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A ORIGEM DO CONCEITO DE REINO NA HISTÓRIA DE ISRAEL

CIÊNCIAS BÍBLICAS: TEORIA E PRÁTICA

A única mensagem pregada por Jesus, segundo os Evangelhos, foi o evangelho


do Reino de Deus. Em números absolutos de referências diretas e indiretas são mais
de 100 utilizações nos evangelhos. Porém chama a atenção, o fato de que ao usar essa
expressão, tanto João quanto Jesus não explicaram, conforme os evangelistas, o
significado desse termo para os seus contemporâneos judeus. Isso mostra que,
naquele contexto, a expressão Reino de Deus era conhecida. Naturalmente, como um
bom judeu, essa era uma expressão oriunda da teologia judaica. No entanto, o conceito
de “Reino” ou reinado de Deus não é um conceito que surge pronto, mas, como todo
conceito teológico do Antigo Testamento, certamente foi, sem dúvida, também um
conceito que evoluiu ao longo da história de Israel.
Apesar de o conceito do reinado de Deus ter sofrido várias modificações, esse
artigo objetiva, por meio de uma revisão bibliográfica, apresentar como se deu a gênese
desse conceito na história do Israel pré-estatal, no Antigo Testamento.

O conceito do Reino de Deus e a Bíblia Hebraica


O termo Reino de Deus não aparece, dessa forma, nenhuma vez na Bíblia
hebraica. Não obstante, o conceito é claramente apresentado no Antigo Testamento,
pois Deus é apresentado claramente como Rei. Na teologia bíblica esse é um dos
temas centrais espalhados em toda a Bíblia Hebraica. Yahweh, o Deus Israelita é, na
concepção judaica, o “Rei” (heb melek) que governa soberanamente.1 Essa atribuição
não teria ocorrido tardiamente na história de Israel. Apesar de os termos estarem
espalhados na Bíblia Hebraica sem uma cronologia clara, vários estudos2 mostram que
Israel teria atribuído, desde cedo (no período pré-estatal), o título de “rei” ao seu Deus.
A realeza de Deus continuou como tema primordial na religiosidade judaica, o
que fica demonstrado a partir de alguns cânticos em Salmos. A própria arca da aliança,
anterior à constituição da monarquia, como representação do trono de Yahweh mostra
que a confissão da realeza de Deus também é pré-monárquica (BRAKEMEIER, 1984,
p. 24). Milton Schwantes (1982) demonstrou a partir do Salmo 24 (vs. 7-10) como o
tema da realeza de Yahweh não é um conceito tardio na literatura israelita, mas é
antigo na história de Israel. O texto reproduz um hino litúrgico relacionado com a
recondução da arca ao santuário quando esta voltava vitoriosa, após ter sido conduzida
em batalha. Mas essa tradição e a arca não tiveram origem no período do santuário da
monarquia, visto que a arca esteve desde cedo ligada à tradição do Norte de Israel em
Siló (1 Sm 1.3; 33; 4.4). Assim, sua origem não está ligada ao santuário do estado (em
Jerusalém), mas ao santuário do período tribal quando era especialmente utilizada e
conduzida nas batalhas. Essa utilização fez com que os títulos de Yahweh relacionadas
à arca fossem, desde cedo, títulos guerreiros como é o caso do título “Zebaote” (Senhor
dos Exércitos) ligado ao título de rei em Sl 24 (vs. 7-10). Essa teologia guerreira e real
de Yahweh tem a sua origem popular e mostra como para os israelitas (os
camponeses) no período tribal entendiam que seu Deus era o rei que lutava suas
guerras.
Martin Buber (1932 apud SCHMIDT, 2004, p. 229) também argumentou que a
concepção de fé acerca de uma realeza de Deus governando sobre o povo é uma ideia
histórica da antiga Israel. Para ele, isso é demonstrado na tradição do Sinai que já
apresenta os termos dessa aliança régia. Já para Schmidt, a referência à realeza de
Yahweh surge somente após a tomada da terra e não teria surgido antes do início do
período dos reis. Acredito que a afirmação de Schmidt está bastante influenciada pela
já ultrapassada proposta de Wellhausen (DILLARD, 2006, p. 132) que, depois de
identificar as duas fontes sobre a monarquia (uma pró e outra contra a monarquia),
afirmou que o ponto de vista pró-monárquico tinha mais valor histórico e, portanto, era
mais antiga que a posição antimonárquica. Para ele, a posição pró-monárquica refletia
bem o contexto literário de surgimento da obra historiográfica deuteromista ao passo
que a posição antimonárquica refletia uma posição posterior à monarquia.
A proposta de Wellhausen desconsidera a análise literária dos textos e parte do
pressuposto de que se o texto foi escrito no período da monarquia, logo terá de ser pró-
monárquico. Ou, se foi escrito depois da monarquia, então é antimonárquico. Isso
parece ser, a princípio, um pouco lógico mas não se sustenta mediante a primeira
verificação. Não é verdade que em um determinado período todos os seres humanos
pensam igualmente. Afinal, se no período da monarquia tudo que tiver sido escrito for
de tendência pró-monárquica então o que se dirá do movimento profético que se
posicionou contra a monarquia por diversas vezes?
A análise mostra, ao contrário do que se declarou acima, que o sentimento
antimonárquico seria reflexo de um debate tão antigo quanto à época de Gideão e
Abimeleque (Jz 8.22-9.57). Ou seja, concordo com Hebert Donner (2010, p. 198) de
que, provavelmente, o motivo para a rejeição da monarquia, nas peças literárias,
fundamentadas na reivindicação do poder teocrático de Yahweh já estava presente no
Israel pré-estatal (Jz 9; 1 Sm 8). E ainda que a instituição teocrática não estivesse tão
organizada como no período pós-exílico, ela já existia de forma inicial fundamentada na
convicção de que Israel não precisava de um rei, pois já tinha Yahweh como Rei.
Assim, a proposta de Wellhausen tem sofrido oposição e, atualmente, há bastante
consenso para a teoria de que as discussões antimonárquicas teriam surgido mesmo
no período anterior à formação do estado, o que poderia ser explicado pelas várias
tradições (tanto pró quanto antimonárquicas) que teriam permanecido atuais em todo o
período monárquico, ainda que possam ter sido finalmente editadas posteriormente.

