a necessidade, sentida pelo Estado português, de
proteger os cidadãos nacionais; é, dito por outras palavras, a exigência de
proteção de nacionais perante factos contra eles cometidos por estrangeiros no
estrangeiro e, neste sentido, a proteção de interesses nacionais. O princípio da
personalidade passiva possui por isso um fundamento e uma teleologia que o
identificam com o princípio da defesa de interesses nacionais, concretamente
sob a forma de proteção pessoal (individual) daqueles interesses. Sendo assim, a
consideração teórica do princípio da personalidade passiva deveria ser levada
cabo, em rigor, no âmbito do princípio da defesa dos interesses nacionais. Se
assim não procedermos, antes a sua consideração se faz conjuntamente com a
do princípio da personalidade ativa, é porque o mesmo sucede no nosso CP E
ainda e sobretudo porque as condições a que a nossa lei submete o princípio da
personalidade passiva são exatamente as mesmas de que depende o princípio
da personalidade ativa e diferentes das que valem para o princípio da defesa (não
individual, mas real) dos interesses nacionais; na medida em que para o princípio
da personalidade ativa, mas não para o da proteção real dos interesses nacionais,

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valem as condições postas nos três apartados da alínea e) do artigo 5.º, n.º1 CP.
O princípio da nacionalidade encontra-se consagrado, na forma normal do seu
aparecimento – e na verdade tanto na sua vertente ativa, como na passiva – no
artigo 5.º, n.º1, alínea e) CP. De acordo com ele a lei penal portuguesa é aplicável
a factos cometidos fora do território nacional, por portugueses (princípio da
personalidade ativa) ou por estrangeiros contra portugueses (princípio da
personalidade passiva), sob uma tríplice condição: a de os agentes serem
encontrados em Portugal; a de tais factos serem uníveis pela legislação do lugar
em que tiverem sido praticados, salvo quando nesse lugar se não exercer poder
punitivo; e a de constituírem crime que admita extradição e esta não possa ser 84
concedida. Português para os efeitos em causa é todo aquele que como tal deva
ser considerado, no momento do facto (artigo 3.º CP) e segundo as normas da
lei da nacionalidade.

b. Condições de aplicação:

i. Que o agente seja encontrado em Portugal: a primeira condição (artigo


5.º, n.º1, alínea e), inciso i) CP) explica-se, quanto ao princípio da
personalidade ativa, por ser nela que se concretiza a razão que lhe dá
fundamento: a não extradição de nacionais; e quanto ao princípio da
personalidade passiva por nele se tratar de uma extensão do princípio
da nacionalidade justificada por razões de índole muito especial. Tem-se
muitas vezes apontado esta condição, na nossa doutrina, como exemplo
de uma condição objetiva de punibilidade. Tomada esta expressão no
seu teor literal, a afirmação é correta. Como correta se mostra quando
com ela se pretende significar que tal exigência não constitui elemento
do tipo objetivo de ilícito e não precisa, por isso, de ser abrangida pelo
dolo e pela culpa do agente. Dogmaticamente porém ela nada possui de
comum com o fundamento e a teleologia das verdadeiras condições
objetivas de punibilidade, antes constitui uma condição de aplicação no
espaço da lei penal portuguesa. Resta sabe se uma tal condição, em
definitivo, se justifica, ou se justifica totalmente, na medida em que ela
condiciona, porventura em medida demasiado lata, a proteção penal
que o Estado português se dispõe a oferecer aos seus nacionais, isto é,
afinal, a amplitude do princípio da personalidade passiva; sobretudo
num momento em que a figura do julgamento de ausentes em processo
penal regressou (infelizmente) ao sistema legal português (artigos 232.º
e seguintes CPP).

ii. Que o facto seja também punível pela legislação do lugar em que tiver
sido praticado: a exigência de que o facto seja também punível pela
legislação do lugar em que tiver sido praticado (artigo 5.º, n.º1, alínea e),
inciso ii) CP) é a condição materialmente mais importante de aplicação
do princípio da nacionalidade e que mais claramente o converte em
princípio subsidiário. Uma tal exigência é, pelo menos em via de princípio,
político-criminalmente justificada e teleologicamente plena de sentido.
Não é em regra razoável star a submeter ao poder punitivo alguém que
praticou o facto num lugar onde ele não é considerado penalmente

