Você está na página 1de 264

Ciro Flamarion S.

Cardoso
Héctor Pérez Brignoli

1
!
OS MÉTODOS
DA
HISTÓRIA
Introdução aos problemas, métodos e técnicas
da história demográfica, econômica e social
Traduzido
por
JOÃO.MAIA

6ª Edição

-
emal
Capa: Fernanda Gomes

Traduzido do original em espanhol


LOS MÉTOoos·oE LA HISTÓRIA

Direitos adquiridos para a língua portuguesa ppr


EDIÇÕES GRAAL Ltda.
Copyright by Editorial Grijalbo

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros. RJ.

Cardoso, Ciro Flamarion S.


C261m Os Métodos da história / Ciro Flamarion S. Cardoso e Hector Perez
Brignoli: tradução de João Maia. - Rio de Janeiro: Edições Graàl.

Tradução de: Los Metodos de la historia I Bibliografia

l. .Hi~tória - Metodologia 2. Historiografia l. Brignoli, Hector


Perez III: Título Ili. Série.

CDD - 907.2
900.18
CDU - 930.2
79.0098 82.94

Rua do Triunfo, 177


Santa Ifigênia, São Paulo, SP-CEP 01212-010
TeL: (011) 3337-8399
Rua General Venâncio Flores, 305 - Sala 904
22441090 - Rio de Janeiro - RJ
Te!.: (021) 2512-8744
E-mail:vendas@pazeterra.com.br
Home Page:www.pazeterra.com.br

A Maria Yedda L. LINHARES


2002
Impresso no Brasil/Printed in Brazil A Pierre VILAR-
APRESENTAÇÃO

Este livro presttzTá uma inestimável ajuda a quantos se in-


teressam seriamente pelo estudo da história e desejam conhecer os
métodos ltltuais de pesquisa do passado. Este objetivo nem sempre
se pode alcançar nas aulas de 'nossas universidades, onde é fre-
qiiente até hoje - as coisas, por acaso começam a mudar - ig-
norar--se e 'menosprezar-se as contribuições metodológicas dos
ú[(imos cinquenta anos, nem sé consegue· pela leitura dos tratados de
teoria :remifilosófica da história, que. há em quantidade entre nós,
caracterizados por um vazio rebuscado; sit~ando-os a uma grande
distdncia de um livro como este," elaborado com esforço e mo-
déstia, aperfeiçoac/4 pela prática diária · de ensino universitário, e
cui"4dosamente atualizado.
Talvez se e.reanda/fiem os que se prendem irracionalmente a
velhos modos de conceber a história, totalmente superados. Quan-
do virem ne.ttas páginas alg1ms números, gráficas e equações sim-
ples, ·dirao indignados que isso é "confundir a aritmética com a
história" 1 como .disse um candidato a uma vaga de catedrático.
Como se dizer, por exemplo, que o número. de homens, seus nas-
cimentos e mortes, medindo com isso o tempo e a esperança de
~uas vidas, n4o seja ,,µJ vezes mais transcendente .que ater-se ao
estiúlo documentado de uns tratados dipfomáticor que jamais fô·

7
ram observados, ou de -movimentos de tropas em batalhas que
nada resolveram!
Esta obra tios fala dos homens, de suas vidas, seus trabalhos,
sua .sobrevivência, sua forma de se organizar em sociedade, seu
pensamento, suas lutas. . . E da forma como todos estes dados,
juntos, nos permitem uma visão global das sociedades humanas
e o estudo de sua evolução.. Seria difícil encontrar objetos mais
legítimos de lrabalho do historiador.
Que ao longo de suas pesquisas o historiador tenha de for-
mular apreciações quantitativas, é não só admissível como também
obrigatório. Quando um cultuador das formas mais tradicionais
da "ciência histórica", e defensor de uma interpretação reacionária
4o passado espanhol - fatos que não se estranha virem associados
- escreve que -"está comprovado o divórcio entre o povo e o
sistema liberal", pretende dizer-nos, na verdade, que a maior· parte
do "povo" era contrária ao liberalismo. Está, com isso, fazendo
história quantitativa sem o saber - como o senhor Jourdain falava
em prosa -. mas a faz mal, tornando desse modo impossível a
v_erificação de sua afirmação. Uma vez: que não se possa senão
fazer história quantitativa em maior ou menor proporção, embora
se ocupe das vidas e. amores das princesas, será melhor fazê;.la
consçitmtemente e de acordo com os procedimentos metodológicos
corretos, .que permitam comprovar e discutir os resultados. Isto
não significa, nó ·entretanto, que a cifra e a medida sejam o objeto
final da pesquisa hstórica. São, .rimplesmente, dados ·grosseiros,
elementos dos quais se deve partir para proi:eder a umq tare/a
mais complexa da interpretação global.
Escrito por dois historiadores ibero-amercanos este livro ex-
trai a parte mais viva e valiosa da escola /rances~ dos Anais -
o legado de Marc Bloch e de Lucien Febvre - , passando-a pelo
crivo marxista, de forma que podemos apreciá-lo na obra e na
reflexão teórica de Pierre Vilar, em quem estas. páginas foram
diretamenie inspiradas. Não é de se estranhar que a obra nos pa-
reça metodologicamente mais próxima quê os livros inspirados em
o~tras correntes culturais. A isso deve-se também o fato de que
o.f autores tiram seus exemplos da história colonial hispano-ame-
ricana, o que apresenta a dupla vantagem de fazer ·_referência a.
algo que forma parte de nosJ'Q própria hi-stória, e· que permite, por
outro lado, introduzir as dimensões do conflito racial e dos pro-
blema.r do escravismo. Tampouco o propósito que inspirou estas

8 9
sua situação presente e as perspectivas das quais devem partir_
na elaboração de seu futuro. Uma história-instrumento, que enri-
quece a çapacidade de compreensão e de crítica, supõe Unia par-
ticipação ativa de todos quantos por ela se interessam.
Ao propor a_os editores a publicação deste livro, pensei so-
bretudo nos estudantes, em romo é importante que se acostumem
a pensar em seu aprendizado de história como algo ativo, que
exige sua plena colaboração, ao invés de se contentarem em se-
rem receptores totalmente passivos de um ensino acadêmico que
nada tem a ver com suas preocupações ou seus problemas. Assim,
as novas gerações de historiadores que não se resignarem a con-
tinuar: sendo meros repetidores de fatos e palavras do passado,
adquirirão um gênero de conhecimento que lhes permitirá viver
em seu tempo e em seu mundo, colaborando para melhorar o
presente e levando sua própria contribuição na tarefa de fazer do
homem o construror consciente de seu futuro; INDICE
Barcelona, outubro de 1976. Prefácio ..• .............. ' .. ............... ........ .
· •.• 15
Josep Fontana
PARTE 1 .·

CAP. 1- A evolução recente. da c1encia histórica . . . . 21


A - O caminho percorrido: da história linear dos
fatos singulares à história das estruturas . . . 21
B - As linhas de força da evolução- recente da
ciência histórica . . . . .. .. . . . .. . . . . . . . . . . 24
C - A história quantificada e suas correntes . . . . 29
D - Conclusão: o que é a ciência histórica de hç>jc? 39

CAP. li - A evolução recente da ciência histórica . . . . 45


A ....:... Os limites .da quantificação e da econometria
retrospectiva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45
B - Ciências históricas ou ciência histórica? O li-
mite entre hisiória econômica e história total 49
e - Os. historiadores e as estruturas . . . . . . . . . . . 57
D - Metodologia e dependencia cultural . . . . . . . 63
E - Conclusão ..... ·.............. ..--... ; ·, . . . .. 67

10
CAP. lll - Marxismo e História no século XX ...... . 68 F - História de empre,as ................... . 337
A - Concepção marxista da história, da década de G - Conclusão ........................... . 346
20 a nossos dias ..................... . 69
B - A influência do marxismo no pensamento his-
CA.P. VII - A História Social ...................... . 348
tórico contemporâneo ................. . 83 A - Os sentidos da expressào _"História Social" 348
C - A concepção marxista e a história da Amé-
B - História Social e dados econômicos ~....... . 354
rica Latina ......................... . 85
D __:_ Conclusão 103 C - Estrutura social e estratificaçào ......... . 358
D - Movimentos e lutas sociais ............. . 383
E - As mentalidades coletivas ... : ........... . 394
PARTE II F - Conclusão ........................... . 406

CAP. IV - História demográfica ................. . 107


A - A demografia ....................... . 107
B - A história demográfica ................. . 123 PARTE III
C - Demografia européia de "ancien regime" e
história demográfica latino-americana ..... . 134 CAP. Vllf - O m~tóJo clm1purativo na História ....... . 409
D - A expforação dos registros paroquiais .... . 158 A - Definição, irnponância e vantagens ....... . 409
E - A pesquisa dos registros paroquiais ....... . 184
B - Armadilhas e perigos na aplicação do método:
Precau•;l>e~ necessanas ................ . 413
F - Exploração das· listas nominativas de habitan-
tes e documentos análogos .............. . 195 C - As formas e os resultados da aplicação do
G - Conclusão ........................... . 203 método comparativo .................. . 415
D - Conclusão .....· ..................... . 418
CAP. V Problemática da História econômica da Amé-
rica Latina 204 CAP. IX - problema da sí-ntese na História . . . . . . . .
IÜ 421
A Generalidades 204 A - Colocação da questão . , . . . . . . . . . . . . . . . . 421
B - A época colonial ...................... . 208 B - Alguns problemas de metodo e de epistemologia 429
C - Os séculos XIX e XX ................. . 233 C - A· resposta. mai'xista: O materialismo histórico 440
D - Conclusão 258 D - A "escola francesa" ou ''escola dos Annales" 470
E ·_ Conclusão 478
CAP. VI - Conceitos, métodos e técnicas da História
Econômica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 260
A - Um vocabulário básico . . . . . . . . . . . . . . . . . . 260 ANEXOS
B - As flutuações econômicas . . . . . . . . . . . . . . . . 268
C - Quantificação e estatística em história . . . . . . 280 Como organizar e realizar uma pesquisa histórica 483
D - Quantificação e estatística na História . . . . . 300 Vocabulário Estatístico Básico ... :. . . . . . . . . . . . . 489
E - Quantificação e estatística em história: em- A contabilidade da~ empresas ..... : ... , . . . . . . . 49·
prego da amostragem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 333 O uso da computaçào em História .... .-: . . . . . . . . 50:
Os modelos econométricos e seu emprego na J:{istória 5 11
Somatório de Quadrados .......... : . . . . . . . . . . 528
Tabela de números fortuitos . . . . . . . . . . . . . . . . . . 530

PREFACIO

O texto apresentado ao leitor tem a modesta ambição de con-


tribuir para preencher um vazio: a falta, 11.té certo ponto inexplicá-
vel, de um manual que apresente o estado atual da metodologia. na
história demográfica, econômica e social. Em boa parte dos meios
acadêmicos ibero-americanos ainda é comum a confusão entre a
metodologia e a filosofia da história. Frequentemente acontece que
a me.todologia histórica ensinada nas universidades resume-se a um
aparato erudito, ·apoiado em múltiplas disciplinas auxiliares, cujo
objetivo é o estabeleCimento da autenticidade do documento em
que, pre.ssupostamente, dorme o. ''fato histórico" - objeto sempre
p-roclamado e jamais convenientemente definido da ciência histó·
rica· - à espera da- chegada reverente · do historiador,
Este manual. pretende abrir combate contra esta concepção do
ofício de historiador. E verdade que em muitos países tai çombate
já não teria sentido: seria cercar uma fortaleza que já so rendeu há
muito. . . Desgraçadamente não podemos dizer o mesmo da Ibero-
América, onde: só o atraso cultural continua a justificar a vigência,
e até o predomínio, de uma visão posúivista e anacrônica da his-
t_ória.

15
Entretanto, é indiscutível que está se impondo, na América rem de algum modo este manual encontrarão deficiências e erros
Latina, uma nova maneira de fazer história; e isto não se dá apenas que muito gostaríamos que nos fossem apontados.
do lado da nossa disciplina, mas é parte de um movimento mais A Parte III, últiml\ a ser elaborada, surgiu graças às suges-
amplo que inclui todas as ciências sociais e, muito especialmente, a tões de Pierre Vilar, ao comentar conosco, amavelmente, o plano
economia e a sociologia. Como no caso europeu, o combate contra do livro, indicando-nos os perigos da não inclusão do problema da
a velha história positivista nutre-se do contato com outras ciências síntese global. A bibliografia usada nesta parte final é mais atuali-
do homem, que contribuem para a definição de uma nova proble~ zada do que a da Parte /. O que é explicado pelo tempo ocupado
mática científica, mas a situação histórica da referida crítica é basi- pela redação e pelo caráter de rápida evolução que singulariza
camente diferente. Enquanto no caso europeu tratou-se da influên- nossa disciplina.
cia direta das ciências sociais sobre a história que se renovava, na Por fim, agradecemos as valiosas indicações e correções de-
América La.tina trata-se de uma crítica bem mais radical, que leva vidas à Dra. Maria Luiza Marcílio, que leu o manuscrito do capí-
tanto a sociologia como a economia e a história a questionarem as tulo IV; também somos gratos ao Dr. Enrique Florescano pelas
explicações fundamentais proporcionadas no sentido da compreensão sugestões sobre o plano do manual. Obviamente somos os únicos
de nosso presente e de nosso passado a partir de uma teoria con- responsáveis pelos erros do texto apresentado a; leitor.
cebida para as ·sociedades capitalistas desenvolvidas.
Com a intenção de contribuir para este esforço do pensamento San José (.Costa Rica), junho de 1974.
latino-americano, esforçamo-nos para elaborar um manual adaptado
às necessidades específicas do subcontinente, buscando mostrar os
campos básicos de interesse para a pesquisa em história demográ-
fica, econômica e social, e a forma de escolha e aplicação dos méto-
dos e técnicas mais recentes em nossas condições específicas. Por
e·stes motivos afastamos a tentação - bem grande, certamente -
de apenas traduzir um manual estrangeiro de bom nível, o que teria
sido, sem dúvida, mais fácil.
A presente obra tem um objetivo limitado. Destina-se, espe-
cialmente, aos estudantes de história e de outras ciências sociais
que desejem iniciar-se nos métodos e técnicas de alguns dos ramos
da ciência histórica, . embora não desprezemos a possibilidade de
também poder ser útil a professores formados em história tradi-
cional e desejosos .de renovar sua perspectiva metodológica. Deve
ficar bem esclarecido que não se trata de obra destinada a especia-
listas.
Fazemos questão de registrar o caráter incompleto e imperfeito
de;te livro. O que é devido, sobretudo, à limitação dos autores .e
ao caráter de rápida mutação que o objeto de nosso estudo apre;.
senta, de uns anos para cá, com os métodos e técnicas conhecidos
em pleno processo de reelaboração - enquanto surgem novos
instrumentos conceituais e novos campos de estudo e de aplicação.
Sem dúvida, os especialistas e, em geral, todas as pessoas que usa-

16 17
PARTE l
CAPÍTULO I

_A EVOLUÇAO RECENTE DA CIÊNCIA HISTÓRICA:


Etapas, correntes e campos de estúdo

.A. O caminho percorrido: da história linear dos fatos


singulares à história das estruturas

No começo deste século o panorama da historiografia era do-


minado por uma concepção, herdada do século XIX, denominada
,de "história historizante" (Henri Berr), ou "história episódica"
( événementielle: Paul Lacombe). Segundo e~a concepção, a missão
·do historiador consistiria em estabelecer - a partir dos documentos
- os "fatos históricos", coordená-los e, finalmente, expô~tos coeren-
1emente. Os "fatos históricos seriam aqueles fatos singulares, indivi-
duais, que "não. se repetem"; o historiador deveria recolhê-los todos,

21
objetivamente, sem optar entre eles. Seriam encarados como a riorização e conceitualização do sentimento do progresso, o
matéria da história, que já existiria 'latente nos documentos., ant:s "acontecimento" indica, quase sempre, a etapa de um advento
do historiador ocupar-se destes. Sua coordenação em uma cadeia volítico ou filosófico: República, liberdade, democracia, razão ..
linear de causas e conseqüências constituiria a síntese, a apresenta- Esta consciência ideológica da história pode assumir formas
ção dos fatos estudados: fatos quase sempre polí,,tic?s, diplomáti~~s, mais refinadas; pode reorganizar o saber adquirido sobre deter-
militares ou religiosos, muito raramente econom1cos ou sociais. minado período em torno de esquemas unificadores menos
Obviamente, a realidade do funcionamento deste modo de fazer diretamente ligados a escolhas políticas ou a valores (assim
história não correspondia à visão que os historiadores de então como o "espírito" de uma época, sua "visão do mundo"); mas
tinham de sua disciplina. Certos de suas "ciências a.uxília~es" }~n­ ela traduz, no fundo, o mesmo mecanismo de compensação;
tamente elaboradas no curso dos séculos para serv1rem a cnttca para ser inteligível o acontecimento precisa de uma história
externa e interna dos documentos, seguros do conjunto de regras global definida fora e independentement~ dele. Daí vem esta
de seus métodos, em geral, eles estavam longe de perceber que os concepção clássica do tempo histórico corria uma série de des-.
famosos "fatos históricos", supostamente uma realidade exterior e continuidades descritas de modo contínuo, que é naturalmente
substancial que !'e impõe ao pesquisador eram, antes, uma criaç~o a narração."
óeste; que embora não se evidenciassem, ,explícitas, uma teona
explicativa ou hipóteses de trabalho, nem por isto deixavam de É evidente, entretanto, que o método crítico - penosamente
existir - e determinavam a seleção do objeto e dos documentos; constituído desde o Renascimento, principalmente - · teve e tem
a elaboração dos "fatos" a partir de tais testemunhos; .e sua expo- sua utilidade. f: necessário situar os documentos no tempo e no
sição ordenada. Uma concepção transcendente da história, do movi- t:spaço, classificá-los, criticá-los quanto à autenticidade e credibili-
mento histórico - claro que implícita e nunca mencionada - era dade. Mas, este trabalho erudito já_ não representa a maior parte
0 critério para definir cada fato como histórico ou não, e era o da atividade do historiador, como acontecia quando predominava
que permitia "saltar" de um fato para outro, assim compon?o ~m a concepção positivista da história.
texto ordenado'.t A "imparcialidade" ou "objetividade" do h1stona- Sem dúvida, desde os primeiros decênios do século, esta visão
d~r positivista· era, pois, um mito claramente evidenciado neste trecho da história esteve sob crítica - sem deixar, então, de ser domi-
de um artigo de François Furet: 2 nante -- dos pioneiros de uma nova concepção histórica, como
Paul Lacombe e Henri Berr. Este último inspirou a Revue de
". . . como• o acontecimento irrupção súbita do único synthese historique, graças· à qual pôde ocorrer um primeiro con-
e do novo na cadeia do tempo - não pode ser comparado tato da história com as outras ciências do homem. Nesta primeira
com nenhum antecedente, o único modo de integrá-lo à his~ fa~e d~ abertura da história a novas influências, a psicologia foi a
tória consiste em atribuir-lhe um sentido teleológico: se ele ciência que mais atraiu certos historiadores, inclusive Lucien Febvre.
não tem um passado terá um futuro. E como a história se A decisiva mudança de rumos ocorreu a partir de 1929, com
desenvolveu, desde o século XIX, como um modo de inte- a criação dos Annales, por Lucien Febvre e Marc Bloch: estes
historiadores fizeram da referida revista um' ponto de encontro e de
1 Cf. Lucien Febvre, Combates por la hist?Tiª~ Trad. de F. J. Fernández- debates entre historiadores· e cientistas sociais, em geral. Graças a
Buey e Henrique Arquillol, Barcelona, Ediciones Ariel, 1970, pp; 175-181; seu estímulo - e ao de F. Simiand, E. Labfousse, J. Meuvret, etc~
Ma~rice Bouvier-Ajam, . Essai de méthodologie historique, Paris, Le Pa- .,-- começou a evolução que conduziu ao estado presente da histo-
villun, 1970, pp. 28-30. riografia francesa, cuja influência sobre muitos historiadores latino-
2 François Furet, "L'histoire quantitative et la constniction du fait his-
torique", in Ar-males E. S. C. (Paris, Armand Colin) janeiro-fevereiro americanos sempre foi grande. Em uma primeira fase, foram os.
de 1971, pp. 63-75 (citação tirada da página 71). estudos ec.onômicos da conjuntura que mais influenciaram os histo-

22 23
Mas as modalidades e a intensidade do contato foram variáveis.
riadores estimulando o estudo dos preços e salários. Entretanto, o Por um lado, houve verdadeira importação de técnicas e métodos,
grande 'movimento de contato e discussão com as c,iências sociais além de vocabulário e problemática, relativamente à economia polí-
mudou de direção - mais de .uma vez - a par· da decada de 1930, tica, à econometria (com a criação de uma "economstria retros-
sob novas influências: do estruturalismo lingüístico e antropoló- pectiva"), e à demografia; por outro lado, da sociologia, por exem-
gico, da demografia, da escola de Chicago. A importância d.e Fer- plo, a história adotou, principalmente, parte da problemática e da
nand Braudel e Ernest Labrousse foi fundamental, no sentido de terminologia~ de preferência aos métodos; e o estruturalismo lin-
orientar os historiadores para o estudo das estruturas - além dos güístico e antropológico atuou sobre a história, basicamente, no
acontecimentm e dos ciclos conjunturais. Ao contato das outras sentido de provocar a reflexão dos historiadores sobre certas noções
ciências do homem, a história interessou-se pelos fatos·· recorreq- fundamentais, sem influir diretamente em nenhum (ou quase
tes, ao lado do~ singulares - a partir de 1930, aproximadamente nenhum) ponto da pesquisa histórica.
- pelàs realidades conscientes, juntamente com as que pudessem
Um certo número de termos resume o essencial da uova pro:.
ter fugido à consciência dos contemporâneos -:--- por exemplo, os
blemática e metodologia que a história veio adotando nos últimos
ciclos conjunturais de longa duração. 3
quarenta anos: quantificação, conjuntura, estrutura, modelo.
A quantificação sistemática, inaugurada com os estudos da
çonjuntura econômica, através de séries estatísticas (daí o nome
de "história serial"), significou mudança qualitativa não só ao
nível dos métodos e técnicas como a nível epistemológico.
Toda a concepção da histófia tradicional desmoronou, pois s·eu
objeto, o "fato singular", deixou de dominar o horizonte do histo-
B. As linhas de, jorça da evolução recente da ciêncza riador: este se interessava, agora, em captar as pulsações, os ciclos
histórica de longa ou curta duração da vida econômica, seus efeitos so~iais
ou outros. A própria natureza da pesquisa .º obrigava a colocar
muito claramente sua teoria explicativa e suas hipóteses de trnbalho 7'
a especificar os critérios de seleção ou elaboração de dados, o
porquê da escolha deste ou daquele processo estatístico. Os aconte-
O motor da evolução recente .da história foi, pois - e con-
cimentos não estavam de todo ausentes de suas preocupações, pois
tinua a sê-lo - o contato com as demais ciências do homem;
para explicar ás ·flutuações conjunturais é necessário recorrer a
menos estruturada, a história também se mostra mais aberta, menos
rígida, menos resistente à mudança do que ãs outras disciplinas. eles: uma guerra, p~r exemplo, pode ter grande influência sobre '1l
.conjuntura comercial; mas já não se. tratava de construir a histó-
Iia saltando d~ fato singula~ a fato singular. Quando se trabalha
3 A revista criada por Lucien Febvre e Man: Bloch chamou-:>e, primei- com curvas e séries estatísticas, o que importa, em últiipa análise,
ramente, Annales d'histoire économique et sociale, depois Annales d'his-
toire social e, mais tarde M élanges d'histoire sociale e, finalmente, .<em é muito mais a tendência, o sentido çla evolução do que tal ou qual
194ti ), Annales. Economies, sociétés, . civilisations. Após o assassinato d~ fato ou dado. particular. 4
Blo.:'h pelos ocupantes alemães, L. Febvre continuou trabalhando ate Nos países anglo-saxões, a história éconômica quantificada
11w1·1 cr, dirigindo a re ... ista; esta teve depois, como inspirador, Fernand
Br:1u,kl Cf. François Simi_and, Le Salaire, l'évolution sociale et la evoluiu de modo e ritmo diferentes dos. da França, embora com
llWWWÍt.:, earis, 1932, 3 vol.; Ernest Labrousse, Fluctuaciones económicas e
lwluna social; Madrid, Tecnos, 1962; os principais arti~os de Jean Meuvret
foram, recentemente, reunidos em um livro: Etudes .d'histoire économique, 4 Cf. F. Furet, art. cit.
mi. Cahicrs des Annales n.• 32, Paris, Armand Colin, 1971:
25
24
pontos de contato e influências mútuas; tenhamos presente, por ciam absorver todas as atenções. Porém, tratava-se· de um debate
exemplo, as polêmicas de Hamilt~n com os. hi~toriadores franc~ses. freqüentemente mal colocado e pelo menos parcialmente falso, no
Nos Estados Unidos foi onde surgiu; pela primeira vez, o que Pierre fundo. A evolução posterior da antropologia e da história, mostrou·
.Vilar denominaria mais tarde, na _França, de "econometria retros- que muitas das supostas incompatibilidades estavam relacionadas com
pectiva". A. New Economic Hist~ry não limita suas ambições ao 0 estágio de evolução de uma história ainda não completamente
estudo de séries estatísticas ou, quando muito, à correlação entre comprometida com o estudo das estruturas - e de uma antropolo-
. elas: tenta aplicar retrospectivamente . a teoria e os métodos da gia que vacilava em aborcfar o difícil problema da gênese e evo!u-
ciência econômica e, assim, reconstituir as economias . pass·adas ção das mesmas estruturas. Mas é' certo, entretanto, que a preo-
mediante um sistema de· equações. :E: uma história feita por econo- cupação primordial da história com a dinâmica da evolução, com .c1
mistas profissionais, não por historiadores. Na França, uma "histó- tempo, a põe em oposição não só à antropologia estrutural co'!1º·
ria quantitativa" semelhante - embora muito menos rica - surgiu também, às outras ciências sociais. Certas divergências, além disto,
na década de 60 · deste século, também feita por economistas: a provêm de uma diferença de ótica e de objeto: o estruturalismo de
escola de Jean M~rczewski. Nos Estados Unidos, como na França, Lévi-Strauss ocupa-se prioritariamente das estruturas mentais, que
os economistas-historiadores dedicados à econometria retrospectiva
são as que mais lentamente ·evoluem, o que levou a antropologia
manifestam certo desprezo pelo que, às vezes, chamam de "história
estrutural a acentuar a noção de "invariância" das estruturas e os
econômica tradicional", escrita por- historiadores-economistas. não a
levam em conta. 5 fatores externos da evolução delas. 6
As técnicas e métodos quantitativos, primeiramente aplicados As·. mudanças da concepção da história levaram, pois, à supe-
à histórià;)econômka e depois à história demográfica e soci11I, ten- ração do acontecimento, a alcançar (além destes) . as flutuações
dem a ' conquistar sempre novos campos de trabalho - evoluçãe> conjuntur,ais de duração variável e, afinal, o _próprio. nível .das e~tru­
que é facilitada e acelerada p,ela difuS;ão do emprego dos' compu• tui;a~;, que mudam muito lentamente. Fernand Braudel. fm o histo-
tadores. : Atualmente tenta-se, ·por exemplo, desenvolver uma se- riador que soube perceber e sintetizar as implicações de tal evolução
mântica quantitativa aplicada à história, quanto, ao problema . - essencial para o historiador - do tempo,
A noção de estrutur~ surgiu nos estudos históriCos muito antes. da duração, ao distinguir três níveis: o nível dos acontecimentos.
de se ter desenvolvido a antropologia estruturalista de Claude Lévi• da história episódica, que se move na cµrta duração; o nível interme-
Strauss; o marxismo a usava desde O· século· XIX e na primeira diário, da história conjuntural, de ritmos mais lentos emborá muito
variáyeis; e, por fim, o nível profundo dé!; historia estrutural de
metade deste século vários his~oriadores dedicaram-se às estruturas.
maior ouração. As· estruturas, "rio limite do móvel e do imóvel..,
sa'ciais, embora nem sempre :tenham usado, explicitamente, o termo
são no movimento histórico, "a um tempo sustentáculos· e obstá-
estrutura. (Jaures, Georges Lefebvre), · Mas nãp há dúvida de que
culos da· história", como diz Albert Souboul. Assim; a ciência his-
o advento do estruturalismci forçou os historiadores a refletirem
Íórica sem deixar de preocupar-se prioritariamente com a mudança,
i.Óbre o próprio conceito de estrutura, por eles usado às vezes com
o movimento, soube fazer-se consciente, também., das persis.tências,
rigor insuficiente. Na década passada, certas oposições (antropologia-
das sobrevivências, das resistências à mudança. Por outro !.ado, os
história, sincronia-diacronia0 · estrutura-aconiteciménto, . etc) pare-
historiadores deram-se conta de que os vários níveis estruturais apre-
sentam ritmos evolutivos diversos, ·devido à e;dstência de defasagens
5 Jacob M: Price; "Principales · tendencias de la invest~gación cuantitativa no sefo da. estrutura global: as estruturas econômicas mudando mais
, ._ • J. •
1·cdente en el campo de la historia•, Trad. de Cecília Rabell, em Pers-
pectivas de la historia económica cuantitativa en América Latina, México.
l-1 Colegio de México (Comisiôn de História Econômica dei Consejo La-
6 Ver Labrousse e outros, .Las estructuras y los hombres, .Trad. de M.
trnoamericano de Ciencias Sociales), 1970, pp. 9-33 (mimeografado).
Sacristán, · Barcelona, Édiciones Ariel, 1969.

26 21
1 ntes eptre os diversos níveis de uma determinada -sociedade, _que-
rapidamente do que as sociais e as estruturas mentais mais lenta- r:m<>s ter desta urna imagem tão integrada e global quanto po~s1vel.º
mente do que as demais. 7 · Oo acontecimento à estrutura; da curta à longa duraç~o; ,d?
Atualmente impõe-se crescentemente aos historiadores a noção individual ao coletivo: em todos os planos considerados sera fac1I
de modelo. Além dos modelos econométricos da New Economic constatar o processo de ampliação e aprofundamentc que caracte-
History e da "'história quantitativa" francesa, há tentativas, mais riza ·a visão atual da história. .
interessantes e promissoras, de construir modelos que considerem Passaremos, agora, a desenvolver de modo um pouco ma;s
a êspecificidade dos distintos sistemas sociais e. econômicos: como minudente alguns dos pontos mencionados tão brevemente nos para..
é o caso do modelo do sistema feudal polonês elaborado por grafos precedentes.
Witold Kula. 8
Para Henri-Irénée Marrou o traço mais importante das trans-
formaçiYes · recentes da ciência histórica é a tendência crescente
que mostra para "apreender o passado do homem em sua totali-
dade, em toda a sufi complexidade e completa riqueza". Ao lado
d~ história política, diplomática e militar, cujo predomínio era antes
absoluto, desenvolveram-se novos e férteis campos de estudo que
ocupam, hoje em dia, a vanguarda das pesquisas históricas, por e. A história quantificada e suas correntes
seus brilhantes sucessos resu}iantes do progresso ininterrupto de
. Uma metodologia e uma problemática em constante renovação e
àperfeiçoamento: história econômica, história demográfica e histó-
1-ia social (esta compreendendo o estudo das mentalidades ·coleti-
vas). Atualmente, já não aceitamos uma narrativa histórica cujo
ritmo seja marcado· apenas, .e (principalm~nte, por dinastias, bata·· 1. MUDANÇA FUNDAMENTAL: A QUANTIFICAÇÃO
·lhas, ministérios, tratados, etc.; o quadro que se vislumbra, apói SISTEMÁTICA
um estudo deste tipo, parece-nos por demais estreito. Além de gran·
des personagens e grandes acontecimentos. políticos - na verdade,
mais do que a -estes - aspiramos conhecer para cada período
e cada sociedade, o quadro técnico, econômico, social e institu-
donal; as pulsações conjunturais; os movimentos da população; a A inclusão ocasional de cifras no texto, como apoio a certas
vida das grandes massas, e não somente a dos grupos dominantes; afirmativas, sem dúvida é muito antiga e já a encontramos na::;
os movimentos e relações· sociais; a psicologia coletiva, e não apenas obras de alguns historiadores gregos e romanos. Porém, quando ~a
a dos "personagens· históricos". Ainda mais, aspiramos entender terceira década do presente século certos historiaderes da economia,
os mecanismos que explicam as concordâncias e discordâncias e1us- sob a influência dos estudos da conjuntura econômica reaJi'zados
pelos economistas, implantaram em seus trabalhos a quanfüicação
7 Idem, PP. 115-124 <comunicação de A. Soboul> ;-cf. principalmente F'er-
nand Braudel, "La larga duraciónn em La Historia y las ciencias· sociales, 9 Cf. Henri-Irinée Marrou, "Qu'est-ce que l'histoire?", em L' Histoire et
Trad .. de J. Gomez Mendoza, col. El Livro de Bolsillo n.º 139, Madrid, ses méthodes (sob a direção de Charles Samaran), col. '.Encyclopédie de
Aha1ua Editorial, 1970, pp. 6().106 (o artigo é de 1958).
Ia Pléiade, ·Paris, Gallimard, 1961, pp. 3-33; Bouvier-Ajam, up. cit., PP·
8 Witold Kula, Théorie. économique du systeme ·féadal, Paris - La Haye,
30-41.
1~70.

