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COLÉGIO SÃO DOMINGOS

ANTONIO MICHILES

THE BEATLES E A CULTURA INDIANA:


DA INDÚSTRIA AOS HIBRIDISMOS

São Paulo — novembro de 2018


1

FOLHA DE APROVAÇÃO

A Banca Examinadora considera o trabalho: __________________________________

Orientador/a: __________________________________

(Nome e Sobrenome)

Leitor/a: __________________________________

(Nome e Sobreno
2
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AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar agradecer ao Colégio São Domingos, instituição que frequento desde
meus 6 anos, onde tive liberdade e apoio para a formação intelectual e cidadã que hoje
expresso.

Desde que aceitei o desafio para escrever esta monografia já se passaram 9 meses
-foram dias, semanas de reflexões que eram alternados de alegria e incertezas que
serviram como estímulos para procurarmos alcançar os propósitos do meu trabalho.
Nesta empreitada, tive o apoio incondicional do professor, orientador e amigo Daniel
Souza que não poderia ter tido melhor parceria - dando base intelectual, bibliográfica e
estrutural para realizar este projeto.

Aos meus colegas e amigos que se mostraram cúmplices e como eu, se encontravam
comprometidos em realizar suas monografias e assim compartilhamos solidariedade.
Marcelo, Heitor, Broc, Menezes, Bia, Lívia, Laura, "Alfinete": muito obrigado!

Aos meus eternos professores: Carol, Tato, Álvaro e Leandro; que me ajudaram a
compreender os universos indianos; às potência e perversidades da indústria cultural
aqui mesmo no Ocidente.

Ao escritor e amigo Milton Hatoum pela conversa sobre os preceitos teóricos sobre o
‘orientalismo’ que ajudou a esclarecer o assunto.

Aos beatlemaníacos geracional, testemunhas ocular e sensorial: Claudio M. Valentinetti


e Mossa Bildner, que desde sempre contavam e recontavam suas emoções quando
viveram em Londres, Nova York, Paris, Roma, Índia, Marrocos e puderam como
poucos vivenciar aqueles tempos de grandes transformações.

E, por final quero agradecer aos meus pais e irmãos que sempre me estimularam a
exercer a curiosidade sobre o desconhecido, mas não somente isso, me dando
referências bibliográficas, filmográficas e fonográficas.

A todos citados acima - direta ou indiretamente - minha sincera gratidão!


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Os Beatles foram filosóficos por parte de Lennon, sinfônicos por parte


de Paul, transcendentais por parte de George e exatos por parte de Ringo.
Talvez seja esse mix que os torna 'here, there and everywhere!"
(Alice Ruiz, novembro 2018)
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RESUMO

Por muito tempo a cultura Indiana ficou no âmbito exótico e romântico do imaginário
ocidental. Nos anos 60, muitos jovens se apropriaram de elementos indianos,
colocando-os em uma certa visibilidade. Em parte os Beatles foram responsáveis por
esse fenômeno. Nesta pesquisa, tentarei analisar até que ponto os Beatles foram agentes
importadores e exportadores populares das culturas Indianas para o ocidente, e em que
medida estes movimentos se caracterizam como hibridismos. Inventaram uma Índia?

Palavras Chave:​​ The Beatles; Indústria Cultural; Hibridismo Cultural; Imperialismo


Britânico; Culturas Indianas; Música.
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ABSTRACT

For a long time, Indian culture was in the exotic and romantic realm of Western
imagery. In the 1960s, many young people appropriated Indian elements, putting them
in a certain visibility. In part, The Beatles were responsible for this phenomenon. In this
research, I will try to analyze in what way The Beatles were import agents and popular
exporters of Indian cultures to the West, and to what extent these movements are
characterized as culture hybridism. Did they invent an India?

Keywords: ​The Beatles; Cultural Industry; Cultural Hybridism; British Imperialism;


Indian cultures; Music.
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SUMÁRIO
SUMÁRIO 7
1.1 Contexto histórico 11
1.2 As mudanças Culturais da "Era de Ouro do Capitalismo" 15
1.2.1 A juventude 15
1.3 Walter Benjamin, Theodor Adorno e Horkheimer e como pensar a cultura de
massas 17
1.3.1 Adorno, Horkheimer e a "Indústria Cultural" 19
1.4 A beatlemania 23
1.4. As repercussões da Beatlemania 28
1.5 O que é possível entender a respeito da Beatlemania? 30
2.1 Como compreender as culturas 33
2.1.1 Diferença Cultural 34
2.1.2 Negociação 36
2.1.3 Entrelugar 37
2.2 O Império britânico e a Índia 39
2.2.1 O que é imperialismo? 39
2.2.2 Os modos de ação do imperialismo 42
2.4 Então existe uma cultura indiana? 49
3.1. Como se deu o encontro dos Beatles com a Índia? 52
3.2 Como compreender as culturas indianas nos Beatles? 56
3.2.1 Norwegian Wood 56
3.2.2 Love You To 58
3.2.3 Within you Without You 60
3.3 Os ruídos do encontro entre The Beatles e Índia 61
Bibliografia 65
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INTRODUÇÃO

Desde que se iniciou a troca de informações culturais, econômicas e intelectuais,


entre o mundo ocidental e oriental, elementos dessas culturas são introduzidas dentro de
seus respectivos povos - do gigantesco império britânico aos reinos que constituíam o
que hoje é a Índia.
O que me motivou neste projeto monográfico foi, em primeiro lugar,
compreender uma cultura que não conheço e busco entender mais sobre. Um conflito
entre Ocidente e Oriente que acontece há séculos. Em segundo lugar, a paixão
incondicional que tenho pela música, e mais ainda por sua história, em especial um
período muito peculiar do século XX: os movimentos do "poder jovem" nos anos 50 e
60. E por último, como aconteceu a disseminação da cultura popular entre a juventude
da época, através de personalidades emblemáticas como Elvis Presley, James Dean,
Marlon Brando, Allen Ginsberg, Jack Kerouac, Bob Dylan nos EUA, e por fim os
Beatles no Reino Unido.
Os Beatles foram um conjunto musical tão influente no cenário mundial que se
tornaram capazes de usar o poder cultural e midiático para popularizar a cultura oriental
(em especial a indiana que busco abordar neste projeto) para grande parte do planeta.
Seja no corte de cabelo, indumentária, culinária, religião ou na música.
Julgo a relevância deste tema, devido aos fatos que levaram a um momento da
história do mundo ocidental no séc. XX (em específico entre os anos 60 e 70), que
envolvem uma aproximação da cultura ocidental e oriental (Índia) através dos Beatles.
Relevante, pois, foi neste momento em que se quebrou a visão do oriente no ocidente
como meramente "exótico". Ou podemos ler esse fenômeno de um modo distinto?
Outro ponto de destaque é a influência que a cultura pop (em especial os
Beatles), teve na vida em uma geração de jovens que se reflete até hoje. Possibilitando a
criação e adaptação de novas expressões artísticas, religiosas e culturais como tal
intensidade nunca tinha se visto, em que de uma hora para outra, pessoas começaram a
9

se vestir igual, usar o mesmo corte de cabelo e mudar a sua filosofia de vida. Um
impacto global entre pessoas de diversas culturas e países, quem sabe se possa dizer um
o início da globalização como conhecemos? Em um momento em que havia uma
mudança muito rápida de diversas áreas da sociedade: econômica, política e cultural.
Tendo em vista do que foi posto acima, dividi este trabalho monográfico em três
capítulos: (1) Observei o processo da beatlemania a partir de um olhar histórico e
filosófico; tendo como “Norte” indústria cultural de Adorno e Horkheimer, junto com o
pensamento sobre arte de Walter Benjamin. (2) Apresentei o “funcionamento” da
cultura indiana aliada ao pensamento filosófico (e histórico) dos estudos culturais
pós-coloniais, como Edward Said e Homi Bhabha, tendo sempre como linha de
horizonte a perspectiva de hibridismo cultural e do orientalismo. Por fim, (3) entre na
pergunta que organiza esse texto: seriam os Beatles agentes importadores/exportadores
da cultura indiana para o ocidente? Inventaram uma Índia?
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CAPÍTULO 1 - QUAIS FORAM AS DIMENSÕES DA


BEATLEMANIA?

No dia 4 de março de 1966 a revista britânica ​London Evening Standard


publicou um artigo, intitulado "Como Vive Um Beatle? John lennon Vive Assim", no
qual estava escrito:
O cristianismo vai acabar. Vai desvanecer e encolher. Não precisamos
discutir isso; sei que estou certo e será prova do que estou certo.
Somos mais populares que Jesus agora. Não sei qual dos dois vai
acabar primeiro - o rock - 'n' - roll ou o cristianismo. Jesus foi um cara
legal, mas seus discípulos eram obtusos e banais. Foi a distorção deles
que arruinou a coisa pra mim. (Apud NORMAN, 2018, p. 77)

Essa icônica e polêmica entrevista, foi concedida pelo ex-beatle John Lennon
reflete a gigantesca popularidade atingida pelos Beatles, chamada por vários jornais da
época de beatlemania. Em sua entrevista, Lennon compara a popularidade da banda ao
cristianismo. Os Beatles haviam se tornado uma "religião", nunca na história um grupo
musical havia conseguido alcançar o interesse de tantos jovens de diversas partes do
mundo, e seguidores tão devotos. A banda se tornou um sucesso mundial,
permanecendo 3​ 9 semanas no topo das paradas com álbum de estreia ​Please Please Me.
Todos queriam usar o mesmo corte de cabelo, usar as mesmas roupas e o mais
importante: queriam ouvir suas músicas sem parar.
Posto isso, e pensando sobre a enorme popularidade dos Beatles: Quais foram as
dimensões da popularidade dos Beatles? Para entender tal popularidade, é preciso
analisar a beatlemania como consequência de um período considerado "A Era de Ouro
do Capitalismo", o contexto histórico que permitiu o surgimento da cultura jovem (e
também da própria juventude) e da própria cultura de massas. Esse conceito é abordado
nos manuscritos sobre a "Arte na Era da Reprodutibilidade Técnica" e "A Dialética do
Esclarecimento" dos filósofos alemães Walter Benjamin, Theodor Adorno e
Horkheimer que dissertam a respeito da mudança da arte no capitalismo durante o
século XX, tratando especialmente do período que vai até o começo de sua segunda
11

metade. Essa parte do trabalho, também pretende abordar a própria beatlemania,


fazendo relações com o capítulo específico "A Indústria Cultural" de Adorno, e assim
compreender por que os Beatles alcançaram tão grande sucesso, e como se deu a
formulação da sua identidade diante dos shows e da mídia. Para isso também será feita
uma análise de suas músicas durante o auge da beatlemania traçando as influências e os
influenciados pelos integrantes da banda. É importante ressaltar que o recorte da
beatlemania feito neste Capítulo, se dará apenas do início da carreira, até antes do álbum
Rubber Soul em que se dá de fato houve o primeiro contato com a música indiana.

1.1 Contexto histórico

Em Maio de 1945, era assinado o tratado de rendição incondicional da


Alemanha: as forças do Exército Vermelho haviam marchado para Berlim, marcando a
vitória dos Aliados na Europa. No entanto, com a vitória surge um questionamento no
lado vencedor: qual seria o modelo econômico e ideológico que regeria o continente
europeu a partir daquele momento? Dessa maneira, se chega à um "consenso"
diplomático: o continente seria dividido em duas metades - uma socialista ao Oriente,
regida pela URSS; e outra capitalista ocidental, regida pelos EUA que ao fnal da 2ª
Guerra se consolidaram hegemônicos na economia ocidental que neste momento já
operava a pleno vapor, como mostra Aloísio Teixeira:
A recordação da I Guerra Mundial, ainda muito viva na lembrança de
todos, fez com que se antecipassem os gastos de consumo; e o efeito
multiplicador do aumento da demanda agregada elevou o PNB de US$
90 bilhões em 1939 para US$ 124 bilhões em 1941. Essa aceleração
do crescimento manteve-se, depois de dezembro de 1942, quando os
Estados Unidos entraram na guerra. O gasto público, em particular,
continuou a crescer, chegando a quase US$ 90 bilhões em 1944 e
permitindo a continuidade da expansão, mesmo quando a capacidade
ociosa já se havia esgotado e a economia americana operava próxima
ao pleno emprego. (TEIXEIRA, 1999, p. 178)
12

1
Foi na conferência de Bretton Woods (1944) que se estabeleceu o padrão-ouro -
divisas baseadas no dólar e de um sistema de taxas de câmbio fixas, uma política
monetária internacional, resultando na criação do Banco Internacional de Reconstrução
e Desenvolvimento, do Fundo Monetário Internacional, e a proposta da Organização de
Comércio Internacional (precursora do GATT). Ainda seria discutida a necessidade de
políticas intervencionistas do Estado, para a existência de uma economia liberal
internacional. Deste modo se iniciaria o modelo econômico keynesiano de pleno
emprego, que possibilitaria o ​welfare-state n​ os países desenvolvidos.
Neste período, políticos, autoridades e grandes empresários já não consideravam
a volta ao livre mercado original. Agora, países dedicados ao liberalismo econômico
precisavam direcionar sua economia para um modelo que, anteriormente era rejeitado
como "socialista". Além disso, por conta da “ameaça comunista”, ocorreu uma junção
entre liberalismo econômico e democracia social, cooptando a classe trabalhadora para
o sistema, proporcionando-a um certo bem estar - mas ainda dentro do sistema. Seriam
feitos, então, substanciais "empréstimos" dos planejamentos econômicos realizados na
URSS, formando assim uma economia de mercado mista e direcionada pelo
keynesianismo.
Foi também em Bretton Woods que foi concedido ao Reino Unido um
empréstimo de US$ 3,75 bilhões para ajudar o país a atravessar os anos pós-guerra
(mediado pelo próprio Maynard Keynes). Algo que não teria efeito, como é explicado
pelo economista inglês John Galbraith:
A libra esterlina havia sido sujeita a um rígido a um controle cambial
durante a guerra. Era uma das condições básicas do empréstimo que
ela se torna-se total e livremente conversíveis em dólares (...) E assim,
todos que tivessem acumulado reservas de libras inconversíveis - ou
seja, especuladores, os operadores cambiais, os bancos - acorreram
jubilosos para trocar seu dinheiro em dólares. O empréstimo foi
consumido, literalmente, numa questão de dias. (GALBRAITH, 1973,
p. 224)

1
Sistema que foi extinto em 1971, durante o governo do presidente estadunidense Richard Nixon dando
início ao sistema de taxas de câmbio flutuantes.
13