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relevante e onde, por isso, não se fazem sentir quaisquer exigências


preventivas quer sob a forma de tutela das expectativas comunitárias na
manutenção da validade da norma violada – norma que, em definitivo,
não existe – quer sob a forma de uma socialização de que, segundo a lei
do lugar, o agente não carece. Pelo menos no que tange o princípio da
personalidade ativa. Já considerando o fundamento da personalidade
passiva, a exigência torna-se menos clara, uma vez que o que aí está em
causa é um propósito de proteção de interesses (pessoais)
especificamente nacionais. A lei ressalva desta exigência a hipótese de
no loce delicti – justamente porque se trata de um domínio sem senhor 85
– se não exercer o poder punitivo: nesse caso o princípio da
personalidade fica simplesmente na dependência da verificação do
requisito anterior (artigo 5.º, n.º1, alínea e), inciso i) CP), já que também
o requisito que em seguida será tratado perde verdadeiramente campo
de aplicação. Uma tal extensão do princípio da nacionalidade é fruto, por
um lado, de o princípio da territorialidade não poder aqui ter aplicação
e por, apesar disso, se entender que o facto não deve ficar sem punição.
Bem podendo afirmar-se que em tais hipóteses o princípio da
personalidade (ativa e passiva) deixa de ser princípio complementar ou
acessório, para se tornar em princípio único da lei penal no espaço.

iii. Que o facto constitua crime que admita extradição e esta não possa ser
concedida: o inciso iii) do artigo 5.º, n.º1, alínea e) CP põe como última
condição de aplicação do princípio da personalidade, ativa ou passiva,
que o facto constitua crime que admita extradição e esta não possa ser
concedida. Trata-se aqui claramente de uma reafirmação da conceção
do legislador segundo a qual o princípio da territorialidade deve não
apenas no conspeto nacional, mas internacional constituir o princípio
base, e o princípio da nacionalidade o complemento. Se a extradição
fosse jurídica e faticamente possível ela deveria ser concedida e o
princípio pessoal deveria regredir: do ponto de vista do princípio base da
territorialidade antes dedere que punire. Se estiver em causa o princípio
da nacionalidade ativa (sendo o agente português), a extradição só é
possível nos apertados limites do regime previsto no artigo 33.º, n.º3
CRP e no artigo 32.º, n.º2 Lei n.º 144/99, 31 agosto. Com efeito,
rompendo com uma tradição plurissecular, a Lei Constitucional n.º1/97
introduziu no nosso Ordenamento Jurídico a possibilidade de extradição
de nacionais, até então absolutamente proibida pela Constituição: a
causa imediata da modificação deveu-se por certo à vontade de dar
cumprimento à regra posta pelo artigo 7.º, n.º1 Convenção Relativa à
Extradição entre os Estados Membros da União Europeia, assinala a 27
setembro 1996. Embora esta norma admitisse a formulação de reservas,
o Estado Português optou por abrir o seu direito à extradição de
nacionais em certos casos de contados e taxativamente descritos, de
acordo com a faculdade concedida no artigo 7.º, n.º2 da Convenção.
Assim, o atual artigo 33.º, n.º3 CRP (só) permite a extradição de
nacionais desde que se verifiquem os seguintes requisitos (cumulativos!):

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1. Existência de reciprocidade de tratamento por parte do Estado


requerente;

2. Consagração dessa reciprocidade em convenção internacional;

3. Tratar-se de casos de terrorismo ou de criminalidade


internacional organizada;

4. Consagração de garantias de um processo justo e equitativo pelo


ordem jurídica do Estado requerente.