29
28
sistemática - ' houve mudança de imensa importância. Os referidos Enfim, uma visão nova perm1t1a que os historiadores da eco-
historiadores - por muito tempo . uma pequena minoria, mesmo nomia incorporassem à sua área de estudos a problemática, o
em países como a .França - simplesmente transferiam seu princi- apar~lho conceituai, a teoria, os métodos e as técnicas da ciênCia
pal centro de interesse do inefável "fato individual" dos positivistas econômica. Os dados reunid_os em séde podiam ser manipulados
para os dados cuja integração em séries homogêneas é possível; do conforme procedimentos estatísticos e matemáticos de variável com.;.
episódio para os elementos escolhidos (ou construídos) segundo plexidade.
•o critério de seu caráter recorrente; que os faz comparáveis no Avançando a partir d.e tais pontos, a história quantificada
âmago de um dado período de tempo. As mudanças que assim diferenciou-se, pouco a pouco, em tendências ou correntes, organi ·
começavam a penetrar, lentamente, a consciência dos historiadore'i zando-se em torno de duas atitudes básicas. De um lado, a posição
a: visão que tinham· de sua disciplina - eram primordiais. explificada, principalmente, pela esçola histórica francesa, ou "escoh
Em primeiro lugar, a ilusão da ingenuidade ou objetividade dos Annales", que se caracteriza pela rejeição de uma divisão
do historiador diante de "fatos" reais e substantivos que a ele se radical entre história econômica e história gl<>bal; por uma acen-
impunham, do exterior, já não ·podia ser mantida. Uma série de tuada prudência - quanto ao. valor da dt)cumentação disponível
dados qualquer - sobre preços, salários, exportação, produção, e, também, quanto à validez das formulações teóricas, vistas como
etc. - só tem sentido quando construída para responder a certas algo cule de.ve resultar da síntese. de um grande númer-o de estudo')
perguntas muito precisas. Em outras palavras, a história sistemati- de· casos e não apresentar~se como um é.lado a priori; por um grandõ
·camente quantificada pressupõe 'que a~ hipóteses de trabalho dos respeito à especificidade das diferentes snciedades e épocas,. juntll·
historiadores, dantes implícitas e inconfessadas, tomem-se ·explíci- mente com a crença na necessidade de formular teorias diferenciais
tas, claramente col.ocadas. Renunciando ·à sua feliz inocência o P:ara corresponder· à aludida especificidade; por um conhecimento e
historiador .leve de tomar conhecimento de algo . fundamental:· da manejo muitas vezes insu~iciente (devido às deficiências da forma-
necessidade,· ou melhor, da inevitabilidade de selecionar, recorta;r, ção acadêmica do'i historladprcs) da ab'itração conceituai, da teo-
•construir seu objeto. em função' de ~uas hipóteses, de seu marco ria econômica e das técnicas e métodos estatístico-matemáticos mais
avançados. ··.
teórico e .metodológico. ·
De outro lado esta a · história econômica feita por pesquisa-
Por outro lado, a construção do objeto de estudo em séries
dores cuja formação é econômica, não. histórica,. tendendo a fazer
homogêneas e coerentes levava a várias conseqüências importantes da história, meramente, .. um campo de aplicação retrospectiva <l:i
no referente aos métodos. Quando se raciocina em termo de séries teoria econômica mais atual, com seus modelos econométricos, o
de dados que se sucedem no tempo, ·esb~çando curvas que são a manejo da abstração conceituai e uma tecnologia estatístico-matemá-
representação gráfica de ciclos .· de expansão e depressão (isto é, tica muito refinada. Este segundo grupo começa a ·se fazer notado,
das palpitaç~es da vida econômica) o mais importante não é cada ·mais ou menos claramente, a partir da década de 1940, principal-
um dos . dados, individualmente, mas o próprio .desenho da curva, mente entre os anglo-saxões, terminando por cindir-se, também, em
sua evolução no tempo - preferencialmente na longa duração _;; o duas tendências: a constituída no início da décadà seguinte, nos
dado define-se. pelo valor relativo que apresenta q1,1ando comparado Estados Unidos, com Simon. Kuznets à frente, aparecendo pouco
.aos que o precedem e seguem. A crítica interna, antes ocupada em depois na. França com o nome de "história: quantativa"; e a New
.demonstrar a veracidade ou falsidade das · afirmações contidas ·nós Economic History, nascida nos Estados Unidos por volta. de 1957.
testemunhos escritps, agora deve dedicar-se à demonstração •.da Portanto, dois pontos de vista fundamentais e três correntes:
homegeneidade e da coerência interna· das séries de dados, recolhidãs·
~ou construídas pelo histói,iador, e de sua pertinência em relação às - a "história serial" dos historiadores-economistas ("escola
hipóteses de trablahó propostas; as extrapolações ou interpolações dos Annales": E. Labrousse, J. Meuvret, G. lmbert, R.
de dados têm de ser_ justificadas por esta perspectiva. ·· Baehrel., etc.) ; · ·

30 13, 1
- a "histófra quantitativa" dos economistas-historiadores: acreditam que há tantas teorias econom1cas quantos sistemas ecn-
nômicos historicamente identificados: as leis e constantes são arcn:1s
( S. Kuznets; J. Marczewski,
19) '"história quantitativa" 0 marco de um determinado sistema, nada justificando a aplicação
J. - CI. Tóutain); automática da teoria econômica atual - elaborada em funçiio de
29) "New Economic flistory (S. Engerman, A. Fishlow, um sistema econômico bem definido - a épocas ou sociedades
B. F. Hoselitz, R. W. Foge!, A. H. Conrad, J. R. caracterizadas por outros sistemas. Cumpre, pois, construir lc;1ta-
Meyer, etc.). mente as diferentes teorias histórico-econômicas adaptadas ao fun-
cionamento real dos diversos sistemas econômico.s; daqueles, ao
menos, para cujo estudo quantificado existam ou possam ser recons-
tituídos os dados, em qunatidade, qualidade e continuidade sufi-
cientes. A teoria econômica atual influi, certamente, sobre esta
escola de historiadores da economia; porém, sua validez para expli-
2. A HlSTóRJA SERIAL car, total ou parcialmertte, fatos econômicos do passado é vista como
uma hipótese a demonstrar, não como uma verdade que deva ser
admitida a priori. O processo de construção teórica dá-se apenas
lentamente, como resultado de múltiplos estudos regionais, mono-
Para designar ~ma tendência já relativamente antiga, a expres- grafias, anáJ.ises de empresas, etc.11
são ''história serial" foi criada no calor da polêmica em que se Este último aspecto reflete uma tendência. geral da história em
enfrentaram, na década de 60 e na França, a "escola dos Annales" sua fase presente: a insistência na necessidade de controlar sempre
·e os importadqres da posição "anglo-saxã" (mais especificamente, as hipóteses explicativas globais, relativas a grandes conjuntos,
a tendência ~ Kuznets) para este país~' ós quais proclamavam a através de uma grande quantidade de estudos monográficos e regio-
intenção de escrever uma história inteiramente quantificada - uma nais. Assim, por exemplo, na história do capitalismo só o estudo
'"história quantitativa". 1 º concreto de empresas isoladas pode possibilitar a avaliação da
O traço distintivo mais importante da história serial, ante as validade de hipóteses gerais sobre inovação, investimentos., papel
demais formas de história quantificada, consiste em ser uma ativi- do empresário, etc. Os dados relativos a todo um país são agrega-
. dade exercida por historiadores formados como tais - ou que dos que derivam de múltiplos movimentos menores, constituem
aprenderam a sê-lo., como E. Labrousse que começou como econo- médias de experiências regionais ou locais qi:e podem ser extrema~
mista - , portanto muito atentos para a necessidade de· criticar a mente variadas e heterogêneas em seu comportamento. A mono-
documentação utilizada - especialmente em se tratando da cons- grafia, ou estudo regional, analizando a totalidade das articulações
tituição de séries estatísticas relativas a períodos anteriores ao sé- concretas de dada região, época e setor de atividade, permite perce-
culo XIX - e, também, atentos para o grande perigo de cometer ber a coexistência, em um mesmo país - ou grupo de países -
anacronismos, isto é, de não respeitar devidamente o caráter dife- de ritmos conjunturais distintos, demonstrando a existência de pro-
rencia} das diversas sociedades, das épocas distintas. Ao contrário cessos defasados ou, às vezes, de diferenças estruturais mais ou
da escola de Chicago, os historiadores da "escola dos Annale:s"
11 Marcello Carinagnani ("Metodologia y técnicas para una hL~toriogrnfía
.·,10 CL Pierre Chaunu, "Histoire quantitative et histoire sérielle", em económica latinoamericana" em La Historia económica en América La-
Ca!ziers Vilfredo Pareto (Genebra, Droz), n.º 3, 1964, pp. 165-175; do mes111P tina, 1: Situación y método~. México, Sep/Setentas, 1972, pp: 253-264) mos·
autor: "Vhistoire sériel!e. Bilan et perspectives", na Revue Historique tra-se cético quanto .à possibilidade de elaboração teórica no contexto
t Paris, Presses Universitaires de France),_ n. 0 494, abril- junho de 1970, da "escola dos Annales". Parece-nos que a melhor refutação de tal pes-
PP 297-320. simismo é constituída pela obra de E. Labrousse. -

32 33
menos profundas. Os historiadores serialistas, fragmentando a reali- em parte de um treinamento insuficiente - não é esta. a razão
àade estudada em diversos níveis. de análise, põem em julgamento principal, porém, um grande senso crítico ante a qualidade da
a crença, herdada do· século XIX, de que em cada período e so- ctocumentãçao, por um lado, e a vontade de preservar a plena iden-
ciedade os diferentes níveis ou elementos evoluem simultaneamente tidade histórica específica dos períodos estudados, por outro lado.
a um ritmo identico, pelo menos grosso modo. A história serial Este último fator leva à repugnância de abordá-los todos a partir
demonstra, ao contrário, a existência de importantes diferenças de uma só teoria já elaborada, que se desenvolveu em função
de ritmo entre distintos setores econômicos; entre a evolução. eco- do sistema econômico capitalista, principalmente do século XVIII
nômica e as estruturas sociais; entre estas, a vida política, as men- em diante. 13
talidàdes; além das alÜdidas ê às vezes profundas diferenças regio- A história serial, na atualidade, está longe de ser cxcl usiva-
nais e setoriais. 1:i Esta constatação torna-se possível à medida em mente econômica; aplicando-se a tipos muito diversos de proble-
que, com o progresso da computação - que permite a análise serial máticas e de documentos. Quanto às fontes que podem ser utili-
de qualquer corpus de dados cuja programação seja possível - zadas por ela, François Furet distingue três grupos, segundo o grau
a história serial, durante muito tempo exclusivamente econômica e crescente de dificuldade relativamente à constituição das séries: 14
interessada no estudo dos ciclos conjunturais a partir de diversas
variáveis (preços, salários, movimento comercial, etc.) abrange 19 "As fontes estruturalmente numéricas, reunidas como tais
novos campos aos quais pode dedicar-se e serve ao estudo da es- e usadas pelo historiador para responder a perguntas dire-
trutura e dos movimentos sociais; da demografia; de certas variáveis tamente relacionadas com seu campo original de pesqui-
políticas ou ideológicas, eté. sa". Assim, por exemplo, os registros paroquiais para a
Porém, voltemos por um momento à história serial, no sentido história demográfica; as estatísticas oficiais da produção
que teve primeiramente, isto é, vista como uma dada maneira de para o historiador da economia dos séculos XIX e XX;
conceber e de fazer história econômica. Em seu conjunto, os estu- os resultados eleitorais para a história política, etc. Quando
dos da escola histórica francesa caracterizam-se por um certo em- tais fontes requerem a aplicação de procesos de padroni-
pirismo, hipóteses de caráter operacional e sínteses de tipo quali- zação, ou quando há lacunas e é preciso extrapolar, tais
tativo. Sendo os fenômenos econômicos analisados no marco de operações podem ser feitas de modo relativamente fácil e
um determinado período, em sua dimensão diacrônica, freqüente- confiável.
mente através de indicadores. Durante muito tempo os preços foram 29 "As fontes estruturalmente numéricas, mas usadas pelo
tomados como indicadores ou termômetros da vida econômica, às historiador substitutivamente para ·encontrar respostas a
vezes de modo demasiadamente exclusivo; estabeleciam-se, por
questões totalmente estranhas a seu campo original de!
exemplo, identidades automátic~s e grosseiras do tipo: baixa dos pre-
pesquisa." Assim", por exemplo, a utilização dos preços
ços = depressão; elevação dos preços = prosperidade. Quanto
como indicadores do crescimento econômico; o estudo da
ao processamento dos dados, raramente ia-se além das correlações
simples entre as variáveis consideradas. O uso que os membros da estrutura social a partir de documentos fiscais, etc. O
"escola dos Annales" fazem da teoria econômica e dos instrumen- historiador deve, neste caso, justificar a validez do em-
tos de análise estatístico-matemáticos é, relativamente, moderado. prego de suas fontes, relativamente a sua problemática;
Mas, já dissemos - que embora seja certo que isto possa resultar o manejo dos dados será mais difícil e, freqüentemente,

12 J. Meuvret, op. cit., p. 312; D. E. Eversley, "Population, Economy 13 Carmagnani, artigo citado; Jean Bouvier, "L'appareil conceptuel dans
.rnd S0ciety", em Population in History, editado por D. V. Glass e D. L'histoire économique contemporaine", em Revue Economique (Paris, Ar-
F C Eversley, Londres, Edward Arnold, 1969 (reimpressão)>, pp. 23-ó9; mand Colin), n.º 1, 1965, pp. 1-17.
F Furl"l, artigo citado. 14 F. Furet, artigo citado, pp. 69-70.

j)
34
conduzirá a resultados mais arbitrários do que no primeiro Aplicá-la a uma época passada implica a reunião dos matcriai;;
caso. estatísticos disponíveis da referida época, e sua organização segundo
3Y "As fontes não estruturalmente numéricas, mas que o his- o modelo da contabilidade nacional praticada na atualidade. A
toriador trata de utilizar de modo quantitativo, mediante grande dificuldade reside na escassez de dados quantitativos. ou
um procedimeno duplamente substitutivo; é necessário que que admita;m quantificação, cada vez maior. à medida .em que noc.;
ele lhes atribua uma significação unívoca, relativamente à afastamos· do presente. Em seus estudos, Marczewski e Toutain
questão colocada, mas., também que possa organizá-las realizam um grande exercício de extrapolação, a partir de daJ[)<;
em séries, quer dizer, em unidades cronológicas compa• dispersos, heterogêneos e nem sempre dignos ele confiança. Para
ráveis, à custa de um trabalho de padronização ainda mais Marczewski, vinte e duas equações são. necessárias para avaliar a
complexo do que o do caso precedente". Teremos nesta receita nacional, e,m qualquer período. As referidas equações ·desen-
volvem cinco iguàldades básicas da contabilidade nacional: ·
categoria, por exemplo, as fontes notariais usadas para
estudos da história social; o uso serial de certas fontes 19) a demanda de bens e serviços;
administrativas ou relacionadas à justiça,· etc. 29) a produção interna;
39) a receita total das famílias (consumo privado, mais tributos
diretos, mais poupança);·
49) a receita total das administrações;
59) poupança nacional bruta· (investimentos público~ e priva-
dos, mais o saldo do comércio exterior).
3. A HISTóRIA QUANTITATIVA
Ê uma história econômica feita por economistas. e que pre-
tende limitar-se às cifras e· ao raciocínio sobre tais cifras. Nela os
homens, empresas e forças econômicas quase desaparecem do ce-
Esta tendência surge nas proximidades do ano de 1950, nos nário.16 · ·
Estados Unidos, com alguns trabalhos de S. Kuznets, e começa a.
desenvolver-se na França, principalmente, a partir da década de 60. 10

Preocupada, mais ou menos exclusivamente., com a problemá-


tica do "crescimento econômico", a história quantitativa de Jean 4. A "NEW ECONOMIC HISTORY"
Marczewski dedica-se à aplicação retroativa dos métodos da conta-
bilidade nacional. Esta constitui um modelo econômico, um marco
no qual procura7se inserir, classificar e analisar, ano por ano, os Por sua coerência e unidade, trata-se de uma verdadeira escola,
fluxos (produções e intercâmbios) e os stocks (inversões, fortuna e tais características são mantidas principalmente mediante reuniões
nacional) que resumem a atividade econômica em seu conjunto.
16 Ruggiero Romano, "Conveniendas y peligros de aplicar los métodos de
15Cf. Jean Marczewski, "Buts et méthodes de l'histoire quantitative", la 'Nueva Historia Económica'", em La liistotia Económica ... , cit. I,
em Cahiers Vilfredo Pareto, nl' 3, ~964, p;>. 125-164; do mesmo autor: pp. 237-252; Jean Bouvier, Initiation au vocabulaire et aux mécanismes
''Lc·~ variables historiques", em Revue Economique, janeiro de 1965, pP· économigues contemporains CXIXe - XXe s.), Paris. S.E.D.E s .. HIB9.
86-104; J. C. Toutain, "Le produit de l'agriculture française de 1700 pp. 279-280; Robert Mandrou, .La France atL'C XVIle et XVII!e siccles, col.
a 1958", P.ublicado nos números de 1961 e 1963 dos Cahiers de l'l. S. E. A., Nouvelle Clio n.º 33, Paris, Presses Universitaires de France, 1967, PP.
261-270. -
Paris.

37
36
periódicas (Purdue Meetings). Podemos situar em 1957 sua cons- mano, a escola norte-americana nos trá_s "uma certa concepção do
tituição. Embora constituindo uma tendência muito mais rica e aleatório da história".
variada do que a "história quantitativa'', de que vimos falando,
apresenta vários pontos em comum com esta - como o fato de
ser uma história econômica escrita por economistas, e a aplicação
39 - A "New Economic History" caracterizou-se, até o pre-
retrospectiva dos procedimentos e modelos da econometria.
sente, pela rejeição ·das interpretações globais, pela tendência ao
Um certo número de princípios metodológicos básicos e carac- ecletismo em suas explicações. Todos os esquemas disponíveis de
terísticas de conjunto permitem descrever brevemente a corrente em explicação global da história econômica dos últimos duzentos anos __:_
nxame. revoluçã,o industrial, take-off, papel das inovações e de certas indús-
trias de· base, . etc. - forám criticados e recusados por ela, sem
ter proposto qualquer explicação alternativa de conjunto. 1 7
19 ~ A decisão de ultrapassar a simples descrição. de colocar
de modo preciso as questões de história econômica e de controlar
a escolha de hipóteses causais alternativas através da formalização
das referidas questões. Uma disposição de quantificação absoluta
faz com que se deixem de lado muitos aspectos dos problemas estu-
dados que, apesar de sua importância, são dificilmente quantificá-
veis. Procura-se uma integração global da história à teoria econô-
mica atual, cujos processos e modelos são usados em sua totali- D. Conclus.ão: o que é a ciência histórica de hoje?
dade. O método da "New Economic History" é hipotético-dedutivo
e seu ponto de partida é constituído pelos pressupostos da teoria
econômica, tomados como critério de escolha das variáveis . que
integram o modelo esboçado como hipótese, modelo que se tentará
comprovar lógica e empiricamente.

29 - Uma das características metodológicas mais fundamen- A história se apresenta, hoje, como uma c1encia em plena
tais - e, na certa, a mais original - da escola estudada é a utiliza- evolução. As certezas, ou verdades "definitivas" da historiografia
ção de hipóteses alternativas como meio de controle das explicações positivista, pertencem ao passado ·e o fato de tal concepção da
causais, o que implica o apelo à simulação histórica. Quer dizer história manter-se em certos países, em função do atraso, da inércia
que as técnicas de comparação de séries sõo ni;<ldas mesmo quando
ou da falta de 'informação, não a torna menos supei-adá, Como diz
a verificação direta é impossível: não se hesita em imaginar como
F. Furet, a história 8erial - e o mesmo poderíamos a.firmar das
teria evoluído determinada situação, caso as estruturas, a técnica
ou as circunstâncias tivessem sido outras; e isto com a finalidade demais correntes com vigência atual entre os historiadores - · é
de verificar se 'certos fatores explicativos, propostos com freqüência, uma história-problema, não uma história-narração. O indiscutível
de fato foram essenciais. Assim, por exemplo, para avaliar a im-
portância da construção de ferrovias na história econômiea dos 17 Cf. os artigos citadós de Carmagnani e Romano; Maurice Lévy-Le-
Estados Unidos, no século passado (mais precisamente, na evolu- boyer, "La 'New Economic History' ", em Annales E.S.C., setembro-ou·
ção da renda nacional), Fishlow e Foge! fizeram estudos economé- tubro de 1969, pp. 1035-1069; R. W. Foge!, "The New Economic History:
Its Findings and Methods'', em Economic History Review, vol. IX (1966\
tricos partindo da não construção de ferrovias. Como afirma R. Ro- PP, 642-656. . -

38 39
dinamismo de nossa disciplina, ilustrado espetacularmente pelos ress:rntes pesquisas quantitativas sobre movimentos· sociais. A his-
vertiginosos progressos da história demográfica, não deve fazer es- tória política, até agora, só foi perifericamente afetada pelo grande
quecer os muitos problemas e conflitos importantes que ainda con- movimento de renovação metodológica.
tinuam 'sem solução; alguns deles examinados no capítulo seguinte. E o que dizer de certa "história das idéias", cronologicamente
Embora não seja argumento que ponha em dúvida a validade recente em seu desenvolvimento mas decididamente fechada às
das novas tend~ncias, o peso ainda muito grande da história tradi- inovações do método?
cional _em certas áreas é, indiscutivelmente, um grave problema;
principalmente quando historiadores que se opõem à mudança
ocupam postos-chaves nas instituições acadêmicas de ensino e' de Este não é um livro de teoria ou de filosofia da história. O
pesquisa, constituindo-se em entraves ao progresso. Em países como leitor interessado em tais temas deverá procurar outras fontes.rn Que-
a França ou a Inglaterra, a posição tradicional já é insustentável, remos, entretanto, destacar aqui - embora superficialmente -
mas nos Estados Unidos a existênci,a de um importante setor de uma questão teórica e epistemológica fundamental, suscitada pela
pesquisa histórica baseado em metodologia muito adiantada não recente evolução da ciência histórica; alguns outros problemas do
impede que predominem, quantitativamente, os trabalhos de feitio mesmo gênero serão · abordados no capítulo seguinte. A questão
antigo; 18 na América Latina dá-se o mesmo, mas em proporções que nos ocupará a atenção agora pode .ser formulada assim: que
mais graves. Além disto, mesmo ,quando há disposição de traba- posição cabe, na atualidade, .à história, dentro do conjunto mal
lhar de acordo com padrões atualizados, certos problemas práti- definido das ciências do homem?
cos, técnicos e de organização podem constituir-se em obstáculos Digamos logo que uma resposta clara e definitiva a tal per-
muito reais: o elevado custo das pesquisas quantificadas, dignas gunta talvez seja impossível. Atitudes e· correntes mal diferencia-
de consideração,· que exigem grande investimentos em pessoal e das, em alguns casos contraditórias, caracterizam os historiadores
equipamento; a deficiência de treinamento da maioria dos historia- de hoje; isto e a ·rapidez das mudanças que sofre nossa ciência,
dores - mesmo no atinente ao manejo das técnicas mais elementa- em seu conjunto, fazem com que não seja tarefa suave tenta'r
res da estatística - devido à falta de adaptação das estruturas perceber suas linhas de evolução, ou' avaliar q_uais delas prevale-
universitárias às alteráções da disciplina; o pequeno número de cerão. Só podemos falar de tendências· implícitas nas referidas mu-
instituições nacionais ou internacionais destinadas a apoiar e a danças - e de evoluções possíveis.
coordenar os esforços individuais ou locais, a dar alento à realiza- Em um livro recente,~º Jean Piaget propõe a divisão de "todos
ção de trabalhos de equipe, assegurando a rápida difusão dos resul- os estudos relativos aos homens ou às sociedades" em quatro gran-
tados conseguidos, etc. Tais dificuldades surgem, em certa medida, des grupos, dos quais só' os dois primeiros ~os interessarão:
em todos os países, inas sua gravidade .é especialmente notável na
área latino-americana. 19) ciências nomotéticas, que procuram descobrir "leis": lin-
Por outro lado, cumpre reconheéer que o desenvolvimento güística, economia, sociologia, deipografia, antropologia,
dos diferentes ramos do saber histórico obedece a ritmos' hetero- psicologia;
g~neos. A história social, por exemplo, move-se com certo atraso 29) ciências históricas, que estudam a evolução temporal de
em relação à história econômica e à demográfica, apesar dos bri- todas as manifestações da vida social;
lhantes êxitos consecutivos ao impulso recebido de Ernest Labrousse,
no Congresso de Roma ( 1955), e que seus discípulos acentuaram;
19 ~f. Carlos M. Rama, Teoria de la historia, Introdücción a los estudios
da constituição de uma história das mentalidades coletivas; de inte- históricos, Madrid, Tecnos, 1968 (2a. edição), e sua bibliografia (pp. 183-
192)'
20 Jean Piaget, Epistémologie des sciences de l'homme,_col. Id-ées n.º 260,
18 J 1\1.- Price, art. cit. Paris, Gallimard, 1972, pp. 15-130.

40 41
39) ciências jurídicas; "Não sejamos demasiadamente exigentes com a noção da
49) disciplinas filosóficas. lei em história. Creio que há certas leis históricas, mas que
estas não têm o caráter relativamente inexorável das Jf'i-;
Pois bem, embora no conjunto a história ainda surja como algo físicas. O que caracteriza a lei nas ciências humanas é. preci-
distinto das ciências nomotéticas, devido à persistente e central samente, seu traço de pluralidade. A lei não é uma nece~~i­
preocupação de apreender cada processo concreto de evolução dade, é uma probabilidade "majoritária" e, às vezes, a um
em toda a sua complexidade, mais do que de abstrair da realid&de grau bem baixo. A lei permite mais apostar do que prever''.
as variáveis capazes de conduzir ao estabelecimentos de leis,, Piaget
acredita distinguir uma possível evolução: 21 Uma das formas possíveis de constatar se há, de fato, uma
evolução da história - ou melhor, de seus setores abertos à reno-
''.É necessário salientar. . . toda uma corrente contempo- vação metodológica - no sentido de ciência nomotética é ver se
rânea que p·rocura fazer da história uma ciência baseada na a aludida evolução reproduz os aspetos ou fatores que, conforme
quantificação e nas estruturas ... , ponto de vista certamente Piaget, dominaram o processo constitutivo das ciências humanas
fecundo, porém que consiste; atualmente, em fazer da história nomotéticas
a dimensão discrônica da sociologia ou da economia, o que
no futuro poderia dar às disciplinas históricas o nível de uma J<?) a tendência para o estudo comparativo;
espécie de síntese relativa às dimensões dialéticas de todas 2<?) a tendência a apreender a dimensão histórica ou genética;
as ciências humanas." 3<?) a influência dos modelos proporcionados pelas ciências
exatas ou da natureza;
Cremos que tal tendência - quer dizer, a incorporação pro- 49) tendência a delimitar os problemas;
gressiva da his1ória ao campo das ciências nomotéticas - realmente 5<?) escolha dos métodos, especi'!lmente quanto a su:a função
se faz notar na evolução recente ·de nossa disciplina. Porém, não de instrumentos de verificação.
estaremos tomando, antes, nossos desejos pela realidade?
Deixando de lado o segundo ponto, demasiado evidente e mesmo
Não discutiremos, aqui, o problema de como definir uma "lei"
tautológico, em se tratando da história, vejamos se os demais são
no contexto das ciências sociais ou humanas. Na realidade atual des- perceptíveis em nossa disciplina, como ela evoluiu nas últimas
tas, o que é designado como "leis'' compreende coisas bem dife- décadas. Como veremos no devido lugar (Capítulo VIII), um dos
rentes umas das outras: em cer~os casos, relações quantitativas aspéêtos mais ex citantes da historiografia mais recente - especial-
expressáveis por meio de funções matemáticas; outras vezes fatos mente a relativa à América - é justamente o desenvolvimento
gerais, ou análises estruturais, ·apenas fixáveis pela linguagem for- do método comparativo, já nos anos vinte considerado por Henri
malizada da lógica ou, mesmo, por uma expressão verbal não for- Pirenne como a condição da transformação da história em ciência
malizada, etc. Assim como diz E. Labrousse:~:i (ou, conforme o expressava Henri Sée, de sua elevação do des-
critivo ao explicativo). Quanto ao terceiro fator indicado por
21 Ibidem, p. 23. Pierre Vilar, por sua vez" afirma ("Problémes théoriques Piaget, a influência dos modelos proporcionados peias ciências exa-
de l'histoire économique", em Vários Autores, Aujouhd'hui l'histoire, Paris, tas, no caso da história é evidente, embora·indireta - através da
hl Sociales, 1974, p. 122); "... a história deveria ser reconhecida como mediação das ciências sociais - e especialmente importante no
a urtica ciência simultaneamente global e dinâmica das sociedades hu-
m.1;1«.1,, conseqlientemente, como a única síntese possível das demais ciên" concernente à assimilação de métodos estatísticos e probabilísticos
lJ..1-,. hun1anas". e de estruturas· lógico-matemáticas desenvolvidas pelas referidas
22 /,as estructuras y los Jiombres, cit., P, 102. ciências. Não é difícil, também, perceber que os outros dois pontos

42 43
:stão igualmente presentes, Contra· as generalizações totalizadoras
d~ uma história inspirada pela ide.elogia do. "progresso'', e cujas
hipóteses básicas estavam no campo da filosofia da história, a .ten-
dência atual da disciplina é para uma distinção analítica de níveis
de estudo, no· interior dos quais busca-se delimitar a problemática,
o que torna possível sua abertura a técnicas e métodos elaborados
por '-Outras ciências (economia, demografia, etc.). No Capítulo lI
discutiremos se esta tendência elimina, automaticamente, a possi-
bilidade de qualquer síntese ou visão global. Finalmente, é impossí-
vel negar que a vontade de tornar verificáveis suas proposições
tem sido úm fator essencial na evolução metodológica recente da
ciência histórica. ,
Claude Lévi-Strauss descreve-nos as ciências sociais e/ou hu-
manas como disciplinas ainda em sua "pré-história", ciências em CAPÍTULO II
processo de construção, cujo ponto de referência e modelo é cons-
tituído pelas verdadeiras ciências: matemática, físiGa, etc. 2ª De modo
análogo, a história surge como uma disciplina que. ao contato com A EVOLUÇAO RECENTE DA CIÊNCIA HISTÓRICA:
as ciências sociais torna-se, pouco a pouco, uma ciência social -
afastando-se cada vez mais de seu passado filosófico e literário e Problemas, polêmicas e precauções
das ilusões cientificistas d<;> positivismo.

/
Este capítulo ocupar-se-á de dois tipos de temas, ilustrados
com a apresentação dê urit certo 'número de exemplos característi-
cos. Primeiro nos referiremos a alguns dos problemas mais graves
vinculados às próprias mudanças e opçõe~· que· marcaram a evolução
recente da história. Depois abordaremos questões .metodológicas
vinculadas .ao fenômeno da dependência cultural, centrando-nos no
caso latino-americano.