Isto levaria por sua vez a um projeto de reconstrução para a Europa ocidental: o
Plano Marshall. Projeto este que ajudou significativamente na assistência técnica e
2
econômica, que teve um investimento de US$ 12 bilhões , dinheiro este usado na
reconstrução da indústria, moradia e economia. No Reino Unido, por exemplo, a
indústria tinha sido destruída após os diversos ataques a bomba realizados pela
Alemanha Nazista, cidades foram devastadas deixando milhares de pessoas sem casa e
desempregadas logo após o fim da Guerra.
Nos anos que se seguiram a 1945, a economia dos países ocidentais,
desenvolvidos ao contrário do que se esperava, cresceu de maneira explosiva, não só
atendendo puramente aos grandes empresários mas ao bem-estar da população como um
todo, dando início para o que o historiador inglês Eric Hobsbawm chama de "Era de
Ouro do Capitalismo":
(...) sobretudo, para início de conversa os economistas começavam a
perceber que o mundo, em particular o mundo do capitalismo
desenvolvido, passará por uma fase excepcional de sua história; talvez
uma fase única. Buscavam nomes para descrevê-la: "os trinta anos
gloriosos" dos franceses (​les trente glorieuses)​ , a Era de Ouro de um
quarto de século dos anglo-americanos (Marglin & Schor,1990). O
dourado fulgiu com mais brilho contra o pano de fundo baço e escuro
das posterioridades Décadas de Crise. (HOBSABAWM, 1994, p. 225)

Isto provou o sucesso (pelo menos à curto prazo) das políticas intervencionistas,
de pleno emprego e consumo, implementadas em um estado de bem estar-social.
A gigantesca explosão da economia ocidental, como um todo no pós-guerra, foi
um reflexo ainda maior do que vinha acontecendo nos EUA pré-1945. Ainda com as
políticas econômicas de Bretton Woods e do sucesso do Plano Marshall. Um exemplo
disso foram as habitações que, nesse momento, eram construídas milhares de moradias
para as massas. No Reino Unido houve a maior escassez de casas do século XX. Com a
vitória do partido Trabalhista no país em 1945, o programa de moradias públicas

2
OFFICIE OF THE HISTORIAN. ​Marshall plan, 1948​​. Disponível em:
<https://history.state.gov/milestones/1945-1952/marshall-plan>. Acesso em: 08 abr. 2018.
14

encomendou 750 mil lares para serem construídos. Os próprios Beatles, por exemplo,
foram criados em casas populares construídas pelo governo britânico, para reconstrução
de bairros operários de Liverpool.
Com o aumento da produção, foi possível empregar ao longo dos anos os
milhares de desempregados que haviam na Europa. Em essência, agora era possível um
3
cidadão viver como muitos ricos, tinham vivido no tempo de seus pais . Essa mudança
industrial funcionou, tendo em vista que três-quartos das exportações do mundo eram
realizadas por países da Europa Ocidental.
O ​boom ​econômico do pós-guerra também foi proporcionado pela acelerada
Revolução Tecnológica que ocorreu na Era de Ouro, houve uma enorme evolução em
pesquisas (principalmente por causa do esforço para vencer a II Guerra), produtos
revolucionários, como materiais sintéticos, conhecidos como "plástico", computador,
televisão e os próprios LPs. Essas mercadorias transformaram drasticamente o cotidiano
do "mundo rico", a própria alimentação foi mudada graças a revolução verde (pesquisa
de agrotóxicos, mecanização do campo, etc...), que mudou as "geladeiras" na Europa e
nos EUA.
A revolução tecnológica trouxe também a mecanização de atividades que eram
regidas por muitos trabalhadores, que, como mostra o historiador inglês Eric
Hobsbawm, mudou as a relação entre o sistema e as próprias pessoas. "A grande
característica da era Era de Ouro era precisar de cada vez mais maciços investimentos e
cada vez menos gente, a não ser consumidores (...) Os seres humanos só eram essenciais
para tal economia num aspecto: como compradores de bens e serviços." (HOBSBAWM,
1991, p. 262). Como as pessoas haviam se tornado menos pobres, menos precisavam
gastar com produtos essenciais como comida e, podiam esbanjar em produtos de "luxo"

3
Este bem estar-social de pleno funcionou até o fim da Era de Ouro (1973). Os efeitos da decadência
deste sistema são ilustrados no filme do cineasta inglês Ken Loach "Eu, Daniel Blake".
15

4
(como prevista na lei de Engel ). O consumo das massas foi um dos o principais
motores do sistema capitalista vigente, sem ele a economia que movia o ​welfare state
dos países desenvolvidos não seria possível.

1.2 As mudanças Culturais da "Era de Ouro do Capitalismo"

Ao contrário do que vinha acontecendo nos anos anteriores do grande ​boom


econômico, o capitalismo parecia ter sido reformado nos países desenvolvidos, a ponto
de ficar irreconhecível, problemas como desemprego, pobreza, sistema previdenciário,
analfabetismo e até o próprio colapso do próprio sistema, pareciam ter desaparecido. O
capitalismo havia sido reformado a ponto de ficar irreconhecível. (HOBSBAWM, 1994)
Desta maneira, houve uma mudança social dentro dos países desenvolvidos, que
em meados de 1960 tinham atingido uma taxa de desempregos que estacionou em 1,5%.
O cenário de economia estável de "pleno emprego" nos países desenvolvidos erguia
uma classe média, que já constituía maior parte da Europa ocidental nos anos 60. Foram
os filhos da classe média gerada no pós guerra, "a geração do ​baby boom", que fizeram
parte da criação dos movimentos de cultura jovem, e também da própria juventude. Em
grande maioria estudantes da crescente popularização das universidades.

1.2.1 A juventude

Como dito no tópico anterior, as mudanças sociais da Era de Ouro formaram


uma classe média relativamente grande e com um bem estar bastante alto. Todavia
ocorreu algo de especial nessa nova geração de jovens, o surgimento de uma cultura

4
Lei econômica descrita pelo estatístico alemão Ernst Engel (1821-1896), que quanto mais pobre a
população, mais precisa gastar em produtos essenciais como comida. Deste modo quanto mais rica
poderia gastar com produtos menos essenciais.
16

popular. Um grupo da sociedade que buscava algo diferente do que foi imposto para
seus pais puritanos, e guiados por uma "gerontocracia".
Antes deste momento a "juventude" era vista apenas como um estágio
preparatório para a fase adulta. Esse grupo que protagonizou os acontecimentos
políticos mais dramáticos das décadas de 60 e 70, também financiaria a indústria
fonográfica do mesmo período - sobretudo o ​rock. O ​rock foi tão importante para a
indústria, que - quando surgiu em 1955 - três anos mais tarde subiu 216% o número de
discos vendidos. Além disso, esse estilo musical simbolizava a influência cultural que
caminhava junto com a política e econômica que os EUA tinham (e ainda tem) sobre os
países que exerciam uma economia de mercado.
A juventude surgiu como camada social separada, inspirado por um espírito de
rebeldia, um fenômeno que provavelmente não tinha paralelo para ser feito com outro
momento da história. Este espírito jovem está representado no poema "O Uivo", do
escritor ​beatnik ​Allen Ginsberg, que narra os jovens que pensaram em descobrir o
mundo que está a sua volta. O reflexo de uma geração que saiu da casa de seus pais e
decidiu enxergar além do ​american way of life.​ Como é mostrado em alguns versos do
poema de Ginsberg:
que dirigiram 72 horas através do país para descobrir
se eu tinha uma visão ou se você tinha ou
se ele tinha uma visão para descobrir a Eternidade,
(...)
que num protesto triste virar apenas uma
mesa simbólica de pingue-pongue, descansando
um pouco em catatonia,
(...)
Estou com você em Rockland nos meus sonhos
você caminha gotejando de uma viagem marinha
pela estrada que atravessa a América em lágrimas…
até a porta da minha casa na noite ocidental (GINSBERG, p. 5)

A cultura jovem só foi possível por conta da prosperidade e o pleno emprego da


Era de Ouro. Agora jovens não precisavam mais se preocupar em trabalhar aos 14 anos
de idade, da mesma forma que no resto da economia baseada no consumo. Logo a
17

indústria cultural (conceito que será abordado no próximo tópico) observou um mercado
em potencial para consumidores, que por sua vez podiam gastar em produtos vistos
como “desnecessários”, diferente do que era imposto por seus pais (LP's, roupas e
filmes). Buscavam por algo diferente, não por coincidência, neste mesmo momento
surgiram personalidades como: James Dean, Marlon Brando, Buddy Holly, Elvis
Presley Bob Dylan e os Beatles.
Por fim a juventude, que moldou a revolução cultural que aconteceu nesse
período mudou desde o meio de lazer, costumes e as artes comerciais. De fato os jovens
tinham um papel fundamental na formação dos anos 60 e 70 e seriam protagonistas
desta era de revoluções e choques culturais que fora este período peculiar do séc XX.
Dessas mudanças, pode-se citar os novos estilos de musicas que foram criados ou
interpretações de gêneros mais antigos como o Blues, que se transformou no ​rock;​ e​ até
mesmo protestos de estudantes que ocorreram em praticamente todo mundo ocidental
no ano de 1968 e sem a menor sombra de dúvidas ficariam marcados na história.

1.3 Walter Benjamin, Theodor Adorno e Horkheimer e como pensar a


cultura de massas

Ainda escrito em 1936, Walter Benjamin, em seu ensaio “A obra de arte na era
de sua reprodutibilidade técnica”, aborda a forma como a Arte mudou com o aumento
acelerado da qualidade de sua reprodutibilidade. Um processo que vinha acontecendo
desde que surgiu a prática de imitar o que outros homens faziam, até a reprodução
técnica do som que aconteceu no fim do século XIX. Para Benjamin, a reprodução da
voz era um padrão de qualidade tão grande que se inseriu de forma artística através do
cinema falado e da música.
A reprodução técnica do som iniciou-se no fim do século passado.
Com ela, a reprodução técnica atingiu tal padrão de qualidade que ela
não somente podia transformar em seus objetos a totalidade das obras
de arte tradicionais, submetendo-as a transformações profundas como
conquistar para si um lugar próprio entre os procedimentos artísticos.
18

Para estudar esse padrão, nada é mais instrutivo que examinar como
suas duas funções - a reprodução da obra de arte e a arte
cinematográfica repercutem uma sobre a outra. (BENJAMIN, 1994,
p.1)

Também é abordado outro ponto importante: neste período há um


distanciamento da Arte para com os rituais religiosos e muitas vezes mágicos para qual
tinha sido “originalmente” surgida. Cada vez mais a arte é colocada apenas para a
reprodução. A medida que há um distanciamento do ritual, se diminui o valor de culto
sobre as obras, aumentando o valor de exposição, também tendo um acréscimo na
ocasião em que elas (as obras) são expostas. Benjamin ainda se atenta quão a sociedade
desta época é uma oposição à arte da “pré-história”, devido a forma e quantidade que é
exposta nesse trecho:
A exponibilidade de uma obra de arte cresceu em tal escala, com os vários
métodos de sua reprodutibilidade técnica, que a mudança de ênfase de um
pólo para outro corresponde a uma mudança qualitativa comparável à que
ocorreu na pré- história. Com efeito, assim como na pré-história a
preponderância absoluta do valor de culto conferido à obra levou-a a ser
concebida em primeiro lugar como instrumento mágico, e só mais tarde como
obra de arte, do mesmo modo a preponderância absoluta conferida hoje a seu
valor de exposição atribui-lhe funções inteiramente novas, entre as quais a
"artística", a única de que temos consciência, talvez se revele mais tarde
como secundária. (...) Os temas dessa arte eram o homem e seu meio,
copiados segundo exigências de uma sociedade cuja técnica se fundia
inteiramente com o ritual. Essa sociedade é a antítese da nossa, cuja técnica é
a mais emancipada que jamais existiu. Mas essa técnica emancipada se
confronta com a sociedade moderna sob a forma de uma segunda natureza,
não menos elementar que a sociedade primitiva, como provam as guerras e as
crises econômicas. Diante dessa segunda natureza, que o homem inventou,
mas há muito não controla, somos obrigados a render, como outrora diante da
primeira. Mais uma vez, a arte põe-se a serviço desse aprendizado.
(BENJAMIN, 1994, p. 5)

O autor também afirma que a cada vez a diferença entre público e autor está
mais tênue, citando o exemplo da coluna dos jornais da época "cartas dos leitores", em
vista disso o leitor está cada vez mais próximo de se tornar um escritor. Todavia a
inserção das massas no processo é bloqueada neste processo devido ao desemprego.
Por fim, é abordado a não existência da autenticidade nessa época e com a
melhoria da reprodutibilidade, o original e a reprodução se tornaram praticamente
19

irreconhecíveis, podendo também aproximar o indivíduo da obra, tornando cada vez


mais irresistível possuir o objeto (a obra de Arte) para mais perto. Isto está representado
na Aura, um conceito desenvolvido por Benjamin que simboliza o paradigma artístico
de alcançar a perfeição e autenticidade. A Aura é quebrada por conta da difusão da Arte
dentro dos movimentos de massas, como mostra o trecho:
Em suma, o que é a aura? É uma figura singular, composta de elementos
espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante por mais perto
que ela esteja. Observar, em repouso, numa tarde de verão, uma cadeia de
montanhas no horizonte, ou um galho, que projeta sua sombra sobre nós,
significa respirar a aura dessas montanhas, desse galho. Graças a essa
definição, é fácil identificar os fatores sociais específicos que condicionam o
declínio atual da aura. Ela deriva de duas circunstâncias, estreitamente ligadas
à crescente difusão e intensidade dos movimentos de massas. Fazer as coisas
"ficarem mais próximas" é uma preocupação tão apaixonada das massas
modernas como sua tendência a superar o caráter único de todos os fatos
através da sua reprodutibilidade. Cada dia fica mais irresistível a necessidade
de possuir o objeto, de tão perto quanto possível, na imagem, ou antes, na sua
cópia, na sua reprodução. (BENJAMIN, 1994, p. 3)

Com o surgimento da arte direcionada para as massas (como por exemplo os


filmes do cineasta inglês Charlie Chaplin), a Arte se tornou uma mercadoria e ao
mesmo tempo um fetiche da população. Uma população que busca a distração e
diversão que a Arte proporciona, milhões de pessoas eram captadas pela Arte
reprodutível. Benjamin tem uma perspectiva de que pode existir um papel importante na
cultura de massas para a política revolucionária, no entanto não negando a forma como
a cultura de massas pode ser usada por um estado autoritário (contra revolucionário).