Os três modelos de estado contemporâneos do Israel tribal


Desde os tempos mais remotos, no contexto do Antigo Oriente, existiam vários
modelos de realeza (desde as grandes potências até reinados menos significativos)
sobre os quais Israel podia se espelhar. Apesar disso, ao comparar o conceito de
realeza do Israel pré-estatal com os três modelos, considerados pelos pesquisadores,
mais próximos do contexto de Israel, se percebe diferenças significativas. Os povos
vizinhos mais próximos que fornecem os modelos que serão analisados são os
egípcios, hititas, cananeus e vizinhos mais próximos.
A tese de que a ideia da realeza da Yahweh é um mero empréstimo das religiões
cananeias3 que Israel encontra em Canaã não explica as diferenças substanciais entre
as ideias pagãs e israelitas no que concerne à realeza. No Antigo Oriente, à época da
conquista de Canaã, o cenário político era de praticamente três modelos. O primeiro era
uma multidão de pequenos principados espalhados em Canaã. Esse era o modelo das
cidades-Estados. Tratava-se de pequenas unidades políticas que se reduzia à cidade e
aos territórios em volta delas. Esse modelo fundamentava-se no princípio dinástico e o
rei era uma espécie de líder militar que reunia em torno de si uma tropa recrutada entre
o povo e que podia ser reforçada com um exército de mercenários. Parece ter sido isso
que tentaram fazer com Gideão, apesar desse modelo ter sido rejeitado (Jz 8.22).
Nesse modelo, os reis podiam entrar em guerra contra outros reis, mas em geral, pelo
princípio da autoproteção, faziam acordos e podiam formar uma espécie de
confederação.
A segunda forma de governo vigente era o modelo imperial como o dos Hititas,
Egípcios e depois os impérios Assírio, Neobabilônico e Persa. Esse modelo não
aparece em Israel no início e, talvez, seja contra esse modelo que se justifica toda
teologia pré-monárquica da Realeza da Yahweh, visto que foi de um modelo
imperialista dominador que, segundo a tradição bíblica, Israel foi libertado conforme dá
conta a tradição do Êxodo. Esses impérios, especialmente o Egípcio, com o qual mais
está associada a história de Israel em sua constituição mais inicial, se legitimam como
proprietários de todas as terras conquistadas. Por isso, provavelmente contra essa
ideologia imperial é que Israel atribui a Yahweh, em sua teologia, a propriedade de toda
a terra. A autoridade no modelo imperial é monárquica e a sucessão era, também, via
de regra, hereditária. E, ao contrário do princípio da confederação, vigorava nos
modelos imperiais o modelo da suserania e vassalagem. Ou seja, os territórios
conquistados não eram confederados dos dominadores, mas sim vassalos.
O terceiro modelo é o dos Estados nacionais. Alguns desses modelos são
apresentados na Bíblia: Edom, Moabe, Amom e Aram (VAUX, 2004, p. 117). Em geral,
esse modelo não se caracteriza, primordialmente, pela expansão territorial. Pois o
exército, em geral, era mais defensivo que ofensivo. Quando havia a necessidade de