A. Os limites da quantificação e da econometria


retrospectiva

A história serial, a história quantitativa e- a New Economic


23 Claude Levl~Straus;;, "C:i'itêres sclentifiques dans Jes discipiines sociales History, apesar de muitas diferenças, têm em comum seu desejo de
et humaines''.. em Aletheia rParii;). n9 4, maio· de 1966, p. 189-212. generalizar o emprego da quantificação sistemática nas pesquisas

44 45
históricas. Tal atitude - ou tal ponto de partída - foi responsá- sistemático, seja pela ausência dos dados necessários, seja devido à
vel, cumo dissemos, por êxitos brilhantíssimos alcançados nas últi- natureza irredutivelrnente qualitativa do fenômeno em estudo. A
mas quatro décadas; porém, também implica certas limitações e falta de dados quantificáveis com urna certa continuidade caracte-
importantes problemas teóricos. É certo, entretanto, que este gênero riza a era pré-estatística, quer dizer, a maior parte da história da
de questões e dilemas não constitui exclusividade da história, mas humanidade e muitos temas e setores das épocas posteriores. É
afeta o conjunto das ciências sociais .. Trata-se., entre outras coisas, compreensível, por exemplo, .que .os hi_storiadores da antigüidade
"de saber se --' e em que medida - o conhecimento histórico ou clássica ou das civilizações pré-colombianas sintam pequena atração
sociológico é compatível com (ou é esgotado por) uma conceituali- pelas técnicas quantitativas. Quanto à natureza qualitativa de certos
zação matemática de tipo probabilístico". 1 objetos de estudo, é certo que os progressos da computação torna-
Comecemos constatando que a introdução dos dados numéri- ram possível o estudo quantitativo de muitos novos tipos de fenô-
<:os, de modo sistemátiCo, nas pesquisas históricas além de não ser menos históricos e suas respectivas documentações - inclusive
sempre possível, não resolve necessariamente os problemas, nem certos corpus literários mais ou· }11enos homogêneos, como os
encerra os debates; a quantificação não é uma panacéia, tampouco cahiers de doléances do ancien régime francês; e, ainda, uma série
uma solução mágica. É freqüente, aó contrário, que as discussões de ~ecu~entos iconográficos. Porém, podemos duvidar que uma
e controvérsias relativas a um dado aspecto da história tornem-se, focahzaçao totalmente quantitativa de toda a problemática histórica
a partir do emprego das técnicas quantitativas, mais acirradas do seja possíveJ.3 ·
que antes, embora mudem de linguagem. · Isto ocorre, principal- A história serial coloca, ainda, problemas de outra ordem.
mente, no que se refere aos temas atinentes _a períodos an~eriores Fra?~oi~ Fúret rn~stra~ que ela "privilegia o longo prazo e . 0
à era que podemos considerar plenamente estatística e que tem iní- eqmhbno de um sistema", permitindo medir a mudança ocorrida
1'111
do na alvorada do século XIX no caso da Europa ocidental, às nos limites deste, mas não a transformação qualitativa do mesmo.
vezes muito mais tarde nos países latino-americanos. Quando se ~s séries podem ocultar o ponto extremo a partir do qual. se veri-
111
trata da era prato-estatística, que tem seu ponto de partida na cria- fica uma "transformação da estrutura da temporalidade, e dos ritmos
ção dos moder,nos estados centralizados e seus prolongamentos colo- dest~ mudan_ç~"; ou seja, podem esconder as transformaçpes estru,.
niais, os dados numét:icos, ou potencialmente quantificáveis, existem tura1s esse_ncia1~ s,o? o asp_e~to contínuo de curvas ininterruptas. E
_:_'em quantidades e qualidade variáveis - mas a intervenção do "a mutaçao h1stor1ca dec1s1va pode nãq estar inscrita nas séries
historiador na construção ou reconstituição das séries é freqüente-
mente. importante, o que dá lugar à discussão sobre a seleção, o
processamento e a interpretação dos documentos usados e. dos dados que houve, B. H. Slicher van Bath defende a .tese contrária embora de
modo mais matizado e considenrndo uma evolução histórida mais am-
obtidos deles.2 .P~a; os dois autores -citados usam a quantificação, mas a partir de tipos
Além disto, grandes domínios da realidade histórica conser- d1Fcrentes de documentos: cf. Michel MÇlrineau, Les faux-se111blants d'tm
vam-se fechados à aplicação de qualquer tratamento quantitativo demarrage: économique agriculture et démographie en France au XVIIle
siecle, Cahiers des Annales n.º 30, Paris, Armand _Colin, 1971, pp. ll-14.
Os economistas e historiadores, como Toutain, ao desconheçer e despre-
zar as precauções metodológicas dos historiadores profissionais .· em
1. F. Furet, art. cit., p~ 63. Sobre os problemas epistemológicos, e ou- relação a · suas fontes cometem, . às vezes, erros tão primários
t rns vinculàdos às técnicãs e métodos quantitativos usados pelas ciências d~ interpretação que bastam para invalldar suas posições. Morineau ( op.
su..:iais, cf. por exemplo: Carlos Moya, Sociólogos y sociología, Madri, ctt., p. 74, nota 137) fala, a propósito, do perigo tão freqüente- na: obra
Siglo XX, 1971; Pablo Gonzàles Casanova, Las Categorias del desarollo econó- de tais autores de defender proposiçêes fáceis· .mas pouco admissíveis,
micu y la investigación en ciencias sociales, Universidad Nacional Autc>: "quando .reduzem a história a um papel de arsenal sem ter o cuidado
noma de México, 1967. de verificar o bom estado da pólvora". . ·
2 Um bom exemplo de que a quantificação nem sempre põe termo ·a 3. Furet, art. cit. Sobre este ponto essencial ver, também, Robert Man-
\<.'lha;. polêmicas é a já antiga questão de saber se houve ou não uma drou, "Mathématiques ·et histoire", em Critica Storica (Roma-Flo-rcnça).
:. rt'voluçãó agrícola" na França do século XVIII; J.-C. Toutain acredita n.º 1, 1962, pp. 39-48. ·
4 Furet, Idem, pp. 65-66.
46 47
endóoenas
b
de um sistema dado, mas
.
resultar ou de uma inovação da
.
29 eles exigem, para que sua construção tenha sentido e seja
qual nenhuma contabilidade anterior deixou qualquer sinal, ou de útil, "que todas as variáveis significativas sejam quantifi-
um fator exógeno que venha a transformar, em profundidade, o cáveis e incluídas na ·equação; enquanto, na história
equilíbrio .multisecular do sistema". econômica, certas variáveis não podem ser medidas por
As mesmas limitações e dificuldades encontramos no caso da falta de fontes e, .principalmente, porque fatos políticos,
história quantitativa e da New Economic History, porém especial- sociais, etc., não quantificáveis, intervêm como variáveis
mente reforçadas. determinantes."
O problema das fontes é, em. particular, muito sensível. Por
exemplo, se pensarmos nas vinte e duas equações que --- conforme A história econômiCa não pode, portanto, limitar-se a um mero
Marczewski - permítem avaliar a renda nacional, será fácil perceber comentário de índices e curvas, ou à construção de modelos pura-
que faltarão dados para montar a maioria delas, caso o historiador mente econométricos, pois ao fazê-lo perde parte essencial de sua
trabalhe com temas anteriores ao século passado, na Europa, e até capacidade explicativa, além de perder toda sua seriedade. A seção
anteriores a nosso século, em Olitras regiões. Os critérios de seleção seguinte deste capítulo nos permitirá aprofundar este ponto, apre-
das fontes e aplicação da extrapolação, adotados por Toutain em sentando alguns exemplos interessantes.
seu trabalho citado no capítulo anterior (nota n9 15), já foram
bem criticados sob diferentes ângulos; considerando-se a diferença
qualitativa existente entre as estruturas Süciais e econômicas fran-
cesas do ancien régime e as posteriores ao processo revolucionário
iniciado em 1789, que sentido pode ter a apresentação, feita por
Toutain, 'de uma curva única para representar a evolução do "pro-
duto agrícola final" da França de 1700 até meados do sécl!IO XX?
Os dados desta curva serão, todos, realmente comparáveis? Quais B. Ciências históricas ou ciencia ·histórica? O limite
devem ser os IÍmites da àtrapolação? Até. que ponto é válido ba- entre história econômica e história total.
sear-se em um só tipo de fonte, desprezando ainda todas as formas
disponíveis de controle dos dado..: assim obtidos?5
Por outro lado, Christian MorrisonG indica dois fatos que
limitam a possibilidade de aplicar os modelos econométricos à histó-
ria eccnômica:
1. DUAS TENDENCIAS CONTRADITÓRIAS: TOTALIDADE
19 Tais modelos só são válidos para períodos curtos ou mé- E ATOMIZAÇÃO
dios, enquanto a história ·seguidamente se interessa pela
tonga duração;

No capítulo anterior observamos que uma das características


5. Cf. Pierre Vilar, "Pour une meilleurc compréhcnsion entre écono- nudeares da evolução recente da história é .a vontade de envolver
mistcs et historicns. 'Histoire quantitative' ou économétrie retrospective?", em seLJ campo todos os aspectos da evolução dag sociedades huma-
em Revue lfis(orique, abril-junho de 1965, pp. 293-312; Morineau, op. cit.,
nas: econômicos, demográficos, sociais, técnicos; institucionais, po-
R. Maildrou, La France aux XVI!e et XVII/e siecles, cit., pp. 265-270.
6 Christian Morrisson, "Note sur l'.application de certains concepts · écono- líticos, intelectuais etc.; mais a tentativa de explicar como tais aspec-
miques en histoire", e)TI Revue Econ.omique, janeiro de 1965, pp. 127-133. tos, ou níveis, se articulam. Esta tendência é muito evidente em algu-

48 49
mas das obras históricas mais importantes do período posterior à II afirma M. Bouvier-Ajam, cada historiador é, quase sempre e ao
Guerra Mundial, e responsá,vel por boa parte de sua riqueza, ao mesmo tempo, um especialista e um "geralista"; relativámente a
proporcionar "modelos" globais (embora não formalizados) das al~uns outros historiadores; nada impedindo que, mesmo com espe-
sociedades estudadas. 7 cialidade bem definida, se mantenha informado sobre o qJJe fazem
Mas existe também uma teirdência diametralmente oposta. O outros especialistas, utilizando os dados e as explicações levantadas
desenvolvimento da ciência histórica requer, entre outros fatores, por estes. '"
uma delimitação do objeto, assim permitindo a introdução de con- É possível afirmar, além disto, que não se trata de uma opção
ceitos e métodos trazidos das ciências sociais mais elaboradas que deixa·ua ao arbítrio de cada pesquisador, mas de uma necessi'dade
a históriq. Conforme François Furet, a tendência totalizadora não intrínseca à própria natureza. do o.!Jjeto de qualquer pesquisa histó-
deve ser afastada, por isto; mas deve ser preservada como "hori- rica. A explicação dos movimentos ou oscilações econômicas de
zonte do historiador", não como seu ponto de partida. 8 Na prática, grande duração (ciclos de Kondratieff), por exemplo, não pode
entretanto, o movimento no sentido da atomização da história em perder de vista que tais ciclos conjunturais estão ligados "às. trans-
disciplinas autônomas - história econômica, história demográfica, formações das estruturas geográficas, ecónômicas e támbém ·~ políti-
história social, história política, etc. - imposta pelá crescente espe- cas, portanto sociais".11 A melhor prova concreta da possibilidade
cialização provocada pelo refinamento técnicó, atua contra a unidade de escrever urna história econômica aberta à formalização, ao refi-
da referida ciência, pois nem sempre se dá a síntese dos diversos namento técnico e metodológico, sem abandonar ao mesmo tempo
campos da pesquisa histórica e, freqüentemente, a especialização che- os fatores sociais e o reconhecimento da especificidade histórica
ga a tal ponto que os historiadores da economia ignoram tudo o que
dos diferentes sistemas econômicos está no livro em que W. Kula
fazem os historiadores demográficos e estes não conhecem os resul-
estuda a história. econômica da Polônia a partir de um modelo ,do
tados alcançados pelos historiadores sociais, etc. ·
feu4alismo polones. 1 " Por outro lado, Adeline Daumrad, ao rel!:tt~i
Neste sentido, é significativo o fato de que enquanto em 1961 suas experiências., durante a redação de sua tese sobre a burguesia
o grande manual dirigido por Charles Samaran era intitulado A parisiense de 1815 a 1848, demonstra como os dados econômicos
história e seus métodos, outro manual, publicado em 1967 - são absolutamente necessários à elaboração da história social, embo-
cujas pretensões sãó indiscutivelmente. mais limitadas, pois visa ra ~sta última constitua um campo de pesquisa já bem definido,
especificamente a estudantes dos primeiros anos das faculdades com exigências metodológicas específicas. 1s
francesas - chamou-se Introd1,ção às ciéncias históricas. 9 Entre-
Enfim, a tendência mais· fecunda da história social, como esta
tanto, o autor desta última obra - André Nouschi - tem cons-
~e a-presenta atuaimente, é a que lhe admite Úrn caráter de síntese. Si-
ciência de que além de ser possível o contato do historiador com
tuando-se no ponto de confluência de uma história da "civilizaÇão
as; demais ciências históricas, sem com isto usurpar as atividades
material" e de unia história da psciologia ou mentalidade coletiva,
dos especialistas . destas, também há possibilidade de contato de
cumpre-lhe considerar os fenômenos históticos em distintos níveis
especialistas dos diferentes campos da pesquisa histórica. Como
de arlálise para logo reuni-los em uma visão global em cujo âmago

7 Fernand Braudel, El Mediterráneo y e1 mundo. mediterrâneo en la époc l


de Felipe II, tradução de W. Roces, México, Fondo de Cultura Económica 10 A. :,Nouschi, Idem, p. 9; M. Bouvicr-Ajam,. op. cit., pp. 43-55.
1959 (ed. original: 1949); Pierre Goubert, Beauvais et le Beauvaisis de 1600 11 Frédéric Mauro, L'Expansion européenne, col. Nouvelle Clio, n.º 27, Paris
à 1730, Paris, SEVPEN, 1961 (2 voli;.); Emmanuel Le Roy Ladurie, Les Presses Universitaires de France, 1964, p. 314 (há tradução para o es-
puysans de Languedoc, Paris, SEVPEN, f966. panhol: Barcelona, Labor, 1968).
K Furet, Art. cit., p. 72. 1:i ·w. Kula, op. Cit. ·
9 L'Jzistoire et ses méthodes, cit.; André Nouschi, Inrtiation aux scienceç 13 Adeline Daumard. "Données économiques et histoire sociale", em Revue
h1,turiq11es, coL Fac, Paris, Fernand Nathan, 1967. h r nwmique, janeiro de 1965, pp. 62-85 ."

50 51

1
1·.
surjam as articulações - e as di.scordâncias - entre fatores econô- l'? Os especialistas anglo-saxões, especialmente os norte-ame-
micos, estrutura social, nível político, ideologias, etc.14 ricanos que faziam uma história em estrita dependência da
ciência econômica, q_Ua:nto a suas hipóteses, problemática,
conceitos, métodos e técnicas. Tinham uma sólida forma-
ção econômica e matemática: sabiam manejar a abstra-
ção e a construção de modelos. Partiam do princípio de
que. os modelos conceituais oú matemáticos empregados
atualmente na análise econ'ômica podem e devem ser apli-
2. HJSTóRIA ECONôMJCA E HISTÓRIA SOCIAL cados a qualquer sociedade, pass~da ou presente. Enfim,
não recorriam à análise social: sua história econômica
era um todo auto-suficiente, fechava-se .em si mesma. A
"New Economic History", então recentemente criada, é o
Teríamos podido, se1n dúvida, apresentar exemplos das conse- melhor exemplo da aludida tendência,
qüências funestas da hiperespecialjzação em qualquer dos campos 2'? Os hisforiadores da Europa continental, especialmente os
da pesquisa histórica: Jean Delumeau defendendo a tese de uma franceses, não separavam a análise econômica dos fatores
inte!Jlenetração estritamente teológica da Reforma protestante; his- históricos globais e, principalmente, da análise social;
toriadores demógrafos (ou, mais exatamente, demógrafos historia- Preocupavam-se com a especificidade das diferentes épo~
dores) muito int!"rf'cc1dos na fecundidade, na mortalidade ou nas cas, dos diversos sistemas econômicos. Um dos represen-
migrações de épocas passadas, mas pouco atentos aos vínculos que tantes típicos e principais líderes deste. grupo é Emest
unem tais variáveis demográficas aos fatores econômicos, sociais Labrousse.
e outros, etc.i:; Porém, preferimos tomar para exemplo o caso da
história econômica, porque este debate constitui uma polêmica par- Passando, agora, a co11siderar a .situação presente encontrare-
ticularmente importante e atual. mos aind~ sem dúvida, os dois grupos mencionados; porém a pri-
.meira tendência parece progredir à custa da segunda. A aparição da
Considerando o panorama mundial da história econômica da história quantitativa de Jean Marczewski, na França,· é um bom
década de 1960 seria possível distinguir dois grupos principais de indício neste sentido. Tal evolução pode parecer, à primeira vista;
pesquisadores: rn
inscrita logicamente no movimento que, há mais de quareota anos,
teve início com a introdução da quantificação Sistemática nas pesquisas
históricas sobre a conjup.tura econômica.· Mas, temos de formular
14 Cf. Oeorges Duby, "Les Sociétés· médiévales: une approche d'ensemblf''
em Annales E.S C , janeiro-fevereiro de 1971, PP.· 1-13. . uma pergunta: quais as conseqüências implícitas na aceitação de uma
15 O livro de Jean Delumeau, Naissance. et aÍ}irmation de la Réforme, separação radical entre história econômica e pistória total?
é o volume n.º 30 da coleção "Nouvelle Clio" '(Presses Universitaires df> A separação estrita entre história econômica e história total, e
Francc). Sobre o entrelaçamento dos fatores demográficos com os i::co-
nômicos, sociais, políticos e mentais, cf. o excelente artigo, já citado,
especialmente entre as percepções econômica e social de uma época
de D. E. C. Eversley.. ou sociedade determinadas, não constituem progresso, porém um
16 Jean Bouvier, · "L'Appareil conceptuel dans l'histoire économique con-- grave _retrocesso metodológico. 11 A razão é bem siml'les: ao elimina.r
ternporaine", ar. cit. pp. 1-17. Cf.· também F. Mauro, Nova História e ~. posSibilidade de confrontar a expliêaÇao eéonômica com os dados
Novo Mundo, coleção Debates, São Paulo, Editora Pers.pectiva.-1969, pp. propQrcib:nados· pela análise social., o ·historiador.;.economista ·,,,_
79-81; não nos parece que o comp~~missà entre as duas correntes, pro-
posto por Mauro, resolva o problema, pois. este resulta da oposição de
duas· atitudes teóricas e epistemológicas p~ofundamente diversas q1.1<1nto
à história. 17 J. Rou,·iC'r, l<trm, 1\ ·n: âo mesmo milor: 11111ra1wrr a11 ·mcabulairc ..
·cn., 1'l>. 2f-23.
52 53
melhor; no caso, o ec.ôíiortns'ta-historiadM '"'.'"""'.'" JlCéitando seu eneer- Deixemos de lado - porque não nos interessarn neste contexto
rame.nto nos limites da c.iência econômica, como ela exis.te. na atua- as muitas e severas críticas feitas, de um ângulo técnico, aos
lidadé, necessariamente será co.n(juzido a ·aplicar os cónceitos, méJg!. critérios de tais autores na construção de seu modelo e em seus
dos e prõblcma1ica criados para a anáJíse econômica· de certas so·- cálculos, para nos dedicarmos à crítica propriamente metodológica
ciedades atuais (as sociedades capitalistas altamente desenvotvidas) formulada .por Eugene D. Genovese. 20 Este historiador mostra que
ao estudo de todas· as sociedades. E o fará, evidentemente, sem o aspecto crucial do problema está na atitude de analisar um sis-
colocar o problema da validade de tal ·procedimento teórico, pois tema como o escravista de um ponto de vista exc/.11sivamente econô-
afastou a única maneira de criticá-lo ou controlá-lo. Dois exemplos mico, o que deforma a percepção que se pode ter do objeto de
esclarecem melhor a questão. ' estudo: "O que importa não é o· crescimento em valor absoluto
Em 1958 Alfred H. Conrad e John R. Meyer, membros da mas um crescimento politicamente viável." A escravidão era a base
"1'.'ew Economic History", em um importante estudo sobre o sul de um sistema social específico e o exame da agricultura escravista
escravista dos Estados Unidos, no século XIX, 18 tentar.am medir a como empresa, seu estudo microeconômico, tem de ser abordadà ·
~rentabilidade da escravidão, empregando conceitos e métodos da em um contexto mais amplo. Tratando-se de constatar as repercussões
cicncia econômica, através da construção de um modelo economé- do sistema escravista sobre a sociedade, em seu conjunto, cumpre
trico de uma plantação de algodão, para o período de 1830-1860; considerar entre outras repercussões as seguintes: um baixo nível
tentaram computar os lucros resultantes dos investimentos, com,base de acumulação de capitais; a propensão dos senhores ao consumo
em uma fórmúla · keynesiana. A conclusão ·a que chegaram, depois· de objetos de luxo; a monocultura; uma economia dependente e,
dei analisar não somente a produção e venda do algodão como a conseqüentemente, a perda de capitais em benefício de outras regiões
criação e venda de escravos, foi que os investimentos no setor do país e do exterior, agravando a escassez de capital líquido por
escravista eram perfeitamente racionais, .pois os lucros resultantes dos motivo da sobrecapitalização do trabalho; uma economia cujo cres-
mesmos eram tão elevados como_ os que, em outras regiões dos cimento se dava em extensão, em vez de ser qualitativo; uma ideo-
Estados Unidos, podiam ser conseguidos com investimentos em logia antiurbana e antiindustrialista dos donos das grandes lavouras,
dif~rentes setores da atividade econômica. ~·no ponto de vista pura- que dominavam o cenário político e social; um mercado interno
mente econômico, a escravidão não era incompatívél com o cres- pouco importante; o papel secundário e acessório das atividades
cirrlento", nem com a diversificação da economia; se os senhores industriais., bancárias e comerciais. Pois bem, se tal marco sócio-
de ~scravos não empregavam os capitais disponíveis para industria- econômico global, esboçado pelos aludidos fatores, for considerado,
lizar ou diversificar económicamente o Sul sua opção se explica ficará evidente que não tem sentido o exame do problema da ren-
pelo fato dos referidos capitais poderem ser mais vantajosamente tabilidade ou da racionalidade, no caso do regime escravista, pelos
aplicados na produção agrícola e na reprodução de escravos. Deppis critérios de uma sociedade capitalista e burguesa, através dá apli-
de Conrad e Meyer, outros pesquisadores chegaram a conclusõeS cação de fórmulas de Keynes e de um raciocínio neoclássico. A
do mesmo gênero e tentaram demonstrar que os donos das planta... identificação do relacionamento entre senhor e' escravo com um
~ões agk-am racionalmente ao -de.fende"°, pelas armas, um sistema
econômico que lhes garantia alta rentabilidade. 10 Economic Research, 1962 (cm Aspccts of Labor Economics, com os comen-
tários de T. P. Gvoan e J. E. Moes, pp. 183-2561. ·
18 /,.. P . Conrad e J. R. Meyet. uThe Ec<>nomics of Slavecy_in the Ante. 20 E. D. Genovese, Economie po/itique de /'esclavage, trad. de Nicole
:lkllum South", em Journa/ of Political Economy, tomo UÇVI, abril de Barbier, Paris, Masp<To 1968, pp. 139-140, 235-241. (ediç_ão norte-an1ericana~
1958, PP. 95-130. De preferencia, consultar este artigo dos mesmos autor~ em Nova Iorque, 1065; há tradução u,,.,pl,,,\a R. Romano (Art. cit., p. 233,
Th" Econumics of Slavery and Otliers Econometrics Studies, Chicago, 1954; nota 6) diz que Genovese apenas menciona no livro os µuntas omitidos
puis aí está justamente com 'as críticas de Douglas F. Dowd e John E. por Conrad e Meyer; mas em outros trabalhos Gena\lese faz importantes
Mo,·~ e com a resposta de Conrad e Meyer às mesmas. contribuições (por exemplo, Tlze World tlie Slave1zoldr:rs. Made; Nova largue
19 Cf., entre - outros, o artigo de Robert Evans Jr .. "Thc Economics of Pantheon Books, 1969; li! Rcd azul B/ack, Nova Iorque:~Pantheon Books,
l\inn1l·•rn. Nçgro Slm·ery"; Princeton (Nova Jersey), National Burcau of 1971). .

S4 55
vínculo exclusi\1amente econom1co, como o existente entre patrão truídas. :!:! Buscaram redistribuir o movimento dos· transportes, a
e operário, no capitalismo, ·é absurda. A racionalidade econômica partir de tal hipótese, concebendo a construção de uma rede de
só existe' socialme.nte condicionada, é relativa· a cada sistema consi- canais, por exemplo. Sua conclusão foi que os resultados de uma
derado: o que é racional na sociedade capitalista pode não sê-lo não-construção das ferrovias representariam, em cada caso, somente
em urírn sociedade escravista, e vice-versa. de 4% a 5% da renda nacional. Mas, pode um historiador aceitar
Como afirmar que os investimentos dos escravistas do Sul a limitação do problema a este âmbito tão estreito? Como não
resultavam de uma "opção" entre várias alternativas, sem antes levar em conta tudo o que representou a ferrovia em termos de
considerar que, em um sistema escravista, as opções econômicas expansão geográfica, mobilidade da mão-de-obra, redistribuição das
possíveis estão condicionadas ;pelos~ parâmetros do referido sistema? empresas, etc.? E que critérios permitem escolher variáveis repre-
Análises como a de Conrad e Meyer cometem o grave pecado sentativas de uma evolução histórica que não aconteceu, como se
do anacronismo, o menos perdoável a um historiador; mas, justa- pressupõe? Nestas copdições, tanto os cálculos quanto as inter-
mente, não são historiadores, são economistas que aplicam tran- pretações dos autores mencionados teriam de provocar, e de fato
quilamente, ao passado, conceitos, problemática e metodologia da provocaram, muitas críticas e ;polêmicas. ~a As evoluções alterna-
ciência econômica atual, elaborada em função de um sistema eco- tivas passíveis de serem propostas a partir da suposição de não
nômico bem determinado. O controle da compatibilidade de tais ter acontecido algo que de fato aconteceu são por demais nume-
elementos com outros sistemas econômicos tem de passar pela rosas, ou mesmo ilimitadas ...
consideração do edifício social em seu conjunto, o que é impossí- A"New Economic History" mostra-se, seguidamente, como a
vel, no entanto, na perspectiva dos autores citados. A vontade de história econômica fechada em si mesma; muitas vezes cedendo ao
rejeitar a imagem "tradicional" da especificidade do Sul escravista, virtuosismo; à aplicação da técnica pela técnica em si, não como
apresentando suas elevadas taxas de crescimento econômico entre simples instrumento analítico. Isto, entretanto, não é inevitável.
1840 e 1860, não lhes permite explicar por que a referida região Nada impede que o aperfeiçoamento metodológico se dê ao lado
continuou apresentando níveis de renda inferiores aos do resto do das precauções elementares que o método crítico, aos poucos ela-
país por tanta,s décadas, depois da Guerra da Secessão. A guerra e borado pelos historiadores, pode sugerir - e sem romper os vín-
a Reconstrução não constituem uma explicação satisfatória. Na rea- culos ,da história econômica com a história total.
lidade, a existência anterior da escravidão gerou graves ;problemas
à reconversão da economia sulista, suscitou conflitos sociais e difi-
culdades econômicas impÔrtantes. O Sul escravista como um mundo
rural; a enorme absorção de capital na aquisição da fotça de tra-
balho; a pequenez do mercado; a mão-de-obra pouco qualificada,
inclusive por motivos de segurança. Como poderiam estes e outros C, Os historiadores e as estruturas
fatores deixar de influir poderosamente,· mais tarde, na evolução
posterior à abolição?~'!

Passemos ao segundo exemplo. Pretendendo verificar a im- É indiscutível que, nos últimos tempos, o conceito de estru-
portância real das ferrovias para a evolução da renda nacional dos tura ocupou importante lugar na obra dos historiadores. Também
Estados Unidos, no século passado, A. Fishlow e R. W. Foge! reali-
zaram estudos econométricos - o primeiro para 1859, o outro
para 1890 - pressupondo que as ferrovias não tivessem sido cons- 22 H. W. Foge!, Railroads anil Economic Growllz, Essays ill Econometric
History. Baltimore, 1964; A. Fishlow, American Railrocds and the Trans-
fonnation of lhe Alltebellimz Economy, Cambridge (Massachusetts), 1965.
21 Cl LáycLéboycr. "La 'Ncw Ecdnomic History1" ar/. cit., p. 1062. 23 Lév).<-Léboy<:r, art. cit., pp. 1039-1041, 1063-1064.

56 57
o !.'. que estes últimos usaram tal noção com uma grande variedade Raymond Boudon teve o mérito de pôr um pouco de ordem
de acepções, freqüentemente atribuindo-lhe um domínio tão vasto na apreciação da grande variedade de usos que, no terreno das
quanto mal definido. Aqui apresentamos a opinião de Jean Bou- ciências sociais e humanas, se faz do conceito de estrutura, dis-
vier, a ,?ropósito: tinguindo os dois tipos de contexto eni. que ele se apresenta:

"Minha impressão é que os historiadores, embora usando rom- 1<? No primeiro caso, a noção de estrutura é usada para
petentemente o conceito de estrutura, atribuiram-lhe se é que mostrar que o objeto de estudo é um sistema, ou seja.,
assim se pode dizer, o papel de um quadro imenso em que
um conjunto de elementos interdep~ndentes, ou para mos-
se pode ler uma paisagem heterogênea em que se entreligam a
trar que com a aplicação de um determinf}do método
demografia, a .economia e as classes. O rótulo "estruturas" é, ao
mesmo tempo, indispensável, muito simples e demasiadamente consegue-se a descrição de um objeto como sistema: a
amplo. Em todo o caso, o conceito está na moda e estará por noção surge então no contexto de uma definição inten-
muito tempo. Côm o auxílio dos trabalhos já publicados talvez cional.
devêssemos reexaminá-IG ·para, de certo modo, reconstitu-lo a 29 Um segundo tipo de co::itexto caracteriza-se pela apari-
partir de seus diversos conteúdos e dos fatos." 21 ção do conceito de estrutura inserido em uma teoria hi-
potético-dedutiva que se propõe a explicar o caráter sis-
temático do objeto de estudo: a palavra estrutura surge,
O uso mais freqüente da noção de estrutura no quadro das neste caso, no contexto de uma definição efetiva. ~r.
pesquisas históricas verifica-se. na história econômica, em oposi-
ção ao conceito de conjuntura, ou movimento. A estrutura desig- As palavras "intencional" e "efetiva" indicam que, cm um
na, então, simultaneamente as estabilidades econômicas - aquilo primeiro momento, ao identificar-se o caráter sistemático de um
que, em uma economia dada, só .muda muito lentamente - e as objeto, já se manifesta a intenção de construir uma teoria que
proporções 'e)Çistentes entre os fenômenos econômicos (por exem- explique a interdependência _dos elementos constitutivos do mesmo
plo, o predomínio. das atividades agrícolas ou, ao contrário, o da objeto-sistema, sem que isto seja, às v.ezes, imediatamente possí-
indústria; a importância. relativa das empresas de tipo familiar em vel; quando há possibilidade de realizar a dita construção, então,
confronto com as sociedades anônimas, etc.). O concei.to de es- chega-se a uma definição efetiva. A elaboração de uma teoria
trutura, em história econômica e em geral, surge vinculado ao hipotético-dedutiva supõe reunidas várias condições relativas aos
fato dos historiadores tomarem consciência de que o estudo da instrumentos de análise e à natureza do objeto de estudo (parti-
evolução das sociedades demonstra a existência de certos setores cularmente a possibilidade de delimitar tal objeto) . Assim, por
e elementos da realidade social, caracterizados por uma estabili- exemplo, é possível construir, presentemente, teorias deste tipo
dade e uma permanência relativas e extremamente variáveis. Mas, aplicáveis às estruturas de parentesco, ou a . muitos aspectos. dos
estrutura e movimento - ou conjuntura - são conceitos estrei- estudos lingüísticos, pois é possível definir e delimitar os respec-
tamente vinculados. As diferentes configurações estruturais pres- tivos objetos para aplicar-lhes instrumentos de análise conhecidos;
enquanto o estudo da estrutura social, ou de um sistema eco-
supõem conjunturas diferenciais, características dos distintos siste-
nômico em seu conjunto, não pode, ao contrário; conduzir a
mas; e o efeito cumulativo das variações conjunturais pode produzir
elaborações teóricas comparáveis, nas condi~ões presentes, por se
mudanças estruturais, quer dizer, pode conduzir a novos estados
de· equilíbrio relativo qualitativamente diferentes.
25 Raymond Boudon, A quai sert. la notion de "structure"? Essai sur la
signification de la. 11otion de structure dans les sciences humaines, coleção
24 J Buuvier, "L'appardl conceptuel. .. ", art. cit., :P. 12 .. Les Essais, n.º 136, Paris,· Gallimard, 1968.

58 59
tratar de análises de sistemas indefinidos, quer dizer, constituídos Ao est.udar os livros de Lévi-Strauss, é muito importante dis-
por um conjunto de componentes de impossível identificação se- tinguir, por um lado, os grandes êxitos por ele conseguidos em
gura e cujo número é indefinido. tliversos campos da pesquisa antropológica - .como o estudo dos
Se aplicarmos a distinção de Bourdon ao conceito de estrutura, sistemas de parentesco, dos mitos - através da aplicação do mé-
assim como é usado. pelos historiadores, torna-se evidente que, na todo científico (hipotético-dedutivo), e cuja grande importância e
maioria dos casos., trata-se de uma noção de estrutura no contexto originalidade cumpre assinalar; por outro lado, uma .série de afir-
d.e defiriições intencionais; ,por exemplo, e principalmente, quando mações ambíguas, ou mesmo contraditórias, disseminadas em seus
"estrutura" está em oposição ·a "conjuntura". Estruturas enten- textos, não fundamentadas pela pesquisa ou por outro tipo qual-
didas como o resultado de teorias hipotético-dedutivas - ou seja, quer de coÍnprovaÇão, e cujas intenções teóricas e normativas
no contexto de definições efetivas - só aparecem por ora, em surpreendentemente ambiciosas têm muito pouco a ver com os
es.tudos econométricos, resultantes da importação direta para o êxitos anteriormente mencionados. De um modo talvez um tanto
estudo histórico. de aspectos parciais dos sistemas econômicos, dos rude, mas bastante exato, Caio Prado Júnior descreve o que se-
métodos e modelos da ciência econômica. riam as dificuldades dos discípulos .do aludido autor, caso quises~
sem orientar-se exclusivamente por essas afirmações normativas
Para concluir a present~ seção gostaríamos de mencionar -
e não mais do que mencionar, pois qualquer tentativa de apro- ou teóricas não amparadas erri comprovação: 21
fundamento nos levaria demasiadamente longe - as polêmicas típi-
cas da década anterior, caracterizadas pelas oposições: antropolo-
gia estrutural/história, sincronia/diacronia, estrutura/acontecimento, •·Em suma, se os dscípulos de L.-S. se ativessem unica~
etc., e dominadas pela personalidade científica de Claude Lévi- .mente aos conselhos e diretivas metodológicas do mestre, a
Strauss e pelas diferentes reações provocadas por seus . trabalhos chamada "análise estrutural" que recomenda, ficariam reduzi-
e afirmativas. Ante a "antropologia estrutural" uma espéci'e ·de dos à simples adivinhação. Tratar-se-ia para eles imaginarem,
complexo de inferioridade apossou-se de mui.tos historiadores., com- sem nenhum amparo objetivo e concreto, e sem nenhuma orien-
preensívçl apénas pela desvantagem em que os ·coJ.ocava sua for- tação ou pista fornecida pela consideração e observação dos
fatos, um esquema qualquer, ou vários esquemas, conformes
mação profissional para perceberem ·as numerosas incongruências
apenas com as "condições" formais dadas pelo mestre. T~sta­
teóricas e epistemológicas con~idas na obra de Lévi-Sstrauss, ·ao riam em seguida esses esquemsa, produtos da pura imaginação.
lado de achados indiscutivelmen!e geniais. Menos fácil de com- em confronto com os ·fatos, na esperança de alguma coincidên-
preender é a timidez que impediu os his_toriadores - exceto uma cia que somente poderia ser ditada, .em vista de sua origem,
minoria - de demonstrarem que, ao falar da história o referido pelo acaso. E consagrariam afinal como "modelo" aquele esque-
antropólogo tratava de um tema que, com gritante evidência, des- ma que, favorecido pela sorte na adivinhação, desse melhor
conhece ;profundamente; eqi particular, teria sido importante, em conta daqueles fatos. Nesta altura, e conforme· a passagem de
1960, criticar em profundidade a absurda "história estrutural" por Anthropologie Structurale que tivessem sob as vistas - uma
efo proposta. ~u · Tal indecisão dos historiadores mostra sua inse-
gurança em. relação a muitos. problemas teóricos e epistemológicos
básicos; o advento do estruturalismo teve o grande mérito de for- 27 Caio Prado Júnior, O Estruturalismo de Lévi-Strauss. O Marxismo de
çá-los a raciocinarem sobre eles. Louis Althusser, São Paulo, Editora Brasiliense; 1971, pp. 30-31. O tra·
halho de Prado Jr. constitui um bom ponto de partida para a crítica de
Levy-Strauss, embora não se refira a todos os aspectos da obra do
]6 Cf. sua aula inaugural no Cúllege de Fra11cr: a 5 de janeiro de último. Ver também: Adolfo Sánchez Vásquez. '"Estructuralismo e his
l<Joll e, , anteriormc'nte, seu prefácio ao livro de M. Mauss, Sociologie toria", em Estructuralismo y marxismo, México, Editorial Grijalbo, 1970,
pp, 4279.
d w1;hrnpulugie, Paris, Presses Univcrsitaires de Francc, 1"950.