Crime que admita extradição é qualquer um à exceção da infração de 86


natureza ou política ou infração conexa a infração política segundo as
conceções do Direito Português e do crime militar que não seja
simultaneamente previsto na lei comum (artigo 7.º, n.º1, alínea a) e b)
da Lei de Cooperação Judiciária Internacional – L 144/99). Porem, a
própria lei retira, no artigo 7.º, n.º2, a natureza política a um extenso
leque de crimes, independentemente da motivação que lhes presida.
Além disso, há que ter em conta, nas relações com os restantes Estados-
membros da União Europeia, que o artigo 5.º da Convenção de
Extradição de 1996 exclui expressamente a natureza política do crime
como fundamento da recusa de extradição. Ora, dada a prevalência das
normas contidas em convenções internacionais sobre a lei ordinária
interna, a eventual natureza política de certa infração não permitirá ao
Estado Português recusar a extradição no âmbito de aplicação da
referida Convenção. Se o crime é, pela sua natureza, passível de
extradição, pode todavia esta não ser concedida, seja porque, pura e
simplesmente, não foi requerida, seja por efeito das normas,
substantivas e adjetivas, em matéria de extradição. Algumas das quais se
inscrevem logo no texto constitucional: justamente a que proíbe a
extradição de nacionais fora dos casos previstos (artigo 33.º, n.º3 CRP);
a que impede a extradição pedida por motivos políticos (artigo 33.º, n.º
4 CRP); e as que vedam a extradição por crimes a que correspondam
certas reações criminais segundo o Direito do Estado requerente: a pena
de morte e a pena de que resulte lesão irreversível da integridade física
(artigo 33.º, n.º4 CRP). No que diz respeito às duas primeiras proibições
de extraditar, elas cessam apenas e o Estado requerente previamente
comutar essas penas ou medidas ou se aceitar a conversão das mesmas
por um tribunal português, segundo a lei portuguesa (artigo 6.º, n.º2,
alínea a) e c L 144/99). A terceira proibição cessa, para além destes casos,
se existirem condições de reciprocidade estabelecidas em convenção
internacional e se o Estado requerente der garantias de que tal pena ou
medida não será aplicada ou executada (artigo 33.º, n.º5 CRP e artigo 6.º,
n.º2, alínea b) L 144/99). A prevalência da extradição sobre a
competência da lei portuguesa em razão da nacionalidade vale também,
mutatis mutandis, para a entrega efetuada ao abrigo da Lei n.º 65/2003,
23 agosto, relativa ao mandado de detenção europeu. Assim, a
competência extra territorial da lei portuguesa em virtude da
nacionalidade (ativa ou passiva) só deve exercer-se na ausência de um

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pedido de entrega formulado por um Estado da União, ou na


impossibilidade de lhe dar cumprimento quando subsista, apesar dela,
uma pretensão penal do Estado português (artigo 11.º, alínea d) e e),
bem como os casos de ausência das garantias previstas no artigo 13.º
daquele diploma). Esta regra não é, todavia, absolutamente rígida,
devendo ressalvar-se o fatos de flexibilidade introduzido pelo artigo 12.º,
n.º1, alínea b) L 65/2003, que admite a possibilidade, em Portugal, de
um procedimento penal, pelos mesmos factos, contra a pessoa
procurada. O raciocínio e os resultados expostos valem também para o
pedido de entrega formulado pelos Tribunais Penais Internacionais para 87
a ex-Jugoslávia e para o Ruanda, cuja jurisdição das Nações Unidas sobre
as jurisdições nacionais, nos termos das Resoluções das Nações Unidas
que os instituíram e dos artigos 2.º, n.º1 e 3.º, n.º1 L 102/2001, 25 agosto.
O mesmo não sucede porém com a entrega ao Tribunal Penal
Internacional (permanente), dado que, nos termos do Estatuto de Roma,
o tribunal só pode admitir o caso – princípio da subsidiariedade – quando
as jurisdições competentes não puderem ou não quiserem julgar
adequadamente os factos em causa.

c. Extensão do princípio da nacionalidade: com uma extensão do princípio da


nacionalidade depara-se no artigo 5.º, n.º1, alínea b) CP, segundo o qual a lei
penal portuguesa é ainda aplicável a factos cometidos fora do território nacional
«contra portugueses, por portugueses que viverem habitualmente em Portugal
ao tempo da sua prática e aqui forem encontrados». Extensão que deriva de se
não fazerem nesta sede as exigências constantes dos incisos ii) e iii) do artigo 5.º,
n.º1, alínea e) CP. Uma tal extensão foi justificada com a consideração de que
importaria impedir a impunidade nos casos em que um português se dirige ao
estrangeiro para aí cometer um facto que, se bem que licito segundo a lex loci,
constitui todavia um crime segundo a lex patriae, com a agravante de um tal
crime ser cometido contra um português; e em que, uma vez o crime cometido,
o agente volta a Portugal provavelmente para aqui continuar a viver
tranquilamente. Em casos tais – argumentou-se – o agente teria adquirido, se a
extensão em causa não existisse, um verdadeiro direito à impunidade através de
uma fraude à lei penal. Por isso uma tal lacuna devia ser incondicionalmente
preenchida. A ser assim, pode duvidar-se da necessidade político-criminal desta
extensão do princípio da nacionalidade. Sobretudo na medida em que, não
sendo o facto punível segundo a lei do lugar, isso seja sinal de que a sua
incriminação releva mais de conceções éticas discutíveis também para a
comunidade nacional, ou se traduz num crime sem vítima ou figura jurídico-
penal próxima. A sua justificação – com eventuais consequências no seu âmbito
de aplicação – parece pois só poder ser vista na fidelidade do agente da vitima
aos princípios fundamentais de uma comunidade a que pertencem e onde o
agente habitualmente vive.