1.3.1 Adorno, Horkheimer e a "Indústria Cultural"

O livro ​Dialética do Esclarecimento,​ escrito pelos filósofos Max Horkheimer e


Theodor Adorno, aborda um novo conceito (que já foi usado anteriormente neste
trabalho): a indústria cultural. Este conceito é uma nova reinterpretação do que era antes
chamada de "cultura de massas", Horkheimer e Adorno observam um padrão na arte
20

massificada que se assemelha a uma linha de montagem industrial e gera mais dinheiro
do que diversos setores industriais.
A esquematização do procedimento aparece em os produtos
mecanicamente diferenciados revelarem-se, afinal de contas, como
sempre iguais. Que a diferença entre a série Chrysler e da General
Motors seja substancialmente ilusória disso sabem até as crianças
"vidradas" por elas. As qualidades e as desvantagens discutidas pelos
conhecedores servem tão só para manifestar uma aparência de
concorrência e possibilidade de escolha. As coisas não caminham de
modo diverso com as produções da Warner Brothers e da MGM.
Porém, mesmo entre os tipos mais caros e menos caros da coleção de
modelos de uma mesma firma, as diferenças cada vez mais se reduzem:
nos automóveis, a variação no número de cilindros, no tamanho, na
novidade dos gadgets; nos filmes, a diferença no número de astros, na
fartura dos meios técnicos, mão-de-obra,figurinos e decorações, no
emprego de novas formas psicológicas. A medida unitária do valor
consiste na dose de conspicuous production, de investimento ostensivo.
A diferença de valor orçado pela indústria cultural não tem nada a ver
com a diferença objetiva, com o significado dos produtos. Mesmo os
meios técnicos tendem a uma crescente uniformidade recíproca. A
televisão tende a uma síntese do rádio e do cinema, retardada enquanto
os interessados ainda não tenham conseguido um acordo satisfatório,
mas cujas possibilidades ilimitadas prometem intensificar a tal ponto o
empobrecimento dos materiais estéticos que a identidade apenas
ligeiramente mascarada de todos os produtos da indústria cultural já
amanhã poderá triunfar abertamente. (ADORNO, HORKHEIMER,
1995, p. 102)

A arte se tornou tão reprodutível quanto acessórios que são produzidos nas
fábricas, chegando a alcançar milhões de cópias e uma única obra de arte e se
mercantilizando. Para os autores essa mercantilização resulta na própria destruição da
arte, pois ocorre um processo de reificação da mesma, o que impede que a arte exerça
seu papel principal segundo Adorno: o exercício do pensamento, estranhamento e
experiência a obra. A arte se torna entretenimento, e passa a ser um instrumento
poderoso de manipulação da burguesia contra-revolucionária, transferindo a arte para a
esfera do consumo.
Os interessados adoram explicar a indústria cultural em termos
tecnológicos. A participação de milhões em tal indústria
imporia métodos de reprodução que, por seu turno, fazem com
21

que inevitavelmente, em numerosos locais, necessidades iguais


sejam satisfeitas com produtos estandardizados. O contraste
técnico entre poucos centros de produção e uma recepção
difusa exigiria, por força das coisas, organização e planificação
da parte dos detentores(...) Mas não se diz que o ambiente em
que a técnica adquire tanto poder sobre a sociedade encarna o
próprio poder dos economicamente mais fortes sobre a mesma
sociedade. A racionalidade técnica hoje é a racionalidade do
próprio domínio, é o caráter repressivo da sociedade que se
auto aliena. Automóveis, bombas e filmes mantêm o todo até
que seu elemento nivelador repercute sobre a própria injustiça a
que servia. Por hora a técnica da indústria cultural só chegou à
estandardização e à produção em série, sacrificando aquilo pelo
qual a lógica da obra se distinguia da lógica do sistema social.
(ADORNO, HORKHEIMER, 1995, p. 100)

Horkheimer e Adorno falam sobre a quebra da "originalidade" nas obras de


"arte" produzidas pela indústria cultural, em que nada de realmente de novo é
produzido. É apenas uma receita que a indústria usa para parecer que houve uma
criação, mas na verdade são praticamente iguais à obra que foi produzida anteriormente.
Por sua vez, a publicidade se tornou um dos pontos mais relevantes para a produção da
arte dentro da indústria cultural, às vezes mais do que as próprias obras a ponto de
serem gastos milhões com propaganda para a venda do produto.
O sempre igual ainda regula a relação com o passado. A novidade do
estágio da cultura de massa em face do liberalismo tardio está na
exclusão do novo. A máquina gira em torno do seu próprio eixo.
Chegando ao ponto de determinar o consumo, afasta como risco inútil
aquilo que ainda não foi experimentado. Os cineastas consideram com
suspeita todo manuscrito atrás do qual não encontrem um tranqüilizante
best-seller. Mesmo por isso sempre se fala de idéia, novidade e
surpresa, de alguma coisa que ao mesmo tempo seja arquiteto e nunca
tenha existido. Para isso servem o ritmo e o dinamismo. Nada deve
permanecer como era, tudo deve continuamente fluir, estar em
movimento. Pois só o triunfo universal do ritmo de produção e de
reprodução mecânica garante que nada mude, que nada surja que não
possa ser enquadrado. Acréscimos ao inventário cultural experimentado
são perigosos e arriscados. Os tipos formais cristalizados, como os
sketch, os contos, os filmes de tese, as cançonetas são a média.
(ADORNO, HORKHEIMER, 1995, p. 111)
22

Por fim, Adorno e Horkheimer adotam uma perspectiva bastante crítica sobre o
que a partir de então se chamou indústria cultural. Para eles, a massificação da cultura
não levou a inclusão das massas na cultura, mas levou a decadência dela. Se tornando
5
apenas um fetiche sobre a mercadoria consumida pelo indivíduo despersonalizado,
fruto da mercantilização das obras de arte, como é mostrado nas citações: “Na indústria
cultural o indivíduo é ilusório não só pela estandardização das técnicas de produção. Ele
só é tolerado à medida que sua identidade sem reservas com o universal permanece fora
de contestação" (ADORNO, HORKHEIMER, 1995, p. 128). E mais:
Tudo tem valor somente enquanto pode ser trocado [...]. O valor de uso
da arte, o seu ser, é para os consumidores um fetiche, a sua valoração
social, que eles tomam pela escala objetiva das obras, torna-se o seu
único valor de uso, a única qualidade de que usufruem. Assim o caráter
de mercadoria da arte se dissolve mesmo no ato de se realizar
integralmente. Ela é um tipo de mercadoria, preparado, inserido,
assimilado à produção industrial, adquirível e fungível, mas o gênero de
mercadoria arte, que vivia do fato de ser vendida, e de, entretanto, ser
invendável, torna-se - hipocritamente - o absolutamente invendável
quando o lucro não é mais só a sua intenção, mas o seu princípio
exclusivo. (ADORNO, HORKHEIMER, 1995, p. 131).

Entretanto, qual a relação deste processo com a beatlemania, que é o principal


tema de estudo deste capítulo? Adorno e Horkheimer dissertam sobre a mudança da arte
que ocorreu antes da "nova" cultura de massas dos anos 50 e 60. O que tinha sido
observado antes desse período, se tornou mais intrínseco na sociedade. Desde a técnica
de reprodutibilidade, até o alcance da Arte dentro da população e sua mercantilização e
fetichização. O conceitos apresentados acima podem ajudar na interpretação do
acontecimento da beatlemania nos anos 60.

5
O conceito de "fetiche" utilizado neste contexto é o mesmo desenvolvido por Karl Marx de relação
pessoal com os bens de consumo, ou qualquer outra mercadoria.
23

1.4 A beatlemania

Fãs enlouquecidas gritando, pedidos de casamento, cartazes com fotos de John


Lennon e Paul McCartney, filas para comprar ingressos, choros durante o show,
arrancar de cabelos, etc... O jornal britânico "Daily Maior" conseguiu resumir este
momento em uma palavra: "Beatlemania", que apareceu na manchete do jornal (ver
figura 1). Por algum motivo os Beatles faziam sucesso com uma enorme quantidade de
pessoas, mas o que fazia essa banda tão especial?
Para começar a responder essa pergunta, é preciso voltar aos primórdios dos
Beatles: 1961. Apenas um ano antes do lançamento do primeiro single da banda "​Please
Please Me"​ (Lado A) e “​Love Me Do”​ (Lado B), não reconheceríamos muito bem os
integrantes. Primeiro não veríamos Ringo Starr na bateria, mas na verdade Pete Best.
Segundo, o visual "terno e gravata" não era usado pelos rapazes, na época optaram pelo
Teddy Boy (​calças e jaqueta de couro pretas, figura 2), claramente uma influência
cultural vinda dos EUA, que após o fim da 2ª Guerra Mundial espalhava por toda a
Europa seu modelo de nação, além do modelo industrial (citado no tópico 1.1), a cultura
estadunidense foi difundida nesses mesmos países, do próprio Rock-'n'- Roll, Blues,
Folk e etc. Apesar de já usarem o típico corte de cabelo em formato de "tigela", os
Beatles viriam realmente a mudar após o encontro com o empresário Brian Epstein.
(O'Dell, 2017)
24

Figura 1

​ Figura 2 ​ ​ ​Figura 3
A banda já fazia um relativo sucesso nas casas de show de Liverpool e
Hamburgo. Apresentavam um som diferente, uma mistura da força do ​Rock-`N`-Roll
bruto dos anos 50, com a harmonia dos grupos femininos, além de contarem com as
incríveis vozes de Lennon e McCartney. Foi esse o potencial encontrado por Brian
Epstein, que acreditou que podia trazer os rapazes ao sucesso, que logo ofereceu um
contrato de 5 anos com o grupo com a promessa de levar fama e dinheiro. No entanto,
"sugeriu" algumas modificações: teriam que parar de fumar e comer durante os shows, e
começar a usar ternos. Além disso, John Lennon, a partir daquele momento, teria que
esconder que era casado, para poder não desapontar as fãs. Chegando ao ponto de ter
que esconder sua aliança em dias de shows e aparições públicas. (O'Dell, 2017)
25

A priori, o grupo não aceitou com tanta tranquilidade, principalmente John


lennon, como é mostrado na biografia "John Lennon: A vida":
No início John ficou apavorado só de pensar que precisava abrir mão da
persona rebelde que havia envergado com tanto orgulho durante
aqueles anos todos e passar a ser tratado, enfeitado e aparado como
propunha Brian. (NORMAN, 2007 p. 259)

John fez uma breve tentativa para organizar uma resistência, mas,
quando não encontrou nenhum apoio, o princípio cedeu ao
pragmatismo. "[Brian nos disse] 'Olhem, se vocês botarem um terno
vão ganhar muito dinheiro' e todo mundo queria um terno elegante…
queríamos um terno que servisse para usar também fora do palco. 'Sim,
cara, tudo bem, eu visto um terno… Visto até a porra de um balão se
alguém me pagar. (NORMAN, 2007 p. 259)

Decerto essas mudanças foram de extrema importância para o sucesso comercial


da banda dentro da indústria musical, pois ao adotar esse visual foram aceitos dentro da
"atmosfera showbiz" (figura 3), e participaram de programas de rádio, televisão, etc...
O que levou os Beatles (representado de certo modo os jovens) a entrarem no meio em
que a sociedade britânica majoritariamente puritana estava e ditava as regras.
Os Beatles também romperam com os valores tradicionais ingleses, como por
exemplo o modo de falar dos integrantes, o sotaque "​scouse", d​ a região de Liverpool​.
Antes desse momento era praticamente obrigatório para um artista de sucesso falar com
o sotaque ​Cockney,​ f​ alado pela aristocracia Londrina. É importante ressaltar também
que todos os membro da banda faziam parte da classe operária britânica (talvez apenas
John Lennon, que vivia entre a classe média e operária). Isto, por sua vez, também
marcava uma quebra significativa na barreira de classes no Reino Unido, o que já vinha
acontecendo por todo mundo ocidental desenvolvido (citado no tópico 1.1). Afinal,
tinham sido criados para isso, quando crianças fizeram parte do programa do governo
britânico para colocar jovens "inteligentes" em escolas particulares e cursarem mais
tarde a universidade. (Norman, 2007)
Um aspecto importante que tornava os Beatles especiais naquele momento era a
sua autenticidade ao se portar na frente do público. Constantemente realizavam piadas e
26

respostas verdadeiras, isto de certa forma trazia uma proximidade ainda maior com os
jovens, trazendo um "ar" tênue de rebeldia da banda. Isto está explícito, por exemplo, no
show em que fizeram na presença de rainha do Reino Unido em que John lennon disse a
famosa frase: "Para o nosso último número, eu gostaria de pedir sua ajuda. As pessoas
nos assentos mais baratos podem bater palmas. E o restante da plateia podem apenas
chacoalhar suas jóias".
É possível também dizer que a beatlemania também é fruto da acelerada
revolução tecnológica que vinha acontecendo desde o fim da 2ª Guerra Mundial
(abordado no tópico 1.1), além da própria invenção da guitarra elétrica que
transformaria o Blues e levava consequentemente a criação do ​Rock-'N'-Roll. ​Houve
uma melhora significativa na qualidade técnica e na quantidade dos discos produzidos
(mais do que já tinha acontecido décadas antes), desta forma o conceito de "Aura" de
Walter Benjamin é aplicado a esta situação.
Em suma, o que é a aura? É uma figura singular, composta de
elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa
distante por mais perto que ela esteja. Observar, em repouso, numa
tarde de verão, uma cadeia de montanhas no horizonte, ou um galho,
que projeta sua sombra sobre nós, significa respirar a aura dessas
montanhas, desse galho. (BENJAMIN, 1994, p. 14)