60 61
descontínuo"). Enfim, André Martinet .alerta que· sincronia não
vez que os conceitos de L-.-S. a respeito do assunto são comu
vimos variáveis e vacilantes - , já estariam de posse da "estru- significa estática: :!~
tura" levistraussiana. Ou então restaria ainda, com os modelos,
passar à descoberta da "estrutura'', aí então sem nenhuma som- "No referente à questão da sincronia, creio que poderia ser
bra de indicação do mestre que, se mal e mal e com todas as útil, também para os historiadores, não identificá-la com es-
suas àmbigüidades, · vacilações e inconseqüências, ainda diz algu- tática. Os lingüísticas chamaram a atenção :para este ponto,
ma coisa a respeilo dos modelos, nenhuma iniormaçáo nos dá seguidamente. B possível fazer sincronia dinâmica, quer di-
acer~a de sua "estrutura". Nem mesmo o que seja, em que zer, estudar sincronicamente os fenômenos, assim como eles
consiste." evoluem à nossa vista. ( ... ) "Podem ser registrados [em
sincronia] fatos que revelam uma tendência à modificaç~o da
f: evidente que as pos1çoes defendidas por Lévi-Strauss não estrutura."
esgotam o estruturalismo contemporâneo. O modelo binário de
J akobson, vinculado à lógica de Boole, íPassúu da lingüística à i'
antropologia estrutural, em que fÍmdamenta a análise baseada na
identificação de oposições binárias, ao mesmo tempo complemen-
tares e imóveis. O anti-historicismo observável em muitos estru-
turalistas deve-se, principalmente, à escolha do modelo lingüístico
de J akobson, mas este não é o único existente. De qualquer
modo, para o historiador, estrutura e movimento são inseparáveis.
f: certo que a percepção estrutural supõe possível fazer abstração D. Metodologia e dependência cultural
das mudanças em determinado contexto sócio-geográfico e para um
período de tempo também definido; sem esta operação não haveria
construção teórica possível, pois não poderiam ser definidas as
constantes ou/ parâmetros de um dado sistema. Porém, diferente-
mente da antropologia estrutural, a história não admite "invariân-
cias" mais que relativas, instáveis e transitórias; a visão da mu- Os historiadores das zonas periféricas, ou dependentes., são
dança que tem o historiador baseia-se no autodinamismo das
levados pela dinâmica do fenômeno de de.pendência cultural -
estruturas. O mecanismo dinâmico-estrutural é interno, . e não ex-
que não estudaremos aqui - a escrever a história de seus países
terno (encontros ou choques de estruturas) como pensa a antro-
pologia estrutural, devido à separação arbitrária e radical que faz empregando problemática, critérios metodológicos, técnicas e con-
entre o "sincrônico" e o "diacrônico", que na realidade não pas- ceitos elaborados nas regiões mais adiantadas. Entretanto, as rea-
sam de modos necessariamente complementares de perceber o lidades históricas em função das quais foram elaboradas est.as ·fer-
processo histórico em· 5Ua diversidade e unidade, pois não há es- ramentas teóricas e estes instrumentos de análise são, freqüente-
trutura independente de um processo de evolução, e a. percepção mente, bem diversas das que têm de ser estudadas no caso dos
do. fluxo incessante da história inclui, ao mesmo tempo, a consi- países. do chamado "Terceiro Mundo". Embora a anulação com-
deração das permanência<;, das resistências à mudança, das sobre- pleta dos condicionamentos e imposições derivados da dependência
vivências. O tomar em consideração estruturas discretas, fatores
descontínuos, não impede que, a nível mais elevado, seja restabe-
28 Las estructuras y los hombres, cit., pp. 125, 149. Sobre os temas aqui
lecida a continuidade fundamental do processo histórico (ou; como esboçados, ver em geral as interessantes discussões e colocações conti-
Madeleine Rebérioux o expressa, que se perceba "o contínuo no das neste pequeno livro. -

62 63
cultural seja impossível - salvo eliminando as causas reais desta nas no campo das c1encias humanas e sociais, eritre elas a his-
última - pode-se, à custa de um esforço consciente e constante, tória, vêm aumentando de modo nitidamente perceptível nas últimas
rejeitar os falsos problemas e os esquemas inadequados, adaptar décadas.
ou recusar (conforme os casos) certas técnicas de pesquisa e de Porém, citemos alguns exemplos atinentes a certos setores da
processamento de dados e estabelecer" uma problemática de fato pesquisa histórica, visando a identificar os perigos implícitos da
pertinente. importação indiscriminada e acrítica de metodologia e conceitos.
É preciso notar que, ao falar de "adaptação", estamos nos Ruggíero Romano mostra :w que a aplicação dos princípios e
referindo a operações metodológicas e técnicas bem precisas, deter- métodos da história quantitativa ou da "New Economic History"
minadas por uma apreciação da natureza dos dados a analisar e à história econômica da América Latina seria prejudicada, pri-
das características da documentação disponível. Não se trata, por- meiramente, pelo fato dos dados disponíveis serem, na referida
tanto, do fenômeno - bem conhecído na América Latina - que região e antes de nosso século, mais raros e menos confiáveis do
poderíamos denominar de "tendência ao sincretismo" ou ao ecle- que os que podem ser recolhidos na Europa ou na América do
tismo e que constituiu, também, a seu modo, uma adaptação ·da Norte; em segundo lugar, porque a aplicação à área latino-ameri-
cultura importada, seja a uma realidade resistente a certos esque- cana de concepções que ,pressupõem um mercado "perfeito", ou
mas, ou ao que o autor pretenda demonstrar. O referido sincre- a disposição de estudar o engenho de açúcar do Brasil cio século
tismo consiste na justaposição ou combinação de elementos .isola- XVII, por exemplo, conforme padrões capitalistas ele racionalidade
dos de diversas teorias ou tendências interpretativas, mal e par- levariam a resultados absurdos. Pierre Chaunu também crê sejam
cialmente conhecidas e assimilàdas, dando como resultado cons- os métodos da história serial ós que possam ser mais proveitosa-
truções aparentemente impressionantes mas, na realidade, muit~ mente usados. 30
débeis e pouco resis~entes à ação demolidora da crítica.. Tal fe- A metodologia da história demográfica, como foi desenvol-
nômeno) como. a dependência cultural de que é um dos aspeétos, vida pelos membros da escola francesa, pressupõe uma estabili-
vincula-se aos mecanismos do que chamamos, com palavra·· bem dade e homogeneidade bem grandes da .população analisada. Pois
pouco adequada, de "subdesenvolvimento". Aos centros culturais bem, se quisermos estudar a evolução demográfica dos países la-
dos países periféricos chegam, com ' atraso variável e sempre de tino-americanos descobriremos que, por um lado, as fontes mais
modo incompleto, os produtos da reflexão e das ,pesquisas reali- importantes (registros paroquiais, censos, padrões populacionais,
zadas nos países "desenvolvidos". É extremamente difícil, em nos- listas nominativas, etc.) são quase sempre muito mais pobres em
sas cidades, acompanhar passo a passo e. cabalmente a evolução informações do que as eur9péias e, em geral; foram conservadas em
de uma especialidade qualquer. Por outro lado, fatores ideológi~ menor prqporçào; por outro lado, é evidente que os critérios ade~
cos. e políticos podem ·conduzir a vários tipos de distorções, por quados ao estudo de populações em cuja evolução foram fatores
exemplo à atribuição --,-- às vezes por longos ,períodos - de exa- essenciais as migrações, o processo de conquista, a escravidão ou
gerada importância a autores, correntes e teorias que, de fato, as diferenças étnicas., não podem ser os mesmos aplicados a uma ·
ocupam uma posição marginal em relação ao desenvolvimento de população como a da moderna França. A reconstrução de famí-
dada ciência, ou cujas colocações já tenham sido eficazmente cri- lias, eixo do método francês·, na América Làtina (salvo em es-
! 1cadas. A tudo isto acrescentadas as formações J,epistemológicas, cassos casos privilegiados) além de ser de aplicação muito difícil
mltodo1ógicas e técnicas (seguidamente bem deficientes) do pes-
quisador, fica fácil de compreender que tenham sido elaboradas
e admitidas amplamente tantas análises e teorias aberrantes. Não 29 Romano, art. cit.
30 Pierre Chanu, Pour tme histoire sérielle du Brésil au XVII!e siéck
~é pode negar, entretanto, que está em andamento uma evolução
(Informe apresentado ao Colóquio Internacional n.º 543 do C.N.R S
p,:,itiva: a qualidade e a seriedade das .pesquisas latino-america- "História quantitativa do Brasil, 1800-1930", Paris, outubro• de 1971 J.

64 65
apresenta valor ex,plicativu discutível e limitado, pois a quantidade E. Conclusão
de uniõ~s ·não ·institucionalizadas e de nascimentos ilegítimos sem-
pre foi muito n-Íais importante aqui do que na Europa; a estabi-
lidade dos sobrenomes, mesmo quando estes aparecem, é muito
menor; e a grande mobilidade da população torna impossível, às
vezes, estudos deste tipo. É preciso, pois, saber adaptar .os mé- No capítulo anterior, feito um resumo da brilhante trajetona
todos às realidades da demografia histórica latino-americana; e os da cii!ncia histórica, nas últimas décadas, pareceu-nos útil con-
historiadores demógrafos da região têm consciência disto. :u cluir chamando a atenção para a existência de problemas. Ao
Um exemJ>lo claro dos efeitos da dependência cultural é a encerrar este capítulo, justamente dedicado aos aspectos proble-
aus2ncia de urna verdadeira teoria econômica adaptada às reali- máticos e polêmicos da evolução recente de nossa disciplina, tal~
dades coloniais latino-americanas. A conjuntura, por exémplo, é vez convenha lembrar que o balanço da referida evolução é cla-
estudada em função da européia sem que sejam conhecidos seus ramente positivo. A diversidade de correntes e as polêmicas cons-
mecanismos próprios e suas conseqüências específicas na América tituem, de fato, a melhor prova da vitalidade da história;. e os
L:itina: süo raras as tentativas feitas neste sentido, como a de problemas colocados têm, todos, possibilidade de solução satis-
Ce)so Furtado que estudou as crises econômicas do Btasil colo- fatória.
nial. Também., acontece que a evolução histórica de nosso sub- Quanto às questões relativas aos riscos certamente bem
continente é identificada, com atraso, à· da Europa __:_ os países reais - ligados à a.plicação à América Latina de um marco teó-
latino-americanos atravessariam, no século XIX ou mesmo no atual, rico e metodológico mal adaptado às realidades que devem ser
uma fase semelhante ao ancien régime europeu. Esta visão sim- realmente estudadas e explicadas, não justificariam uma reação de
plista chegou a atrair um certo número de historiadores latino- pessimismo ou de desânimo. Pois, . por felicidade, existem numerosos
exemplos de pesquisas feitas po'r histroiadores latino-americanos que
americanos, por exemplo, os que tentaram encontrar apoio bis-.
souberam empregar os avanços da sua ciência e perceber, simulta-
tórico para a tese desenvolvimentista (resultante da generalização
neamente, a necessidade de aplicar vigorosamente o espírito crítico
dÇ} modelo "da Revolução Industrial européia) da necessidade de . à seleção e mesmo à adaptação da problemática e dos instrumentos
uma reforma agrária que antecedesse o desenvolvimento capitalista, técnico-metodológicos, graças a um bom çonhecimento das especi-
o que é equivalente à caracterização do mundo rurál latino-ame~ ficidades de sua região e da documentação disponíveL
ricano como "feudal" ou pt.é-capitalista. Este esquema também Em caso algum pode-se tentar um álil::?i tendente a justificar
fói aceito pelos historiadores latino-americanos influenciados pelas a fidelidade a um marco teórico-metodológico superado, a pretexto
"etapas" de W. \V. Rostow. :l.:! de existirem polêmicas, pontos sobre os quais não há acordo unâ-
nimt; possibilidades de distorção, etc. A atitude correta consiste
em aceitar criticamente a evolução irreversível da ciência históriea,
31 Cf. diversos trabalhos apresentados por Maria Luiza Marcílio, Elsa sem ·pôr de lado as precauções' e os meios de controle adequados,
J\blvido, Katia Mattoso, e outros, em vários encontros científicos inter-
nadonais; Nicolás Sánchez-Albomoz, "Les registres paroissiaux en Amé-
que felizmente não sãó desprezíveis.
r! :;t1L' latim~. Quetques considerátions sur leur exploitations pour la démo-
!:raphie historique", em Revue Suisse d'Histoire, XVII, (1967). pp. 60-71.
32 F. Mauro, L'expansion .. ., cit., p. 299; dó mesmo autor, "Teoria eco-
nómica e história econômica", em Nova História .. ., cit., pp. 1340; Celso cionais da agricultura brasileira, admitidas por historiadores como Nel-
Furtado, Formação econômica do Brasil,· São Paulo-Rio de Janeiro, Fun· son Werneck Sodré, emb.ora há muito criticadas por- Caio Prado Júnior.
do de. Cultura, 1964 (6," edição; ·há tradução para o espanhol); Antônio Como exemplo da aplicação dos esquemas de W. W. Rostcw à história
BarrO,'; de Castro, Sete ensaios sobre a economia brasiletra, .vol. I, Rio-São de um país latino-americano, ver Di Tella e Zymt;lman, ~as etapas del de-
l'.1ulv, 'Fon:nsc, 1969: Castro critica muito bem as interpretações tradi- sarro/o económico argentino, Buenos ·Aires, EUDEBA, 1967.

66 67
A. Concepção marxista da história, da década de 20
a nossos dias

1. CARACTERISTICAS GERAIS DA EVOLUÇÃO i

Nos anos seguintes à Revolução de 1917, constituiu-se uma


escola de peri.samento histórico marxista na União Soviética, ao
mesmo tempo em que por todo o mundo ampliava-se a influência
do materialismo histórico entre os intelectuais. No contexto dos
CAPÍTULO III anos anteriores à li Guerra, é bem compreensível que as posições
da URSS e da III Internacional tivessem influência predominante
sobre os pensadores marxistas de todo o mundo.
Apesar do interesse. precoce do governo soviético pelo desen-
volvimento dos estudos históricos, a tarefa de criar uma nova es-
MARXISMO E HISTÓRIA NO SÉCULO XX cola baseada nos princípios do materialismo histórico não foi fácil.
Havia, certamente, desde antes da Revolução veteranos historia-
dores marxistas (como V. P. Volgin) e até veteranos do Partido
Comunista (como M. N. Pokrovsky), mas eram poucos; de um ·
modo geral, eram escassos os historiàdores com uma formação
profissional. Alguns destes últimos - E~ V. Tarlé, por exemplo
Em outra parte deste trabalho (Capítulo IX, C) o leitor en-
- aderiram à nova orientação.
contrará uma apresentação sumária dos princípios do materialismo
histórico. Este capítulo ocupar-se-á de esboçar as principais etapas. Alguns progressos foram desde logo notados: o trânsito de
uma focalização predominantemente político-institucional da histó-
da evolução da historiografia marxista no curso deste século e,
também, tratará de avaliar a influência da referida· corrente no ria russa para uma sócio-econômica, processo em que a influência
de Pokrovsky foi acentuada; um grande interesse pela hist9ria das
pensamento histórico dos nossos dias.
classes populares e dos movimentos sociais, do Partido Comunista

~ ~sta .. exposição baseia_-se essencialmente em. Geoffrey Barí·aclough,


H1story , cap. III de Mazn Trends of Research in the Social a11d Human
Sciences, 2.• parte, UNESCO, s/d (mimeografado), pp. 33-46; Witold Kula,
Problemas Y métodos de la historia económica, trad. de M. Bustamante,
Barcelona, Ed. Península, 1973, cap. I; Eric J·. Hobsbawm, "L'apport de Karl
Marx à l'historiographie", em Diogene, n.º 64, outubro-dezembro de 1968,
w. #@. -

68 69
da União Soviética e da Revolução de 1917, da servidão medie- entíe os historiadores soviétivos, a impressão que· colhemos é a
val, do capitalismo e suas crises (E. Varga), etc. Cumpre desta- cje. uma superação apenas parcial .cio dogmatismo - que continua
car, também, alguns aspectos negativos: uma tendência para inter- ocupando destacadas posições no mundo acadêmico do país.
pretações economicistas lineares; um arsenal técnico primário, li- Fora da União Soviética, fazem-se notadas, desde a década de
mitado às regras do método crítico positivista; polêmicas e 1920, as contribuições teóricas de A. Gramsci e G. Lukács, par-
tomadas de posição (sobre a periodização histórica, a natureza e ticularmente significativas no referente ao estudo das superestrutu-
!>ucessão dos modos de produção, por exemplo) que refletiam mais ras. Esta contribuição é mais clara ao se levar em conta o pre-
considerações ideológicas do que argumentos fundados na pesquisa
domínio, nos círculos marxistas ocidentais, da interpretação do mà-
científica; relativa escassez de monografias, pois a necessidade de
t~rialismo histórico da vertente social~democrata (Kautski, Hilfer-
formar quadros fazia com que o esforço se concentrasse na ela-
boração de manuais e de obras de síntese e de reinterpretação. ding, etc.) que tendia a identificá-lo a concepções evolucionistas
Mais grave, entretanto, foi a tendência para o dogmatismo, e positivistas e a reduzi-lo a um economicismo vulgar, ~m muitos
que adiante analisaremos, cujo apogeu verificou-se nos anos· da~; casos. Mas, é sobretudo desde o fim da Segunda Guerra .Mundial
déc:.icJas de 30 e 40, quando as pesquisas :pioneiras da décadn de que vemos desenvolver-se a historiografia marxista em um grande
20 "foram interrompidas pelas repressões políticas e pela limita- número de países. A publicação, em inglês, do livro de Maurice
ção da liberdade de pesquisa científic::i. : . " 2 No conjunto, é pre- Dobb, A evoluçao tio capllalismv, em 1956, estimulou no início
ciso dizer que, salvo em certos campos como os da arqueologia do decênio seguinte uma ampla discussão internaeional sobre a
e da pré-história, progrediu-se pouco no atinente à contribuição a transição do feudalismo para o capitalismo. ' O aludido debate,
de Marx, Engels e Lenine. O esforço tendeu, mais do que nunca, sem romper de todo com as insuficiências dogmáticas sobre a defi-
a concentrar-se na publicação de fontes e na elaboração de ma- nição e emprego do conceito de modo de produção, teve muita
nuais. importância porque submeteu à crítica as concepções circulacionis-
tas e apresentóu uma versão do advento do capitalismo de muito
Na década de 50 começaram a ser percebidos sinais de mu- maior riqueza e matização do qé , a proporcionada ·pelos esquemas
dança, acelerados depois do XX Congresso do Partido Comunista estalinistas. A expansão do socialismo, abrangendo numerosos paí- _
da União Soviética (1956), quando teve início a crítica ao esta- ses, depois da Segunda Guerra - Europa centro-oriental, China,
linismo. Surgem novas revistas especializadas, apresentam-se novas Cuba, etc. - conduziu à criação ou ao fortalecimento de escolas
problemáticas, discutem-se conceitos fundamentais dantes dados por marxistas de história nestes países; cumpre destacar, muito espe-
pressupostos e ,por definitivamente estabelecidos (modo de pro~lu­ cialmente, a contribuição brilhante do polonês 'Witold Kula. Porém,
ção, formação econômico-social caráter "típico" e universalidade mesmo em muitas nações não socialistas - França (A. Soboul,
dos modos de produção, etc.). Os métodos quantitativos, de cujo P. Vilar, Ch. Parain, J. Bouvier, etc.), Grã-Bretanha (E. Hobs-
Lmprego o pioneiro foi o medievalista E. A. Kosminski passaram bawm, M. Dobb.., C. Hill; R .. Hilton, etc.), Itália (E. Sereni), Japão
a ser usados com maior freqüência. 3 Os contatos (e influ~nci3s (K. Takahashi), Estados Unidos (E. Genovese), etc. - a historio-
recíprocas) com os historiadores ocidentais intensificam-se, princi- grafia marxista contemporânea é abundirnte e demonstra grande
palmente mediante a participação de especialistas soviéticos nos vitalidade. ·
congressos internacionais de história. Porém, na medida em que
as traduções nos permitem acompanhar a evolução dos debates

2 \V. Kula, Ibidem, p. 38. 4 Maurice Dobb, Estudios sobre e/ dr:sarro/lu dei capitalismo, trad. de
3 Cf. Aleida Plasencia (compiladora>, Lecturas escogidas de metodologia, L. Etcheverry, B. Aires, Siglo XXI, 1971; M. Dobb, P. M. Sweezy e
!1"1 <1lla, Editorial de Ciencias Sociales, 1975, principalmente o artigo de outros, La transición del f: .• dali8mo ai capitalismo, trad. de R. Padilla,
11 <til Ko\"alchenko. Madrid, Editorial Ciencia Nueva, 1967.

70 71
DUAS DISTORÇÕES TENAZES: DOGMATISMO histonco: comunidade primitiva, escravismo, feudalismo, capita-
ESTALINISTA E C/RCULAC/ON[SMO lismo e socialismo. É verdade que os considerava, expressamente,
como "tipos .fundamentais de relações de produção". Fundamentais
e, conseqüentemente, não únicos; mas, na prática, eram tidos como
uma fota exaustiva das eta;pas que todas as sociedades humanas
Nüo nos interessam, aqui, ás circunstâncias que - na segunda devem atravessar em seu desenvolvimento. Admitiam-se algumas ex-
metade da cifrada de 1920 e, sobretudo, no decênio seguinte, le- ceções, mas estas não alteravam a: regra básica: relaéionavam-se
varam ao triunfo do dogmatismo e do esquematismo conceituai à possibilidade de certos povos "saltarem" uma ou mais etapas,
entre os intelectuais soviéticos, nas posições da III Internacional e, sob a influência de sociedades mais desenvolvidas. A versão r: 1
punanto, na grande maioria dos trabalhos marxistas até a década materialismo histórico, aceita então, transformou-se - pelo em-
de: 50. Como é óbvio, se assumíssemos outra postura teríamos prego do esquema unilinear das cinco etapas - em üma vulgar
de nns fixar não só em fatores internos como na situação de um filosofia da história, uma entidade metafísica que determinava, do
país. cercado, como foi a União Soviética ,por muito tempo. Por exterior, o curso cio devir histórico, não restando outro remédit)
outro lado, seria demasiadamente simplista lançar sobre o esta- aos dados concretos salvo entrarem, bem ou mal, no dito esquema.
linismo a culpa integral: certas distorções vinham de_ muito antes, A pesquisa histórica passava a ser "ilustraçào" das "verdades" con-
como a tentação de transformar os esquemas de evolução de Marx sagradas.
e Engels - de cujo caráter hipotético e inacabado os autores Uma série de mecanismos permitia fazer com que coinci-
tinham plena ·consciência - não em guias de pesquisa, mas dissem a realidade e o esquema das cinco etapas, embora ele modo
em verdades absolutas e intocáveis. Sob o estalinismo, as obras muito imperfeito. 1
dos fundadores (algumas de suas partes mais do que outras),
acrescidas das de Lenine e das do próprio Stalin, passaram a
constituir uma espécie de Swnma theo!ogica ,posta acima de qual- 19 - Na prática, a noção ck modo de produçüo era esva-
quer crítica é de que só era admitida uma interpretação: a oficial. ziada de seu conteúdo dialético. Este conteúdo era afirmado em
Em outros trabalhos 5 examinamos e criticamos mais ou me- princípio, mas quando um modo de produção era dcfinic.lo con-
nos pormenorizadamente as posições dogmáticas. Estas tiveram sua cretamente isto era feito deixando de lado o problema do nível
consagração máxima no texto de Stalin, publicado em 1938, Sobre e formas de organização elas forças produtivas - e fazendo a
el materialismo histórico y el materialismo dialético, 6 que estabe- definição derivar, sobretudo, das relações cie produção. A noçüo
lecia serem cinco os estágios característicos do desenvolvimento de relações de produção era reduzida, ademais, à de simples re-
fações de exploração, ao se tratar das sociedades de classes; es-
cravidüo, servidão e trabalho assalariado, constituiam uma lista tida
5 Cf. Ciro F. S. Cardoso, '"Severo Martínez Peláez y el carácter dei por completa das formas de exploração - e na pratica se identi-
rcsimcn colonial" e "Sobre los modos de producción coloniales de Amé-
ri,:~1", ambos os artigos em Mudos de producció11 en América Latina, Ct1a-
ficava, por exemplo, feudalismo a servidão. Claro é, ocasional-
dt,,-1w> •de Pasado )' Presellte, (Córdoba, Argentina), n.º 40, maio de 1973,
PP 83-109 e 135-159.
ti J. Stalin, ·sobre el materialismo históÍ-ico y el materialismo dialéc- 7 Cf. Jean-Jacques Goblot, "L'histoirc dcs 'civilisations' et la concep-
t ico", cm C11estio11es dei leninismo, Moscou, Ediciones en Lenguas Ex- tion. marxiste de l'evolution sociale", em A. Pelletier e J. -J. Goblot,.
tranjcFas, 1946, pp. 539-553. Desde 1933 os especialistas soviéticos em ll_1a1crialisme historique et histoire des civilisatimzs, Paris, Editions so-
c1e11cias ~ociais adotaram o "esquema de los cinco estádios": cf. Kasimierz ciales, 1969, pp. 57-197 (traduzido para o espanhol; México, Grijalbo,
l\Ll icwski, La question du "mode de production asiatique" dans la Civi- 1975 l; Jqrn Suret-Canale, "Probkmes théoriqucs de l'étudc cks prcmie-
/1,1uiu1Z egée1111e à la lwniere des sources archéologiques, Paris, Centro res sociétés de classes", .em Recherches internationales à la lumiére du
<k e'tudos e de pesquisas marxistas, 1970, pp. 2-3 (mimeografado). 11w1xismc n.º 57-58, janeiro-abril de 1967, pp. 5-16. -

72 73
-1''

mente afirmava-se que determinado modo de produção, nesta ou tas"; mas, de fato, tais sociedades apresentavam comunidades ru-
naquela fase de sua evolução, "favorecia" ou "freiava" o desen- rais que consti.tuiam a força de trabalho essencial, pois a escra-
volvimento das forças produtivas; mas estas últimas ficavam au- vidão não tinha grande desenvolvimento. Alguns historiadores
sentes da definiçâo concreta que · era dada de cada modo de soviéticos, sem deixar de afirmar o caráter escravista de tais so-
produção. ciedades - em nome do iprincípio dialético que consiste em per-
ceber "os germens do novo que se desenvolvem no seio do velho",
em examinar "o que se está desenvolvendo" - elaboraram, então,
2~) - Havia uma confusão entre os conceitos de modo de a noção de comunidade de vizinhança (para substituir a de "co-
produç<1o e de formação econômico-social, ou seja - confundia- munidades aldeãs" do modo de produção asiático de Marx, con-
~e o modelo estabelecido a partir de uma análise que só mantém ceito que fora proscrito pelos orienfalistas soviéticos em 1929 e
o que de mais essencial e geral existe em certo número de socie- 1931) e explicavam tal "particularidade" da evolução destas so-
daLks consideradas de um mesmo tipo (modo de prodi'.1ção l, com ciedades como a "sobrevivência da comunidade . primitiva", devido
a socicdauc concreta, sempre caracterizada pela coexistênci :t de a fatores específicos do meio geográfico: tal sobrevivência opunha
estruturas, que se explicam por um modo de produção domi- obstáculo ao desenvolvimento escravista "normal" das sociedades
nante, com outras, cuja explicação depende de outros modo~ de orientais. 8
produção ou elementos de modos de produção (formação eco- Agora, abordemos muito brevemente· a questão elas tendên-
nômico-social). cias circulacionistas, resultado da influência, sobre muitos marxis-
tas, de uma série de explicações e teorias elaboradas, há muito,
pelo pensamento não marxista (Escola Histórica Alemã, Max. We-
39 - A idéia de Marx quanto a uma sucessão de ".:pocas ber, Henri Pirenne, Henri Sée, quase todo o grupo dos Annales
progressivas" transformava-se em uma relação de filiação entre os etc.).
modos de produção ou estágios sucessivos, cada qual engendrando A forma concreta sob a qual esta explicação circulacionista
o seguinte pelo mero jogo de suas contradições internas, num influenciou a muitos marxistas foi sobretudo a teoria do "capi-
modo linear e quase automático de evolução. Como, além disto, talismo comercial", que resulta de longa evolução no marco da
as forças produtivas eram eliminadas do plano principal de análise historiografia contemporânea. A idéia de apresentar as estruturas
dos modos de produção, a dinâmica interna destes era explicada
sociais e econômicas dos séculos XVI a XVIII como constituindo
quase exclusivamente pelas lutas de classes, consideradas sem vin-
um sistema específico, o. chamado "capitalismo comercial", "capi-
culação efetiva com. o desenvolvimento das forças produtivas e,
mais especialmente, com a divisão social do trabalho, embora esta
cPrrelação pudesse ser indicada de modo exterior à análise ou 8 Cf., por exemplo, Diakov e Kovakv (organizadores) Histoir<' de l'wzli-
llll'ncionada por alto. . . quité, Moscou, Editiuns en langues étrangeres, sem data, pp. 75-77 e,
em geral, ludo u que se refere ao Oriente Médio, pp. 90-242 (há tra-
dução em língua espanhola: México, Grijalbo, 3 volumes); mais recente-
mente e sempre na defesa da tese "escravista", cf. V. Nikoforov, "Una
49 - Finalmente, uma oscilação permanente entre o "uni- discussion à l'Institut des peuples d'Asie", em Recherclles inJemationa-
\'ersal" (o esquema linear dos cinco estágios) e o "particular", les .. . , n." cilatlo, pp. 2.f0·250; quanto à tese do "feudalismo", cf. Y .. M.
Kobischanov, "El feudalismo, el esclavismo y .el modo de . producción
ío.to é, as "peculiaridades" de evolução, tomadas em um sentido asiático", em Roger Bartra (compilador) .El modo de producción asiático,
puramente empírico, permitia que fossem feitas certas "correções" México, Edidones Era, 1969, pp. 329-334; posição nitidamente empirista,
ou adaptações, necessárias para salvar a credibilidade do sistema. baseada em uma barafunda de traços de diferentes modos de produçfto,
e/. G. A. Melekechvili. "Esclavage, féodalisme et mode de production
Uorn exemplo é o constituído pelas sociedades do antigo Oriente asiatique dans l'Orient ancien" em La Pensée n.º 132, abril de 1967,
f\ku10: pelo esquema, era forçoso considerá-Ias como "escravis- PP. 31-47 (e a crítica que ihd faz Charles Pa~ain, pp. 48-52).

74 75
n1ovimento de expansão do comercio, .dos . mercados e da coloni-
talismo mercantil" e, às vezes, "mercantilismo" é completamente
extranlYd ao pensamento de Marx e aos princípios básicos do zação, que caracteriza os Tempos Modernos. 9
materialismo histórico. Esta teoria influenciou, entretanto - e
profundamente - a muitos marxistas, como Pokrovski na União ,
Soviética, integrantes do grupo da Monthly Review nos Estados
Unidos (Paul Sweezy, Leo Huberman, A. Gunder Frank) e a
muitos autores latino-americanos. Freqüentemente, marxistas que
aceitam concepções deste tipo acreditam encontrar apoio na opo- 3. A EVOLUÇÃO RECENTE
sição: economia natural/economia mercantil. A qual existe, efe-
tivamente, na obra de Marx e de Lenine, mas aí está associada
a uma análise em termos de modo de produção - não como
categoria circulacionista, tomada em si mesma e fora de contextos ii
históricos bem definidos.
A partir da ·década de 1950 e, mais ainda, do decênio se-
Do ponto de vista marxista, os séculos XVI a XVIII cons- guinte, um grande debate teórico e metodológico entre marxistas
tituem o período da coexistência, na Europa ocidental, do feu- de muitos países iniciou . nova fase, muito mais crítica e aberta
dalismo ainda dominante com o capitalismo em ascensão (ascen- ao trabalho criador do .que a anterior. Os fatores que explicam
süo não linear, evidentemente). Marx considerava como muito mudança de tal ordem são vários: o relativo degelo da tensão
importante o papel da circulação de mercadorias e de sua expan- internacional, após os primeiros anos da década de 1960 (no auge
s;lo nos Tempos Modernos, no sentido da dissolução dos modos da "guerra fria" o clima não era favorável a. uma crítica pro-
de produção pré-capitalistas, da formação de UIJl mercado mun- funda ao dogmatismo); a
ampla circulação de textos de Marx,
dial, da acumulação prévia de capitais que prepa'ra o advento do
antes desconhecidos, especialmente os Elementos f undamentales ,
capitalismo como modo de produção dominante a nível mundial.
Mas, jamais .confundiu o capital comercial, que existe desde a an-
para la critica de la economia política, manuscrito de 1857-1858
tigi.iidadc, com um capitalismo comercial visto como um sistema conhecido ,como os Grundrisse, de grande importância teórica; as
específico (a expressão só tem sentido ao designár .um setor den- divisões no seio do movimento comunista internacional, debilitan-
tro do capitalismo já plenamente constituído), o que, aléin do do a posição hegemõnica e doutrinária - dantes indiscutível -
mais, teria sido um contra-senso, ,pois as ctegorias do materialismo da União Soviética, país em que a crítica ç a superação ·do esta-
histórico fundamentam a precedência do processo de produção re- linismo dogmático, lançadas em 1956, ficaram a meio caminho; a
btivamente ao de circulação, que se move ao nível de excedentes própria expansão ·da historiografia e, em geral, das análises mar-
jü criados. O capitalismo, na qualidade de modo de produção xistas em países muito numerosos e diferentes, de tradições in-
1;.i1t1 dominante, em gérmen, já ex!stia durante os séculos XVI e

XVII, manifestando-se nas manufaturas, nas minas e em diversas 9 Cf. o cap. IX, parte C, deste manual. Ver, também: Horacio Ciafar-
kinnas já capitalistas (ou de transição ao capitalismo) no campo, dini, "Capital, comércio y capitalismo: A propósito dei llamado 'capita-
l' e isto o que justifica a menção ao referido período como a
lismo comercial'", em Modos de producción en América Latina, cit., pp.
111-134. Ver, também: Eric Hobsbawm, "La crisÍs general de la econo-
primeira fase do capitalismo. As pesquisas históricas contempo- mia europea en el siglo XVII", em En torno a· los orígenes de la revo-
1:m,·as confirmam o pensamento de Marx de que nem todos 0s lución industrial, trad. de O. Castillo e E. Tandeter, _B. Aires, Siglo
XXI, 1971, pp. 7-70; Jean Bouvier e Henri Germairr-Martin, Finances et
~etorcs do comércio e das finanças do ancien régime prepararam
financiers de l'ancien régime, Paris, Presses Universitaires· de France, 1964;
ou facilitaram o advento do capitalismo como modo de produção H. Lüthy, La banque protestante en France de la révocation ele
duminante, embora seja este o caso de considerarmos o conjunto do l'édit de Nantes à la Rév.olution, 2 vol., Paris, SEVPJ!.N', 1959 e 1961.