3. O princípio complementar da defesa (da proteção) dos interesses nacionais: trata-se, neste
princípio complementar de aplicação da lei penal portuguesa, da específica proteção que
deve ser concedida a bens jurídicos portugueses, independentemente, por conseguinte,
da nacionalidade do agente, de os crimes terem sido cometidos no estrangeiro e mesmo

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do que a seu respeito disponha a lei do lugar. O que sucede é que, apesar dos esforços,
em parte já coroados de algum êxito a nível internacional ou inter-regional, de
aproximação e de cooperação entre as diversas leis nacionais, pode compreender-se que
muitas delas não punam os factos, ainda que praticados no seu âmbito territorial,
exclusivamente dirigidos à lesão dos bens jurídicos próprios de outro país. É o que sucede
com a generalidade dos crimes contra o Estado, onde a área de tutela típica cobre apenas
os interesses do Estado Português. Foi precisamente a regra enunciada no texto que
levou o legislador nacional a rever o regime da punição do terrorismo na Lei de Combate
ao Terrorismo (L 52/2003, 22 agosto), passando a incriminar as organizações terroristas
que tenham por fim a prática de atos terroristas contra entidades estrangeiras (artigo 3.º) 88
e, naturalmente, o próprio Terrorismo internacional (artigo 5.º). Por isso os estados
nacionais se veem na necessidade de fazer intervir a proteção penal dos seus interesses
específicos perante factos cometidos no estrangeiro, mas diretamente dirigido à lesão
de bens jurídicos nacionais. O bom fundamento de uma tal extensão do ius puniendi
nacional reside em que o próprio agente estabeleceu a relação com a ordem jurídico-
penal portuguesa ao dirigir o seu facto contra interesses especificamente portugueses.
Além disso, o Estado em cujo território o crime foi praticado pode não se encontrar em
condições de perseguir os infratores, pelo que o Estado Português deve munir-se dos
instrumentos necessários à defesa própria dos seus interesses essenciais. As hipóteses
integrantes deste princípio têm a ver com a defesa de bens jurídicos que podem dizer-
se nacionais segundo a específica natureza. Aqui é pois a substancia do bem jurídico que
o torna em interesse nacional, não necessariamente a titularidade, por isso se falando
hoje com propriedade, a respeito desta vertente do princípio da defesa de interesses
nacionais, de um princípio de proteção real. A lei tem, deste modo, de fazer uma
enumeração taxativa dos tipos de factos relativamente aos quais vale o princípio em
exame. A ela procede o artigo 5.º, n.º1, alínea a) CP. Assinale-se que, em um certo sentido,
o princípio de proteção real prefere ao princípio da personalidade ativa quando ambos
sejam convocados no caso concreto, isto é, sempre que um dos crimes a que o princípio
real se refere tenha sido praticado por um português: no sentido de que, em casos tais,
não se torna necessária à aplicação da lei penal portuguesa a verificação dos requisitos
de que o artigo 5.º, n.º1, alínea e) e b) CP faz depender a entrada em função do princípio
da nacionalidade.

4. O princípio complementar da universalidade: o princípio da universalidade ou da aplicação


universal visa permitir a aplicação da lei penal portuguesa a factos cometidos no
estrangeiro que atentam contra bens jurídicos carecidos de proteção internacional ou
que, de todo o modo, o Estado Português se obrigou internacionalmente da sedes delicti
e da nacionalidade do agente. Não se trata, como é claro, de facultar a cada Estado a
intervenção penal relativamente a todo e qualquer facto considerado crime pela sua lei
interna; o que conduziria à existência de um ius puniendi estadual sem qualquer fronteira
e fomentador por isso em larga medida de conflitos internacionais de caráter jurídico-
penal. Do que se trata é antes – e só – do reconhecimento do caráter supra nacional de
certos bens jurídicos e que por conseguinte apelam para a sua proteção a nível mundial.
Deste modo aponta Jescheck, com razão, como fundamentos do princípio, «a
solidariedade do mundo cultural face ao delito», e a «luta contra a delinquência
internacional perigosa». Neste sentido, vai logo o artigo 5.º, n.º1, alínea c) CP, ordenando
a aplicação da lei penal portuguesa a crimes que tutelam bens jurídicos carecidos de