Com a quebra desse conceito, a preocupação com a perfeição (isto pode ser
questionado com o aperfeiçoamento técnico, musical e lírico de algumas bandas
comercialmente bem sucedidas) gerou um conflito entre o artista que busca o seu
aperfeiçoamento e a indústria fonográfica. A experimentação não era prioritária para a
indústria. O consumo se tornou a prioridade da indústria fonográfica, a música passou a
ser uma mercadoria, algo a ser posse do indivíduo, de todo modo isto aproximou-a das
massas, tornando-a mais palpável para aqueles que não eram grandes conhecedores de
música, no caso dos anos 60 jovens que buscavam algo novo. A vista disso, os Beatles
faziam parte deste contexto de mercantilização e fetichização da música, em que era
necessário para um jovem do Reino Unido dos anos 60. Ainda é possível se fazer a
27

pergunta: de fato os Beatles em suas músicas trariam algo de novo para a estrutura
músical? A resposta é: neste primeiro momento, não. Pois o que está sendo visto neste
momento é o período pré-Índia, a vista que o que é realizado é apenas uma
reinterpretação do que já vinha sido apresentado anteriormente.
Ter um álbum da banda se tornou algo "necessário", a indústria fonográfica
estava voltada para um produto que conseguisse vender o maior número de músicas
possível. Ao mesmo tempo que iniciou o incentivo dos jovens a consumir, o que já
tinha acontecido em outros setores que tinham caráter industrial como a indústria
automobilística e tecnológica. Mais tarde os Beatles atingiram os padrões de sucesso
comercial que era buscado pela indústria fonográfica.
Outro ponto que se deve dar atenção para justificar tal popularidade é o claro
apelo para com garotas adolescentes. Ao aparecer aqueles quatro rapazes na televisão,
as jovens se interessavam e ficavam encantadas pelos pelos rapazes que viam cantando,
o que atraiu o desejo de comparar os seus discos e portanto consumir suas músicas.
Além do diferente estilo (que já tinha sido observado por Epstein), a música por si só já
tinha um apelo para jovens, tratando de temas não muito complexos como amor
adolescente ou pedidos de namoro. Os Beatles escreveram sobre daquilo que interessava
o grande público de massas. Nos versos das música ​Love Me Do, She Loves You, Please
Please Me e​ I Wanna Be Your Man é​ possível enxergar o tema adolescente que é
passado nas letras: (O'Dell, 2017)
Love, love me do
You know I love you
I'll always be true
So, please
Love me do (LENNON-MCCARTNEY, 1962)

I You don't need me to show the way, love


Why do I always have to say, love?
Me, whoa yeah, like (LENNON-MCCARTNEY, 1963)

Because she loves you


And you know that can't be bad
Yes, she loves you
28

And you know you should be glad


Oo, she loves you, yeah, yeah, yeah (LENNON-MCCARTNEY,
1963)

Todavia, musicalmente os Beatles apresentaram uma novidade: compunham


suas próprias músicas, da letra até a melodia. No início dos anos 60 era muito difícil
personalidades da músicas comporem suas próprias músicas, geralmente havia alguém
que compunha para o artista (na maioria das vezes algum produtor). (O'Dell, 2017)
Eram jovens falando sobre temas jovens, e não por acaso as músicas citadas
acima fizeram sucesso, ficando por semanas no topo das paradas britânicas. Tal como
citado no tópico 1.2.1, a indústria musical os enxergaram como potencial comercial na
nova juventude e os Beatles conseguiram interpretar o que estava acontecendo naquele
momento para atingir o público.

1.4. As repercussões da Beatlemania

A extrema popularidade dos Beatles, por sua vez, trouxe um impacto


significativo na cultura ocidental. Uma das repercussões causadas pela Beatlemania foi
a revolução que ocorreu dentro da indústria fonográfica, relacionado ao grande sucesso
comercial da banda. O sucesso do álbum ​Please Please Me f​ oi enorme, ficando 30
6
semanas no topo da ​The U.K. Album Chart Number Ones . Nunca tinha sido visto um
número tão grande de vendas em apenas um único álbum. (NORMAN, 2009)
Houve uma aproximação do público, a partir do momento que houve um
aumento no número de discos vendidos junto com a qualidade da reprodutibilidade,
como descrito por Walter Benjamin:
Fazer as coisas "ficarem mais próximas" é uma preocupação tão apaixonada
das massas modernas como sua tendência a superar o caráter único de todos
os fatos através da sua reprodutibilidade. Cada dia fica mais irresistível a
necessidade de possuir o objeto, de tão perto quanto possível, na imagem, ou
antes, na sua cópia, na sua reprodução. (BENJAMIN, 1994, p.3)

The U.K. Album Chart Number Ones ​Disponível ​em: <http://www.jpgr.co.uk/stats_no1_a.html>.


6

Acesso em: 5 nov. 2018


29

Essa aproximação fez com que de uma hora para a outra jovens de todo o Reino
Unido (e mais tarde no resto do mundo ocidental) usassem o mesmo corte de cabelo e
imitassem suas músicas. Foi a cultura de massas exibida em sua maior forma, pouco
antes antes vista.
Logo após o sucesso comercial da banda, diversos grupos musicais se deixaram
influenciar pelo "quarteto de Liverpool," tanto no estilo da música, corte de cabelo e
jeito de se vestir. Grupos que mais tarde fariam parte da "invasão britânica", como ficou
conhecida o momento em que bandas do Reino Unido fizeram sucesso nos EUA, após a
viagem dos Beatles ao país em uma apresentação histórica no programa "The ​Ed
Sullivan Show" a​ ssistido por aproximadamente 73 milhões de pessoas. (NORMAN,
2009)
Os Rolling Stones, The Kinks e The Animals, adotaram o estilo pop musical, o
visual de cabelo e terno introduzido pelos Beatles. A banda Rolling Stones, por exemplo
fez sucesso comercial pela primeira vez com um cover da música ​"I Wanna Be Your
Man". ​Mesmo nos EUA apareceram muitas bandas que se inspiraram na música do
grupo, bandas que mais tarde fariam enorme sucesso como: The Byrds e os The Beach
Boys. E ainda influenciaram, o já famoso Bob Dylan a usar a guitarra elétrica. Os
Beatles haviam entrado no âmago cultural da maior potência do globo: Os EUA.
(O'Dell, 2017)
A consequência do número gigantesco de fãs da banda, foi a necessidade de
cada vez mais lugares que tivessem capacidade para suportar o número de pessoas que
queriam ver o grupo tocar. Ao ponto de no final da carreira dos Beatles nos palcos,
terem que se apresentar em estádios. Isto por sua vez mudou a forma de se pensar um
show de ​rock​, a empresa de amplificadores "Vox", por exemplo, que produzia os
equipamentos de som para o grupo teve que fabricar amplificadores mais potentes para
uma apresentação daquela magnitude (Howard, 2016).
30

De todo modo, a beatlemania teve um impacto profundo na sociedade ocidental


a ponto de se espalhar para quase todo o mundo. A música dos Beatles podia ser
considerada mundial, fazendo shows em diversos países do mundo (Japão, EUA,
Filipinas, França, etc…). Simbolizava a crescente expressão jovem dentro da sociedade,
a essa altura era possível dizer que os Beatles eram uma força que podia influenciar
jovens de praticamente todo o mundo. (O'Dell, 2017)

1.5 O que é possível entender a respeito da Beatlemania?

A vista do que foi posto acima, é sim possível dizer que os Beatles fizeram parte
do processo de massificação da cultura, em especial na música. Atingindo dimensões
que não haviam sido imaginadas até então, influenciando muitas bandas da época, com
o seu estilo visual e musical. Portanto, fizeram parte da indústria cultural como um todo
e por sua vez é factível encaixá-los dentro da análise feita por Adorno, Horkheimer e
Benjamin, de como a arte se comporta diante de tais circunstâncias. Aspectos como
fetichização, publicidade, quebra da "Aura" e aproximação do público, aparecem na
Beatlemania como um todo. Adorno, Horkheimer e Benjamin, apesar de ter uma
perspectiva semelhante sobre o processo de massificação da Arte, apresentam
discordâncias. Para Walter Benjamin, existem aspectos bons que podem ser observados
dentro do processo de massificação. Todavia, para Adorno e Horkheimer, existem
apenas aspectos críticos dentro deste processo. Não é necessário escolher entre estas
duas perspectivas, ambas podem coexistir, pois contribuem para uma análise ampla da
cultura de massas.
Para mim, talvez, seja quase impossível dimensionar todos os impactos que a
Beatlemania causou no globo, em termos de mudanças ou ampliações da forma como a
indústria cultural se articula dentro das massas e sua perspectiva artística. Afinal, a
31

Beatlemania está ligada ao sistema e momento histórico em que se deu. A Beatlemania


não é fruto do acaso.
O que foi possível compreender a respeito do que foi estabelecido neste capítulo,
é o processo que levou a popularidade dos Beatles, através da ampliação ainda maior
das consequências da indústria cultural. Através dos moldes criados pela indústria
fonográfica, atingindo particularmente cada indivíduo que os escutou e se identificou de
alguma forma com suas músicas, tornando-os astros da música mundial.
32

CAPÍTULO 2 - EXISTE UMA CULTURA INDIANA?

(...) a cultura é uma espécie de teatro em que várias causas políticas e


ideológicas se empenham mutuamente. Longe de ser um plácido reino de
refinamento apolíneo, a cultura pode até ser um campo de batalha onde as
causas se expõem à luz do dia e lutam entre si, deixando claro, por exemplo,
que, dos estudantes americanos, franceses ou indianos ensinados a ler seus
clássicos nacionais antes de lerem os outros, espera-se que amem e pertençam
de maneira leal, e muitas vezes acrítica, às suas nações e tradições, enquanto
denigrem e combatem as demais. (SAID, 1997, p.12)

Todas as culturas tendem a elaborar representações de culturas estrangeiras a


à fim de melhor dominá-las ou de alguma forma controlá-las. Mas nem todas
as culturas fazem representações de culturas estrangeiras e de fato as
dominam ou controlam. Este é o traço distintivo, a meu ver, das culturas
ocidentais modernas. (SAID, 1997, p.143)

Após entender o que foi o fenômeno de beatlemania no capítulo anterior,


precisamos voltar nossos olhos para a Ásia, bem longe das ditas "luzes" da Europa. A
onde a cultura e o lugar por muito tempo foi visto como um local de romance, seres
exóticos, de memórias e paisagens obsessivas, de experiências notáveis: a Índia.
Décadas antes do surgimento dos Beatles, em que ainda estava sendo dominada pelo
ainda gigantesco Império Britânico.
E quem sabe responder a seguinte pergunta: Existe uma cultura Indiana? Esta
pergunta é fundamental, pois com ela se pode ter uma visão mais ampla sobre o que é a
Índia de fato, e não ficarmos presos a ilusão de existe uma cultura única e uniforme. O
propósito deste capítulo não é ter uma perspectiva tão aprofundada sobre a cultura
indiana. Pretendo me ater principalmente as expressões culturais que mais tarde
entraram em contato com os Beatles, que levará objetivo final da monografia.
Para responder a essa pergunta, é necessário compreender em primeiro lugar o
conceito de cultura, para isso usarei o livro "​O Bazar Global e o Clube dos Cavaleiros
Ingleses​" do escritor indiano Homi Bhabha. Dentro deste livro vou me aprofundar nos
conceitos de: Diferença cultural, Negociação cultural, Entrelugar e Ambivalência. E
33

nesses conceitos aplicar aspectos da cultura indiana que entraram em contato


posteriormente com os Beatles, como os aspectos musicais, a moda e a própria
meditação transcendental. Outro ponto importante que merece discussão dentro deste
capítulo é a influência do Império (ou Raj) na cultura indiana, além do referencial
histórico, vou observar os intermeios entre império e cultura. Desta maneira, vou
buscar entender um dos modos de ação imperialista no Oriente, através do livro "​O
Orientalismo​" de Edward W. Said. É também de extrema importância observar o
mecanismo do imperialismo na história e cultura Indiana, do começo do Século XX,
através de outro livro de Said: “​Cultura e Império”​ . Além de outras referências
bibliográficas que ajudem a entender o funcionamento do imperialismo.

2.1 Como compreender as culturas

O termo moderno para cultura, tem como origem etimológica a palavra latina
7
colere q​ ue significa cultivo , e teria sido usado pela primeira vez durante a Roma
8
antiga, em que foi escrito o "cultivo da alma" ou em latim ​cultura animi. ​Este termo foi
usado como metáfora para o cultivo filosófico da alma, entendido teleologicamente
como ideal de desenvolvimento civilizatório humano. A mudança do significado dessa
palavra foi se transformando até chegar em algo como: "costumes coletivos e conquistas
9
de um povo, uma forma particular de desenvolvimento intelectual coletivo" .
Este pensamento que temos de cultura, é bem representado pelo poeta irlandês,
laureado prêmio nobel de literatura, William Butler Yeats, que diz: "Pois sem cultura ou
santidade, que são sempre o presente de muito poucos, um homem pode renunciar à
riqueza ou a qualquer outra coisa externa, mas ele não pode renunciar ao ódio, inveja,

7
CULTURE: Origin and Meanig. Disponível em: <https://www.etymonline.com/word/culture>. Acesso
em: 20out. 2018
8
Cicéron, Marcus Tullius Cicero; Bouhier, Jean (1812). Tusculanes. Nismes: J. Gaude. p. 273.
9
Smyth, Adm. William Henry, The Sailor's Word-book: An Alphabetical Digest of Nautical Terms,
London, Blackie and Son, 1867.
34

ciúme, vingança. Cultura é a santidade do intelecto." (YEATS, 1909, p. 55). Ou seja a


10
cultura é o constante cultivo de ideias feito por uma sociedade .
Contudo, a palavra "cultura" criou significados estáticos que nos fazem entender
que a cultura é algo único, como se ela estivesse isolada das demais e fosse algo para ser
catalogada em caixas específicas, ou mesmo livre de ser "contaminada" por outras.
Como bem é dito pelo ensaísta T. S. Eliot - citado e comentado no ensaio "​O entrelugar
das culturas​" do pensador indiano Homi Bhabha:
Estamos, pois, sendo pressionados a manter o ideal de uma cultura
mundial, apesar de admitir que isso é algo que não podemos imaginar.
Só podemos conceber isso como sendo um termo lógico para designar
as relações entre as culturas." (ELIOT, 1949, p. 62. apud Bhabha, 2011,
p. 81) Só podemos conceber isso como sendo um termo lógico para
designar as relações entre as culturas "locais como não sendo
contaminadas ou como se bastando a si mesmas nos força a conceber
uma cultura "global", o que, por sua vez permanece inimaginável. Que
tipo de lógica é essa? (BHABHA, 2011, p. 81).

Bhabha, traz a ideia de que devemos pensar no significado de cultura para


compreendê-la, ele se opõe ao pensamento de uma "cultura única e estática", e sim uma
"cultura híbrida em movimento", criticando a forma convencional de análise deste
fenômeno que não permite enxergar a complexidade das culturas. Para compreender
esse fenômeno, é apresentado pelo autor marcos teóricos fundamentais. Entre eles estão
os conceitos de diferença cultural, negociação, entrelugar e ambivalência, estas que por
sua vez podem fazer parte dos processos de hibridismos culturais.