76
77
tdectuais e configurações estruturais distintas, levando a focaliza- tas daquelas que singularizavam a maioria dos po.vos do Império
ções, problemáticas e ênfases novas; o desafio constituído pelo Romano (os germanos, e outros mais tarde) e um deslocamento
advento de certas correntes., como o existencialismo e, sobretudo, da evolução da área mediterrânea para a Europa ocidental con-
-0 estruturalismo lingüístico e· antropológico, forçando os marxistas tinental. Por outro lado, os estudos sobre o desenvolvimento do
a tornarem a colocar e a debater muitos conceitos e princípios feudalismo no Japão mostram que este país não conheceu uma
metodológicos que na fase dogmática pareciam evidentes, defini- etapa escravista anterior à feudal. Em suma, todo o esquema
tirns e sem problemas: linear de evolução - a teoria dos cinco estágios - esfacelava-se,
A discussão· internacional sobre o "modo de produção asiá- mostrando sua ·fragilidade cada vez mais claramente,. pois era
1 i~·o", iniciada na Europa Ocidental no começo da década passada impossível demonstrar a transição de um modo de produção ao
e que logo alcançou muitos .países (inclusive os socialistas) tem outro só pelo jogo das contradições internas e dentro de uma
uma grande importância teórica. 1 º continuidade geográfica. 11
Mais do que a retomada da discussão sobre um conceito. de Paralelamente aos debates sobre o modo de produção asiático
Marx condenado pelo dogmatismo - tendo tal debate interna- desenvolveu-se a obra de Louis Althusser _: um filósofo ~ e
cional o benefício de conhecimentos muito mais avançados sobre sua equipe; mais recentemente, na mesma linha, porém direta-
as sociedades européias e a proto-história mediterrânea do que mente interessados na ciência política, temos os trabalhos de Ni-
os que havia no século passado - o que nos interessa destacar, cos Poulantzas. 12 Pessoalmente, não cremos· na validade da maio-
aqui, são as conseqüências da referida discussão. Desde o início ria das soluções propostas pelos referidos autores, a partir de
dela ficou claro que não bastava incluir o modo de produção proposições básicas que consideramos esterilmente formalistas e
asiático no esquema de evolução dantes admitido, entre a comu- muito discutíveis; a escola althusseriana, apesar de suas pretensões
nidade primitiva e o t;~cravismo, para que o debate teórico fosse e declarações a propósito da "construção" do conceito de história,
solucionado. As sociedades do Oriente Médio antigo - talvez não traz contribuições positivas à ciência histórica, até porque
caracterizadas pelo modo de produção asiático - não engendra- desconhece tudo ou quase tudo o que fazem os historiadores quan-
ram as sociedades. da antigüidade clássica, ou greco-romana, pela
to à história. 13 Têm, no entanto, o mérito de estimular a reflexão
mera lógica de seu desenvolvimento interno. A evolução da so-
ciedade helênica teve por prévia condição histórica ·o desenvolvi-
mento das sociedades orientais, mas o que aconteceu foi o des- 11 A propósito, ver as pertinent12s obs12rvações de J.-J. Goblot, op cit e,
locamento do processo de evolução para uma zona situada à também, o capítulo IX d12ste manual.
margem do desenvolvimento anterior, embora sob a influência des- 12 Cf. Louis Althusser, La revulución /eórica dt! Marx, tracl. ele M. Har-
neckcr, México, Siglo XXI, 1967; L. Althusscr e E. Balibar, Para /ecr
te., aí se constituindo um novo ponto de partida com· a chegada "E/ Capilal", trad. ce M. Harn12cker, México, Sigla XXI, 1969; L. Al-
de novos grupos na bacia do Egeu, ainda caracterizados por uma thusser, Eléments d'autocrÚique, Paris, Hachette, 1974; Nicos Poulantzas
mganização tribal. Do mes!Tio modo, o feudalismo europeu não Poder político y e/ases sàciales en e! Estado ~apitalista, trad. de F. M.
Torner, México, s:glo XXI, 1969; cio mesmo autor, "Las clast:s sociales",
surgiu exclusivamente em conseqüência das con!radições internas em Raúl Benítez Zenteno <compiladorJ Las clases sociales en América
do escravismo romano: seu advento pressupôs, também, a inter- Lathia, México, Siglo XXI, 1973, pp. 96-126; do mesmo autor, Fascismo y
wnção de novos grupos com estruturas sócio-econômicas distin- dictaduras, México, Siglo XXI, 1971; Nicos Hadjinicolaou, Historia dei
arte y luc!za de clases, tradução de A. Garzón, México, Siglo XX, 1974.
13 Cf. Pierre Vilar, ."Histoire marxistc, histoire !ln construction. ·Essai de
lll Cf. principalmente: Reclzerches intemaciunales.... n.º citado; Vários
dialogue avec Althusser", em Annales E. S. C., jan,-fev. de 1973, pp.
.. ut.irc·s, Sur /e moclc de p·roductiun asiatique, Paris, C.E.R.M. --' Edition
165-198. Ent1-c muitas coisas Vilar insiste na neccssitbde ele manter: total
Sonales, 1969; Gianni Sofri, 1l modo di ·oduzione asiatico, Turim, Giulio a história, sem dissolvê-Ia em "histórias regionais" no sentido que os
althusseria;1us clün à expressão (i.é, relativas às "'estruturas regionais" cio
Emaudi, 1969 <a tradução espanhola tem muitos erros); Roger Bartra
econômico, do político e do ideológico); no anti-humanismo qu'-' é consi-
ccompil•id0r), up. cit. '1.i
derar os homens não como sujeifos, mas como "portadores" das relações

78 79
,, elaboração teórica de conceitos intermediários, como "etnia", "na-
sobre muitos temas fundamentais da epistemologia marxista, dantes ção", "Estado", "guerra", etc., sem os quais é impossível passar
tratados sem rigor ou postos de lado. 14 da teoria à análise de casos. 16
Em nossa opinião, um dos pontos nevrálgicos cios avan- Sem eliminar o fato de que o autodinamismo das estruturas
ços posteriores a 1960 é o aprofundamento, ao mesmo tempo é de importância primordial, cumpria tentar colocar em termos
em teoria e em aplicação, dos conceitos-chave de modo de pro- marxistas problemas tão essenciais como o dos contatos, ou da
dução e formação econômico-social. Desde 1964, Mamice Gode- circulação cultural, dantes rejeitados sistematicamente em nome da
lier insistiu em certos aspectos essenciais da questão: 1) a na- causalidade estrutural interna. As pesqui:rns históricas de Emílio
tureza hipotética dos esquemas marxistas de evolução das socie- Sereni, por exemplo, possibilitaram o avanço neste sentido. 1 1
dades e, em geral, das construções teóricas; 2) o caráter de Tratou-se, também, de criticar o estado anterior - muito in-
modelo da noção de modo de produção, abstração construída a satisfatório - dos conhecimentos sobre as sociedades pré-capita-
partir do real, mas que o reduz a suas estruturas e~senci ais e listas e a . teoria dos modos de produção que permitem caracteri-
só permite colocar a evolução em termos de desenvolvimento das zá-las. Por exemplo, são de suma importância os esforços. feitos
possibilidades e impotências internas das referidas estruturas; 3) para superar a noção de "comunidade primitiva'', muito elástica
a necessidade de provar a validez dos esquemas hipotéticos ao ~~­ e pouco precisa, vinculada a uma etapa dos conhecimentos sobre
vel ela história concreta., cuja "infinita variedàde" devem perm1tlf as sociedades sem. classes há· muito superada e que, de fato, escon-
decifrar. 15 Em textos posteriores tratou de mostrar, na pr:ítica, de e confunde realidades muito heterogêneas. Importantes são,
como aplicar as noções de base às análises de casos (formações .as novas reflexões sobre o feudalismo e as nucleadas em torno
econômico-sociais). Vários outros autores contribuiram muito para dos mencionados Elementos fundamentales para la crítica de la
o esclarecimento destas questões fundamentais. Witolcl Kula, por economia política, ou Grundrisse. 1 ª
exemplo, ao mostrar que embora um modelo bem construído deva Poderíamos continuar multiplicando exemplos de campos de
"conter necessariamente elementos de auto-destruição", quando
estudo do marxismo, em sua fase presente. Limitemo-nos, entre-
analisamos ca;;os concretos, é possível que sejam "os dados exter-
tanto, a dois outros: 1) o problema da racionalidade e irracio;.
nos que tenham se modificado", mudando radicalmente as rnndi-
ções de funcionamento do sistema estudado e levando, portanto, à
necessidade de "construir um novo modelo". 16 Cf. Maurice Godelier, Horizon, trajets 111arxistes en anthropologie, Pa-
Retomando recentemente, esta questão, Pierre Vilar observou ris, Fn:nçois Maspero. 1973 (há tradução para o espanhol: Madrid, Siglo
XXI, 1974); Witold Kula, Théorie économique .. . , cit., pp. 143-146; vários
que também nâl) se deve esquecer a necessidade de aprofundar ·autores, El concepto de "formación económico-social"; Cuadenws de Pasado
y Presente, n.º 39, abril de 1973; Pierre Vilar, artigo citado, pp. 189, 196.
Ver, também, o Capítulo IX, parte C. deste manual.
de produção; em que, à força de querer ler as entrelinhas e "escutar 17 P. ex.: Emilio Sereni, "La circola:done etnica e culturale nella steppa
os silêncios" dos textos de Marx corre-se ô risco de "fazer calar as eurasiatica. Le tecnique e la nomencbtura dei cavallo", em Studi Storici,
palavras" que, na realidade, ali estão, etc. 1967, n.º 3.
14 Para a critica do althusserianisrno, além do citado artigo de P. Vilar: 18 Cf. Jean Suret-Canale, "Las sociedades tradicionales en cl Africa tro-
Caio Prado Júnior E~truturalismo de Lévi-Strauss, Marxismo de Luuis Al pical y e! concepto dei modo de producción asiatico", em Bartha <compi-
thusser, clt.; José' Arthur Giannotti, Origenes de la •dialetique du tra- lador), op cit., pp. 178-203 (distinção entre "comunidade primitiva e "so-
vai[, Paris, Aubier-Montaigne, 1971; Fernando Henrique Canioso, "Al- . ciedade tribal ou tribo-pai riarcal"),; Emmanuel Terray, Le marxisme devant
thusseriani~mo o marxismo? A propósito dei conccptu de clasc:s en Puu- les sociétés primitives, Paris, Maspero, 1969; Jéan-Claude Willame, "Re-
lantzas" em Las clases sociales en América L!Ltina, cit., pp. 137-153. cherc,hes sur les modes de production cynégétique et Jignager", em L'Hom-
15 C/. 'Maurice Godelier, ,;La noción cte ·modo de producci6n a~iaticu' Y me et la Sociéte (Paris, Anthropos) n.º 19, .ianeiro-março de 1971, pp. 101-
los esquemas marxistas de evolución de las sociedades", em Godelier 119; M. Godelier, Horizon .. . , cit.; Eric Hobsbawm, "Introducción", em
Marx e Engels, El modo dei prud11cciú1z asiático, Córdoba (Argentina). Eu- Karl Marx, Formas que preceden a la prodÍlcción. capitalista. Cuadenws de
decor, 1966, pp. XLI-LVI. Pasado y Presente, n.º 20, fevereiro de 1971, PP. 5-47.

80 81
nalidade econom1ca no capitalismo e nos modps de produção pré- pios; e isto ocorre ainda que nunca tenha -lido uma linha
capitalistas; 2) os debates e as tentativas de aprofundar a teoria de· Marx, mesmo que se considere um fervoroso "antimarxis-
do imperialismo, com estudos sobre a acumulação, o "intercâmbio ta" em todos os sentidos, salvo no científico. Muitas idéias
desigual", etc. 1 9 que Marx expressou com maestria penetraram, há muito, no
fundo comum que constitui o caudal intelectual. . de nossa
geração."

Naturalmente., esta influência foi sensível, principalmente, no


campo da história econômica, 21 exercendo-se nos mais diversos
planos:- as discussões sobre a importância e os alcances do econô-
mico, o conceito de capitalismo, o debate sobre suas origens, etc.,
B. .4 influência do marxismo no pensamento e deve-se notar que muitas destas discussões ocorreram no con-
histórico contemporâneo texto de uma busca· de alternativas (negações) às teorias de Marx.
Neste sentido, a obra de autores como Max Weber e Sombart
constitui, nos primeiros anos do século XX - e em continuação
à linha da Escola Histórica Alemã - um grande esforço para
rebate~ as explicações de Marx sobre as origens do capitalismo. 22
Podemos resumir a influência de Marx sobre a historiografia
A influ2ncia do marxismo está longe de reduzir-se à obra contemporânea em três pontos fundamentais: 23
dos autores declaradam~nte marxistas. Seu impacto no mundo in-
telectual contemporâneo é imenso. Lucien Febvre expressa-o com 19 o estímulo a estudos de processos .econômicos e sociais
clareza ª. propósito da história: 2º a longo prazo, incluindo uma análise das conseqüências
sociais das transformações tecnológicas e econom1cas;
'"Pois é evidente que na atualidade um historiador, por pouco 29 um renovado interesse pela !pesquii;a sobre classes sociais
preparado que seja ( ... ) , está inevitavelmente impregnado e o papel dos movimentos de massa na história;
do modó marxista df'. pensar, de comparar os fato"s e· os exem- 39 uma crescente preocupação com os problemas de inter-
pretação e, especialmente, com o ·estudo das leis ou me-
canismos de evolução das socieàades e por sua com-
19 Cf. ·Paul A. Baran e Paúl M. Sweczy, El Capital monopolista, trad. paração.
de A. Chávez de Yáííez, México, Siglo XXI, 1969 (2ª. ed.); Paul Baran,
La ccunomía política dei. crescimiento, trad. de N. Warman, México, Fondo
de cultura Econômica, 1967 (4.• ed.); Maurice Godelier, Racionalidad e ir-
Em resumo, o influxo centra-se em alguns aspectos de inter-
. 1<1t·icmalidad en la economia, tradução de N. Blanc, México, Siglo XXI, ipretação. ou em certas problemáticas. Mas é coqveniente destacar
1%7: W. Kula, obras já citadas: Sarnir Amin. L'acrnmulation à l'échelle que, em todos os autores a que nos referimos, a influência do
mcmdiale, :Dakar-Paris, IFAN-Anthropos. 1970 (há tradução para o espa-
11lwl l: A. Emmanuel, L'eclzange inégal, Paris, Maspero, 1969 (traduzido
materialismo histórico limita-se a um ou mais aspectos setori:üs
par•1 ·o espanhol); Héctor Pérez Brignoli, "En torno a un redente debate: e, em conjunto, nenhum deles adota postura realmente marxista.
hl intcrcambio desigual", em Estudios Socia/es Centroamericanos (San
Jus,'. Programa Centroamericano de Ciencias Socialesl, n9 1, janeiro-abril
dt· 1972, pp. 117-154; vários autores, Teoría marxistá del imperialismo, 21 Cf. W. Kula; Problemas .... cit., pp .. 16-19. _
C1.w.lcT1ú1.> de Pasado y Presente, 1971 (2.• ed.). 22 Cf. George Luirncs, bl ,;.,,all.u .a Ia razón, traduçfto de W. Roces, Bar-
20 Lucicn Fcbvre, "Techniques, sciences et marxisme", en Antiales d'lzis· cel{ma, Grijalbo, 1967 (2• edição), p. 458 e seguintes.
l<•lrc· Jcurw111il11w et sacia/e, t. VII, n.• 36, 1935, p, 621. 23 Ver as observações de Barraclough, op. cit., ·P· -26 e-seguintes.

82 83
Mais ainda, muitos deles manifestam uma expressa rejeição desta Obras da importância da de Paul rv;rantoux sobre ~ r_ev?l~ção in-
corrente. Assim, por exemplo, Charles Beard, cuja Interpretación dustrial inglesa, ou a de Gordon Ch1lde sobr~ a pre-~1sto_:ia •. cons-
l'Conómica de la Constitución de los Estados Unidos reflete a tituem alguns dos melhores expoentes deste tipo de mfluencia.
influência do marxismo, escreveu em 1935: 24 Observemos, por fim, que assim como certos aspectos da
obra de Marx provocaram uma resposta da história burguesa (de-
" ... nem posso admitir como fato histórico [a] . , . afirmação bates sobre a definição e as origens do capitalismo, etc.), as
de que a interpretação econômica da história, ou que meu polêmicas recentes entre historiadores marxistas também promo-
tratado sobre a Constituição se tenham baseado "nas teorias veram pesquisas e debates nq meio dos autores não marxistas. Pode-
marxistas", como foi observado no capítulo I de meu livro mos indicar, como exemplo disto, os estudos sobre as origens da
Fcanamic Basis of Politics; a idéia original dos conflitos his- revolução industrial, derivados parcialmente das discussões susci-
tóricos entre classes e grupos já está nas páginas de Aris- tadas pela obra de Dobb; 28 as discussões sobre a· crise do século
tóteles, muito antes da era cristã, e era conhecida pelos
grandes escritores [que se ocuparam] da política da Idade
XVII; 29 e os debates sobre a natureza do conflito social na Re-
volução Francesa, travados em torno das interpretações de So-
:t\1t.?dia e dos Tempos Modernos." boul. so
A posição de muitos autores pode ser esquematicamente re-
sumida dizendo-se que considera "um pouco de marxismo bené-
fico, e demasiado marxismo prejudicial" ao historiador. E é evi-
dente que tal modo de ver as coisas leva, na verdade, a dissipar
a. herança intelectual de Marx. Citemos novamente Lucien Feb-
vre, que resume isto muito bem: 25 e. A concepção marxista e a história da América
Latina
"Reconheço que não entendo bem porque os comunistas fazem
tanto esforço para voltar à pureza dos textos marxistas [ ... J
Lede Marx, lede Lenine, porém deixai que suas idéias se dissi-
pem um pouco em um anonimato que não tem por que nos
escandalizar."
É, provável que os aspectos de interpretação tenham sido / o 1. GENERALIDADES
que há de mais influente no que se refere à crescente atração
do marxismo. ~ 6 Eileen Power, em sua aula inaugural de 1933,
manifestava sua concordância com o método histórico de Marx,
dizendo que "seu processo é importante não só como interpreta- Muitos estudos e ensaios explicativos da realidade latino-ame-
ção dos fatos mas, ainda, como método para penetrá-los". :n ricana baseiam-se em concepções marxistas ou, pelo menos, são

~~ Citado em: Taylor-Ellsworth (comp), Historia i;conómica, Buenol; 28 Cf. supra, a . nota nº; 4; e um resumo das contdbuiçõcs recentes cm
Aires, Ed. Prolam, 1974, p. 54. E. Hobsbawm, En torno a los orígenes ... pp. 89-114.
2.'i L. Fc:bvrc, artigo cit., p. 622. 29 Cf. H obsbawm, 1dem, pp. 7-88.
2!> Barraclough opina assim (op. cit., p. 26): "A razão principal da cres- 30 Cf. Alice Gérard, Mitos de la Revolución Francesa, Barcelona, Edito-
< l'll!l' influência do marxismo foi a convicção de que proporcionava as; rial Península, 1973, p. 143 e seguintes; François Furet, "Le catéchisme
u111L..1s bases realmente satisfatórias para uma ordenação racional dos fa- révolutionaire" em Annales E. S. C., março-abril de 1971, e os artigos de
10, nJinpkxos da história humana". Le Roy Ladu(ie, Bien, Vovelle e Andrews, em Annales -E. S. C., janeiro-
27 Citado em W. Kula, Problemas ... , p. 17. fevereiro de 1974.

84 85
fortemente influenciados pelo materialismo histórico: assim, por básica, pode desenvolver-se insuficientemente o indispensável es-
exemplo, os numerosos estudos sobre a dependência e o desen- pírito crítico a propósito do valor dos dados empregados e da
volvimento ( cf. capítulo V, C deste manual). Seguidamente de- documentação que permite levantá-los; e, ao contrário, pode ter
monstram, entretanto, profundo desconhecimento da evolução do um desenvolvimento exagerado a . sem-cerimônia relativa a tais
pensamento marxista nos últimos· anos, pois amiudadamente con- dados e sua manipulação, o que será expresso mediante genera-
tinuam manejando categorias e esquemas hoje muito discutidos ou lizações abusivas, extrapolações injustificáveis. Naturalmente, não
já postos de lado, ignorando as importantes discussões teóricas e é só na América Latina que tal problema existe. Às vezes, trata-
metodológicas contemporâneas. Claro que, como ocorre sempre em se, simplesmente, de um conhecimento insuficiente até dos ele-
tais evoluções, as velhas concepções não desapareceram completa- mentos mais básicos dos . períodos históricos referidos o que,
mente, devido ' à revitalização do marxisl}1o em alguns grandes evidentemente, abre o caminho a todas as "audácias" interpreta-
centros culturais. Em algumas regiões - inclusive em muitos países tivas, tanto mais fáceis de elaborar quanto menos apoiadas e
da América Latina - continua a predominar entre os marxistas quanto mais ignoradas as cautelas fundamentais do trabalho histó-
a concepção esquemática e supostamente universal da evolução das rico. Em alguns casos, seria de lembrar a afirmativa de Marx
sociedades, herdada do estalinismo, ou mesmo as interpretações e · Engels a propósito dos "resultados mais gerais abstraídos da
circulacionistas que refletem a influência do pensamento histórico consideração do desenvolvimento histórico dos homens": ''Estas
não-marxista. abstrações em si, separadas da história real, carecem de qualquer
Os mecanismos da dependência cultural, de que falávamos valor." 81
no capítulo anterior, também atuam sobre o panorama dos estudos Mencionemos, por fim, que é comum os historiadores mar-
marxistas latino-americanos, provocando um efeito de retardamento xistas recusarem-se não só a aplicar como, até, a tomar conhe-
na difusão das tendências recentes do pensamento baseado no cimento de métodos e técnicas como, por exemplo, os da quanfr-
materialismo histórico, embora tenha havido nestes últimos anos ficação na história, confundindo-os com a aplicação que certas
uma significativa intensificação de traduções dos textos fundamen- correntes fazem deles. Tais atitudes são, naturalmente, muito des-
tais para D espanhol. No caso do marxismo, as distorções devidas favoráveis ao progresso da pesquisa, além de absolutamente in-
a fatóres político-ideológicos são muito importantes. Freqüente- justificadas, como o demonstra a· obra de historiadores marxistas
mente se• estabelece uma identificação entre certos autores e de- como Vilar, Soboul, Bouvier, Genovese, etc.
terminadas correntes políticas, de um ·modo tal que a crítica a Passando para aspectos concretos da problemática da história
um autor chega a ser tomada como um ataque à "linha" que o latino-americana vista de um ângulo marxi~ta, abordaremos a se-
adulou como guia. guir:
Mais grave, ainda, é a forte tendência ao ensaísmo, todavia
predominante entre os historiadores marxistas latino-americanos. 1) as distintas opções teórico-metodológicas quanto aos mo-
Realmente, é bem raro encontrar trabalhos deles que passem de dos de produção característicos dos tempos coloniais.
reinterpretações, a partir de fontes secundárias e, no máximo, de 2) alguns aspectos do que certos autores chamam de "tran-
documentos impressos (viajantes, antologias de fontes, etc.). O tra- sição neocolonial" ou seja, o trânsito das formas colo-
balho de pesquisa histórica básica muitas vezes ihes é repugnante niais ao capitalismo "dependente" ou "periférico".
--- como se fora uma atividade intelectual de gabarito inferior
ou, talvez, algo suspeitamente aproximado de uma atitude "empi-
.
31 Marx e Engels, "ldeología Alemana", em Obras escogidas (três volu-
rista". Há exceções, naturalmente. E também ensaios úteis. E mes), 1, p. 22; um exemplo de tais "audácias" interpretativas, elaboradas
muito se pode fazer usando os rysultados de pesquisas históricas sobre base extremamente frágil, do ponto de vista do material histórico,
é o de Sarnir Amin, Sobre el desarrollo desigual de las formaciones so-
de terceiros. Mas, tornando-se· isto uma · atitude sistemática em ciales, Cuadernos Anagrama nº 19, Barcelona, Ed. Anagrama, 1974 (prin-
nenhum caso completada com uma atividade pessoal de pes~Ltisa cipalmente pp. 56-77).

86 87
- Finalmente, na definição dos modos de produção, o ele-
2. A POSIÇÃO '"REDUCIONISTA" OU "ANALÓGICA"
mento essencial é constituído pelas relações de produção (em
RELATIVAMENTE AOS MODOS DE PRODUÇÃO
certos casos., até, reduzidas às relações de exploração, por sua vez
NA COLÔNIA
limitadas só a três possibilidades: escravidão, servidão e salário)
sendo atribuídos às forças produtivas um papel s.ecundário ou mar-
gina!. 31
No seio deste grupo há colocações muito diversas e mesmo Partindo de tais posições básicas - ou seja, da desconfiança
inconciliáveis, mas uma série de tomadas de posição fundamentais ante a inflação de modos de produção verificada presentemente
- embora nem sempre explícitas - lhes dá uma relativa unidade, (expressão empregada pelo prof. Manfred Kcssok durante a dis-
do punto de vista teórico-metodológico: cussão de seu trabalho em Roma, setembro de 1972), da crença
- Há um número limitado de modos de produção, identi- em que, de alguma forma, 9s mesmos modos de prÓdução, ou
fic<tdos pela maioria dos autores como os que constam de algum alguns deles, são os que serão encontrados tanto no Velho quanto
modo na obra de Marx, Engels e, eventualmente, Lenine: alguns no Novo Mundo; e de uma certa o;Jçfo quanto à definição dos
limitam-se aos "cinco estágios" sacramentados na década de 30; modos de produção e de sua dinâmica - as colocações feitas po-
outros acrescentam o modo de produção asiático, designando-o às dem seguir linhas bem diversas e apoiar-se em diversas correntes
vezes -diferentemente ("despótico-aldeão'', "tributário'', etc.); ainda teóricas. Por exemplo:
outros transformam a "produção mercantil simples" em modo de - posições "dogmáticas" (que seguem os princípios de ma-
produção do mesmo nível que os citados e tratam de aplicar o nuais como os de Stalin, de Konstantinov, de Nikitin, de Zubritski
esquema: economia natural/ economia mercantil/ economia capita- e de Kérov, e.te.) :ir.
lista. 3 ! - Posições "circulacionistas", como é o caso de A. Gunder
- Os referidos modos de produção - cujo número bastante Frank (capitalismo = produção para o mercado mundial; "feudalis-
limitado varia, no entanto, conforme os autores - são os que mo = economia "natural" e "fechada" ou "quase fech~ada", etc); :rn
caracterizam/ a evolução de todas as sociedades humanas. Isto se - posições "althusserianas" ou "balibarianas": os modos de
aplica, seja na perspectiva de evolução unilinear (obrigatoriedade produção como "estrutura global" constituída por três "estruturas
da sucessão ordenada das etapas, salvo "acidente" histórico que regionais" (econômica, jurídico-política e ideológica), estabelecen-
permita o "salto" de uma ou várias etapas) o.u multilinear (sem do-se uma distinção entre "determinação cm última instância" e
sucessão obrigatória de etapas) ou não-linear (considerando os re- "dominação"; os modos de produção como resultado de uma
trocessos e estagnações, as transposições dos "focos" de evolução "quase combinatória" dos "invariantes da análise elas formas": tra-·
e a constituição de novos pontos de partida, a inexistência de halhador, não-trabalhador, meios de produção. 37
uma continuidade "geográfica" da evolução). 3 3

34 Cf. supra, parte A, 2, deste capítulo.


.\2 üuanto à produção mercantil, cf. Lénin "A propósito dei llamado 35 Cf. supra, nota nº 6; F. V. Konstantinov, El materialismo liistÓrico,
México, Ed. Grijalbo, 1966 ( 9.ª reedição); P. Nikitin, Príncipes d' éco11omie
p1 "blema di..! los mercados", em Lénin, Obras' Completas, vol. I, Buenos
politique, Moscou, Editions du Progres, 1966; Manual de econom1á política
Atres, Ed. Cartago, 1960, pp. 89-139; -Oskar Lange, Economia política, I, Mé:
da Academia de. Ciências da URSS, Rio de Janeiro, Ed. Vitória, 1961; Mi- .
.\ll'LJ. Fondo de Cultura Económica, 1966,pp. 26-27. Para esta parte do ca-
tropolski, Zubritski e Kérov, Compendio de historia y economía, I, México,
Jlllulo voltamos ao artigo: Ciro F. S. Cardoso, "Los modos de producción
Ediciones de Cultura Popular, sem data. ·
e uloniales: Estado de la cuc:stión y per·spectiva teórica", em Modos de pro-
d1" <"1011 e11 Aménca Lati11a, Histuria y sociedad, segunda etapa, n.º 5 pri- 36 A. Gunder. Frank, Capitalismr1 y s11r ·'esarrollo en América Latina,
111.i, ,·ra, de 1975, pp. 90-106.
Buenos Aires, Ed. Signos, 1970.
'\ l Goblot, çip. cit. 37 Cf. supra a nota nº 12.