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proteção internacional. Submete, todavia, a aplicação da lei penal portuguesa nestas


hipóteses a uma dupla condição: que o agente seja encontrado em Portugal; e que não
possa ser extraditado. Tais limitações são compreensíveis, sendo só de suscitar a questão
de saber, quanto à segunda, se ela vale apenas para o caso em que a extradição foi
requerida, mas não pode ser concedida, ou ainda para o caso de a não concessão derivar
de ela não ter sido requerida. A interpretação mais ampla parece ser imposta justamente
pela teleologia específica do princípio da universalidade. De resto, a introdução do
legislador da a atual alínea f) do artigo 5.º, n.º1 reforça este entendimento, porquanto o
legislador fez questão de especificar que a competência da lei portuguesa no caso aí
previsto depende da concreta existência de um pedido de extradição que não pode ser 89
atendido. Fonte do princípio pode também ser o Direito Internacional Convencional a
que Portugal se tenha obrigado. Nesse sentido dispõe o artigo 5.º, n.º2 CP. Não há aqui
quaisquer requisitos erais de que dependa a aplicação do princípio; o que podem
evidentemente é existir nos concretos tratados e convenções internacionais em que
aquele se plasmo.

5. O princípio complementar da administração supletiva da justiça penal: como se referiu, a


revisão do CP 1998, ao introduzir a norma atualmente constante do artigo 5.º, n.º1,
alínea f) CP, veio colmatar uma lacuna do sistema de aplicação da lei penal no espaço até
aí existente. Com efeito, podia suceder – e efetivamente sucedeu – que um cidadão
estrangeiro, tendo praticado um crime, normalmente grave, no estrangeiro, viesse
buscar refúgio em Portugal, onde, por um lado, não podia ser julgado, dada a ausência
de uma conexão relevante com a lei portuguesa, e de onde, por outro lado, não podia
ser extraditado, dadas as proibições de extraditar em função da gravidade da
consequência jurídica impostas pelo sistema nacional. Esta lacuna, conjugada com o
aumento exponencial da mobilidade das pessoas nos últimos anos, sobretudo dentro da
União Europeia, fazia Portugal incorrer no risco de se transformar num valhacouto de
criminosos estrangeiros. Indicados o seus fundamentos político-criminais, resta referir as
condições dentro das quais, segundo o princípio da administração supletiva da justiça
penal, a lei penal portuguesa é aplicável a factos cometidos por estrangeiros no
estrangeiro. Isso sucederá desde que:

a. O agente seja encontrado em Portugal;

b. A sua extradição haja sido requerida;

c. O facto constitua crime que admita a extradição e esta não possa ser concedida.

Também aqui se devendo entender que o conceito de extradição, para efeitos desta
alínea, abarca, por interpretação extensiva (licita), a entrega aos Tribunais Penais
Internacionais e a que resulta de um mandado de detenção europeu, nos termos da Lei
n.º 65/2003, 23 agosto. Nos raros casos em que um desses pedidos de entrega não deva
ser satisfeito, e não se aplique nenhuma das conexões precedentes, a lei portuguesa é
competente para conhecer dos factos em virtude da norma contida no artigo 5.º, n.º1,
alínea f) CP.

Condições gerais de aplicação da lei penal portuguesa a factos cometidos no estrangeiro:


o caráter meramente complementar ou subsidiário dos princípios de aplicação extraterritorial da
lei penal portuguesa revela-se exemplarmente na circunstância de em todos estes casos a