2.1.1 Diferença Cultural

Homi Bhabha descreve a "diferença cultural" como sendo uma alternativa a


"diversidade cultural". A diferença é a distinção entre elementos, por vezes por meio de
tensão. Por meio da diferença ocorre a emergência dos acontecimentos das culturas, em

10
​grupo humano que habita em certo período de tempo e espaço, seguindo um padrão comum;
coletividade.
35

conjunto com o movimento de sobreposição e deslocamento. É neste lugar fronteiriço


que os valores culturais são negociados, neste esquema há espaço para a inter-ação.
A diversidade cultural apresenta problemas, pois há uma universalização.
Conforme Bhabha, a diversidade cultural é guiada por uma perspectiva liberal
relativista, em que se estabelecem as interpretações da cultura. Reconhece-se a
pluaridade das culturas, mas cada uma fechada em si mesma. Não há movimento. Em
contraposição à diversidade cultural e suas problemáticas sinalizadas acima, a diferença
cultural no pensamento de Homi Bhabha é definida por Rita Schmidt como:
Uma ferramenta complexa e nela se entrelaçam questões centrais na
orientação do conhecimento na perspectiva do “outro”, como a
transformação da enunciação em termos de lócus e relações de
interpelações, a constituição dialógica do sujeito do discurso da
diferença e a ambivalência das estratégias de identificação, bem como a
questão da hibridez e do intraduzível nas transferências de conteúdo em
práticas e textos culturais de sistemas diferentes e diferenciais.
(SCHMIDT, 2011. p. 31.)

Ou por Bhabha como:

Se a diversidade cultural é uma categoria da ética, da estética ou da


etnologia comparativas, a diferença cultural é um processo de
significação através do qual enunciados sobre ou em uma cultura
diferenciam, discriminam e autorizam a produção de campos de força,
referência, aplicabilidade e capacidade (BHABHA, 1994, p. 34).

Por sua vez, a diferença, é marcada pelo estranhamento entre culturas. O outro é
aquele que lança o eu a orientar-se em seus limites culturais. Não em uma dinâmica
binária: eu e outro, em que se esboça uma certa alteridade, que não obstante, causa a
falta de entendimento do outro (o outro se torna um "não eu"). Lógica esta, que serviu
de alicerces para a justificativa para tomada e destruição das culturas que foram
colonizadas por europeus A diferença é o estranhamento necessário para o rompimento
das totalidades impostas, e a superação da cultura universal e das ditas culturas puras.
Assim, a partir deste encontro fronteiriço, as culturas assumem-se como parciais, um
local de mobilidade e recriação. Não na história do “mesmo” (1+1 = 1), colonial e
36

universalizante, ou de uma pluralidade plástica sem tensão (1+1 = 2). Mas desde a
11
diferença, que nos coloca diante da necessidade de negociações possíveis (1+1 = 3) .

2.1.2 Negociação

Mais uma vez, para abordar o que Bhabha chama de negociação, devemos
voltar para a raiz etimológica da palavra. A origem do termo vem da junção das
palavras ​neg (​ não) ​+ ​otium (ócio) (BHABHA, 2011. p. 96), ou seja, negociação
significa estar em movimento, estar a todo momento realizando o tráfego de algum tipo
de informação. É a partir deste pensamento que Bhabha aborda como a hibridização das
culturas, que se dá através do movimento e bricolagem. É o ruído inquietante do dia a
dia, não é a sobreposição, mas sim a troca entre as culturas. Bhabha diz, a negociação:
"é a habilidade de articular diferenças no espaço e no tempo, de ligar palavras e imagens
em novas ordens simbólicas, de intervir na floresta de sinais e de mediar o que parecem
ser valores incomensuráveis ou realidades contraditórias” (2011 p. 97).
A negociação também tem um papel na realização dos hibridismos, o encontro
com o novo, o estabelecimento de novas “identidades”, um estranhamento na inscrição
autoritária do signo cultural. A negociação cultural transforma o valor significante da
cultura, ao se articular entre as duplas vozes e línguas que permeiam esse encontro.
Bhabha explica o hibridismo como potencial deste diálogo através de Mikhail Bakhtin:
O [...] híbrido não tem somente uma dupla voz e duplo sotaque [...] ele
tem também uma dupla língua: nele não há somente (e nem mesmo
tanto assim) duas consciências individuais, duas vozes, dois sotaques,
mas, acima de tudo, há [duplicações] de consciências
sociolinguísticas, duas épocas [...] que vêm juntas e lutam
conscientemente no território da elocução. (Apud BHABHA, 2011. p.
90)

11
Essas representações numéricas – apresentadas nas aulas de filosofia sobre hibridismo cultural – nos
ajudam didaticamente a compreender o pensamento de H. Bhabha. Para uma interpretação melhor do
esquema 1+1 = 3, confira a figura 4.
37

Ainda dentro da chave do hibridismo, a negociação é um agente relevante nos


processos de reivindicação e resistência de grupos periféricos, pois na realização desta
troca de informações, ocorre a recusa da representação binária dos antagonismos
sociais, e as reconhece como ambíguas, como explica Schmidt:
Outro ponto importante no processo de “reconhecer o hibridismo
como forma de significação [...] [produz] uma forma de conhecimento
e compreensão sobre os trânsitos ambíguos que informam as práticas
discursivas e políticas nos lugares da cultura, que são também lugares
de transformação social (​SCHMIDT, 2011. p. 23​)​.

Por último, a negociação é um meio de recriação e combinação das culturas.


Dentro do seu processo de hibridização, assume-se o diálogo entre ambas as culturas,
como uma forma de tensão inovadora, marcando as regiões de conflito cultural.

2.1.3 Entrelugar

Para Homi Bhabha o entrelugar é o local potente da cultura. É este o local de


encontro com o diferente, é a fronteira que, por sua vez, tem um caráter ambivalente,
pois esta marca e permite o ato da troca de informações, ou melhor a negociação e em
certa medida os hibridismos culturais. Este movimento cria o entrelugar. Um lugar além
que supera a lógica polarizadora da cultura, um lugar além, que não é um nem o eu nem
outro, é a (re)criação dos espaços. Citado mais uma vez por Bhabha, T. S. Eliot
descreve este encontro:
(...) A cultura que se desenvolve em um solo novo tem que ser, ao
mesmo tempo, desconcertante semelhante e diversa em relação à
cultura à qual é aparentada: isso se complicará às vezes dependendo
das relações que se estabelecerem com alguma raça nativa ou mais
tarde com a imigração de outras raças diferentes da original. Assim,
tipos peculiares de simpatias e choques culturais surgirão. (Apud
BHABHA, 2011. p. 82)

Bhabha ainda comenta precisamente, e nos dá uma noção do que é o entrelugar:


Essa cultura das partes, essa cultura parcial, é o tecido contaminado, e
até conectivo, entre as culturas - ao mesmo tempo a impossibilidade
de as culturas bastarem-se a si mesmas e da existência de fronteiras
38

entre elas. O resultado é, na verdade, mais algo que se parece com o


"entrelugar" das culturas, ao mesmo tempo desconcertantemente
semelhante e diverso. (...) a ideia de que a tradução [negociação] de
culturas (...) é um ato complexo que gera afetos e identificações nas
fronteiras, "tipos peculiares de simpatias e choques culturais".
(BHABHA, 2011, p. 83)

É na lógica da diferença cultural que ocorre a criação do terceiro espaço, a casa


em que ocorre a criação de novas identidades, novas culturas.... Culturas que não são
nem a criação de uma cultura única, como a de um estado nacional que homogeneíza as
diferenças usando o controle do tempo social (BHABHA, 2011, p. 89). Muito menos a
ideia liberal de multiculturalismo que geram culturas diferentes e isoladas, Bhabha diz:
(...) existe um problema recorrente nessa noção de igualdade: o
liberalismo compreende um conceito não diferencial de tempo
cultural. No momento em que o discurso liberal tenta normalizar a
diferença cultural, transformar a pressuposição de respeito cultural
mútuo, ele não reconhece as temporalidade disjuntivas e fronteiriças
das culturas minoritárias e parciais (BHABHA, 2011, p. 83).

Bhabha nos coloca diante de um hibridismo de fato que reconhece as diferenças


e as intersecções fronteiriças. O esquema abaixo (figura 4) nos ajuda a ilustrar de
maneira gráfica o esquema dos hibridismos culturais.
Figura 4.

​ Fonte: Elaborada pelo autor.


39

2.2 O Império britânico e a Índia

Por cerca de 3 séculos, o território que hoje chamamos de "Índia" esteve sob o

domínio de colonizadores europeus. Por este território estiveram portugueses,


holandeses, franceses e britânicos. Esta extensão territorial foi de extrema importância
para os europeus, pois lá se encontravam especiarias de extremo valor no ocidente, o
que impulsionou o interesse dos países europeus na região, desta maneira se instalou o
colonialismo europeu pela primeira vez na Índia (KULKE, 2010).
O domínio britânico na Índia começou através da "Companhia das Índias
Orientais" em 1617 (MARSHALL, 1996), uma sociedade por ações britânica que foi
incumbida pela coroa para inicialmente realizar as intermediações comerciais entre
ambas as regiões, mais tarde, após uma guerra entre as nações européias para o controle
do comércio, a companhia tomou o controle administrativo e militar do local, e assim
12
foi tomando o território pertencente ao império Mogol . A Companhia das Índias
Orientais tomou controle da Índia Britânica até 1857, quando houve a rebelião indiana,
o que ocasionou na tomada total dos direitos que a companhia tinha sobre a Índia pela
coroa britânica.

2.2.1 O que é imperialismo?

Existem diferentes interpretações sobre o que é de fato imperialismo. Para

Vladimir Lênin, o imperialismo seria uma das formas de atuação do capitalismo


financeiro, garantindo assim, a sua existência enquanto sistema econômico. Além disso,

12
F​oi um ​Estado existente entre ​1526 e ​1857 que chegou a dominar quase todo o ​subcontinente indiano​.
A designação ​mogol sis atribuída durante o século XIX e deriva de ​mongol,​ denotando a ascendência
direta de ​Gengis Khan​ de seu fundador. Este foi abolido pelos britânicos em 1857.
40

o autor diz que há uma mudança na forma de dominação colonial, que já não é a mesma
desde o imperialismo romano. Isto é exemplificado no seguinte parágrafo:
A política colonial e o imperialismo existiam já antes da fase mais
recente do capitalismo e até antes do capitalismo. Roma, baseada na
escravatura, manteve uma política colonial e exerceu o imperialismo.
Mas as considerações "gerais" sobre o imperialismo, que esquecem ou
relegam para segundo, plano as diferenças radicais entre as formações
econômico-sociais, degeneram inevitavelmente em trivialidades ocas
ou em jactâncias, tais como a de comparar "a grande Roma com a
Grã-Bretanha". Mesmo a política colonial capitalista das fases
anteriores do capitalismo é essencialmente diferente da política
colonial do capital financeiro. (LENIN, 1916, p. S.l. )

Lenin ainda diz que o imperialismo está interligado com a fusão do capital
bancário com o industrial, e para sua sustentação é necessária a anexação de diferentes
13
tipos de territórios pelas potências capitalistas .
O que é característico do imperialismo é precisamente a tendência
para a anexação não só das regiões agrárias, mas também das mais
industriais (apetites alemães a respeito da Bélgica, dos franceses
quanto à Lorena), pois, em primeiro lugar, estando já concluída a
divisão do globo, isso obriga, para fazer uma nova partilha, a estender
a mão sobre todo o tipo de territórios; em segundo lugar, faz parte da
própria essência do imperialismo a rivalidade de várias grandes
potências nas suas aspirações à hegemonia, isto é, a apoderarem-se de
territórios não tanto diretamente para si, como para enfraquecer o
adversário e minar a sua hegemonia. (LENIN, 1916, p. S.l. )

O Imperialismo é uma expansão dos interesses do capital, a agregação de


territórios em nome da melhora de qualidade de vida nas metrópoles e a necessidade
abrupta de matéria prima para sustentar a produção industrial na Europa.
Lenin ainda diz:
O imperialismo é o capitalismo na fase de desenvolvimento em que
ganhou corpo a dominação dos monopólios e do capital financeiro,
adquiriu marcada importância a exportação de capitais, começou a
partilha do mundo pelos trusts internacionais e terminou a partilha de

13
Este processo é passível de ser visto durante a partilha da África, que ocorreu durante a conferência de
Berlim, em que representantes das potências da época se reuniram para decidir a quem iria pertencer os
pedaços do continente africano.
41

toda a terra entre os países capitalistas mais importantes. (LENIN,


1916, p. S.l. )

A rivalidade entre as potências e a busca por matéria prima levou a divisão


territorial do mundo, não obstante o capitalismo monopolista levou ao colonialismo.
Este pensamento também vai embasar o historiador Eric Hobsbawm, que
relaciona o desenvolvimento rápido do capitalismo como uma das razões para o
surgimento do imperialismo colonial. Para o autor, o imperialismo do século XIX é
indubitavelmente "novo", fruto do abandono das política públicas e privadas do
14
laissez-faire . ​É também um meio de dominação que marcou uma das eras modernas da
história, sendo assim chamando o período de 1875 até a Primeira Guerra Mundial
(1914) de "Era dos Impérios"​. ​O autor ainda ressalta que o imperialismo também é um
fenômeno cultural, de modo que "ocidentalizou" parte dos povos colonizados, por meio
da "conquista do globo pelas imagens, ideias e inspirações transformadas de sua minoria
desenvolvida tanto pela força e pelas instituições" (HOBSBAWM, 1988, p. 14).
Ademais reitera a importância do imperialismo para a busca por novas territorialidades
justificadas pelo rápido acúmulo de capital, e também pela procura de mercados
consumidores.
Um motivo geral mais convincente para a expansão colonial foi a
procura de mercados. O fato de esta muitas vezes fracassar é
irrelevante, Era amplamente disseminada a crença de que a
"superprodução" da Grande Depressão poderia ser resolvida por meio
de um vasto esforço de exportação. (HOBSBAWM, 1988, p. 100)

Contudo, o culturalista Edward Said agrega ao falar sobre imperialismo. Para o


autor nem o imperialismo e seu modo de ação colonial se dão em um simples ato de
acumulação. Estes são sustentados por uma ideologia (muitas vezes interiorizada) que
15
usam a noção de que existem povos que "imploram" por uma dominação . O

14
​Laissez-faire é uma expressão escrita em francês que simboliza o ​liberalismo econômico​, na versão
mais pura de ​capitalismo de que o ​mercado deve ​funcionar livremente​, ​sem interferência​, apenas com
regulamentos suficientes para proteger os ​direitos de propriedade
15
Ainda é possível voltar a etimologia da palavra império, vinda do latim ​imperium, s​ ignifica poder
supremo.
42

imperialismo, portanto, é a autoridade suprema exercida por um Estado-nação sobre


outro povo, esta autoridade implica no controle da sociedade dominada.
Said ainda usa a seguinte citação:
O império é uma relação, formal ou informal, em que um Estado
controla a soberania política efetiva de outra sociedade política. Ele
pode ser alcançado pela força, pela colaboração política, por
dependência econômica, social ou ​cultural​​. O imperialismo é
simplesmente o processo ou a política de manter um império (apud
SAID, 1997, p. 40)

Said ainda reitera a importância da busca do lucro como força motivadora da


expansão imperial ocidental e o atrativo por especiaria, como ópio, açúcar, algodão e
borracha, está que convenceu os habitantes das metrópoles européias a aceitarem a ideia
de que territórios distantes e seus respectivos povos deviam ser subjugados (SAID,
1997, p. 41).