88 89
Embora os avatares e variantes possam ser numerosos, cremos
pode: _d~stinguir, para o que aqui nos intere.ssa mais, duas grandes alguns casos trata.:.se de aplicar ·ao mesmo tempo o conceito "cir- ·
!>ubd1v1soes, sobre as quais passaremos a discutir. culacionista" de capitalismo (à Espanha e a Portugal) e o con-
ceito "dogmático" de feudalismo, ou seja: feudalismo ::::; servidão
(à Ibero-América). 41 · -

Cumpre mencionar, em especial, a posição de Ernesto Laclau,


19) A \'clha polêmica: feudalismo (e/ou escravismo) ou que propõe a distinção entre os conceitos de modo de produção
cc1piralismo? e de sistema econ6mico: 4 2

" ... o sistema capitalisfa mundial - que tem por princ1p10


Não insistiremos muito nesta problemática, pois já lhe dedica- regulador a taxa média de lucros produzida. pela interação
mos atenção em outras oportunidades. 3 il Lembraremos apenas, que entre várias empresas - inclui ao nível de sua definição, mo-
a única forma de apoiar a afirmação do "caráter capitalista" da
dos de · produção diversos. Porque, se nossa argumentação
América Latina, desde o início de sua história implica recorrer a
anterior está certa, o crescimento do sistema depende da
concepções do capitalismo baseadas na· circulação; a~ que a posição
acumulação de capital, o ritmo desta· àcumulação depende da
fundamentada no caráter "feudal" (e/ ou "escravi~ta", vendo-se o
taxa média de lucros e o nível desta taX:a depende, simulta-
escravismo americano con10 um modo de ,produção idêntico ao
, neamente, da consolidação e da expansão das relações pré-
da antiguidade) da América Latina colonial supõe, na atuatidade,
capitalistas nas áreas periféricas."
a coexistência de "restos feudais" corri o capitalismo e tem ponto
de partida na teoria da ··revolução por etapas" preconizada pela
111 Internacional, a partir de 1928 - que reduzia- a: um só mo- Prado Júnior, Ibidem, pp. 97-114, e Boris Fausto, A revolução de 1930,
dC!o a Ásia, a África e a América Latina; 40 enfim, que· cm São Paulo, Brasiliense, 1970, pp. 13-19):
"Países coloniais e semicoloniais (China, 1ndia, etc.) e países dependentes
(Argentina, Brasil e outros) que possuam -um embrião de indústria de-
senvolvida mas, na maioria dos casos, insuficiente para a edificação in-
38 Cf. os artigos citàdos ·na nota nº 5. dependente do socialismo; países em que predominem relações sociais
39 O .próprio Enrique Semo, muito cauteloso no emprego dos conc..:itos, da Idade Média feudal ou o 'modo asiático de produção' tanto na vida
uào escapa de todo a isto ao falar do que chàma de "formas capitalistas econômica como na superestrutura política; países, enfim, em que as
anômalas"; assim, por exemplo, sobre o "capitalismo de plantaclón" afirma; principàis empresas industriais, comerciais, bancárias, os principais meios
··u capitalismo ·de grande lavoura· contém uma contradição: capitalista de· transportes, as propriedades e favouras mais· importantes, etc., acham-
pur s~u relacionamento com o mercado mundial, não o é por sua estru- se nas· mãos de g1;11pos imperialistas estrangeiros.. A luta contra o . f!;!U-
tura interna. Poi: isto, a. grande lavoura escravista só subsiste como ·ca- dalismo e as formas pré-capi~istas de . explOração, e a revolução . ag_rá-
pitalista enquanto não forem rompidos seus vínculos com o exterior". O ria promovida com espírito de continuidade, por um fado; a luta con-
texto . de Marx citado imediatamente antes por Semo só poderia provar tra o imperiàlismo estrangeiro, pela independência nacional - por outro
algo quanto ao século XIX, pois anteriormente Iião é possível falar em têm aí importância primordial. A transição para a ditadura do prole-
"um mercado mundial baseado no trabalho livre"; do contrário teríamos tariado não é possível em tais país, a não ser através de uma série de
por exemplo, de incluir os países da "segunda servidão", do século XVÍ etapas preparatórias, durante todo um período de desenvolvimento da
ao XVIII, entre os casos de "capitalismo, anômalo", pois seu desenvolvi- re"Volução democrático-burquesa para a revolução socialista; o êxito da cons·
nwnto em termos feudais esteve intimamente vinculado ao "mercado mui:i- trução do .socialismo está condicionado, na maioria dos casos, ao apoio
d1al" (cf. Enrique Semo, Historia del capitalismo en México. Los orígenes clireto dos países de ditadura proletária."
1521-1763, México; Ed. Era, 1973, pp. 245-247). · ' 41 Por exemplo: Severo Martínez Peláez, La patria .del crio!ll;, Guatema-
4tl Eis aí um trecho do Programa de la Internacional Comunista, ado- la, Ed. Universitária, 1971, pp, 61~; Luis Vitale, Interpretación mal'-
tado pdo VI Congresso Mundial, reunido em Moscou de julho a setem- xista de la historia de Chile, tomo I, Santiago do Chile, Prensa .Latino-
bro de 1928, reproduzido em A revolução brasileira, de Caio Prado Júnior americana, 1967, pp. 117-124. .
São Paulo, Brasiliense, 1966, pp. 96-9J; ver também os .comentários d~ 42 Ernesto Laclau, "Feudalismo. y capitalismo en América Latinan, em
Cuadernos de Pasado y Presente, nº 40, cit., p. 42. -
90
91
O fracasso das tentativas de reduzir de modo simples. a evo-
O grande problema teórico está, neste caso, em ter havido
lução das estruturas latino-american~s às da história europ~ia con:
transposição do raciocínio de Marx no livro II de El Capital ( es-
·duziu, freqüentemente, ao reconhecimento formal do carater su1
. quemas da reprodução ampliada) da análise de uma economia
generis das sociedades colon~ais da América. Numa primei:a fase
nacional para outro universo analítico - o de uma economia
(mas muito recentemente, ainda, podemos encontrar tal tipo de
mundial em que coexistem diversos modos de produção - · sem
estudos) isto se verificou através de um refúgio em posições em-
que tenha sido demonstrada a validade de tal procedimento. O
piristas de baixíssimo - ou nenhum - nível de teorização. Assim,
problema da comprovação empírica, como observa o mesmo autor,
ipor exemplo, nas seguintes passagens:
reside em que a mesma não foi feita. 4 ª
Esta variante da questão - o. ''pré-capitalismo" periférico es- "O regime medieval de colonização, em resumo, conciliava
tabelecido, mantido e ampliado como fator necessário da relação teórica e praticamente a propriedade feudal e o sistema co-
centro/periferia - deu origem, nos últimos anos, a posições como munitário:;, .,.,
a de Ruy Mauro Marini, baseadas na "superexploração" da força
de trabalho na América Latina, de grande fragilidade teórica e O modo de produção colonial - projeção dos interes-
ses do mercado capitalista - dá margem à formação de duas
enorme indigêncià quanto a comprovação histórica. 41 Cremos que configurações sociais especificas nas sociedades colonizadas:
tais colocações de Laclau, de Marini, de alguns textos de Sarnir o monopólio das boas terras sob a forma de latifúndio, cuja
Amin, etc., são - no fundo - desenvolvimentos que partem das produção é comercializada pelo mercado. capitalista, com seu
posições de Rosa Luxemburgo, cujas deficiências teóricas são bas- corolãrio o minifúndio, base mínima de subsistência da força
tante conhecidas. 45 de trabaÍho necessãria ao funcionamento do altifúndio; e a
exploração máxima da força de trabalho autóctone em modali-
29) A coexistência ou combinação de modos de produção dades variáveis (escravidão, feudalismo, salário)". 47
diferentes na América Latina (ou de traços de diversos modos <;le
produção). Para Alberto Passos Guimarães, o modo de produção do
Brasil colonial era "talvez sui generis na história, pois reunia ele-
Também aqui convém fazer distinções: em certos casos tra- mentos de doi~ regimes econômicos: o regime feudal da proprie-
tam-se ·de posições empiristas, de colocações em termos de dade e o reginie escravista de trabalho." 411
"mescla", ou ''justaposçião" mal definida de traços e estruturas;
em outros casos temos a aplicação. do conceito de formação eco- "De tal modo que, entre a metade do· século XVII e os úl-
nômico-social. Seja como for, é sempre supo'sto um número fixo timos anos do séc. XVIII, coexistiram na América Latina co-
e r~duzido de modos de produção "possíveis". lonial relações servis 9e produção, relações de produção es-
cravistas e relações próprias· de comunidades primitiv11s · esta-
43 Ibiáem, p. 43; ·ver, também, do mesmo autor: "Modos de produción,
belecidas à margem dos territórios colonizados. Esta tricotomia
sistemas económicos y problación excedente: aproximación histórica a estrutural - três tipos de relações de produção coexistentes
los casos argentino y chileno", na Revista Latitwamericana de Sociología,
1969, nº 2.
44 Cf. Ruy Mauro Marini, Dialéctica .de la dependencia, México, Ed. Era, 46. Trecho de Mariát.egui, reproduzido por Sérg~o de Santis, "'Les com-
1973; Héctor Pérez Brignoli, "Dialéctica de la dependencia. Resefia críti- munautés de village chez les Incas, les Aztêques et les Mayas", em La
ca"', cm Estudios Sociales Centroamericanos, n• 7, janeiro-abril de 1974, Pensée, n• 122, agosto de 1965, pp. 89-91. '
PP 149"153. 47 C. Guzmán }3õckler e Jean-Loup Herbert, Guatemala, Una. interpre-
45 Rosa Luxemburg, La acumulación del cCl{pi.tal, México, Grijalbo, tación histórico-social, México, Siglo XXI, 1970, p. 55.
1967, (~d. original: 1913); Jacques Valier, "La teoría dei imperialismo de 48 Alberto Passos Guimarães, Quatro séculos de latifúndio, São Paulo,
Rosa ~uxemburg", em Teoria marxista del imperialismo, cit., pp. 65-89. Editora Fulgor, 1~, pp. 21-42. -

93
em uma só formação social - determinou uma morfologia nam as outras formas de produção e relações de propriedade su-
heterogênea na base econômica da Colônia." bordinadas ou em processo de aparecimento." Gu Quanto a Semo,
apresenta o México da fase colonial como um sistema econômico
E, mais: "heterogêneo ( pluriparticular )" no qual coexistem o "despçtism9
tributário", o feudalismo e "um capitalismo embrionário"; unifica
:·As Leys de Indias regiam severamente as relações coloniais tal sistema o fato de que uma só classe dominante colonial (ex-
de exploração: predominantemente escravistas e, em menor tensão da metropolitana) "apropria-se do produto exced_ente de
grau, servis, eram as formas coexistentes de um mÓdo de ambas as estruturas e o usa de acordo com as possibilidades e
produção imposto por uma superestrutura jurídiq transplan- valores vigentes no império espanhol considerado como um todo".
tada da metrópole com o propósito de manter um regime de As duas estruturas mencionadas são a despó.tico-tributária ( "Re-
subenfeudamento no processo de extração colonial". -19 pública dos índios") e a feudal-capitalista ("República dos espa-
nhóis"). 51
Com muita freqüência, este tipo de análise parte do pressu- Os dois estudos que mencionamos por último constituem um
posto - às vezes implícito - de que o realmente importante é grande passo à frente, relativamente às análises descritiyas e em-
º. estudo da relação colonial de exploração e domínio, dos meca- -píricas de que falamos anteriormente. Com elas compartilham,
msmos. de extração de excedente da colônia, pois os modos de porem, a crença em um número reduzido de modos de produção -
p~od~z1r .?ªs zonas . coloniais não passam de projeções dô "capi- que encontramos tanto na zona mediterrânea-européia quanto na
p1tahsmo, . metropoht.ano. Por outro lado, às vezes pressupõe-se América, embora certamente em combinações ou formas. de .estrutu-
uma espec1e de unidade estrutural de toda a América Latina, ou ração e articulação muito diferentes.
pelo menos do conjunto hispano-americano (o que é especial-
mente absurdo, mas provém da ênfase posta no fato colonial)· ou
então aplica-se a análise a sociedades específicas. '
. No último trecho acima citado _é mencionada a "formação so- 3. A AFIRMAÇÂO DA ESPECIFICIDADE DOS MODOS DE
cial, mas trata-se apenas de uma expressão não de um conceito PRODVÇÂO COLONIAIS
pois o defini-Ia, simplesmente, em termos de· uma "coexistência"'
de certo~ traços estrt.it.urais mostra que é algo cujo ponto de re-
ferência é só empírico e descritivo. Em outros trabalhos encon-
tramos, no entanto, tentativas bem mais sérias de usar o conceito Também neste caso, as variantes podem· ser numerosas. Deve-
de f armação econômico-social, mediante a análise- da ordenação de mos lembrar, ainda, que não só na América surgiu a idéia de
u~rn sociedade ~olonial em torno de um . modo de produção do- uma peculiaridade dos modos de produção coloniais. "~
minante. Os dois casos que conhecemos referem-se ao México. O
essencial do trabalho de Barbosa-Ramírez consiste em mostrar a 50 A. René Barbos~Ramírez, La estructura economica de la Nueva Es-
formação de uma "estrutura complexa" que "conhece não só as pa.iia 1519-1810, México, Siglo XXI, 1971, p. 250.
1:ontr ições nascidas do pacto colonial, pois logo se gera- 51 '.Enri.que Semo, op. cit.; Jio mesmo autor: "Feudalismo y capitalismo
en la Nueva Espafta (1521-1765) ", em Comercio Exterior (México), vol.
rar_n _as _contradições originadas em seu seio, produto da forma de XXII, n.º $, maio de 1972, pp. 449-454.
cx1stencia da estrutura, em que as relações feudais básicas domi- 52 Cf .. Jairus Banaji, "Fór a Theory of Colonia( Modes of Production",
em Economic and Political Weekly, vol. VII, nº 52, 23 de dezembro de
1972, pp. 2498-2502. l'arece-nos, entretanto, que as implicações teóricas de
49 . Héct.or Malavé Mata, "Reflexiones sobre el modo de producción colo- uma análise dos resultados da expansão colonial dos séculos XIX e XX,
mal latmo-americano", em Problemas del Desarrollo (México> fevereiro em países asiáticos e africanos, são de tipo muito diferente das relativas
abnL de 1972, pp. 91-92, 94-95. · à colonização na época do capital comercial. (séculos XVI-XVIII).

94 95
,.---

reais consideradas mais importantes, e nada valem· sem uma com-


Os princípios teórico-metodológicos fundamentais são, neste
provação ante a história real.
caso, os seguintes:
! - Modo de produção é uma, noção eminentemente infraes-
- "A história universal não ex1stm sempre; a história como
1

trutura! e não inclui a superestrutura. Um modo de produção da~


história universal é um resultado". 53 O capitalismo foi o primeiro
do não pode ser definido só, ou principalmente, a partir das re-
modo de produção caracterizado por um efeito dissolvente sobre
lações de produção, e menos ainda das relações de exploração
os demais modos de produção com os quais entrou em contato,
ou de pro.priedade tomadas isoladamente: pressupõe a vinculação
tornando-se universal. Portanto, anteriormente à instalação do mo-
dialética, historicamente dada e específica, entre um nível e uma
do de produção capitalista na qualidade de modo de produção
dominante a nível mundial, o que temos são desenvolvimentos forma de organização definidos das forças produtiva.s e as rela-
locais e heterogêneos entre si, ou seja: específicos. 54 Sendo isto ções ~e produçã~ correspondent~s; o desenvolvimento das forças
assim, a admissão da precedência lógica da economia política - produtivas determma em, última instância toda a história humana
de que é a base. '
como "ciência das condições e das formas em que as diversas
sociedades humanas produziram, trocaram e repartiram os produ- - Os modos de produção coloniais da América, produtos de
tos de um modo correspondente"- 55 sobre a história, uma vez um processo histórico sui-generis, não podem ser reduzidos àqueles
que proporciona as próprias hases para que esta possa existir como modos de produção concebidos em função da evolução mediter-
ciência não supõt: de modo algum a acei ção da universalidade dos râneo-européia, e, secundariamente, asiática,. Sua definição e a
modos de produção pré-capitalistas descobertos por Marx e Engels anális.e de sua dinâmica pressupõem o estudo tanto da relação
através do estudo da história mediterrâne.o-européia (e, muito se- colomal quanto das estruturas internas das formações. econômico-
cundariamente, a da Ásia), ou do capitalismo, antes de seu ad- sociats coloniais. Eles se situarão em · nível teórico· distinto do de
vento como modo de produção dominante a nível mundial (sé- modos de produção como o feudalismo e o capitalismo, por exem-
culos XVIII-XIX). A dita via mediterrânea-européia de evolução plo. Na obra de Marx n_ão faltam exemplos do uso do conceito de
é só uma entre muitas e, portanto, Marx e Engels não nos dei-. modo de produção em níveis teóricos diferentes; e o aludido autor
xaraín uma relação ·completa de todos os modos de produção admite", claramente, entre os possíveis resultados de um processo
possíveis. de conquista a "ação recíproca" entre os modos de produção
- A abstnrção, no materialismo histórico, é só um procedi- postos em contato, produzindo-se "algo n~vo", "uma síntese".~ 7
mento científico, um instrumento metodológico posto a serviço da Partindo de tais princípios, torna-se evidente que o escravismo
"explicação do devir histórico" 56 real e concreto. As abstrações colonial, por exemplo, não pode ser identific-ado com o escravismo
teóricas são apenas uma formalização abstrata daquelas relações antigo: reflete um processo genético-evolutivo muito diverso, não
tem o mesmo nível e formas de .organização das· forças produti-
vas,· está sujeito a uma relação colonial que influi em sua estru-
53 K. Marx, Elementos fundamentcles para la crítica de la economía turação e funcionamento; a presença, nos dois casos, de formas
poWica (borrador) 1857-1858, vol. I, México, Sigla XXI, 1971, p. 31. Os
princípios teórico-metodológicos mencionados aqui serão desenvolvidos no ~e exploração formalmente parecidas não é suficiente para justi-
capítulo IX, C. ficar a pretensão a uma identidade do modo de produção. Do mes-
54 Cf. "Formàs que preceden a la produción capitalista", em Idem, pp.
433-477; Maurice Godelier, Horizon .. . , pp. 135-173; Marx, Idem, pp. 3-4; mo modo, ó ponto de vista que ora expomos exclui o falar-se em
Marx e Engels, "La Ideología alemana", em Obras escogidas, cit .. t. I, "feudalismo" 'somente por ser possível comprovar a presença de
PP 36-37.
55 F. Engels, EI anti-Diihring, Buenos Aires, Ed. Claridad, 1970 (3.& ed.),
p 161. .
57 Cf. Ciro F. S. Cardoso "Sobre los modos ... •, pp. 135-143; K. Marx,
Só Jean Bouvier, "L'appareil conceptuel dans l'histoire ... ", artigo citado,
p 2. (citando Pierre Vilar).
Contribución a la critioa d~ la ec1momía polftica, México., Fondo de Cul-
tura Popular,_ 1970, p. 2. 54

96
97
uma forma qualquer de "servidão"; ou de "capitalismo", seja por modos de produção), e estudos que caracterizam as formações
existir uma vinculação com o mercado mundial, seja por estar econômico-sociais coloniais como "não consolidadas", (apresentan-
presente alguma forma de exploração baseada no salário. 58 do modos de produção principais - e não dominantes - e subsf-
diários). "º
B interessante observar que na América Latina esta posição
metodológica, com sua insistência na importância da dialética inter-
no-externa e. na especificidade latino-americana, surgiu paralela-
mente à dos "sociólogos da dependência", mais ou menos a partir
de 1967, e refletiu, segundo cremos, solicitações análogas: a insa-
tisfação ante as análises tendentes, em maior ou menor grau, a 4. AS SOCIEDADES IBERO-AMERICANAS NÂO SÂO
reduzir o desenvolvimento histórico da América Latina a padrões FORMAÇôES ECONôMICO-SOCIAIS DIFERENCIADAS
eurocêntricos, inclusive considerando-o como algo "marginal", "atí- E AUTÔNOMAS
pico", ou "monstruoso" relativamente ao desenvolvimento histórico
europeu e norte-americano, tomados como pontos de referênda.
Naturalmente, o afirn,rndo não é que a América Latina seja irredu-
tível aos métodos e conceitos fundamentais do materialismo histó- Esta pos1çao é apenas a radicalização de algo que muitos
rico, porém, que a aplicação dos referidos métodos e conceitos autores vêm afirmando há muito: no conjunto, as metrópoles e
não deve tec como pacífico que já conhecemos os resultados a que colônias formam "um só sistema econômico". 61
conduzirão, e isto mediante uma extrapolação - que nada justifica Parte-se do pressuposto de que o conceito de formação econô-
- de resultados obtidos em um ambiente histórico completamente mico-social só é aplicável a sociedades cujo desenvolvimento reflete
diferente. Por outro lado, também há divergências teóricas impor- uma causalidade interna, autônoma - coisa que teria de ser de-
tantes entre a sociologia da dependência e as análises históricas dos monstrada.
modós de produção coloniais: no primeiro caso, o conceito de A tendência dos defensores de tal· :posição é para darem
capitalismo m~nejado é muito mais weberiano do que marxista.r. 0 ênfase ao movimento de conjunto do mundo ocidental: acumulação
Como dissemos, também entre os que admitem a existência prévia, expansão do capital comercial e, posteriormente, da revo-
de n:iodos de produção coloniais específicos pode haver divergên- lução industrial, etc. Parece-nos, entr;tanto, que os estudos dispo-
cias importantes. Assim, por exemplo, entre análises tendentes a níveis não concorrem para mostrar as sociedades coloniais como
demonstrar a realidade de um modo de produção dominante (que, si~ples "partes" de formações econômico-sóciais mais amplas: as
em cada formação econômico-social, organiza e subordina outros classes dominantes coloniais tinham níveis variáveis de acomodação,
relativamente às metropolitanas, porém claras contradições de inte-
resses, também; as lutas de 'classes no seio das colônias eram de
58 Por exemplo: F. Engels, "Dei socialismo utópico ai socialismo cien- tipos totalmente diferentes dos que podemos encontrar na Europa,
tifico", em Obras escogidas (dois volumes). Moscou, ed. rogreso, 1971,
t II, p. 138, nota; Ciro F. E. Cardoso, "Severo Martí-nez ... ", pp. 96-98. ·
59 Cf. Fernando l!enrique Cardoso, C11estiones de socio/ogía dei desar-
ml/Q de Amérioo Latina, Santiago do Chile, Editorial Universitaria, 1968, 60 Cf. Ciro F. S. Cardos9, artigos citados e, também: "El modo de
pp. 9-37; F. H. Cardoso e Enzo Faletto, Dependencia y subdesarrollo en producción esclavista colonial en América", em Çuademos de Pasado y·
América Latina, México, Sigla XXI, 1969 (a versão original mimeogra- Presente, n• 40, cit., pp. 193-242; Juan Carlos Garavaglia, "lntroducción"
fada é de 1967); Ciro F. S. Cardoso, "Observations sur !e dossier pré- e "Un modo de producción subsidiário: la organización económica de
paratoire à la discussion sur le mode de production féodal" (Resumo las comunidades guaranizadas durante los siglos XVII-XVIII en la for-
mación regional altoperuana-rioplatense", em Idem, pp. 7-21, 161-191.
de um informe redigido em março de 1968), em Sur le féodalisme, Pa-
ris. C E R M.-Editions Sociales, 1971, pp. 67-69. 61 Ver, por exemplo, Pablo González Casanova, Sociologia de la explo-
tación, México, Siglo XXI, 1969. 1

98 99
à mesma época; o argumento da imposição de uma superestrutura Certamente, há muito esta questão teve sua importância reco-
pelas zonas metropolitanas não resiste a um estudo histórico mais nhecida por grande número de estudiosos. Porém, as respostas que
concn.:tn, 4ue ultrapasse formalismos,. e daí por diante. Ademais, lhe deram mudaram positivamente desde as pseudo-explicações sim·
estudos como os de Eugene Genovese sobre o Sul dos Estados. plistas dos ··restos feudais".' Cremos que esta mudança positiva
Unidos, ou de Caio Prado Júnior .e outros autores sobre. o Brasil, deu-se em três direções:
demonstram que o escravismo de tipo colonial atuava, nas men-
cionadas sociedades, como modo de produção dominante, estrutu-
rando em torno de si o conjunto da formação econômico-social. 19 - Ponto importante foi a mudança de postura teórica
Finalmente, caberia indagar se, em todos os casos históricos - sobre as "sobrevivências·", os arcaísmos subsistentes no seio do
que não se limitam à dependência colonial - em que certas socie- capitalismo latino-americano. Como o expressou Jean-Jacques
dades tiveram seus desenvolvimentos determinados, em última ins- Goblot, u~ "as sobrevivências não designam os 'subprodutos' da
tância, por fatores externos (a Polônia moderna, por exemplo) ter- evolução histôrica, as impurezas que fogem a sua lei, suas escó-
se-ia de negar-lhes o status de formações econômico-sociais. 62 rias: designam, ao contrário, os limites naturais de tal evolução,
assim como estão inscritos em ma lei". O que implica ana1izar o
ponto de partida (diferentes ."heranças coloniais") e as modali~
dades dos distintos. processos de "transição neocolonial", prestando
atenção aos fenômenos de desigualdade ou desproporção do desen-
volvimento e às peculiaridades da evolução das forças produtivas
5. PROBLEMAS DA "TRANS!ÇÂO NEOCOLONIAL" e da acumulação de capital no contexto histórico da América
Latina.

Se deixarmos, agora, a fase colonial para fazer breve incursão 29 - A mencionada análise implica, por sua vez, considerar
no século XIX latino-americano, 6 ª veremos que ao estudar processos a dialética interna-externa das contradições. Assim, pode-se explicar
ccimo a abolição da escravatura ou as reformas liberais',. por exem- como, em certos momentos, dá-se a confluência entre as contra-
plo, seremos levados ao que constitui o eixo central da problemática dições ·internas dos países centrais e as contradições internas das
do subcontinente, no período: o caráter limitado da Eassagem para zonas dependentes, . contradições surgidas "'por motivos próprios,
o capitalismo. Os processos aludidos, e muitos outros, significaram diferentes uns dos outros", tt;; e cuja vinculação pode explicar as
a desagregação de estruturas de tipo colonial e favoreceram o avanço transformações estruturais importantes ocorridas nas áreas peri-
do capitalismo: mas não conduziram à vitória de relações de pro- féricas. Cabe lembrar, aqui, o que diz Pierre Vilar sobre "conceitos
dução capitalistas típicas. intermediários" como nação, Estado, guerra, etc. ( cf. supra, nota
16): sua rejeição por muitos autores em nome da teoria, dos con-
ceitos globaliz!}ntes,. é estéril e impede a focalização das modali-
62 Ver, por exemplo, José Carlos Chiaramonte, "El i:rob~ema dei. tipo
histórico de soçiedad: crítica de sus supuestos", em Historia Y Soc1edad,
dades concretas em que se "encarnam" as contradições fundamen-
n•. 5, cit., pp. 107-125; quanto à crítica desta posição, cf. Ciro F. S. tais na história real; além disto, Vilar tem r~zão ao afirmar que
Cardoso, "Los modos de producción coloniales; Estado de la cuestión
y perspectiva teórica", artigo citado
63 Ver, por exemplo, Florestan Fernandes, "Problemas de conceptuali- 64 Goblot, op. cit., p. 105.
zación de las dases sociales en América Latina", em Raúl Benítez Zen 65 Yves Êenot, "Capitalisme et esclavage d'Eric Williams ou la philan-
teno (coordenador) op. cit., pp. 191-276 t hropíe dévoilée", em La Pensée, nº 147, outubro de 1969, p. 115.

100 101
tais conceitos "manejados sem cessar", mas "apenas pensados", D. Conclusão
são "nem mais nem menos teóricos, nem mais nem menos histó-
ricos" do que outros (modo de produç.ão, classes sociais, etc,).
Uma coisa é, por exemplo, criticar noções como "dependência" ou
"economia de enclave" quando, por isto ou por aquilo, pareçam
inadequadas no nível de explicação que lhes corresponda; outra
coisa, bem diversa, é querer sacrificá-las, sumariamente, a meia Uma das características do marxismo, em sua atual etapa, é
dúzia de banalidades sobre o imperialismo que, deixadas na pura a multiplicidade de tendências, de linhas de interpretação às vezes
abstração, não fazem o conhecimento avançar de modo algum, profundamente divergentes. ~ o resultado da eliminação das ve-
embora tenham papel em certos rituais consagrados. lhas travas, de opiniões rígidas transformadas em dogmas intocá-
veis por longos anos; resultado inevitável e que contribui eficaz-:
mente para o progresso da teoria marxista - embora, natural-
39 - · Entre os instrumentos teóricos usados para a análise·
mente, nem todas as tendências· ou interpretações sejam fecundas
da "transição neocolonial" há dois que se destacam: 1) a noção
no curso de debates cada vez mais amplos sobre os conceitos bá-
de subsunção(*) ou subordinação formal do trabalho ao capital,
sicos, de estudos de casos concretos, etc. Como as da história
que permite focalizar a funcionalidade dos traÇos arcaicos em um
positivista, as ''verdades" do estalinismo pertencem, cientificamen-
processo nitidamente capitalista; "" 2) a idéia de que; em determina-
das cricunstâncias, além de adaptar e modificar, conforme as necessi- te, ao passado, mesmo que às vezes sobrevivam, por via àdminis-
dades de seu desenvolvimento, condições estruturais preexistentes, trativa, em certos ambientes; e que prolonguem sua vigência em
o capitalismo também pode, por sua vez, criar ou recriar arcaís- outros, por falta de informação.
mos. d 7 Este último elemento é importante, pois como reação às A tarefa de construir uma história marxista da América Lati-
teses simplistas do dualismo estrutural, ou dos "restos feudais", na, a partir dos progressos recentemente conseguidos pela teoria
houve a tendência para afirmar, de modo quase igualmente sim- do materialismo histórico e considerando a evolução da ciência
plista, a necessidade dos chamados arcaísmos para o próprio de- históril:a em seu conjunto, sem dúvida é excitante e desperta inte-
senvolvimento capitalista nas condições latino-americanas, 611 sem resse.
considerar o caráter contraditório e conflitante da situação ger.ada · Porém, se nos fixarmos na quantidade e no conteúdo das obras
por um processo desse tipo (mesmo que, sem dúvida alguma, o resultantes de tentativas neste· sentido, veremos que - apesar de
"conteúdo" das relações de produção, vistas em seu conjunto, seja conquistas parciais de grande valor - até o· momento progrediu-se
mais pertinente para a explicação do que sua "forma" percebida pouco em direção a tal meta.
através de tax<1nomias mecânicas ou descritivas').

• N. do T.: Ato ou ação de subsumir (considerar um indivíduo como


wmpreendido em uma espécie; um fato como sendo a aplicação de
uma lei; 1.UI1a idéia como dependente de uma idéia geral).
66 Por exemplo: Roger Bartra, "Sobre la articulación de modos
de producción en América Latina", em Historia y Sociedad, n• cit., pp.
5-19.
67 Cf. Maria Rita Garçia Loureiro, "La aparcería en una empresa capi
talista", a ser publicado proximamente em :.'studios Sociales Centroameri-
canos, nº. 12 (o artigo resume tese de título idêntico que a autora apre
>entou na Universidade de São Paulo, Brasil).
ti8 CJ. por exemplo: Caio Prado Júnior, "Contribuição para a análise abril de 1960; Antônio Barros de Castro, Sete ensaios sobre a economia
da questão agrária no Brasil", na Revista Brasilense, n.• 28, março - brasileira, vol. I, Rio de Janeiro, Forense, 1969,. pp. TI-144.

102 103
r

PARTE II

,!
·1.1·
.

1
r

CAPÍTULO IV

HISTORIA DEMOGRAFICA

A. A demografia

1. DEFINJÇÂO

A demografia é uma ciência em rápida evolução. Conseqüente-


mente, seu campo de estudo parece ainda mal definido e delimi-
tado. Adolphe Landry, em seu tratado de demografia (1945) dis-
frngue, por um lado, a demografia quantitativa e, por outro_ a
demografia qualitativa: 1 ·

1 Definições citadas segundo: Philippe Mouchez, Demografia,· trad. de A.


Bosch Doménech, Barcelona, Ariel, 1966, p. 17; Pierre Guillaume e Jean-
Pierre Possou, Démographie hitorique, col. U, Paris, Afinand Colin, 1970,
p, 8. .

107
r
1

quanto possível; consiste, ainda, em explicar tais leis ou com-


"Existe um acordo no sentido de pedir-se à demografia portamentos para melhor esclarecer suas causas ou conse-
que considere primeiramente as populações em seu aspecto qüências."
quantitativo: portanto há uma demografia quantitativa, cujo
objeto essencial -é o estudo dos movimentos verificados nas
populações, com tudo o que um estudo dessa natureza com-
porta no atinente a .pesquisas sobre os fatores determinantes
de tais movimentos.
2. CAMPO DE ESTUDO E FONTESª
". . . a demografia qualitativa considerará as qualidades
dos homens, primeiro, indivíduo a indivíduo, observando as
variações que existem entre um e outro, devidas a fatores 1
1, O campo de estudo da demografia compreende os seguintes
necessários, como idade, ou a razões contingentes. Fixará sua
atenção, também, sobre as transmissões hereditárias. E pro- aspectos:
curará, ainda, verificar se entre as populações se podem cons-
- estrutura ou estado das populações;
tituir coletividades capazes de distinguirem-se dos outros gru-
pos por um conjunto de caracteres procedentes de uma ascen- dinâmica populacional, ou estudo dos movimentos qoe afe-
dência comum: neste caso trata-se do que se chama raça". tam. as populações humanas: movimento natural ou interno '
definido peio jogo de nascimentos e mortes; migrtições.
No entant,o o próprio compêndio de Landry. ocupa-se exclu-
sivamente da demografia quantitativa. Embora o manual mais re-
1) O estado de uma população; a pirâmide etária.
cente de Philippe Mouchez ( 1964) dedique espaço relativamente
considerável ã análise qualitativa, com seus fatores hereditários
O estado de uma população em .um dado momento depende
e culturais, o que de fato caracteriza os estudos demográficos atuais
da ação conjunta do movimento natural e das 'migrações. Ao estu-
é sua concentração em análises quantitativas, preferentemente apli-
dá-lo, vários elementos interessarão o demógrafo:
cadas a grandes conjuntos ou massas de homens. O estudo do
indivíduo, que pelo menos seria parcialmente o objeto da demo- o total de habitantes da população considerada;
grafia qualitativa, não interessa aos demógrafos; e a noção de '"raça"
sua densidade, em geral representada pelo número de habi-
está por demais desacreditada. A definição de Pierre- Guillaume e
tantes por quilômetro quadrado (indicador tosco);
de Jean-Pierre Poussou parece correta, portanto: ~
sua repartição entre os setores rural e urbano, e sua dis-
tribuição sócio-orofissional;
"A demografia é, pois, uma descrição quantitativa das
populações, e um estudo matemático - estatístico na maioria distribuição pela idade e o sexo;
dos casos - de seus movimentos e variações múltiplas. Sua suas tendências de evolução;
finalidade consiste em descobrir "leis de população", ou pelo suas estruturas familiares.
menos comportamentos comuns de grupos humanos tão amplos
3 Esta parte e as seguintes (2 e 3) baseiam,se nas .obras já citadas de ·
P. Mouchez, P. Gmllaume e J. -P. Poussou, e em A. -Nouschi, Initiation
2 P Guillaume e J.-P_ Poussou, Ibidem, p. 9 aux sciences nistoriques, cit., cap. 2.