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aplicação só ter lugar «quando o agente não tiver sido julgado no país da prática do facto ou se
houver subtraído ao cumprimento total ou parcial da condenação» (artigo 6.º, n.1ºCP). Trata-se
aqui, antes de mais, de respeitar o princípio jurídico-constitucional ne bis in idem, segundo o qual
«ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime» (artigo 29.º, n.º5
CRP); até porque uma tal garantia é considerada pela nossa Constituição como valendo para
todas as pessoas e para todos os tribunais, que não apenas para os cidadãos portugueses ou para
julgamentos levados a cabo por tribunais portugueses. Mas trata-se também de traduzir a ideia
segundo a qual o critério da territorialidade deve, segundo a nossa constituição político-criminal,
constituir efetivamente o princípio prioritário e todos os outros assumirem a veste de princípios
meramente complementares, ou melhor ainda, nesta aceção, supletivos. Trata-se, em suma e só, 90
de prevenir a impunidade que poderia resultar de conflitos negativos de jurisdição. Esta solução
pode suscitar algumas dúvidas quanto ao seu fundamento político-criminal no que toca à sua
aplicação aos casos em que intervenha o princípio da defesa dos interesses nacionais na sua
vertente de proteção real. Pode dizer-se que não deve confiar-se a tribunais estrangeiros a
apreciação de ofensas a interesses especificamente nacionais. Mas a validade deste argumento
já tem sido posta em causa: porque atrás dele estaria uma inadmissível desconfiança de princípio
perante sentenças de tribunais estrangeiros, a qual só pode prejudicar os esforços de
incrementação da cooperação judiciária internacional em matéria penal; e porque era esta já a
solução contida no CP 1886 e não há noticia de que tenha dado lugar a lacunas intoleráveis na
defesa de interesses especificamente portugueses. O que se compreenderia, porque uma de
duas: ou os interesses nacionais em causa correspondem também a interesses dignos de
proteção segundo a lex loci e deve então esperar-se que esta proteção seja suficiente para
assegurar a defesa dos interesses nacionais; ou os interesses portugueses não são protegidos
pela lex loci, menos indiretamente e o problema então nem sequer se suscita porquanto o agente
não será julgado no país estrangeiro e a lei portuguesa torna-se plenamente aplicável. Prova
definitiva do caráter subsidiário dos princípios de extra territorialidade é que, nos termos do
artigo 6.º, n.º2 CP, o facto deva ser julgado pelos tribunais portugueses «segundo a lei do pais em
que tiver sido praticado sempre que esta seja concretamente mais favorável ao delinquente».
Trata-se, por isso, verdadeiramente de aplicação da lei penal estrangeira pelo tribunal português.
Solução esta que, se encontra o seu fundamento primário no princípio da aplicação do regime
concretamente mais favorável, constitui em último termo uma decorrência da ideia segundo a
qual a aplicabilidade da lei portuguesa é subsidiária. Dois problemas, no entanto, costumam
suscitar-se ainda neste contexto. O primeiro é o de saber se certas categorias de crimes não
devem ser radicalmente afastadas do âmbito de aplicação do princípio. A lei portuguesa vigente,
depois de muitas hesitações durante o seu período de gestação, acabou por se deixar convencer
pelo bom fundamento da ideia da exclusão, que estendeu a todos os crimes aos quais a lei
portuguesa é aplicável em nome do princípio da defesa dos interesses nacionais. Nesse sentido,
dispõe o artigo 6.º, n.º3 CP que «o regime do número anterior não se aplica aos crimes previstos
na alínea a) e b) do n.º1 do artigo 5.º». Solução que é coerente com a dispensa do princípio da
dupla incriminação visada pela alínea b) do n.º1 do artigo 5.º CP. O segundo problema é o de
saber como devem resolver concretamente as dificuldades práticas que possam resultar da
aplicação da lei penal estrangeira no que respeita à assimilação das sanções previstas por esta. O
problema não possui acuidade entre nós. É verdade que o sistema português não admite nem a
pena de morte, nem a pena de prisão perpétua; mas precisamente nestes casos a lei estrangeira
não se aplicará por não surgir como lex mellior. É nos limites inferiores da escala penal que o
problema se pode suscitar; mas nessa zona o CP português consagra uma larguíssima panóplia
de penas substitutivas de prisão, de modo que também aí o problema da assimilação não

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suscitará dificuldades especiais. Em todo o caso, ao menos no plano teórico, o problema persiste.
Já se preconizou que para resolver o CP contivesse uma tábua e conversão completa das penas
estrangeiras em penas nacionais; ou em alternativa que contivesse uma cláusula geral de
conversão d apena estrangeira naquela que dela mais se aproximasse no sistema nacional. Foi
esta a última via a seguida pela 2.º parte do artigo 6.º, n.º2 CP, nos termos da qual «a pena
(estrangeira) aplicável é convertida naquela que lhe corresponder no sistema português ou, não
havendo correspondência, naquela que a lei portuguesa previr para o facto».

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