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uma guerra, a nação como um todo era convocada para a peleja. Nesse modelo, o
governo era monárquico, mas não era, via de regra, hereditário (Gn 36.31-39) e havia
participação da nação para escolha e/ou aceitação de um determinado rei. Às vezes, a
escolha do líder político estava associada uma vitória militar recém-conquistada (Jz
36.35)4.

O sistema de governo no Israel tribal e a realeza de Yahweh


O modo de vida e organização política Israelita, em princípio, quando o povo se
instalou em Canaã, se difere essencialmente de todos os três modelos apresentados
acima. Chama a atenção que ao contrário do que aconteceu posteriormente com os
filisteus, os israelitas não foram, assim que chegaram à Canaã, se associando à cultura
urbana cananeia (DONNER, p. 142). Ao contrário, evitaram os habitantes da Palestina
tanto geográfica, quanto culturalmente, habitando inicialmente nas montanhas5.
Estabelecendo-se nas montanhas, a área menos habitada nesse período, eles ficaram,
de início, afastados das cidades-estados mais poderosas das planícies e dos vales,
visto que não conseguiram derrotá-las, “pois estes possuíam carros de guerra feitos de
ferro” (Jz 1.19, NVI). Assim tentaram evitar a relação cultural com os cananeus,
embora, posteriormente, tenham se envolvido em um sincretismo cultural e religioso (Jz
1.21, 28-36).
O modelo Israelita, antes da monarquia, segundo Donner (2010, p. 151) era um
modelo tribal que está ligado por dois princípios: o da ordem clânica e familiar (visto que
tal princípio é mais antigo que a tribo e remonta ao período patriarcal6) e também pelo
princípio religioso, ou seja, a adoração a Yahweh (elemento religioso unificador após o
evento do Êxodo). Nesse modelo não há um imperador, nem mesmo um rei, mas a
liderança parece ter sido uma liderança formada pelos líderes familiares. As famílias se
uniam e formavam o clã que, por sua vez, davam forma à tribo. E as tribos, em algum
momento7, estão confederadas ou unidas, não primordialmente pelo princípio familiar
(pois aqui o vínculo familiar pode já estar distante), mas pelo vínculo religioso que é a
adoração a Yahweh. 8
Nesse modelo, há certo consenso com relação aos princípios que ligam as
tribos. Esses princípios estão fundamentados na relação com Yahweh, sua adoração e
na sua lei que decorre de uma relação pactual. Quanto à proteção, não há um exército
oficial destinado para fazer as guerras. Todos os componentes da família e todo o clã
estão envolvidos no trabalho. Apenas quando o clã se vê ameaçado é que surge a
preocupação com a guerra. Um cidadão, geralmente dentre o povo, é escolhido para
arregimentar o grupo necessário para a guerra (como no caso de Gideão), como é visto
nas várias passagens de libertação que estão registradas no livro de juízes. Porém, ao
retornar esse guerreiro volta a ser um cidadão comum que pode exercer, via de regra,
um papel de maior proeminência entre o povo, dado o reconhecimento proveniente da
conquista, mas não é, em todo o caso, aclamado rei ou chefe do povo.
Todo o povo está ocupado demais na produção para aceitar o modelo em que
apenas alguns trabalham e outros ficam parados quando não há necessidade de
guerrear. Esse parece ter sido o caso descrito na história de Abimeleque (Jz 9.1-20).
Nesse texto, considerado por Martin Buber como uma das peças literárias
antimonárquicas mais antigas da Bíblia, fica claro que a liderança do clã da família de