108 109
Estudo do movimento natural de uma população
O estudo da distribuição de uma população pela idade e o 2)
sexo leva à construção de um duplo histograma (ou curva de fre- 'litar a comparação entre mudanças e tendências de
qüência) chamado pirâmide etária. A pirâmide de idades· de uma Para f ac1 ., · · f ' l estu
ulacionais de dimensões muito vanave1s e pre enve -
população em determinado ano é construída do seguinte modo: grupos pop. entos principais da população, expressando-os em taxas
(Ver Quadro 1, figura 1) · . dar os m~vtmpo·r mil ·(as mais; freqüentes), por dez mil habitantes,
Percentuais, · , d' · ·
l d 5 anualmente, na maioria dos casos. Convem 1s~m~mr
- os anos de nascimento são registrados sobre a ordenada; calcu ..a , abrutas
· cu1'a finalidade
. . e- mais
· compan111va, e n ão 1:·xphcat1va ,
também na ordenada, a partir do eixo horizontal para cima, as taxas • . · d
das taxas diferenciais. bem mais refma as.
marcam-se as idades em anos ( 1, 2, 3, etc., até a idade
mais alta verificada na população estudada), ou em gru- QUADRO 1
pos de anos (por exemplo: 0-4, 5-9, 10-14, etc.);
-· no eixo horizontal - a abcissa - são registrados os dados Distribuição da população brasileira por sexo
populacionais, em números simples ou em perc(mtagens so- e idade, a /'! de julho de 1950
bre a população total: as percentagens devem ser prefe-
ridas quando se pretende comparar diversas. "pirâmides; Idade População
a população masculina fica à esquerda e a feminina à (anos completos) (em milhares)
direita. Mulheres
Homens
4. 247,3 4.147,5
O exame da pirâmide etária permite que se tome conhecimento Oa 4
3 .570,4 3.465,1
imediato de vários fatos. essenciais: 5 a 9
3 .173,2 3.153,4
10 a 14
2. 651,7 2 .656,4
- a história demográfica recente da população estudada; assim, 15 a 19
2.351,9 2. 360,5
na fig,9ra 2 podemos ver os efeitos das duas guerras mun- 20 a 24
25 a 29 2 .010,8 2 .022,3
diais sobre a população francesa: perdas militares alteran-
30 a 34 1. 724,3 1 .143,4
do princip, mente a populaçào masculina; .ctéficits de na-
35 a 39 1 .457,6 1 .485,4
talidade ("gerações ocas'', ou vazias) atribuíveis ao fato
40 a 44 1.259,7 1.295,4
da maioria dos homens adultos terem estado afastados de
45 a 49 1 .024,0 1 .071,7
suas casas, etc.;
50 a 54 798,4 847,6
o ti~o de população - jovem, velha, em processo de reju- 618,2 669,2
55 a 59
vene~ciml:11to.. . - indicado pela forma da pirâmide: trian- 429.,7 467,4
60 a 64
gular (população estacionária); lados côncavos, cume pon.. 65 a 69 295,9 330,9
tiagudo (população jovem); em forma de medas: base mais 70 a 74 156,7 181,4
estreita do que a porção mediana, ~ume arredondado (po.:. 75 a 79 82,6 104,0
pulação velha); forma intermediária, entre as duas ante- 80 a 84 33,9 47,7
riores: base alargada, cume arredondado (população em 85 a 89 10.4 18, t
rejuvenescimento). (Ver a figura ·3) 90 e mais 4.0 8,2
a evolução futura, a curto e médio prazo, da popula~
FONTE: Contribuições para o estudo da demografia do Brasil, Rio
ção, indicada pela quantidade de pessoas em idade de pro-
criar, relativamente à cifra total. de Janeiro, IBGE, 1961, p. 159. -

I 11
110
Figura 2:
Figura 1:
Pirâmide de idades (França, 1962 )·
Pirâniide de idades (Brasil, 1950)

(Construída a partir do Quadro 1)

18bl
1861
1 l1bdn

'"'''
,...,
18tio'
...
,..,
IK55
, g
1871

1881
Sexo Ma!>culinó 1871

l88l
~
1a1u 1891
""' ê. 1891

..
llH
..... Homeo.s
""'
,, 1
IHllO
~ 1901 ~
o
I'
111
1111,'i
....,...
""'
,, .
1890
e
·~
1901

1911
1911
e.
o
""
'~ if:I '
1, 11 '""' '""' .g 1921
1921 o
~-
'"" '''" g
11,
\111
1',i1 1 '""
191,
19!0
1915
< 1931
]0

i~Ea~~il"di~
19)1
ê

.!
~
l\120

....
IY25
1~20
11125
1941
15
!O
1941

1951
i ""' 1951
<
...
1915
,
,..., ...
10-14
11.JJS

,...,
""'
JY6J
400 J50 300 250 200 150: 100 50
5
·º o 50 100 150 200 250 300 350 400
1901

... ... "' '·' l.5 I.• ,. ,.. º·'


M
... ,.. ... 1,0 ,. '·º .\;5
'·º .u
\lilh~~
T u1a1~ dJ!> gera;,:ões anud1S (em milat'ires)

\hlbón

Fonte: P. Mouchez, op. cit., p. 41

113
112
Figura 3: os nascidos mortos. As crianças nascidas em um mesmo ano
~onstituem o que se denomina de geração; ou "coorte".
Tipos de Pirâmides de Idades: As taxas brutas de natalidade e de mortalidade não são stifi-
ientes para uma análise mi_nuciosa, pois nascimentos e óbitos va-
ciam: durante o ano'. (variações estacionais)., conforme os sexos
~sempre nascem mais meninos do que menina~; no mundo de hoje
a m. •talidade masculina é, em geral, mais pronunciada do que a
feminina, etc.); conforme os grupos etários; segundo outros fatores
(por exemplo, a mortalidade dos adult~s solteiros é supérior à
dos casados). Impõem-se, portan.to, análises complementares.
O estudo das variações estacionais pode ser feito pelo cálculo·
das taxas de natalidade e de mortalidàde, por mês ou por trimestre.
f: particularmente importante o estudo da mortalidade diferencial:
as probabilidades de mortes variam nas diferentes idades e é
População jovem População velha População em especialmente essencial a análise da mortalidade infantil, quer dizer,
rejuvenescimento
da mortalidade das crianças de menos de um ano. Cümpre distin-
guir a mortalidade infantil endógena (causas anteriores ou conco-
mitantes ao parto) da exógena (causas· posteriores ao nascimento,
(Baseado em A. Nouschi, lnitiation au.t sciences historiques, má alimentação, ~igiene deficiente, acidentes, contágios, etc.).· A
op. cit., p. 24) taxa de mortalidade infantil é um dos melhores indicadores do
estado sanitário e das condições sócio-econômicas de uma população.
Os dois fatos básicos que o demógrafo enfrenta ao analisar Um dos instrumentos de trabalho essenciais à demografia é a
o movimento natural são a natalidade e a mortalidade. Para estu- tabela de mortalidade, gráfico destinado a mostrar a mortalidade
dá-los são calculadas, primeiramente, as taxas brutas de natalidad~ diferencial, e a expectativa dé .vida, ambas em suas variações con~
e de m?rtalidade,. mediante a divisão, respectivamente, do número forme sexo e idade. Em uma coluna, à esquerda, são indicadas as
de nascimentos e de óbitos ocorridos em uma população dada, em idades em anos; depois, em duas colunas, vem o total de sobrevi-
determinado ano, pela população média do ano (ou, mais sim- ventes de cada idade no ano em estudo,. relativamente ao sexo
plesmente, a população na metade do ano, quer dizer - a 1Q masculino (Sx) e a expectativa de vida, também pafa cada idade
de julho). Assim, chamando de N a taxa de natalidade, M a de (ex); por fim, em outras d1rns colunas- são registradas as mesmas
mortalidade e P a população média teremos para um ano y: variáveis quanto à população feminina. (Ver quadro 2). O cálculo
do número de sobreviventes de cada idade é feito por mil ou por
Ny = número de nascimentos (ano y) x 1.000
dez mil habitantes; para cada idade, o cqeficiente de mortalidade
Py
é calculado pela relação entre o número de óbitos de indivíduos
My = número de mortes (ano y) x l. 000 desta idade, durante o ano, e o número de pessoas vivas da mesma
Py idade ·que havia ao começar o ano. Con~ém assinalar que, em·
princípio, o quadro de mortalidade pressupõe a observação de
. :f: importante observar que somente são considerados, no pri- como evolui a mortalidade de uma mesma geração, desde seu início
meiro caso, os nascimentos de criança~ que sobreviveram ao parto até sua extinção. Sem dúvida, é possível construir quadros relativos
- embora por pouco tempo - desprezando-se, assim, os abortos a determinado ano, .mas isto implica consideráveis dificuldades
114
11 s
r--

QUADRO 2: técnicas, razão pela qual não explicaremos aqui os procedimentos


necessários., que são apresentados nos manuais de demografia. 4
Quadro de mortalidade (França, 1959) Não se deve confundir a expectativa de vida - espaço de
tempo que cada indivíduo pode esperar viver a partfr de uma idade
"x" _ com a vida provável, que é a que cada indivíduo tem uma
Idade X Sexo masculino Sexo feminino probabilidade em duas de alcançar. Por exemplo, se metade dos.
indivíduos de uma geração nascida há 50 anos . está viva, presen-
(em anos) Sx ex sx ex temente, é possível dizer que se as condições não mudaram -
uma criança nascida hoje tem uma possibilidade em duas de chegar
aos 50 anos.
o 10.000 67,0 10.000 73,6 A çxpectativa de vida ao nascer ( eo) é calculada pela segÜinte
l 9.714 68,0 9. 782 74,2 fórmula:
2 9.689 67, 1 9.758 73,4
3
eo = 0,5 ± 2,5 S1 ± 4,5 S" ± 5 ( S10 ± Srn ± ... )
9.674 66,2 9.745 72,5 Sü
4 9.664 65,3 9.737 71,5
E nesta fórmula So é o efetivo inicial; Si, S5 , S 10 , . • • repre-
5 9.657 64,3 9.731 70,6 sentam os sobreviventes a um ano, a 5 anos, a 10 anos, etc.
10 9.631 59,5 9.709 65,7 Quanto à natalidade, é possível distinguir os nascimentos femi-
15 9.609 54,6 9.693 60,8 ninos e masculinos, calculando a relação de masculinidade: número
20 9.555 49,9 de nascimentos masculinos para cada 100 nascimentos femininos
9.671 55,9 em um ano dado; a referida relação é, em geral, .de 105 % , apro-
25 9.478 45,3 9.635 51, l ximadamente. · ·•
30 9.391 40,7 9.591 46,4 A taxa de natalidade é uma variável que depende de outras
35 9.290 36, 1 9.536 41,6 duas: as uniões (formações de casais) e a fecundidade. Quanto
40 às uniões, quase sempre apenas podem ser conhecidos os casa-
9 .155 31,6 9.454 37,0 'mentos legítimos. Pois bem, não há inconveniente em desprezar a
45 8.957 27,3 9.334 32.,4 fecundidade ilegítima no caso das populações européias, em que
50 8.654 23,1 9. 164 28,0 ela é muito baixa, mas em se tratando da América Latina, caracte-
55 8 .183. 19,3 rizada por um grande número de nascimentos ilegítimos, a nupcia-
8.934 23,6
60 lidade é um" variável menos representativa.
7.497 15,8 8.556 19,5
t:J5 6.579 12,7 8.028 15, 7 A taxa de nupcialidade (C) é calculada assim, para um ano y:
70 5.439 9,8 7.230
Cy = n9 de casamentos realizados no ano y x 1 . 000
12, 1 py
i5 4.026 7,3 6.031 9,0
80 2.487 5,3 4.332 6,9 4 Cf. Roland Pressat, L'Analyse démographique, Paris, Presses Universi·
taires de France, 1961, nova ed. (há tradução espanhola da primeira
1$5 1.144 3,8 2.427 4,6 edição: México, Fondo de Cultura Económica); 'Louis Henry, Manuel de
démographie 11istorique, Genebra-Paris, Droz, 1970 (2' ed. ); L. Chevalier,
Démographie générale, Paris, Sirey, 1951: M ethods for --Population Projec-
FONTE: ~- Mouchez, Demografía ( cf. now l), p. 57 tions by sex and Age, Nova York, Nações Unidas, 1956.

116 117
Além da taxa de nupcialidade cumpre conhecer, seguidamente Figura 4:
a freqüência do celibato definitivo, medida pela proporção de sol-
teiros de 50 anos e mais, em uma população - porque é difícil
alguém casar-se pela primeira vez depois dos 50 anos, idade que Guatemala, 1969
assinala, habitualmente, o limite fisiológico da fertilidade feminina Taxa! de fecundidade por grupos etários das mães (%)
-- e a idade média nu momento· do primeiro casanJ_ento. Conforme
as mulhen:s se 1:asem mais ou menos jovens - e segundo a es-
tabilidade das uniões - viverão mais ou menos anos férteis casa-
das, o que afetará, visivelmente, a qúantidade média de filhos de
cada casal. Taxas
400
A taxa bruta de fecundidade é determinada do seguinte modo
(chamemo-la F):

Fy = n9 de nascimentos do ano y x 100 ou 1. 000


300
n9 médio de mulheres de 15 a 49 anos no ano y

E interessante também calcular a fecundidade segundo os distin-


tos grupos etários das mães e representá-la pro uma curva. 5 (Ver
Quadro 3 e F. 4). Guatemala, 1969 200

QUADRO 3
Grupos Filhos Fecundidade por
etários Efetivos nascidos grupos etários 100
(anos) femininos vivos das mães (%)

15-19 245.721 37.054 150


20-24 179.946 62.542 347
25-29 162.821 47.047 288. 15 20 25 30 35 40 45 50
30-34 157.230 33.228 211 Idades das mães
35-39 140.879 24.452 173
40-44 103.960 8.513 82
45-49 75. 175 1. 425 19
Os dados contidos na tabela de mortali9ade permitem calcular
FONTE: Anuário Centroamericano de Estadísticas de Salud, a taxa de reposição (ou taxa líquida de reprodução) de uma po-
1969, ODECA, São Salvador, 1971. pulação. Para isto ·é preciso tomar um total de mil mulheres e
tratar de saber se a referida geração é capaz de assegurar sua
substituição, pressupondo-se que não haja mudanç.as nas condições
~ Nu Capítulo VI há indicações relativas à construção e à leitura de
d1rvas.
de fecundidade e de mortalidade. Para cada grupo de idade entre

119
118
os 15.. e os 49 anos deve ser verificado o número de mulheres rigem. Os dois tipos de inc.·idências podem ser medidos, quanto
do efe~ivo inicia! que sobreviveram, e estudar a variação de sua· ào intensidade, mediante as taxas: nos casos de m1graçoes
. - de um
fecundidade conforme os grupos etários (15-19, 20-24,. .. 45-49) país pará outro teremos de calcular a taxa de emigração (relação
especialmente a quantidade total de nascimentos femininos (cal- entre o número de migrantes e o total da população de origem)
culada pela aplicação da relação de masculinidade, de que já nos e a taxa de imigração (relação entre o número de emigrantes e
ocupamos, ao total dos nascimentos) que tais mulheres produziram d total da população receptora).
no curso de sua vida fértil . Esta quantidade é dividida por 1 . 000;. . Somente considerando o efeito das migrações é possível conhe-
se o índice assim obtido for superior à unidade, o crescimento cer a taxa de crescimento real de uma população dada; se não
da população está garantido, sempre na suposição de que as con- pudermos calcular a taxa líquida de migração, somente seremos
dições gerais não sejam alteradas; se for menor do que. a unidade, capazes de calcular a taxa de crescime1110 natural (diferença, em
a população irá diminuindo; se for igual à unidade istp significará dado ano, entre a taxa bruta de natalidade e a taxa bruta de
que as gerações apenas se substituem. mortalidade: positiva indica um aumento, negativa revela uma re'-
dução).
Um dos problemas que surgem ao aplicarem-se, às popula-
39 Estudo dos movimentos migratórios
ções americanas, os métodos desenvolvidos na França pelos histo-
riadores demógrafos reside no fato de tais métodos pressuporem,
Chamamos de ·migrações os deslocamentos de indivíduos fa-
seguidamente, uma estabilidade bem grande da população, o que
mílias, ou grupos humanos qiais vastos. De acordo com critérios
distintos, os movimentos migratórios podem ser: permite estudar-lhe as mudanças a partir de seu movimento natural,
basicamente; porém as migrações constituem-se em um dado essen-
- permanentes ou temporários; cial no curso da. história demográfica do continente americano.
- . espontâneos ou organizados (neste último caso podem ser
forçados como os "mitimac" dos incas o tráfico negreiro
/ A. • '

as tr'ansferenc1as de população realizadas pelos nazistas,


'
49 Fontes
etc.);
A demografia tem duas maneiras complementares de abordar
- inte~no~ ou exter~os (relativamente a um país dado);
seu objeto: o estudo do· estado de uma população em um momento
- ordmárzos (colonizações agrárias internas· êxodo rural·
determinado e o estudo do movimento da população no tempo.
migrações profissionais não permanentes: diárias ou esta~
A tais focalizações correspondem dois grupos de fontes:
cionais) ou extraordinários (transcontinentais; provocados
por perturbações políticas ou religiosas, etc.); - as que permitem a análise do estado de uma população,
- migrações propriamente ditas (deslocamentos episódicos e quer dizer, uma espécie de fotografia instantânea da mes-
d.uradouros) e turbulências (deslocamentos periódicos rela- ma: censos, sondagens (censos parciais), inquéritos;
cionados com um modo de vida: agricultura itinerante - as que possibilitam o acompanhamento do movimento dos
transumância, deslocamentos estacionais ou diários de tra: componentes básicos dos fenômenos demográficos (nasci-
balhadores, etc.).
mentos, óbitos, casamentos, ~igra~ões) no tempo: regis-
E bem fre~üentemente estudada a incidência dos migrantes
tro civil, relatórios administrativos.
apenas em r:laçao a seu ponto de chegada - ficando esquecido E importante respeitar a complementaridáde das abordagens
o aspecto nao menos fundamental das repercussões demográficas mencionadas e comparar as informações conseguidas -a partir dos
provocadas pela saída dos imigrantes sobre suas populações de diferentes tipos de fontes.
120
121
3. CONCLUSAO B. A história clemqgráfica

As págmas anteriores constituem pouco mais do que uma


enumeração simples e rápida de procedimentos técnicos; isto foi
inevitável, pois era necessário expor algumas noções e instrumentos
de trabalho da demografia - úteis para a história demográfica -
1. SEU DESENVOLVIMENTO
e, por outro lado, era óbvio que um desenvolvimento excessivo
desta introdução nos afastaria demasiadamente de nosso tema cen-
tral, 4ue será exposto a partir do sub-tí.tulo seguinte. Antes de
passarmos a falar da demografia histórica, entretanto, queríamos
chamar a atenção para dois aspectos importantes da ciência de- Deixando de lado os precursores, muitas vezes ilustres con-
mográfica. centremo~nos na evolução da história demográfica a partir de' l 930.
Neste ano surgiu, na Itália, o "Comité para o Estudo dos Pro-
Em primeiro lugar, o caráter pru~pccti1•0 da demografia. Ela
blemas da População", fundado por C. Gini. Entre 1930 e l 945
nào se;: contenta com a explicação dos fatos 4ue estuda, mas tenta
os historiadores franceses da economia - Jean Meuvret, F. La-
vislumbrar. também, a evolução futura da população em estudo
brousse e outros - às vezes com grande abrangência procuraram
e, assim, SLrvir a uma política populacional capaz de ter. influên-
incluir as variáveis demográficas cm seus estudos. Porém, foi só
cia sobre a aludida evolução. A análise combinada da pirâmide
após a Segunda Guerra que a história demográfica se constituiu em
etária e da tabela de mortalidade é essencial, para isto.
disciplina autônoma no marco . da ciência histórica. É claro que
·Em segundo lugar, cumpre mencionarmos os vínculos da de-
os acentuados progressos da demografia no mesmo período não
mografia com as demais ciências. A variação dos fatores demo-
foram estranhos a esta constituição.
gráficos mais importantes pode e deve ser estudada em função
dos próprios Aatos populacionais, que oferecem muitos elementos Já em 1946 surgiam dois artigos importantes - de J. Meu-
explicativos: mas isto não é o bastante. A fecundidade e a mor- vret e de L. Chevalier __:. logo seguidos por vários livros e en-
talidade dependem da ação conjunta de fatores biológicos e sociais. saios muito interessantes, u culminando em 1956 com a publicação
Quanto a estes últimos - que atuam dentro de limites definidos do manual de M. Fleury e L. Henry em que encontramos a sis-
pelos primeiros - é evidente que as guerras; as flutuações eco- tematização da metodologia adequada à pesquisa cuja base são
nômicas; os costumes socialmente admitidos em matéria de casa- os registros paroquiais. 7 Desde então os estudos de casos os
mento e de procriação; a mentalidade religiosa (por exemplo, trabalhps metodológicos, as sínteses e os manuais multiplica;am-
quando atua relativamente aos métodos anticoncepcionais); os pa-
drôes habitacionais, alimentares, etc.; a profissão e o nível cultural;
6 Jean Meuvret, "Les crises de subsistance et la démographie de la
a política do Estado em matéria de população e muitos outros France d'ancien régime", em Pop11/atio11 (Paris, I. N. E .:O.), outúbro-de-
fatores atuam poderosamente sobre o comportamento das variáveis zembro de 1946, PP 643-650; Louis Chevalier. "Pour une histoire de la
population" '. em Population, 1946, pp. 245-256; · Philippe Ariês, Histoire des
demográficas fundamentais. Portanto, a demografia tem de recor-
papulations /rançaises et leurs atitudes devant Ia vie, Paris, Ed. Sclfs,
rer às outras ciências sociais para chegar a uma explicação com- 1948; e vários artigos de Pierre Goubert, M. Réinhard. L. Henry, ·etc.
pleta dos fenômenos que estuda. Porém, a dependência é recípro- 7 Michel Fleury e Louis Henry, Des registres paraissiaux à l'11istoire de la
ca: os dados referentes à população são essenciais para o econo- population, Manuel de dépouillement et d'exploitatian 'de l'état civil ancien,
Paris, I.N.E.D., 1956. Este livro foi reformulado pelos autores e reedi-
mista, para o sociólogo, para o especialista em ciências políticas,
t~~o ei_n, 1965: Nouveau manuel de dépolfillement eL d'exp/otation de
etc. letat c1v1/ ancien, Paris, I.N.E.D.,1965.

122 123
se na França - país que apresentou o mais notá,vel de,:;envolvi- Sherbum~ Cook, Lesley Simpson. Um esforço isolado, mas pio-
11

mento no campo da história demográfica. x neiro, foi feito por Nicolás Sánchez-Albornoz e sua equipe, na
Na Inglalerra, .ta~bém, tais estudos tiveram grande impulso Argentina, no início da última década. Mas coube a Maria Luiza
recentemente - principalmente centrado em torno do grupo de Marcílio, em sua tese sobre o povoamento · e a população da ci-
Cambridge (E. A. Wrigley, D. C. Eversley, P. Lasleti, W. A. dade de São Paulo (1750~1850), realizar a primeira aplicação
~rmstrong, L. üvenall). As pesquisas, obras de conjunto e um cabal do método de Louis Henry, adaptando-o às características
interessante manual, constituem provas suficientes da vitalidade da e peculiaridades de uma população latino-americana. Podemos ·di-
história .dem?gráfica ing~esa. u A Bélgica também dispõe· de impor- zer que a história demográfica feita por pesquisadores latino-ame-
tantes h~stonadores-demografos: o veterano Padre Mols, P. Deprez, ricanos só adquiriu uma relativa importância nestes últimos anos.
P. Harsm e outros. Da Espanha citemos Jorge Nadai; da Itália Reuniões internacionais recentes, como o Colóquio Internacional
Massimo Livi-Bacci. Finalmente, em vários países europeus, no nQ 543 do C. N. R. S. sobre a "História quantitativa do Brasil,
Canadá e nos Estados Unidos, a história demográfica passou a 1800-1930" (Paris, outubro de 1971 ), ou o· II Simpósio sobre
despertar o interesse de um número crescente de pesquisadores. 10 Histófi.a EGonômica da América Latina .(XL Congresso Interna-
_ No caso da América Latina os progressos têm sido lentos. cional dos Americanistas, Roma, setembm de 1.9,72) demonstram
As mais importantes influências foram as da escola francesa e a a existência de grupos já importantes de historiadores demógrafos,
do grupo de especialistas de Berkeley, que realizaram estudos fun- pelo menos em três países latino-americanos: Brasil, Chile e Mé-
damentais sobre a história demográfica mexicana: Woodrow Borah, xico. 12 Atualmente, estão sendo feitos alguns esforços para coor-
denar os trabalhos de pesquisa realizados nos vários países e
para fazer um inv~ntário dos projetos em andamento e dos recur-
8 Cf. principalmente: E. Gautier e L. Henry, La population de Cru.lai sos documentais da América Latina, em conjunto, que possam ser-
paroisse normande: Etude historique, Paris, Presses Universitaires de Fran.'
ce, 1958; Pierre /Goubert, Beauvais ... tese cit.; L. Henry, Manuel de démo- vir à elaboração da história demográfica ibero-americana; estes
gr~phie histori~ue, cit.; P. Guillaume e J .-P. Poussou, op. cit.; Marcel esforços são coordenados pelo Centro Latino-americano de Demo-
Remhard, Andre Armengaud e Jacques Dupâquier, Histoire généra/e de la
populatian mondiale, Paris, Ed. Montchrestien, 1968, 3.• ed. (Tradução para grafia ( CELADE). sediado em Santiago do Chile.
o espanhol, Barcelona, Ariel). .
9 Cf. principalmente: E. A. Wrigley, "Mortality in Pre-lndustrial England.
The Example of Colyton, Devon, Over Three Centuries", em Daedalus, li Cf. por exemplo: Sherburne F. Cook e Wóodrow Borah, "The ~ate
primavera de 1968, pp. 546-580; Vários Autores, sob a direção de D. V. of Population Change in Central Mexico, 1550-1570", em Hispanic American
Glass e D.E.e. Eversley:, Populàtion in History, Essays in Historical De- Historical Review, XXVll, 1957, pp. 463-470;; W. Borah, New Spain's Century
mography, Londres, Edward Arnold, 1969 (reedição); D.E.e. Eversley, Peter of Depressíon,. col-, lbero-.Americana n.º 35, Berkeley e. Lo: Angele.s, 1951;
Laslett, E. ~· Wrigley, W. A. Armstr1;mg e Linda Ovenall, sob a direção Lesley B. Simpson, Exploitation of Lan& in. Central Mei:1co 111 the S1xteenth
de E .. A. Wngley, An Introduction to English Historical Demography, From Century, col. Ibero-Americana n.º 36, Berkeley e Los Angeles, 1952.
th966
e Su:teenth to the Nineteenth Century, Londres, Weidenfeld & Nicolson. i2 No Brasil, podemos citar os seguintes pesquisadores: Katia Mattoso,
l .
Maria Bárbara Levy, Luis Lisanti, Maria · Luiza Marcílio, Altiva P. Ba-
10 Cf., por exemplo: R. P. Mols, lntroduction à la démographie histori~ue lhana. Cf., sobretudo, Maria Luiza Marcílio, La vil/e de São Paulo: Peu·
des .villes d'Europe du X/Ve au XVl/Je siecles, 3 vol., Louvain, 1955; plement et population, 1750-1850, Ruão, Universi9ade de Ruão, 1968. No
Jord1 Nadai, La población espaiiola (sigws XV a XX) Barcelona Ariel México: Elsa Malvido e Cecilia Rabell; no Chile: o grupo de Concepción.
1971 (2.• ed.); J. Henripin, La population canadienne ad début du 'xv111~ Sobre as pesquisas dirigidas por Nicolás Sánchez-Albornbz, na Argentina,
siede, Paris, I.N.E.D., 1954; y, Yasuba, "Birth Rates of the White of. seus informes "Estudio sobre la demografia histórica dei Valle de
Population in the United States, 1800-1860", em Studies in Historical. and Santa Maria", em Universidad (Santa Fé). vol. · 62, 1964, pp. 93-105, e
Polltzcal Science <Baltimore. John Hopkins University) LXXXIX 9 2 "La población de ~n varre catchaqui t!ll el sigla XIX!, em Desarrollo
1962. •, • n .•
Económico (Buenos Aires), vol. 13, 1964, pp. 81-83.

124 12.S
das fontes e à perspectiva do historiador, atento para a especifi-
2. FONTES E METODOS cidade das diferentes sociedades e épocas. O peso dos procedi-
mentos críticos da história torna-se tanto mais importante quanto
mais nos afastamos da época plenamente estatística: relativamente
a esta última predominam os métodos puramente demográficos.
Como acontece com qual.quer estudo histórico que busque ge- por isto, o domínio favorito da maioria dos historiadores demó-
n~r~llza~ a quantificação, no caso da história demográficíj cumpre grafos tem sido a etapa proto-estatística, que já permite um estudo
d1st1ngmr quanto ao tipo de documentação e, portanto, de meto- estatístico de séries contínuas, relativas à população, e um conhe-
dologia e resultados: cimento bastante minucioso das estruturas e comportamentos de-
mográficos; porém exige, além do manejo dos conceitos e métodos
da demografia, um importante trabalho específico de historiador.
J<o> o período pré-estatístico, para o qual não há dados esta-
Aqui somente nos referiremos às fases pré e proto-estatísticas.
tísticos contínuos e confiá·veis;
29 o período proto-estatístico, caracterizado pela possibilida-·
de de recolher ou reconstituir materiais estatísticos orga-
·l Q Fase pré-estatística
nizáveis em séries contínuas· mais ou menos longas;
39 o período plenamente estatístico. Por um lado, temos o caso da carência completa de estatís-
ticas, característicos da pré-história e dos povos que não nos lega-
A duração e os limites de cada uma das etapas mencionadas ram testemunhos escritos. A documentação disponível é represen-
são .extremament~ variáveis, conforme as regiões, os países e os tada, neste caso, pelos esqueletos hu.manos, ou partes deles, e por
contmentes. Assim, por exemplo, a fase proto-estatística começa instrumentos e outros vestígios culturais que nos informam quanto
no século XIII no caso da Provença francesa, e na Inglatdra 0 à extensão do habitat, à forma de vida, à alimentação, etc., per-
cada.stro de t086 (Domesday Book), os Hundred Ralis de· 1279, mitindo de quando em vez estimativas grosseiras . sobre as densida-
as hstas de capitação de 1379 e 1381 permitem, juntamente com des populacionais possíveis. Os· restos humanos· podem ser estuda-
outros tipos de fontes, interessante aplicação de métodos estatísti- dos no sentido de estabelecer os grupos etários a que pertencem
cos aos estudos de demografià. Entretanto, quanto ao conjunto mas, na realidade, tais pesquisas são pouco seguras quanto aos
da Europa ocidental não ingressamos no período prato-estatístico resultados - e muito vulneráveis à crítica, ,.-- embora algumas
antes do século XVII; e em um país como o Brasil isto só ocor- de suas conclusões (a baixa natalidade, os 50 anos como limite
re em meados do século XVIII. 13 da longevidade) pareçam plausíveis, sobretudo comparando-se as
populações pré-históricas com os povos "primitivos" contemporâ-
A história demográfica procura associar o método estatístico, neos. No estudo das necrópoles pré ou proto-históricas a cons-
os conceitos e a problemática da demografia à crítica histórica trução de modelos é um método interessante: compara-se a distri-
buições dos óbitos, comprovados pelos restos humanos conservados,
com o modelo teórico de uma população cujo comportamento
demográfico permita explicar a referida disttibuição. 14
13 Cf. Edouard Baraticr, La démographie provençale. du XII/e au XVe
siécle, Paris, SEVPEN, 1%1; J. C. Russel, British Me.dieval Popula.tion,
Albuquerque, 1948; Louis Lisanti e Maria Luiza Marcílio, Problemes d'his· 14. Cf. L. R. Nougier, "Essai sur le peuplement préhistorique de la
tuire quantitative du Brésil: Métrologie et démographie (informe mimeo· France", em Population, 1954, pp. 242-271 (e crítica de L. Henry, pp. 272-
grafadol. Colóquio sobre "História quantitativa do Brasil, 1800-1930", Pa- 274); J. N. Biraben, "Durée de la vie dans la populatiOft' de Columnata",
ri'. dulubro de 1971 J. em Pop11/ario11, 1960.. pp 487-500.

126 127
r--
29 Período proto-estatístico
Com o advento do documento escrito chegaram-nol), pelo· me-
nos, alguns dados estatísticos isolados: poucos e de· escassa con- A transição para esta fase aparece determinada por fatores
fiabilidade, no caso do antigo Oriente Próximo; mais numerosos,
ligados à estruturação do E~tad? ?1?dern~ .e de seu aparelho bu-
porém, de difícil uso - devido, por exemplo, à escravidão, pois
ocrático e fiscal, como a h1stana rehg1osa: por exemplo, o
os escravos raramente eram computados - e, de qualquer modo,
por demais insuficientes para que se tentasse partir para um estudo
~oncífiÓ de Trento determinou, no século XVI, que as paróquias
mantivessem registros de . batismos, casamentos e enterros. Os cen-
propriamente demográfico no caso da antigüidade clássica e .da
sos ou estimativas globais., os documentos fiscais, os padrões e
maior parte da Idade Média. Foi tentado o estudo da expectativa
registros eclesiásticos . permitem - na Europa e nas Américas
de vida conforme as idades e o status social no mundo romano
uma exploração estatística mais ou menos profunda dos dados.
antigo, 'usando como fontes as inscrições funerárias, relativamente
Infelizmente, os fatores estruturais geradores dos mencionados tipos
abundantes. Também neste caso - como rio dos cemitérios pré-
de fontes não bastam: pode acontecer, e ocorre seguidamente, que
históricos - apesar de alguns resultados obtidos serem verossímeis,
parte importante da documentação tenha sido perdida ou destruída,.
a incerteza é grande demais, a documentação foi super-explorada
o que prolonga o período pré-estatístico das respectivas populações.
e todos os trabalhos apresentados foram discutidos a fundo, quanto
Seja como for, a escola européia de história demográfica desen-
à metodologia e às conclusões. Parecem mais promissores os es- volveu-se basicamente em função dos tipos de· documentos dispo-
forços de reconstrução de famílias da antigtlidade romana realiza-
níveis na etapa prato-estatística, especialmente dos registros paro-
dos por Robert Etienne e Paul Petit. Já dissemos que somente
quiais. Isto significa que seus métodos não são aplicáve~s à maio-
em casos excepcionais, como na Inglaterra e na Provença, a Idade
ria dos países não cristãos, salvo quando se puder localizar algum
Média furtou-se à escassez documentária que i.mpede a plena apli- tipo · de documento que permita uma exploração semelhante à
cação de métodos, dando margem a um conhecimento que, além aplicável aos livros paroquiais, como é o caso dos regi_stros reli-
de cifras muito gerais e discutíveis, possa chegar às estruturas giosos japoneses (1671-1871) usados por Akira Hayami. 1 º
demográficas e ao comportamento respectivo. Além disto, muitos As categorias de fontes características da fase prato-estatística
problemas de exploração das fontes se relacionam com os do- - etapa que podemos considerar encerrada com a instauração do
cumentos medievais disponíveis, exigindo um difícil trabalho prévio registro civil ·e dos censos realizados com métodos modernos
de crítica documentária: por exemplo, a extrema variabilidade do são, sobretudo, as seguintes:
tamanho dos "lares", base dos cômputos medievais de população
(e muitas vezes, ainda, dos tempos modernos), que. impede o registros paroquiais: funcionam como um "registro civil
cálculo do número de habitantes a partir do número. destes "la- antigo", possibilitando o estudo do movimento natural da
res". 1 ~ população;
censos primitivos e div.ersos tipos de cômputos sumários
(pad~ões eclesiásticos, por exemplo);
JS Cf: M. Reinhard e outros, Histoire génerale . . cit., pp. 23-107; L.
Henry, "La mortalité d'apres Jes inscriptions funt!raires", em Population, documentos não demográficos, .mas que podem ser usados
1957, pp. 149-152; do ·mesmo autor "L'âge au dt!ces d'apres les inscriptions estatisticamente para fins demográficos: listas de contri-
funeraires", em Population, 1959, pp. 327-329; K. Hopkins, "On the Probable
Age Structure of the Roman Population", em Population Studies, nov~m·
bro de 1966, pp. 245-264; R. Etienne, "La démographie de la Familie em Annales de démographie historique, 1966, pp. 37-57; A. Higounnet
d'Ausone", em Etudes. et Chroniques de Démographie Historique, 1964; Nadai, Les Comptes de la tai//e et les sources de /'lzist·oire démographiqua
pp 15-2'~ Jean Glénnisson "Débat sur les sources, bibliographie, termino- de Périgueux au XVe siecle, Paris, SEVPEN, 1965.
logie et travaux en cours", em Actes .du Co//oque international de' démo-
graphie de Liege sur la mortalité, Paris, Génin, 1965; P. Riché, "Pro- 16 Cf. N. Sánchez-Albornoz, "Les registres paroissiaux_1 en Amérique
latine•, citj Guillaume e Poussou, op. cit., pp. 69-85.
hlt>m,·~ d1· démographie historique du haut moyen áge (Ve-VIIIe siecle)",

129
128
buintes de impostos (ou de índios tributários., no caso computos primitivos, será feito em 0utras partes · deste capítulo;
hispano-americano), genealogias, listas eleitorais ou milita- mas, desde já, desejamos destacar dois aspectos importantes, a
res, relação dos .fiéis que comungam, etc.; propósito.
documentos não estatísticos (exploração qualitativa): cor- O estudo do movimento natural de uma popµlação - mesmo
respondência, viajantes, etc. reduzida - com ou sem reconstrução das famílias, implica a con-
fecção e a manipulação de considerável massa de fichas. Traba-
Um problema de monta é o constituído pelos movimentos lhando-se com uma única paróquia é possível, em geral, elaborar
migratórios - cujo estudo histórico, por falta de fontes tão con- monografia baseada na coleta e no processamento de 100% do
venientes como as que geralmente facilitam a análise do movimento material disponível. Entretanto, pretendendo-se fazer pesquisas re-
natural, desenvolveu-se pouco até o presente. Os registros pa- gionais amplas, ou de âmbito nacional, dificilmente haverá condi-
roquiais não mencionam, em geral, a origem exterior à paróquia ções de tempo, financiamento e pessoal que permitam a coleta total
das pessoas registradas, salvo no caso de estrangeiros. As fontes dos ·dados acessíveis. Então, será necessário proceder por sonda-
;
mais usadas para estudar as migrações são: gens, ou amostragem: por exemplo tomando-se uma ata paroquial
de cada cinco, reconstituindo-se apenas algumas das famílias de
as listas de "cidadania": na Europa moderna o burguês cada paróquia, etc. (Quanto à amostragem, ver Capítulo VI).
que se mudava -definitivamente tinha de ser admitido na
lista dos burgueses de sua nova cidade; Por outro lado, é interessante obser\lar que as fontes da his-
as listas de estrangeiros; tória demográfica, altamente padronizadas e de fácil quantificação,
as listas profissionais: registros de admissões aos grêmios levam de modo muito natural à reunião e ao processamento dos
ou corporações, por exemplo; . dados em computadores - o que permite poupar tempo, pois em
- as listas administrativas: de passaportes concedidos, ·de geral. é mister manejar quantidades consideráveis de material e
entrada e saída nos portos, etc.; submetê-lo a uma série de operações. Muitas das pesquisas im-
os informes públicos e particulares sobre as migrações; portantes já realizadas valeram-se da computação - como os es-
Os 'documentos cartoriais: contratos de casamentos, tes- tudos das paróquias de Crulai e Colyton, entre muitos outros. 18
tamentos.