2.2.2 Os modos de ação do imperialismo

O imperialismo, como vimos, pode se manifestar de vários modos, um deles é a


utilização do ​orientalismo​​. O orientalismo é um conceito reformulado por Edward Said
(de forma crítica) em que se entende o Oriente como invenção do Ocidente, um modo
de pensar reducionista. Essa lógica está ligada na ideia dos orientais como
não-europeus, ou seja não são reconhecidos como iguais. É a perpetuação da lógica
colonial imperial, reducionismo das culturas orientais, o que similarmente contribui para
a não compreensão do outro (SAID, 2007, p. 19). É importante ressaltar que o
orientalismo ​não ​é inerente ao imperialismo, ele é uma das formas que o imperialismo
(mais precisamente o do séc XIX e início do XX) pode ou não agir. Said também tem a
visão de que o "Oriente" não é um fato inerente à natureza, contudo o Oriente também é
orientalizado pelos ocidentais, ao passo que esse processo se deu pois existem diferentes
realidades ao "Leste", uma relação de poder entre ambos os povos.
(...) culturas e histórias não podem ser estudadas sem que a sua força
ou mais precisamente a sua relação de poder, seja também estudada.
43

Achar que o Oriente foi criado - ou como eu digo - orientalizado e


acreditar que tais coisas acontecem como uma necessidade da
imaginação é agir de má fé. A relação entre Ocidente e Oriente é uma
relação de poder, de dominação, de graus variados de complexa
hegemonia (...). O Oriente foi orientalizado não só porque se
descobriu que era oriental (...) mas também ​podia ser - ​isto é, permitia
ser - ​feito o​ riental. (SAID, 2007, p.17)

16
O orientalismo se mostra na dificuldade de compreensão das culturas hindu , o
que resultou em um conflito ainda maior entre os povos que lá habitavam/habitam e os
europeus. Um exemplo disso são os trabalhos alemães sobre o Oriente que não tinham
uma ligação com oriente de fato, como bem cita Said:
(...) o Westóstlicher Diwan [Diva oriental-ocidental, de Goethe, e o
Über die Sprache und Weisheit der Indier [Da língua e sabedoria dos
hindus de Friedrich Schlegel, eram baseados, respectivamente, em
uma viagem pelo Reno e em horas passadas em bibliotecas
parisienses. O que a erudição oriental alemã fez foi refinar e elaborar
técnicas que seriam aplicadas a textos, mitos, idéias e línguas
literalmente colhidas no Oriente pela Inglaterra e pela França
imperiais. (SAID, 2007, p. 31)

Outro aspecto desta prática é assumir os hinduístas como um só, não assumindo
a pluralidade do pensar sobre esta cultura, buscando um sentido funcionalista britânico
sob os povos. Se tenta aplicar, aqui, a lógica do ​uno,​ da não-pluralidade, isso é
perpetuado no livro de E. M. Forster analisado por Said: "hinduístas, segundo o
romance, acreditam que tudo é uma mistura só, tudo está interligado, Deus é um só, não
é, era, não era" (apud SAID, 1997, p. 258). Isto é repetido na citação de Harriet
Martineau: "O espírito despreparado, seja hinduísta ou muçulmano, desenvolvido em
condições asiáticas, não é capaz de qualquer sintonia, intelectual ou moral, com o
espírito europeu cristianizado” (apud SAID, 1997, p. 257)​.
Outro modo importante é a ​colonização. ​Colonização é o ato de estabelecer uma
colônia, termo este que tem como raiz etimológica a palavra ​colere, e​ m latim que
significa cultivar e habitar para designar terras ocupadas fora da península itálica

16
Esta que é a religião com mais adeptos no território indiano.
44

17
durante o império roman. Ou seja, seria cultivar e habitar algum território . Portanto é
possível dizer que o ato de estabelecer uma colônia ou uma cultura estão entrelaçadas,
ao possuir o radical ​colere em comum (ver tópico 2.1). Logo, colonizar também implica
no ato de habitar uma cultura estrangeira, e, como vimos anteriormente, isto implica em
uma relação de dominação, a ambivalência exercida nas regiões de fronteiras culturais.
O colonizador no ato de colonizar não consegue enxergar as culturas que interage como
interdependentes da sua, não tem reconhecimento do ​outro e​ nquanto semelhante, ​por
isso acaba reduzindo-as, para impor a sua cultura dominante.
O imperialismo por sua vez, usa da colonização como forma de dominação ao
ocupar terras estrangeiras com o intuito de suprir o bem estar da metrópole. Isso é
exemplificado em parte da carta feita pelo presidente da companhia das índias orientais
em 2 de Abril de 1800:
Nenhum princípio deveria ser tolerado ou posto em prática, o que não
acontece com base na Índia sendo considerada como a residência
temporária de um grande estabelecimento britânico, para o bom
governo do país, sobre princípios estáveis e uniformes, e de um grande
fábrica britânica, para a gestão benéfica do seu comércio, sobre as
regras aplicáveis ao estado e aos costumes do país. (WELLESLEY,
1837, p.124. Tradução livre)

A colonização busca encobrir a cultura do território. Uma das formas mais claras
de se observar este processo é na difusão da língua inglesa na Índia colonial. A região
da Índia britânica continha cerca de 7 famílias linguísticas. Principalmente com o início
​ ritânico em 1848, se foi implementado o sistema educacional britânico na
do ​Raj B
Índia, que tinha como base o inglês como língua oficial da colônia - mais uma tentativa
de encobrimento das diferenças culturais locais, em que mais uma vez a lógica da
cultura única (ver tópico 2.1.3) se prevalece no modo de dominação imperialista.
O colonizador não compreende a colônia (como já apresentado) como igual. Um
exemplo dessa atuação é a forma como os britânicos entenderam a sociedade indiana

17
COLONY: Origin and Meanig. Disponível em: <https://www.etymonline.com/word/colony>. Acesso
em: 13 nov. 2018
45

como dinâmica e buscaram o controle das elites já estabelecidas, isto é citado


precisamente por Bernard S. Cohn no livro "​A invenção da Tradição"​ :
Os britânicos viam a Índia como uma sociedade em mudança; que foi
composto de comunidades. Essas comunidades poderiam ser grande e
um tanto amorfa, como hindu / muçulmano / sikh / Cristão / animista;
eles podem ser extremamente regionais, como o bengali ou Gujarati;
eles poderiam ser castas como Brahmans, Rajputs, Baniyas; ou as
comunidades poderiam se basear em questões educacionais e
ocupacionais. critérios, isto é, indianos ocidentalizados. Aqueles
governantes ingleses que viram A Índia, composta de comunidades,
procurou controlá-las através de identificando os 'homens
representativos', líderes que se pensava falar e quem poderia moldar as
respostas de suas comunidades. (COHN, 1997, p. 190)

A eficiência deste modo de ação é mostrada tanto no âmbito do cotidiano, como


por exemplo, no hábito de fazer a barba, imposto durante a colonização. Como no
âmbito mais amplo, como a ocidentalização interiorizada das elites, que nos idos de
1890 não era mais preciso ocupar Índia britânica com tantos britânicos, como bem cita
Hobsbawm:
​Por volta de 1890, pouco mais de seis mil funcionários britânicos
governavam quase 300 milhões de indianos, com a ajuda de pouco
mais de 70 mil efetivos europeus, cujos soldados rasos eram, como as
muito mais numerosas tropas indígenas, mercenários que recebiam
ordens e que eram provenientes, em número desproporcional, daquela
antiga reserva de guerreiros coloniais nativos: os irlandeses. Este é um
caso extremo, mas que nem por isto deixa de ser típico. Poderia haver
prova mais extraordinária de superioridade absoluta? (HOBSBAWM,
1989, p. 121)

​2.3 A música clássica hindustani e o imaginário religioso indiano

A música indiana é de extrema importância para observar o funcionamento


(parcial) de sua cultura, e há registros que remontam a elementos musicais de 30 mil
anos atrás. A música também é objeto de estudo deste tópico pois, como expressão
artística, consegue evidenciar ainda os aspectos de negociação cultural, em especial a
música clássica hindustani, que posteriormente entrou em contato com os Beatles.
46

A música clássica Hindustani é umas das duas principais ramificações da música


clássica na Índia, este tipo de música é encontrada principalmente no Norte da Índia. É
evidenciado o seu diferenciamento do estilo ​carnática, após as invasões árabes no
subcontinente indiano no século XIII d. C. Estas invasões tiveram forte impacto cultural
na Índia, chegando a criar uma variação de música clássica com influência árabe
(NETTI, 1998).
Algo importante de se ressaltar sobre este estilo musical é que ele é
extremamente relacionado com a religião. Principalmente a filosofia vedanta de auto
conhecimento. Ravi Shankar, umas das referências junto com os Beatles de
disseminação da música clássica hindustani no Ocidente, diz no documentário de 2001
Living The material World:​
O som é Deus, e através do som, ou seja, da boa música (...) pode te
deixar animado quanto pode te fazer enlouquecer. Algumas pessoas
ficam lucas. Isso também é música, porém isso não te conduz
espiritualmente Deus. Mas música tem esses poderes... (...) Nossa
música tem sido passada de pessoas a pessoa. É uma tradição oral.
Não é uma música escrita no papel, o guru não ensina somente a
técnica, mas todo o aspecto espiritual. O significado da vida, a
filosofia é passado junto com a música (GEORGE, 2011)

Algo que está relacionado também com o fundamento da improvisação, muito


presente neste estilo. "A tradição indiana cria uma complexa multiplicidade escalar,
18
baseada nas riqueza das nuances como se subdivide uma oitava . A combinatória
19
intervalar produz 72 escalas completas ." (WISNIK, 2017, p. 92) A improvisação é
feita a partir de um complexo sistema de afinações, não só do instrumento mas também
da música com o universo, que tem a sua entrada em um movimento cíclico chamado de
tala, não de temas fixos ou por partituras. Em vez disso é usado o ​raga: ​estruturas
rítmicas que montam um modelo que varia com o tipo das codificações de cor afetivas.
Ao começar a tocar os músicos procuram o ponto de afinação com base nos ​ragas​,

18
​Em ​música​, uma ​oitava é o ​intervalo entre uma ​nota musical e outra com a metade ou o dobro de sua
frequência​.
19
Na música ocidental temos não muito mais que duas.
47

associado ao período do dia e estações do ano onde se está. Já a sensação tempo é dada
pela afinação corporal e espiritual com uma sensação de macro cósmicos integrados.
O tempo é a afinação dos pulsos, experi6encia de sobreposição infinita
das fases e defasagem, descoberto no coração do instante, no fluxo do
improvisado, através dos meios criados por uma cultura que crê,
simplesmente , que a realidade do universo não é nada mais (nem
menos) no meio da música. (WISNIK, 2017, p. 93)

Outro elemento importante são os instrumentos (físicos e vocais), que num


aspecto óbvio, são fundamentais para criar atmosfera do Raga, tanto no timbre e o modo
de tocar, entre eles é possível citar a Sitar, Tabla e o Harmonium.
Aproximemos o olhar a partir de alguns instrumentos.
A sitar (ver figura 5) é um instrumento de 30 cordas microtonal que mede
tipicamente 1,2 metros de comprimento, afinado em ​ragar​ . A palavra sitar é derivada
da palavra ​persa sehtar​, que significa “três cordas”. O instrumento foi descendido de
alaúdes de pescoço comprido levados para a Índia da Ásia Central ​(NETTI, 1998).

Figura 5

Fonte:​​https://www.spin.com/2012/12/ravi-shankar-sitar-virtuoso-who-changed-pop-music-dead-at-92/​.
Acesso em 12/ 11/ 2018

A tabla (figura 6) é um instrumento de percussão. O tom mais agudo dos dois


tambores, que é tocado com a mão direita, também é referido individualmente como a
tabla. É um tambor de cabeça única geralmente de madeira e com o perfil de dois cones
48

truncados salientes no centro, a parte inferior mais curta. Geralmente é sintonizado na


tônica, ou nota fundamental, do ​raga. (​ NETTI, 1998).

Figura 6

Fonte:​​ ​https://www.britannica.com/art/tabla​ Acesso em 14/ 11/ 2018

Outro instrumento é harmonium (figura 7), uma espécie de acordeom. É


formado por tubos de metal que geram som à medida que o ar passa por uma peça
vibrante de metal fino em um quadro. O pedaço de metal é chamado de junco. Criado na
Europa, foi trazido para a Índia em 1860, mais tarde sendo adaptado ao sistema
microtonal, tendo uma versão especificamente indiana.

figura 7
Fonte: ​https://www.britannica.com/art/​harmonium Acesso em 15/ 11/ 2018

São estes elementos a respeito da musicalidade clássica hindustani que fazem


com que exerça um enorme poder sobre quem a toca e a escuta, tendo como seu caráter
49

a ligação com o sagrado, com sua busca pela compreensão do universo, resultando no
transe ou o êxtase, e meditação. Como já citado, aqui, música e espiritualidade
caminham lado a lado, na perspectiva da tradição hindustani ela serve para o
autoconhecimento do ser , por isso á de ser sentida em tantos níveis.