sua mãe (uma siquemita) está nas mãos dos anciãos de Israel, os setenta filhos de
Jerubaal. Isso mostra que por Israel não ter conseguido, de imediato, o domínio de
todas as cidades-estados cananeias, então passou a viver numa relação sincrética
entre elas. Abimeleque era filho Jerubaal (Gideão, um israelita que morava em Ofra)
com uma cananeia, a quem tomou como concubina (que morava em Siquém).
A cidade israelita Ofra e, ao que parece, também a cidade canaanita de Siquém
era governada pelos anciãos, todos os setenta filhos de Jerubaal, ou seja, um governo
Israelita9 (Jz 9.2). E Abimeleque, filho da concubina de seu pai, parece ter tentado
“libertar” o povo de sua mãe da liderança dos seus irmãos, por parte de pai, tentando
assim unificar tanto Ofra quanto Siquém sob os moldes do regime de liderança
cananeia (cidade-estado) que tem como líder um rei. Depois da apresentação do plano
de Abimeleque aos cidadãos de Siquém, com a legitimação sanguínea para o projeto
(Jz 9.2), os irmãos de sua mãe aceitaram e deram a Abimeleque 70 peças de prata
(tiradas do templo de Baal-Berite). Com elas Abimeleque contratou uns desocupados e
vadios e formou um exército de mercenário para pôr em prática o seu plano.
Quando Abimeleque reuniu o exército em torno se si, foi à cidade de Ofra, onde
residiam os setenta líderes daquela terra, e matou os setenta filhos de Jerubaal. Agora
não só os habitantes de Siquém, mas também os de Bete-Milo (que provavelmente
aproveitaram o evento de independência) reuniram-se em Siquém para declarar sua
independência e coroar Abimeleque rei. No evento de coroação, surge
surpreendentemente Jotão, filho de Jerubaal, que havia escapado da matança e, a
certa distância, sobre o monte Gerizim, proclamou a seguinte parábola:
Ouvi-me, cidadãos de Siquém, e Deus vos ouvirá a vós outros. Foram, certa
vez, as árvores ungir para si um rei e disseram à oliveira: Reina sobre nós.
Porém a oliveira lhes respondeu: Deixaria eu o meu óleo, que Deus e os
homens em mim prezam, e iria pairar sobre as árvores? Então, disseram as
árvores à figueira: Vem tu e reina sobre nós. Porém a figueira lhes respondeu:
Deixaria eu a minha doçura, o meu bom fruto e iria pairar sobre as árvores?
Então, disseram as árvores à videira: Vem tu e reina sobre nós. Porém a videira
lhes respondeu: Deixaria eu o meu vinho, que agrada a Deus e aos homens, e
iria pairar sobre as árvores? Então, todas as árvores disseram ao espinheiro:
Vem tu e reina sobre nós. Respondeu o espinheiro às árvores: Se, deveras, me
ungis rei sobre vós, vinde e refugiai-vos debaixo de minha sombra; mas, se
não, saia do espinheiro fogo que consuma os cedros do Líbano. Agora, pois,
se, deveras e sinceramente, procedestes, proclamando rei Abimeleque, e se
bem vos portastes para com Jerubaal e para com a sua casa, e se com ele
agistes segundo o merecimento dos seus feitos (porque meu pai pelejou por
vós e, arriscando a vida, vos livrou das mãos dos midianitas; porém vós, hoje,
vos levantastes contra a casa de meu pai e matastes seus filhos, setenta
homens, sobre uma pedra; e a Abimeleque, filho de sua serva, fizestes reinar
sobre os cidadãos de Siquém, porque é vosso irmão), se, deveras e
sinceramente, procedestes, hoje, com Jerubaal e com a sua casa, alegrai-vos
com Abimeleque, e também ele se alegre convosco. Mas, se não, saia fogo de
Abimeleque e consuma os cidadãos de Siquém e Bete-Milo; e saia fogo dos
cidadãos de Siquém e de Bete-Milo, que consuma a Abimeleque (Jz 9. 7-20,
ARA).