2.4 Então existe uma cultura indiana?

Após o percurso feito neste capítulo, é evidente que não existe uma cultura
indiana, mas sim diferentes culturas que se manifestam em outras disparidades no
subcontinente indiano. A cultura indiana, única e hegemônica, existe apenas no projeto
imperialista e colonial que o Império Britânico tinha como artifício de dominação do
território (e por conseguinte o seu povo). Como vimos, a diferença cultural (ver tópico
2.1.1) acontece sobretudo no estranhamento das culturas, isto de fato acontece ao
vermos os conflitos entre os “nativos” e britânicos, que levaram a certos hibridismos
culturais. Isto está claro no que podemos chamar de processo de negociação (ver tópico
2.1.2) que é evidente na adoção, por exemplo, do instrumento harmonium (ver tópico
anterior), isso mostra o caráter ambivalente da própria negociação, ao se articular de
diferentes maneiras; ser um instrumento europeu que se torna presente na tradição
indiana, uma das muitas pluralidades que existem dentro da música clássica indiana, que
ao longo dos séculos foram sendo (re)criadas em torno de novas identidades. As
culturas indianas, principalmente a música, (re)existem independentemente das
estratégias de dominação, e sua hibridização é uma das formas de existir no meio das
ações coloniais e imperialistas. A música não é um espaço de hegemonia cultural, mas
sim um entrelugar de experimentações de sons e sentidos. Ela agrega, e busca maneiras
de se (re)inventar ao seu modo. Por isso, não podemos falar de uma cultura indiana
orientalizada, mas de culturas indianas. Junto a isso, vale destacar que a experiência de
hibridismo – segundo Homi Bhabha – é uma estratégia desde a subalternidade, aquelas
50

e aqueles que sentem no corpo e na história as “feridas do progresso” e do dito ideal


civilizatório. A negociação busca desativar a maquinaria colonial/imperial.
51

CAPÍTULO 3 - QUAIS AS INTERSECÇÕES ENTRE THE


BEATLES E A ÍNDIA?

"Lembro-me de pegar a Sitar e tentar segurá-la e pensar: "Este é um


som engraçado". Foi uma coisa acidental (...)"
(George Harrison em entrevista a Billboard, dezembro de 1992)

Quando você ver além de si mesmo


Então poderá encontrar a paz mental que tanto espera
E a hora chegará quando você ver
Que somos todos um
E a vida flui com você e sem você
(HARRISON, George, 1967)

Após falarmos sobre o funcionamento de ao menos parte das culturas indianas,


em especial suas musicalidades, devemos agora olhar para as interseções entre os ​The
Beatles e o que discutimos no capítulo anterior. Pois ao vermos essas intersecções e
vermos os impactos causados, poderemos ter os elementos necessários para concluir (ou
não) se os Beatles são exportadores da cultura Indiana para o ocidente.
Para começar, tentarei fazer uma panorama de como os Beatles entraram em
contato com as culturas indianas, através de suas biografias. Após a realização deste
panorama será feita uma análise das músicas dos Beatles que tem elementos da música
clássica hindustani, para isso utilizarei os elementos culturais apresentados por Homi
Bhabha no capítulo anterior e também os elementos da cultura de massas apresentados
no Capítulo 1, pois ambos estudos culturais podem nos ajudar a entender como se deu
este encontro musical- e como vimos no capítulo anterior, também religioso/filosófico
Por fim, será visto os impactos destas músicas na cultura ocidental, bandas e
movimentos que usaram das experimentações musicais dos Beatles como base para
criações próprias.
52

3.1. Como se deu o encontro dos Beatles com a Índia?


Para começar a falar do encontro entre os Beatles e a música indiana é preciso
voltar a um período da carreira da banda já citada neste trabalho: a beatlemania. Em
1965, os Beatles estavam no seu auge do sucesso comercial até o momento. Já tinham
feito um filme de sucesso ​A Hard Day's Night​, e se encaminhavam para seu mais
recente álbum ​Help!,​ acompanhado por um filme homônimo. Este álbum representa
bem os problemas vivenciado pelos integrantes dos Beatles causados pela beatlemania e
portanto a indústria cultural em torno da banda. A rotina estressante de turnês e longas
sessões no estúdio aliado às insatisfações com a forma como era exposta a imagem da
banda. A começar pela faixa título: ​Help! Que segundo o próprio John Lennon é de fato
um pedido de socorro:
A maioria das pessoas pensa que é só uma canção rápida de
rock'n'roll. Eu não percebi na época - escrevi a música porque me
encomendaram para o filme - mas depois me dei conta que estava
mesmo pedindo socorro. "Help!" era sobre mim, ainda que fosse
pouco poética. Acho que tudo vem à tona nas músicas. ​A vida de
beatle estava além da compreensão. (​​Apud ​ROYALANCE, 2001, p.
171).

Foi nas gravações de ​Help!,​ que os Beatles entraram em contato pela primeira
vez com algo relacionado a Índia. John lennon relata a "estranheza" deste encontro:

A primeira vez que soubemos de qualquer coisa relacionada a Índia,


foi quando estávamos fazendo Help! Havia uma coisa estranha sobre
um indiano e aquela seita oriental que tinha o anel e o sacrifício; e no
set em um lugar eles tinham sitars e coisas - eles eram a banda indiana
tocando ao fundo, e George estava olhando para eles.
Nós gravamos esse pedaço em Londres, em um restaurante. E então
nós estávamos nas Bahamas filmando uma seção e um pequeno iogue
nos atropela. Nós não sabíamos o que eles eram naqueles dias, e este
pequeno indiano nos deu um livro a cada, assinado para nós, sobre
yoga. Nós não olhamos para isto, nós apenas aderimos isto junto com
todas as outras coisas que as pessoas nos dariam.
Então, cerca de dois anos depois, George começou a entrar em hatha
yoga. Ele se envolveu com música indiana ao ver os instrumentos no
53

set. Tudo daquele filme maluco. Anos depois, conheci esse iogue que
nos deu cada um desses livros; Eu esqueci o nome dele porque todos
eles têm aquele 'Baram Baram Badoolabam', e todo aquele jazz. Todo
o envolvimento indiano saiu do filme Help!
(​​ROYALANCE, 2001, p. 171)

Outro relato que revela o curioso primeiro encontro com a cultura indiana, é o de
George Harrison:
Nós estávamos esperando para filmar a cena no restaurante quando o
cara foi jogado na sopa e havia alguns músicos indianos tocando ao
fundo. Lembro-me de pegar a cítara e tentar segurá-la e pensar: "Este
é um som engraçado". Foi uma coisa incidental, mas em algum
momento eu comecei a ouvir o nome de Ravi Shankar. Na terceira vez
que ouvi, pensei: 'Esta é uma estranha coincidência'. E então eu
conversei com David Crosby dos The Byrds e ele mencionou o nome.
Eu fui e comprei um disco de Ravi; Eu coloquei e atingiu um certo
ponto em mim que eu não posso explicar, mas parecia muito familiar
para mim. A única maneira que eu poderia descrever era: meu
intelecto não sabia o que estava acontecendo e, no entanto, essa outra
parte de mim se identificava com isso. Acabou de me chamar...
Alguns meses se passaram e então eu conheci esse cara da organização
20
Asian Music Circle que disse: 'Oh, Ravi Shankar vai à minha casa
para jantar. Você quer vir também? ​(R
​ OYALANCE, 2001, 171)

Estes dois relatos nos fazem observar a certa casualidade em que se deu estes
encontros, marcados principalmente em um primeiro momento pelo estranhamento por
parte dos Beatles. Todavia, não podemos acreditar no simples fato de que estes atos
foram meras coincidências… Em primeiro lugar, devemos notar que neste período os
Beatles estavam procurando algo novo, estavam de fato insatisfeitos com a forma que
viviam, muito derivado da "loucura" da beatlemania. O próprio álbum ​Help!, já mostra
tanto sinais de aprimoramento em suas letras (inspirados por Bob Dylan, outro expoente
da cultura jovem) quanto musical, por conseguinte a musicalidade indiana caiu quase
que perfeitamente neste período inicial de experimentações. Outro ponto que é válido de

20
O Asian Music Circle foi uma organização fundada em Londres, Inglaterra, em 1946, que promoveu
estilos indianos e outros asiáticos de música, dança e cultura no Ocidente. Acredita-se que o AMC tenha
facilitado a assimilação das tradições artísticas do subcontinente indiano para a cultura britânica
dominante. Este mais tarde se envolveu em diversas gravações com os Beatles.
54

questionamento, é se existe uma correlação entre o fato dos Beatles terem tido este
encontro justamente em um restaurante indiano em Londres (ver figura 8), a capital do
ainda "Império Britânico". Não haveria lugar melhor para "conhecer" a Índia (além da
própria Índia) do que a sua antiga nação colonizadora imperialista (talvez uma visão
orientalista sobre a Índia?). Como vimos no capítulo anterior, as negociações culturais
não são uma via de mão única - ao mesmo tempo que a cultura britânica (dominante,
homogeneizadora) se incide sobre a indiana, as culturas indianas também afetam as
culturas dominantes. Isto é observado na própria figura do restaurante que contrasta
com a arquitetura tipicamente londrina.

Figura 8

fonte: ​https://www.beatlesbible.com/features/india/​ Acesso em 15/ 11/ 2018

Os reflexos deste "estranhamento cultural" são observados logo nos trabalhos


posteriores a ​Help!. ​O álbum Rubber Soul,​ que foi lançado apenas 4 meses depois do
anterior, já tinha elementos da música indiana, mais especificamente na música
Norwegian Wood. ​A banda estava cada vez mais envolvida nessas culturas,
principalmente George Harrison, que não só começava a tocar Sitar mas também ler
sobre a cultura vedanta. Foi neste período que Harrison começou a ter aulas com Ravi
Shankar, um instrumentista indiano que desde os anos 50 estava envolvido na
55

disseminação da música oriental no ocidente, envolvido junto com o Asian Music


Circle. Em setembro de 1966, Harrison acabaria voando para Bombaim (Índia) para
continuar seus estudos com Shankar por seis semanas. A inflûencia da filosofia e
música indiana estaria ainda mais presente nos álbuns subsequentes: ​Revolver e ​Sgt.
Pepper's Lonely Hearts Club Band.
A música hindustani estava profundamente integrada com a mudança de
paradigma musical que os Beatles haviam sofrido, e era desejo da banda que outras
pessoas (seu público) pudessem também entender esta forma de expressão artística.
George Harrison diz: "Para mim, é a única música realmente grande agora, e faz a coisa
ocidental do tr6es e do quatro tempos morta de alguma forma. Dá para extrair muito
mais se voc6e estiver preparado para se concentrar e ouvir. Eu espero que mais pessoas
tentem entendê-la. " (Apud ROYALANCE, 2001, p. 209)
Pouco tempo depois, em 24 de agosto de 1967, os Beatles conheceram o guru
Maharishi Mahesh Yogi, este que foi um dos precursores da Meditação Transcendental,
uma forma de meditação baseada no período Veda - em uma de suas palestras em
Londres. Este encontro marcaria os Beatles, pois entrariam em contato com um
diferente modo de pensar o mundo e a si mesmos, poderiam buscar sair da realidade
através da meditação. Maharishi ainda os convidou para um retiro no país de gales, no
qual Paul, George e John compareceram. George harrison relata:
No dia 24 de agosto, todos nós, exceto Ringo, assistimos à palestra
dada por Maharishi no Hilton Hotel. Eu comprei os ingressos. Eu
estava realmente depois de um mantra. Eu cheguei ao ponto em que
pensei em meditar. Eu tinha lido sobre isso e sabia que precisava de
um mantra - uma senha para entrar no outro mundo. E como sempre
parecíamos fazer tudo juntos, John e Paul vieram comigo. ​(​Apud
ROYALANCE, 2001, p. 260)

Em 1968, também a convite do guru, todos os quatro Beatles foram para a Índia
para um retiro espiritual. Os Beatles estavam inseridos neste imaginário mítico e
religioso da Índia. Lá, além de dedicarem profundamente a meditação, fizeram diversas
56

músicas que em sua grande maioria estaria no "​Álbum Branco"​ . Os Beatles estiveram no
retiro até abril do mesmo ano, quando saíram por uma acusação de assédio sexual
cometido por Maharishi Mahesh. John Lennon relata:

Cometemos um erro lá. Acreditamos em meditação, mas não no


Maharishi e seu teatro. Mas foi um erro pessoal que cometemos em
público. Acho que tínhamos uma impressão falsa de Maharishi, como
as pessoas têm de nós. O que fazemos acontece em público, portanto é
um teatro ligeiramente diferente. ​(A
​ pud ​ROYALANCE, 2001, p. 286)

Para finalizar, outro fato interessante de ser observado é que após esta
experiência tão intensa, com uma das facetas das culturas indianas (já direcionada para
o Ocidente), a aparição desta cultura se tornou cada vez menor. Deixando simplesmente
de aparecer elementos da música clássica hindustani em seus albúns. Talvez, este não
seria um contra fluxo do que a banda viveu anteriormente?

3.2 Como compreender as culturas indianas nos Beatles?

Após ver como se deu o encontro entre os Beatles e parte da cultura Indiana, é

necessário agora analisar em quais pontos da discografia dos Beatles esses elementos,
que já foram estudados no Capítulo 2, aparecem na discografia da banda. Por isso, o
selecionei algumas músicas que conseguem sintetizar as formas como essa cultura se
deu em suas obras, (vale lembrar que são as únicas). Estas canções foram: ​Norwegian
Wood,​ ​ Love You To​ e ​Within you Without You.

3.2.1 Norwegian Wood

Norwegian Wood é uma música composta por John lennon, creditada à dupla
Lennon/McCartney, gravada entre 12 e 21 de outubro de 1965, e lançada em 3 de
dezembro do mesmo ano no álbum ​Rubber Soul. ​A letra conta a história de uma "caso"
extraconjugal que John teve, e descreve em detalhes uma cena de "sedução". A música
57

segue um estilo folk-rock, contendo uma batida 12/8, no entanto a faixa obteve destaque
pelo uso da sitar, recém comprada por George Harrison - era a primeira vez que o
instrumento indiano era usado em um disco pop. O instrumento veio a calhar no álbum
pois estava de acordo com a sua proposta: buscar experimentações, um processo
também de amadurecimento musical dos Beatles (TURNER, 2009, p. 137).
Como relata Harrison:
"Norwegian Wood" foi a primeira vez que usamos sítaras nas nossas
gravações (...) comprei uma sitar na loja Oxford Street, que se
chamava Indiacraft - vendia estatuetas e incenso. Era uma Sitar mei
vagabunda, na verdade, mas eu comprei e meio que desprezei um
pouco. De qualquer jeito tínhamos gravado a base de "Norwegian
Wood" (violão, seis cordas, baixo e bateria) e a música precisava de
alguma coisa a mais. A gente começou a procurar no armário para ver
se conseguia encontrar alguma coisa, um som novo, e eu peguei a sitar
- que estava jogada; não tinha descoberto o que fazer com ela. Foi bem
espontâneo. Eu tirei as notas e toquei. (​ROYALANCE, 2001, p. p.
196)

Ringo Starr complementa ainda mais ao dizer sobre este momento de


experimentações da banda:
Foi tão incrível ter um instrumento estranho assim no disco. Estávamos
todos abertos para qualquer coisa quando George apareceu com a sitar:
você podia vir com um elefante para o estúdio contanto que fosse
produzir uma nota musical (...) Tínhamos crescido um pouco eu acho.
(Apud ​ROYALANCE, 2001, p. 197)

Porém, se deve dar atenção para o modo como a Sitar foi usada na música em
questão. Ao ouvir a música, o instrumento indiano aparece como um elemento
secundário. Como dito pelos próprios Beatles, eles estavam buscando sons diferentes -
algo “exótico”, que servisse de ornamento para música a folk rock. Usa-se a sitar como
21
uma espécie de novo timbre no violão , descartando a lógica do próprio instrumento, a
22
lógica de microtonalidade . O exótico se sobrepõe às musicalidades indianas, usando

21
Fato curioso, é que o equipamento de gravação usado na época não era capaz de captar com perfeição o
som da sitar, foi necessário um aprimoramento para a utilização do instrumento em gravações posteriores.
22
A música microtonal ou microtonalidade é o uso na música de microtons - intervalos menores que um
semitom, também chamados de "micro intervalos". Também pode ser estendido para incluir qualquer
58

desta maneira a escala diacrônica, tonal, convencional ocidental. Isto mostra uma
homogeneização da música ocidental sobre a oriental, não há terceiro espaço das
culturas, ou melhor: há terceiro espaço mas é encoberto pela própria estrutura de
Norwegian Wood. Seria este um processo “orientalista” ou de dominação que segue as
mesmas lógicas do imperialismo britânico na Índia?
Todavia, este exótico assume um papel também de primeiro contato, estranheza
que faria os Beatles a tentar compreender o funcionamento da lógica musical indiana, já
observado na música Love You To, lançada apenas seis meses depoi​s.

3.2.2 Love You To

Love You To é​ uma música composta por George Harrison, gravada entre 11 e
13 de abril de 1966 e lançada em 5 de agosto do mesmo ano no álbum Revolver. Disco
este que trazia um desenvolvimento ainda mais significativo para os Beatles, com
elementos das cenas ​underground, p​ sicodélica e da arte de vanguarda. Fazendo do
estúdio quase que um verdadeiro instrumento, através de ​doubles tracks ​e ​fitas girando
ao contrário (TURNER, 2009, p. 167). A música foi a primeira escrita por Harrison
pensando na sitar especificamente, ele queria criar algo que de fato colocasse o
instrumento como um agente mais complexo e importante da música em questão. Além
da introdução de artistas não creditados do já mencionado Asian Music Circle, que
tocaram tambura e tabla. George Harrison diz:
Eu compus "Love You To" na cítara, porque o som era muito bom e
meu interesse se aprofundava cada vez mais. Eu queria compor uma
melodia que fosse especificamente para a cítara. também tinha uma
parte para a tabla e foi a primeira vez que usamos um especialista em
tabla. (Apud ​ROYALANCE, 2001, p. 209)

música usando intervalos não encontrados na sintonia ocidental habitual de doze intervalos iguais por
oitava. Em outras palavras, um microton pode ser pensado como uma nota que fica entre as teclas de um
piano sintonizado em temperamento igual.
59

A presença ainda maior da musicalidade indiana, e seu desejo de espalhar esta


expressão artística no período de gravação de ​Love You To, t​ ambém é descrita por Paul
McCartney:
Os sons indianos vêm com certeza do George principalmente (...) É
bom começar a ligar os dois tipos de música, porque a gente começou
de uma maneira muito simples, e aí esse disco ficou um pouco melhor
(​Revolver). ​É um pouco parecido com música indiana. E ajuda as
pessoas a entender a música indiana também - porque é muito difícil
de entender. Mas uma vez que você entra é o máximo ​(Apud
ROYALANCE, 2001, p. 209).

No entanto, existe um elemento que torna ​Love You To a​ inda mais


extraordinária: a guitarra elétrica ainda é presente na música, tendo acordes distorcidos
sendo tocados ao final de cada frase no refrão. Isto faz com que a música siga uma
harmonia e melodias diacrônicas ao passo que existem improvisos e melismos
microtonais ao final de cada estrofe, muito parecido com as estruturas dos ragas na
música clássica hindustani. Isto permite que ambas as musicalidades, ocidental e
oriental, coexistem no mesmo espaço, microtons e tons habitam o mesmo território em
que ocorre a as diferenciações e negociações entre ambas as culturas, não podendo dizer
que é uma música puramente ocidental ou puramente indiana. ​Love You To ​possibilita a
criação do terceiro espaço, um hibridismo estético de musicalidades.
Contudo, existe um aspecto da música que deve ser levada em conta - o
resultado do hibridismo estético que ocorre dentro do território da canção que é
capturado pela Indústria Cultural. A cultura Ocidental prevalece sobre a cultura Oriental
à medida que mercantiliza (e em larga escala, como vimos no Capítulo 1, com a
acelerada reprodutibilidade técnica e a grande distribuição global da música) a estética
híbrida. A Indústria Cultural homogeiniza a música, quando a fetichiza e distribuí para
um mercado de compradores ocidentais e se retifica, afinal os Beatles estão inseridos
dentro da indústria. Estaria esta lógica imperialista mais uma vez presente? Ou não?
60

3.2.3 Within you Without You

Within Without You é​ uma música composta por George Harrison, creditado há
Harrison/Lennon/McCartney, gravada entre 12 de março e 3 de abril de 1967, e lançada
em 1º de junho de 1967 no álbum Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band. Considerado
23
por muitos o melhor álbum da história , foi executado em um momento em que os
Beatles estavam dedicados inteiramente ao estúdio, estavam sujeitos a qualquer tipo de
experimentação, sem ter a preocupação de ter que replicá-las no palco. Em parte, ​Within
Without You é​ uma expressão deste processo.
É a primeira música de George Harrison que expressa a filosofia hindu e veda,
que vinha estudando desde a sua viagem á Índia em 1966, e suas aulas com Ravi
Shankar. A letra é uma espécie de crítica ao individualismo na sociedade ocidental - a
ideia de que cada um de nós temos temos nosso próprio ego - se baseia em ilusão, que
encoraja a separação e a divisão. Para nos aproximarmos, devemos abrir mão dessa
ilusão e perceber que somos "um só". Isto só reforça a ideia veda de experiência interna
e auto conhecimento tendo a música como possibilitador desse processo.
Harrison diz a respeito da canção:
Somos todos um. A compreensão da reciprocidade do amor humano é
incrível. Uma boa vibração, que faz você se sentir bem. Essas
vibrações que a ioga, os cânticos cósmicos e coisas assim são uma
viagem. Uma viagem que te leva para qualquer lugar. Não tem nada a
ver com com remédios. É só você na sua cabeça, a compreensão. É
uma viagem. Te leva direto para o plano astral. (TURNER, 2009, p.
207)

O seguinte verso da canção exemplifica este movimento de compreensão


interna:

Tente perceber que tudo está dentro de você, ninguém mais pode fazer
você mudar

23
Ver a lista dos 500 melhores álbuns da história elaborada pela revista Rolling Stones
61

E para ver que você é realmente muito pequena


E a vida flui dentro de você e sem você
(HARRISON-LENNON-MCCARTNEY, 1967)

Além do elemento lírico filosófico hindu, ​Within You Without you expressa estes
elementos em sua musicalidade. A música é praticamente uma reinterpretação da
música clássica hindustani, baseada em uma peça de Ravi Shankar (ROYALANCE,
2001, p. 242), utilizando praticamente de instrumentos do gênero - exceto pelos violinos
e violoncelos tocados pela Orquestra Sinfônica de Londres, ainda que tocados para
seguir a harmonia microtonal. George Martin, produtor do álbum diz: "Não foi difícil
organizar os músicos indianos para a gravação. Difícil foi escrever uma partitura para os
violoncelos e violinos, de modo que os músicos ingleses tocassem como os indianos."
(Apud TURNER, 2009, p. 205). A canção não só segue harmonias e melodias
microtonais, mas possui uma dicção orientalizada no modo de cantar de Harrison.
Estes aspectos da música sugerem uma prevalência estética oriental - um
terceiro espaço encoberto pela musicalidade e lirismos hindus. Todavia este resultado é
mais uma vez invertido pela indústria cultural através da mercantilização, afinal é uma
música de estética hindu composta por um inglês e distribuído para a cultura de massas.
A tradição cultural oriental é mais uma vez capturada pela indústria ocidental?

3.3 Os ruídos do encontro entre The Beatles e Índia

Os ruídos do encontro entre Beatles e Índia certamente tiveram uma grande


repercussão no mundo. Como vimos no Capítulo 1, nos períodos de beatlemania a
banda foi bastante influente no modo de fazer música pop, e não seria diferente nos anos
seguintes por conta da sua extrema popularidade.

O primeiro ruído que podemos listar é o surgimento de um gênero chamado


"raga rock", sendo "raga" uma alusão às próprias formas de improvisação na música
62

clássica hindustani. Este gênero se tornou caracterizado pela mistura entre o rock e a
música indiana. As músicas deste estilo musical seguem o mesmo esquema apresentado
na música ​Norwegian Wood do uso da música oriental como algo exótico. Bandas
britânicas também seguiram este exemplo, como: os Yardbirds na música Heart full of
soul (1965); os Rolling Stones na música ​Paint It In Black ​(1966) e no álbum Their
Satanic Majesties Request​ (GUERRERO, 2010, p. 37)​.
Os ruídos dessas experimentações também chegaram no Brasil, Caetano Veloso
em seu livro de memórias ‘Verdade Tropical’, revela que:
A idéia do canibalismo cultural servia-nos, aos tropicalistas, como
uma luva. Estávamos comendo os Beatles e Jimi Hendrix’. ‘Isso tem
muito a ver com o modo como ouvíamos os Beatles – de que nao
eramos /eu ainda menos do que Gil e grandes conhecedores. Na
verdade, foi uma composição de Gil, ‘Bom Dia’, segundo ele
influenciado pelos Beatles, que surgiu a fórmula. A lição que, desde o
início, Gil quisera aprender dos Beatles era a de transformar
alquimicamente lixo comercial em criação inspirada e livre,
reforçando assim a autonomia dos criadores – e dos consumidores. Por
isso que os Beatles nos interessam como o rock’n’roll americano dos
anos 50 não tinha podido fazer. (VELOSO, 1997, p. 169)

Outro ponto que se deve dar atenção é o fato de que os Beatles ajudaram o
próprio "mestre" de George Harrison na sua inserção na cultura indiana: Ravi Shankar.
Shankar após trabalhar com os Beatles ganhou muito mais visibilidade no ocidente,
chegando até apresentar no famoso festival "hippie" Woodstock, e​ m que apresentou para
uma multidão gigantesca em torno de estrelas do rock da época, tocando apenas a
música clássica hindustani.
A filosofia e a música indiana tiveram forte impacto no psicodelismo hippie,
ideias que já vinham sendo passadas desde Allen Ginsberg, um dos pensadores do
movimento ​beatnik.​ A Índia se tornou um lugar de desejo hippie para a busca de novas
experimentações. Cecília Guimarães Bastos, sobre esse tema, escreve:
O grande marco de como a Índia passou a ter maior visibilidade para o
chamado mundo ocidental, com certeza, foi o fato de os Beatles terem
visitado o país na década de 1960. Esse acontecimento marca o início
63

da “popularização” de uma imagem desse local como aquele que passa


a atrair certo tipo de “peregrino moderno”. (BASTOS, 2016, p. 41)

Os Beatles através de suas músicas, entre as abordada nesta monografia e outras


que escolhi não observar com profundidade, criaram uma ideia de Índia, que provocou
transformações na cultura popular ocidental mais amplas do que muitos podem
imaginar, pelo fato de ela ter oferecido às pessoas que não eram religiosas de maneiras
tradicionais um meio de ser espiritual, ou de “praticar” a espiritualidade. (BASTOS,
2016)
64

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É problemático falar em uma conclusão a respeito se os Beatles foram ou não


importadores das culturas indianas para o Ocidente. O que podemos dizer é que a banda
teve um papel fundamental da disseminação de uma visão sobre as musicalidades
hindustani, de fato uma visão que foi pensada para ser mais "palatável" para a cultura
Ocidental. Desta maneira se foi inventada uma Índia. Pode-se dizer que é uma forma de
orientalismo em conjunto com a manipulação da indústria cultural, pois nesse processo
se cria um imaginário do que seria Índia a partir de uma interpretação de músicos pop
britânicos. No entanto, este processo não é apenas a perpetuação da lógica de
dominação - ele de fato acontece - mas as relações entre Beatles e Índia se dão de
maneira ambivalente. Um pergunta de Homi Bhabha que pode nos ajudar aqui é: o que
excede dessa relação e pode nos favorecer para superar as feridas do “progresso”? Além
disso, se falamos de um oriente inventado pelo ocidente, como desvelar esse ocidente
que se inventa diante dos outros para “engoli-los” em sua lógica colonial?
Ao mesmo tempo que ocorre esta relação de dominação cultural, também há
espaço para hibridizações culturais (mesmo que capturada pela indústria). E possibilita
espaço para (re)criação de novos territórios e fronteiras culturais para diferentes partes
da cultura humana. Pessoas mudaram, e continuam a mudar suas perspectivas para
aprofundar os conhecimentos culturais distantes da suas realidades - como neste caso a
indiana - através da arte e da música. Como é o meu caso neste projeto monográfico. No
entanto, o que foi visto ao longo destes três capítulos apenas nos dá pistas para se
aprofundar ainda mais nos aspectos culturais entre The Beatles e Índia. Talvez,
pudéssemos terminar essa monografia com uma resposta definitiva. Mas não. Termino
problematizando, levantando suspeitas, trazendo algumas afirmações.
O tema segue aberto.
65

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