A crítica na parábola é contumaz. Os líderes anteriores são os líderes familiares


que estão em plena atividade. Eles são descritos na parábola como árvores frutíferas
(oliveira, figueira e videira) que não querem parar de trabalhar e de produzir seus frutos
para ficar vivendo à custa do restante da população. Ademais, a terra que estava em
paz (Jz 8.28) não precisava de um líder guerreiro, que nos moldes cananeus serviam
para principalmente efetuar as guerras, e nem de um exército que deveria ser mantido
desnecessariamente em tempos de paz. Afinal, somente Yahweh é rei e guerreiro
valente (Zebaote). Colocar um homem nessa condição contradizia o princípio da
igualdade e, no final das contas, essa liderança humana tendo, nas mãos, o domínio e
o poderio militar, acabava explorando o próprio povo. Na parábola de Jotão, esse rei,
nos moldes cananeus, é um espinheiro, ou seja, uma árvore que não dá frutos e que
não tem nada a oferecer para a população a não os seus próprios espinhos. Os
espinhos, utilizados contra os inimigos em alguns momentos, na maior parte do tempo
espetam os próprios irmãos, ou seja, estão contra quem está abrigado debaixo da sua
própria “sombra”. O que é, na verdade, uma ironia, pois que sombra pode oferecer um
espinheiro?
Esse tipo de reinado que governa através do poder militar é, na parábola de
Jotão, antidemocrático. Pois todos os cidadãos estão obrigados a se abrigarem,
querendo ou não, debaixo da suposta sombra do espinheiro. Caso não façam isso, o
espinheiro soltará fogo que consumirá não só a oliveira, a figueira e a videira, mas até
os fortes cedros do Líbano.
Essa crítica é a mesma crítica ideológica que aparecerá posteriormente no texto
de 1 Samuel 8. Os israelitas livres de Canaã, oriundos de um sistema de opressão,
conhecem muito bem o modelo imperial egípcio e o modelo explorador das cidades-
estados em Canaã. Assim, dizer que Israel precisou conhecer primeiramente o sistema
da monarquia na sua própria história para depois rejeitá-la e produzir tais textos
antimonárquicos, é simplesmente desconsiderar a própria história de libertação de
Israel e, considerar que, sociologicamente, Israel era uma ilha. Ou seja, que não
conheceu os modelos opressores em sua própria história, nem a sua volta e, por isso,
aceitou a monarquia sem resistência, o que é impossível.
Independente do modelo de formação de Israel que se adote, a própria história
da formação de Israel (que acredito estar explicada na tradição do Êxodo) é uma
história de libertação da opressão. Esse não é apenas o núcleo teológico, mas também
o núcleo histórico do início da história desse povo. Por isso, no princípio da história de
Israel, antes da formação da monarquia, já existe um ideal igualitário que se opõe à
opressão, seja ela imperial ou local, e ao conceito de reino, como o veem as outras
nações. Esse ideal é justificado teologicamente no conceito de que apenas Yahweh
reina e é expresso na famosa frase de Gideão: “Não dominarei sobre vós, nem
tampouco meu filho dominará sobre vós; o SENHOR vos dominará” (Jz 8.22, ARA)10. É
do modelo tribal e, posteriormente, do campesinato que surge então o conceito da
realeza de Yahweh. Essa expressão de fé do camponês israelita se distinguiu dos
demais modelos em torno de si, especialmente porque precisava se distinguir dos
modelos de opressão sob os quais o povo esteve em algum momento. Por isso é que a
expressão de fé do israelita em Yahweh como seu rei e comandante militar foi sendo
forjado em anos de luta pela sobrevivência sob a ameaça, primeiramente, egípcia,
cananeia e dos filisteus. É uma teologia de baixo e não de cima. É uma teologia
imanente que mostra a presença concreta de Deus na vida do povo. Como bem
expressou Milton Schwantes, “para o campesinato israelita Javé não é um deus
distante reservado à esfera do sagrado, mas tem uma natureza histórica encarnada”
(1982, p. 301), inclusive quando expressa que Javé, além de rei, é o comandante
militar, um valente de guerra (Zebaote) que liberta (não oprime) e peleja por Israel.
Dessa forma, o conceito de reino e reinado deve ser visto à luz da história de Israel,
pois Deus se revela na história. E as histórias de opressão e libertação na formação de
Israel, como a saída do Egito, a caminhada no deserto (e outras) são chaves para a
compreensão da realeza de Deus que se consolidou quando da instalação na terra de
Canaã. Ademais, Yahweh não é um Deus cananeu e, portanto, não é em Canaã que
Israel o encontra, mas é o Deus que vem com o povo do deserto, o Deus das tribos,
dos desterrados, dos escravos e dos que não querem mais estar sob julgo, domínio ou
opressão humana, por isso afirmam: Só Yahweh é o nosso Rei.

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