Os melhores documentos são as atas cartoriais e, às vezes,


as paroquiais de casamento, que devem ser completadas - no 3. HISTORIA DEMOGRAFICA E HIST.ORIA TOTAL 19

caso dos migrantes solteiros - com outros documentos. No re-


ferente aos registros de enterros dos hospitais, tratando-se de fonte
importante, que sempre menciona a procedência dos mortos, dão As relações da história demográfica com a história global -
lugar a erros: (;Omo, normalmente, as casas de saúde estão nos e muito especialmente com a história econômica e social - são
aglomerados urbanos é difícil, às vezes, distinguir os casos de
estranhos à cidade, que imigraram para ela e· se estabeleceram, 18 Ver Edward Shorter, The Historian and the Computer, A Practical
dos habitantes do campo ou de outras localidades que só vieram Guide, Englewood Cliffs (New Jersey), Prentice-Hall, 1971, pp. 25-26; Mar·
tratar-se no hospital e ali morreram. 17 cel Couturier, "Démographie historique et mécanographie électronique", em
O exame dos principais métodos da história demográfica apli- Annales de {lémographie historique, Paris, Sirey, 1966, pp. 57-68 e "Nou-
veau débate sur démpgraphie historique et mécanographie électronique",
cado~ aos registros paroquiais e aos diferentes tipos de censos, ou mesma revista, 1967, pp .. 29-55. Do mesmo autor: · Reoherches sur les
structures sociales de ChâÚaudun, 1525-1789, Paris, SEVP'EN, 1969.
19 Esta parte baseia-se, pnncipalmente, em D.E.C. ~ersley, "Popula-
17 Guillauml.' !.' Poussou, Ibidem, pp. 85-88 tion, Economy and Society", artigo cit., e Pierre Goubert, "Histoire so-

130 131
múltiplas, íntimas e recíprocas. Ao considerá-las, o grande erro Os fatores políticos influem sobre os demográficos e, também,
possível é o da simplificação exagerada. Por exemplo, querer sobre a confiabilidade das fontes disponíveis para seu estudo. As-
demonstrar a correspondência direta e obrigatória entre os movi- sim, por exemplo, os censos feitos com finalidades fiscais devem
mentos vitais e as variáveis econômicas: além do fato de existirem ser severamente criticados, dada a grande probabilidade de decla-
variáveis autônomas importantes (biológicas, climáticas, etc.) po- rações falsas para evitar ou reduzir o imposto ou taxa a .pagar.
de-se observar que nem sempre as epidemias se desenvolvem con- As políticas natalistas ou antínata.Jistas; a repressão ao casamento
forme a variação do émprego, ou da renda; que as colheitas e nos Estados alemães do século XIX, por influência de Malthus;
epidemias sofrem flutuações nem sempre coincidentes (em certos as leis referentes à transmissão da propriedade que podiam fazer
casos a epidemia encontra a fome geral, em outros a determina); com que os filhos - em certas categorias sociais de algumas so-
que os casall)entos e as concepções refletem as mudanças ocorri- ciedades - tivessem de aguardar, muitas vézes, a morte do pai
das nos salários reais, mas a correlação tanto pode ser direta para ter meios para casarem-se; todos estes são fatores que exer-
quanto inversa; afinal, que fatores políticos., convenções sociais, cem poderosa influência sobre o comportamento demográfico. Ao
crenças religiosas, etc., complicam ainda mais o quadro geral. contrário, as mudanças populacionais importantes - aumento ou
Embora a expressão "demografia hi~tórica" se tenha genera- redução da população, urbanização, migrações - têm, grosso modo,
lizado, na verdade ao hi~toriador cumpre, antes, estudar a história grande influência sobre a base do poder político e sobre a legis-
demográfica, evitando isolar as variáveis relativas à população de lação. ·E não se pode menosprezar o jogo de vários outros tipos
todo um contexto físico e histórico: clima, recursos naturais, co- de fatores sobre o movimento vital: biológicos (resistência dife-
lheitas, epidemias, fomes, guerras, emprego, salários, preços, etc.; rencial a certas enfermidades, hereditar.; .mente transmitida, por exem-
e não deve perder de vista o que os diferentes ramos da pesquisa plo),. religiosos, culturais ...
histórica podem dar à história demográfica, e vice-versa.
As relações entre história demográfica e história social são
As relações entre a história econômica e a história demo-
particularmente importantes. É comum· que as fontes essenciais da
gráfica tomam-se evidentes ao pensarmos no homem como produ-
história demográfica proporcionem, também, miríades de dados de
tor e consurµidor. A oferta de mão-de-obra depende dos efetivos
populacionais, de sua composição etária, da expectativa de vida, interesse para a história social. As atas paroquiais e cartoriais
da composição dos lares, etc. - elementos importantes na deter- de casamentos, quase sempre, contêm informações sobre o status
minação dos níveis salariais, dos custos de produção, dos graus social, as profissões, a alfabetização, a mobilidade social (escolha
de substituição do capital variável pelo capital fixo, etc., se nos da noiva e das, testemunhas), etc. As listas nominativas de habi-
colocarmos no campo do capitalismo contemporâneo. O homem- tantes e os censos pnm1t1vos são essenciais 'ao estudo da estrutura
consumidor condiciona o tamanho e as estruturas do mercado. Já social. 21 As variáveis sociais contribuem, por sua vez, para a ex-
existem na América Latina algumas pesquisas sensíveis à impor- plicação das demográficas: a média de idade no momento de e-a-
tância das variáveis demográficas para a história econômica. 20 sar-se, por exemplo, é variável conforme países, épocas e religiões,
dependendo das estruturas sociais e da mentalidade coletiva; a
ciale et démographie", em L'Histoire sociale, sources et méthodes, Paris, restrição voluntária dos nascimentos varia segundo os grupos so-
P.U F., 1967, pp. 223-237.
20 Ver, .i:or por exemplo, Maria Luiz.a Marcílio, "Algunos aspectos de lá ciais, e assim por diante. Em países como os da América Latina,
estructura de la fuerza de trabajo en la . capitania Cle São Paulo", em sobretudo na fase colonial, a demografia deve ser estudáda em
Anais de ·História (Universidade de Assis, São Paulo), 1971, pp. 53-62; da
mesma autor:i, Tendances et struc111res des ménages dans la capitainerie
de São Paulo ( 1765-1828) selon les listes nominatives d'habitants (informe 21 Cf. P. Laslett, "The study of Social Structure from Listing of Ínha·
mimeografado, Paris, outubro de 1971); Maria Bárbara Levy, Aspectos da bitants", e W. A. Armstrong, "Social Structure from the Early Census
história demográfica e social do Rio de JanP.iro (1808-1889) (informe mi- Returns", os dois" artigos publicados em An lntrodu.ctiorr to English His-
meografado, Paris, outubro de 1971). torical Demo;:raphy, cit., pp. 160-237.

132 133
um contexto social diferencial: . os comportamentos demográficos s traços mais gerais de funcionamento, exclusivamente, deixando
dos europeus, dos escravos negros, dos índios e das "castas". são seu lado os movimentos
· · ' · ã t d t d
de m1gratono~ e n o ten a~ o es u, ar a evo-
muito diferentes uns dos outros, refletindo as profundas diversi- I ão conjuntural de longa duraçao - expansao do seculo XVI,
:eçpressão do século XVII, nova expansã? do .:éculo ~VIII -
dades sociais, os processos de domínio e de exploração, a hete-
rogeneidade cultural, etc.
salvo para mencionar o advento da denominada revoluçao demo-
gra'f"1ca" . 2~
Antes de passarmos à análise do comportamento das princi-
pais variáveis demográficas dos Tempos M?.dernos, ~onvém , d:fi-
nir em linhas gerais., o que se entende por demografia de anczen
ré;ime", em oposição ao regime demográfico contemporâneo, i?i-
ciado pela grande mutação do século XVIII. O que caracteriza
a demografia de tipo antigo é a· existência de crises periódicas que
C. Demografia européia de "ancien régime" e história anulam, total ou parcialmeQte, os resultados dos períodos de cres-
demográfica latino-americana cimento natural da população, enquanto a demografia _contempo-
rânea é caracterizada; antes de mais nada, pela redução da impor-
tância, e posterior ciesaparição, das crises demográficas - o que
dá 111argem a um crescimento natural contínuo. As afirmações
globàis deste tipo devem ser matizadas conforme os pa!ses e re-
giões mas, em conjunto, são comprovadas pela evoluçao e pelo
l. ELEMENTOS FUNDAMENTAIS DO REGIME DEMOGRÁ- comportamento demográfico europeu nos últimos. cinco séculos.
FICO DA EUROPA OCIDENTAL NOS TEMPOS MODER-
NOS (SECVLOS XVI A XVIII)
19 A Mortalidade

O aspecto mais visível do regime demográfico anterior ao pe-


Por que privilegiar tal região e· tal período? São de dois tipos ríodo da revolução industrial é a grande importância da morta-
as razões que o justifiqm: lidade. No caso da França, a taxa da mortalidade era, então, de
28 a 38 por cento - sendo atualmente de· 12% - e em épocas
- em função deles foi elaborada a metodologia da história de crise chegava a níveis ainda muito mais impressionantes. A
demográfica: são os que melhor conhecemos, no marco velhice era como diz Pierre Chaunu, "um feliz acidente".
proto-estatístico; Entre 'os fatores de ·alta mortalidade devemos considerar, em
a metodologia que lhes é aplicada, principalmente baseada primeiro lugar, uma grande mortalidade infantil e juvenil. No caso
na pesquisa dos registros paroquiais, e sua problemática da paróquia de Crulai, no período de 1688-1719, a taxa, d.e mor-
demográfica, são em parte aplicáveis à América Latina e talidade infantil - representada pelo número anual de ob1tos de
isto até ofim do século XIX. · ' crianças de zero a doze ·meses de idade multiplicado por mil,
dividindo-se o resultado pelo número anual ·de nascimentos - era
De qualquer modo, o exame das características demográficas
da Europa Ocidental nos Tempos Modernos será feito, aqui, ·muito 22 A expos1çao baseia-se, em grande parte, em Guillaume e Poussou,
rapidamente e sob o ponto de vista do movimento natural em op, cit., pp, 135-188; ver tàmbém E. A. Wrighey, Hntoria Y oblación,
Madrid,' Guadarrama, 1969.
134
135
de 236% e a França, em conjunto, apresentava esta taxa ao mas sobrevinham quando os dois se associavam mas, se quisermos
nível de 20,5 % , apenas, em 1967. Como é óbvio, a taxa em destacar um deles como o mais importante, apontaremos as epi-
questão variava muito, segundo as condições do meio natural e demias. As guerras não eram, diretamente, um fator essencial;
sócio-econômico. Em todos os casos a importância da mortalidade mas indiretamente sim, pois suas devastações podiam provocar a
infantil endógena era grande: responsável ao menos pela metade fome, e os cadáveres insepultos as epidemias. '.!:i
dos óbitos infantis. No atinente ao século XVII, como afirma
Pierre Goubert, "eram necessários dois nascimentos para produzir
um adulto'', pois a metade das crianças nascidas morria antes de
29 Natalidade, fecundidade e nupcialidade
completados os 15 anos. Fatores da mortalidade infantil, juvenil
e geral, e·ram as deficiências da medicina, da higiene e da alimen-
tação, a miséria da maioria da população e as epidemias. A taxa de natalidade - muito variável segundo as reg1oes e
Conforme as estações, havia um ritmo diferencial da mortali- as épocas - era, geralmente, o dobro da taxa atual dos países
dade. O máximo de óbitos ocorria, geralmente, entre setembro e industriais, embora menor do que a dos países "subdesenvolvidos"
novembro; outro máximo assinalava o fim do inverno e o início dos nossos dias.
da primavera; o mínimo caracterizava o fim da primavera e o Quanto ao movimento estacionai das concepções, as monogra-
começo do verão. Mas, neste caso também, eram grandes as dife- fias paroquiais revelam uma tal variação regional e temporal que
renças regionais e as variações segundo a idade. As crianças de- uma generalização se toma impossível. Porém. é possível dizer
saleitadas e a população adulta morriam, principalmente, no início que o referido movimento era muito mais importante, então, do
do outono (infecções, nas zonas pantanosas; distúrbios digestivos); que na atualidade. Hoje em dia, na Europa, as concepções são
no fim do inverno e início da primavera :._ época de maior es- mais numerosas na primavera do que no inverno, mas o elevado
cassez de cereais e de altos preços - os adultos de mais de
nível técnico reduz a influência dos fatores climáticos e, por isto,
40 anos e os velhos eram os mais afetados pela mortalidade {com-
as diferenças sazonais são menos nítidas.
plicações pulmonares); as crianças pequenas sofriam principalmente
no verão, pois nesta fase da história as economias eram, todas, Apenas em relação às paróquias rurais distantes das cidades
fundamentalmente agrícolas e as mães estavam, então, ocupadas podem ser bem calculadas as taxas de nascimentos ilegítimos, pois
nos trabalhos campestres, cuidando mal dos seus filhos. muitas mulheres solteiras do campo iam aos aglomerados urbanos
As. crises demográficas constituem o aspecto mais caracterís- para ter seus filhos, abandonando-os ali. As concepções pré-nup-
til'O da demografia de tipo antigo. E mostram-se com clareza ciais eram, provavelmente, menos numerosas nas zonas rurais do
ao examinar-se a curva de óbitos: a quantidade de enterros au- que nas cidades.
menta, brusca e excepcionalmente, muito acima do nível médio Quanto à fecundidade, não é possí"'._el estudar mais do que a
mensal ou anual dos ·períodos precedentes ou posteriores à crise, legítima, que depende de quatro fatores:
e isto por vários meses ou mesmo durante um ano ou, até, dois
anos inteiros. f: muito freqüente, além disto, o aumento do
23. Sobre as epidemias, cf. Vários autores, Médecins, c/imat et épidémies
número de óbitos simultaneamente com a redução do número de à la fin du XVII/e siecle, Paris-Haya, Mouton, 1972; Bartolomé Benassar,
casamentos e de concepções. Em caso· de crise, a perda da po- Recherches .rnr /es grandes epidémies dans /e 11ord de I'Espagne à la fin
pulação podia chegar a 20 ou a 25 por cento do total: em geral du XV/e siecle • Problemes de ducwnentation et de méthode, Paris,
alcançava 10 ou 15% (Ver as Figuras 5 e 6). SEPVEN, 1969; n9 especial de Annales E. S. C., novembro-dezembro de
1969: Histoire Oiologique et société; Jacques Revel; "Autor d'une épidémie
Os dois grandes fatores da crise demográfica eram as epide- ancienne la peste de 1666-1670", em Revue d'Histoire Mad:erne et Contem-
mws e as fomes relacionadas com as colheitas más; as crises máxi- poraine, Pari:., A. Colin, 1970, pp. 953-983.

136 137
ser comparada ~ de nossos dias. Por outro lado,· erram principal-
1) idade das mulheres ao se casarem;
rnente os homens que se casavam pela segunda vez: faziam-no,
2) idade em que termina sua possibilidade biológica de pro-
de um modo geral, poucos meses após a perda da primeira es-
criar;
posa, quase sempre preferindo mulheres solteiras, não as viúvas.
3) intervalos de tempo entre os vários filhos de uma mesma
família (intervalos intergenésicos);
o mês em que havia maior número de casamentos era, · seguida-
mente, o de fevereiro (inverno: interrupção das atividades agríco-
4) duração das uniões.
las), sendo raros os casamentos no verão (apogeu dos trabalhos
do campo).
Ao contrario do que muitas vezes se crê, o casamento de
adolescentes não era freqüente nos Tempos Modernos, exceto em
certos ambientes aristocráticos. Até, as pessoas se casavam tarde: 3'? A "revolução demográfica"
a idade média no momento do primeiro casamento, na França,
era de 24 anos e 9 meses, nos tempos imediatamente anteriores /
Jean Fourastié resume nestes termos o quadro da demografia
à Revolução de 1789; portanto, como as mulheres raramente ti- de tipo antigo: :i~
nham filhos depois dos 40-45 anos, o período d~ fecundidade con-
"Pelo fim do século XVII, a vida de um pai de família
jugal só podia durar un~ 20 anos, no máximo. Quanto aos inter-
mé~io, casado . pela primeira vez aos 27 anos, poderi.a ser
valos intergenésicos, o primeiro nàscimento costumava ocorrer
assim esquematizada: nascido em uma família de cinco filhos
~ntre um ano e ano e meio após o casamento -
dos quais só a metade alcançara os 15 anos, ele tinha tid~
em seguida os
mtervalos aumentavam (para dois anos a dois anos e meio). Por
também cinco filhos, como seu pai, dos quais apenas três
outro . lado, era grande a fragilidade das uniões: freqüentemente
ainda viviam por ocasião de sua morte. . . Vivia em média
desfaziam-se os casamento~ dentro do período de fertilidade da
52 anos. . . Tinha atravessado três fomes, dois ou três perío-
esposa, o que se constituía em um fator de baixa fecundidade
dos de carestia de cereais, duas ou três epidemias. . . Sem
A quantidade de filhos por família era pequena: no Beauvaisis ·
falar das epidemias quase pe~1úanente de · coquleuche. escar-
região estudada por P. Goubert, o número de nascimentos alcan~
latina e difteria . . . A morte, a miséria e o sófrimento físico
çava a média de 4,85 para cada casal; como os óbitos de crianças
eram seus rudes companheiros. . . A velhice era a coroação
de menos de 15 anos chegavam à metade dos nascimentos, havia
de uma trajetória excepcional. . . A idade média . dos filhos,
e~ média. 2,5 crianças para cada casal - e uma parte destas
ao morrer o pai ou a mãe, . era de 14 anos . Todos os pais
amda podta morrer antes de atingida a idade média de casar-se.
morriam antes de cómpletada a eduéação dos filhos mais
Isto explica a baixa taxa de substituição (ou taxa líquida de re-
moços."
pro~ução.) característica do regime demográfico de tipo antigo,
exphca ainda porque eram tão drásticas as reduções de população
Entretanto, as coisas .mudaram a partir do século XVIII, e
- em seus efeitos de longo prazo. - quando as crises afetavam
tal mutação - a "revolução demográfica" - inaugurou ·a transi-
o ritmo vital.
. ção para o regime demográfico contemporâneo. O fator essencial
Outra questão interessante é constituída pela limitação volun-
da mudança foi, sem dúvida, a baixa. da taxa de mortalidade, rela-
tária de nascimentor, praticada há muito mais tempo do que se
pensava. cionada coin os progressos da medicina e da higiene e ligada, tam-
bém, à evolução positiva da produção agríéola e dos transportes.
Se pass~rmos ao exame da nupcialidade veremos que o celi-
Embora a taxa de natalidade também comece_ a tender para a
bato ~ra multo raro no campo, porém mais freqüente nas cidades,
c~pecialmente entre os empregados domésticos, então muito nume-
rosos. O .celibato eclesiástico não tinha peso considerável nas 24 Jean Fourastié, "De la vie traditionelle à la vie tertiaire", em Population,
taxas globais. No total, na França, a freqüência do celibato pode 1959, pp, 417432.

138 139
baixa, a queda da taxa de mortalidade dá-se a um ritmo bem su- _ fase pré-estatística: populações pré-hístóricas
perior, o que explica o crescimento contínuo e sem precedentes populações prato-históricas (pe-
da população., a partir do século XVIII. E: possível que uma alte- ríodo do contato inicial europeu);
ração climática tenha ocorrido então, afetando favoravelmente um fase prato-estatística: - populações integrantes das socie-
mundo ainda maciçamente camponês: segundo F. Braudel, isto ex- dades coloniais; primeira parte
plicaria porque a revolução demográfica foi um fato mundial, em- do .século XIX;
bora as "revoluções" agrícola e industrial tivessem sido, inicial- - fase de recopilação sistemática de estatísticas.
mente, fatos exclusivamente europeus. Porém, se o século XVII,
por exemplo, apresenta-se marcado por uma depressão econômica As duas primeiras fases é que interessam aqui. A era pré-
e demográfica de longa duração é difícil atribuí-lo ao clima. :t~
estatistica estende-se até o início da implantação sistemática do
Veremos, além disto, que no caso da América Latina a revolução
aparelho administrativo europeu (civil e religioso), o .qu~ se deu
demográfica é, na verdade, um fato de nosso século.
em épocas distintas nas diversas regiões latino-americanas; além
Não se deve supor que as mudanças estruturais ocorridas a
partir do século XVIII eliminaram, brusca e definitivamente, as disto, a destruição ou extravio de boa parte da documentação pode
crises demográficas da Europa Ocidental: elas foram atenuadas., prolongá-la, em certos casos, até o século XVJI ou XVIII, mesmo
tornaram-se cada vez mais raras e, afinal, acabaram de vez; mas em zonas colonizadas desde o século XVI .
a realidade é que ainda se verificaram no século passado. O estudo das populações pré-históricas americanas coloca o
Um dos aspectos característicos da "revolução demográfica", problema de documentação do tipo dantes mencionado, quando
tal como afetou - a diferentes ritmos - os países industriais, falamos da pré-história em geral. Restos humanos, vestígios téc-
foi a mudança profunda das estruturas etárias, refletido nas res- nicos e outros que permitem determinar qual a zona ocupada por
pectivas pirâmides; houve um envelhecimento da população em certo ·grupo e, talvez, a densidade do mesmo - são estes os
conseqüência da redução combinada das taxas de natalidade e de testemunhos de que se pode dispor. Com a chegada dos europeus
mortalidade- (ver Fig. 7 e 8).
surgiram os primeiros dados de tipo numérico - dispersos e
descontínuos, certamente - e as descrições; as categorias de fontes
2. A HISTORIA DEMOGRAFICA DA AMERICA LATINA: são; para a fase do contato inicial europeu, anterior à conquista
FONTES, METODOLOGIA E· PROBLEMÁTICA e à colonização propriamente ditas:

1) estimativas e informes de europeus;


19 As fontes ~e
2) informações numéricas obtidas dos índios;
3) primeiras fontes fiscais;
Apoiados em Woodrow Borah, podemos distinguir as seguintes
4) relatos dos missiónários e outros documentos eclesiásti-
fases, quanto ao tipo de documentação disponível para o estudo
cos;
da história demográfica latino-americana:
5) cecopilações tardias da tradição indígena.

~5 Fernand Braudel, Civilisation matérielle et capitalisme, XVe-XVIIIe


siecle, t. 1, Paris, Colin, 1967, p. 32; E. Le Roy Ladurie, "Histoire et Elsa Malvido, em Perspectivas de la historia ecunum1ca cuanti-
dlmat", em Annales E.S.C .. Janeiro-março de 1959, p. 31. Mtiva de América Latina, cit., p. 69-87; Rolando Mella[e, Descripción tipo-
:!b Quanto às fontes da história demográfica latino-americana, baseamo- lógica de los documentos útiles para la demografia histórica existentes
no., principalmente em Woodrow Borah, "La demografia histórica de Amé- e.n los archivos latinoamericanos, Santiago de Chile, C-ELADE, 1972 (mi·
n.:a Latina; fuentes, técnicas, controversias, resultados", trad. de mcogralado).

140 141
Figura 5: Figura 7:
A revolução demográfica: o caso britânico
Ô preço do trigo e a crise demográfica de 1693-1694 na região
de Meulan (França)
IOO 50 40
_15p:;::==-===:::=::::=:::::;::::-+~
•O 45
_Ili
80 40
25
70 20
15
- "'' HI Rl·gimt• dl'ni'ográfirn
tradidonal- htw
~o
~-------+-·

-
-~
.jtJ

,\ti
;_
,", ,>\
\ ./ '" \ .... --.\. ,'" .... ,.,,,/''\,,r .. ....,. __,
ltl " na:,cimcnlo:, .... -, ,'

"
12.S
FONTE: Guillaume e Poussou, Démographie historique ( cf no-
ta 1) p. 150. 15511 ló50 17511 1850 1950

Figura 6: FONTE: P. Salles e J. Wolff, Hommes, besoins, activités, t. 1,


Paris, Dunod, 1968, p. 168.
Paróquia de Colyton ( DevÓn, Inglaterra): Grande crise
/demográfica de meados do século XVII Figura 8:
l IU Bali!'omu:,
Fnll.-'rro~
Pirâmides de idades dos Estados Unidos em 1900 e 1940:
C11~amc11tus (, 5J
11..HJ
Envelhecimento da populaçà(I)
l()ADES
75
70-74
1900 65-69 1940
60-64
55-59
H 50-54
45-49
40-44
35-39
30-34
25-29
ISSO I~ 157ll IStlU, IS'KI 1600 '"'º lolu lóJIJ 11>-W lõ§IJ lf)c,u 1070 lólj(I ló90 20-24
15-19
FONTE: I0-14
An Introduction to English Hiswrical Demography, S-9
A expansão de longo prazo (século XVI - metade do 0-4
século XVII) · e a depressão da segunda metade do FONTE: Reinhard, Armengaud e Dupâquier, Histoire générale
século XVII são bem marcadas. de la population mondia/e ( cf. nota 8) p. 545.

142 143
Com a conquista efetiva, e com a constituição do aparelho tários; 4) livros de tributos, taxas e sobretaxas; 5) lis-
burocrático estatal e eclesiástico, ingressamos na era proto-estatís- tas de confissão e ·visitas paroquiais; 6) censos totais ou
tica que, conforme os casos, começa mais ou menos cedo: nas parciais; 7) censos da população infiel, informes cÍe mis-
melhores circunstâncias, em meados do século XVI. Sempre de sões volantes e de comandancias •; 8) ·informes de inten-
acordo com Borah, podemos admitir três subperíodos na etapa dentes.
prato-estatística (nos piores piores casos., só os dois últimos es- Documentos relativos à estrutura demográfica: 1 ). arqui-
tarão suficientemente representados) válidos principalrnen,te para a vos paroquiais; 2) informações . matrimoniais; 3) testa-
Hispan~-América: mentos nos arquivos cartoriais ou protocolos *.
Documentos relativos à ·população urbana: 1) censos de
De meados do século XVI até cerca de 1770: registros ci_dades; 2) relações de índios de serviço e de castas nas
paroquiais, listas eclesiásticas, registros civis (fiscais, mili- cidades; 3) relações de povoadores. ·
tares), primeiras contagens sumárias; Documentos relativos a migrações: 1) listas de mitayos •;
de 1 770 a 181 O: urna administração aperfeiçoada melhora 2) listas de desembarques e livros aduaneiros; 3) cartas
os registros, em geral, e surgem pela primeira vez verda- ou contratos de venda de escravos (arquivos cartoriais).
deiros censos;. Documentos de informação indireta e muito fragmentária.·
de 181 O à implantação do registro civil e dos censos 1) relações de milicianos; 2) registros de hospitais; 3)
realizados mediante técnicas adiantadas: época· caracteriza- informes de juntas de beneficiência e de protomedicatos * ·
da pela manutenção parcial das formas coloniais de regis- 4) dissensões • • matrimoniais. · '
tros e pela tentativa de desenvolver novas formas de colher
e apresentar as estatísticas relativas à população. A qualidade, o grau de conservação e a continuidade da do-
cumentação acessível diferem segundo países e épocas. Além disto,
Segundo Rolando Mellafe, os principais tipos de fontes da não podemos esperar encontrar por toda a parte este tipo de
história demográfica latino-amerieana, na fase prato-estatística que fontes. Mellafe afirma deixar deliberadamente de lado, por dema-
estamos considerando são: siado subjetivos, os documentos de certos governantes e adminis-
. tradores da época da colônia sobre temas demográficos ( entretan..,
Documentos relativos à população total: 1) v1s1tas à terra to, cita os informes de intendentes). Não o.bstante, nossa experiên-
ou visitas gerais; 2) visitas de desagravo ou circun'itan- cia com a história das colônias francesas mostra que nem sempre .
ciais; 3) m~triculas de e encom1._ndlç ··ou padrões de tribu-
Mitayos: indígena sujeito aos encargos da mitu, sendo esta "divisão
que se fazia dos povoados indígenas para tirar o número correspondente
• N. do T.: Todos os grifos são do traautor - assinalam palavras sem
correspondentes diretos em português e com importante conceito sócio- dos que deviam dese~penhat .trabalhos públicos./Tributos pago pelos
histórico na América t>spanhola. Em .benefício dos leitores não especiali- índios do Peru•.
zados, transmitiremos tais conceitos, segundo o Dicionário da Real Aca· • N. do T., Protomedicato era um tribunal constituído pdos protomé·
dcmia Espanhola (18.• ed.): · dicos. (médicos nomeados pelo rei para constituírem o proromedicaro) e
E11.comienda: povoado americano concedido a um dignitário ("encomen- examinadores que tinha a missão de determinar •e reconhecer a· suficiêncil1
dr:ro" l para qüe cobrasse triooto a seus. 1tloradores (indígenas, já se vê). dos . candidatos a médicos, concedendo as licenças necessárias para que
Co111amlancia: província ou comarca militarmente 'sujeita a um coman· praticassem a medicina. .
dante militai', subdivisão de um departamento marítimo. ** N · do T.: O original mimeografado registra a palavra dis~enso, pro·
Prutoculo: série ordenada de escrituras originais e outros documentos vawehnente em lugar de disen.so (conformidade das partes em dbsolver
que um notário ou escrivão autoriza e custodia com certas formalidades. ou tornar sem efeito <> contrnlo ou 'lbrigação 1:n11x: dâs CllistcrHe).

14~
é possível desprezar tal tipo de informação: na Guiana Francesa, dida díi área habitada, da quantidade e dimensões das casas; estudo
por exemplo, já não existem os arquivos paroquiais antigos e as
da tecnologia e da alimentação; análises estratigráficas, etc.; 3)
fontes essenciais ao estudo da população, nos séculos XVII e
estimativas de geógrafos, baseadas no estudo das técnicas e dos
XVIII, são justamente os informes de governadores e outros fun-
cionários e os censos primitivos, além de várias fontes de tipo recursos disponíveis e em comparações com populações semelhan-
qualitativo sobre, por exemplo, mortalidade diferencial (infantil e tes da atualidade. ·
geral) segundo os distintos grupos étnicos-sociais (colonos, índios, Também, no que se refere ao. período do contato inicial eu-
escravos, libertos). O comentário do ordonnateur Malouet sobre ropeu, os esforços se concentram na avaliação da populáção indí-
o censo de 1777 permite, inclusive, fazer-se uma distribuição quan- gena em 1492, no momento da descoberta, e sua redução catas~
titativamente precisa da massa escrava em dois grupos - escravos trófica a partir daí - do contato direto, ou por intermédio de
ativos e não ativos - e facilita um conhecimento minucioso da .outros grupos indígenas, com os ibéricos e outros europeus. Sendo
quantidade da mão-de-obra escrava empregada pelos setores de pouco numerosos os dados disponíveis e os estudos nacionais já
atividade econômica e não econômica. ~• realizados, as técnicas usadas implicam, sempre, alta dose de ex-
No conjunto, as mais importantes fontes de cuja exploração trapolação - de um ano, ou período, para outro, através de pro-
ocupar-nos-emos pormenorizadamente mais adiante, inclusive quan- jeçóes e ajustamentos, ·de uma região para outra - o que torna
to às precauções necessárias, são os registros paroquiais e os di- muito discutíveis os resultados alcançados. Os estudos mais sérios
versos tipos de censos ou contagens primitivas. e interessantes sobre esta fase. são os da escola de Berkeley ( Sauer,
Cook, Borah e Simpson) sobre a região central mexicana.
Com o advento deste período prato-estatístico toma-se possí-
29 Metodologia e problemática ~8
vel a realização de pesquisas a propósito de aspectos bem mais
No que se refere às populações pré-históricas da América, variados e importantes do que uma simples estimativa ele efetivos
os especialis~as que as pesquisam são de dois tipos: 1) biogeó- globais: 1) o estudo do movimento vital, a partir dos registros
grafos e paleobiólogos; 2) antropólogos e. arqueólogos. Os mé- paroquiais de batizados, casamentos e enterros, e a combinação de
todos que empregam giram principalmente em torno de tentativas tais fontes com outras (censos, por exemplo) para determinar
no sentido de determinar a quantidade de habitantes em diferentes o estado de uma população em diferentes m'omentos de sua evo-
regiões e em diversas épocas. lução; 2) estuda das epidemias e do C?ntexto sócio-econômico
Tais métodos são variados: 1) estudo das alterações causa- em que se desenvolveram; 3) estudo dos movimentos migrató-
das pelos grupos humanos pré-históricos no complexo vegetal e rios: imigração européia, tráfico de escravos negros, migrações
animal (cujas composições de espécies, conforme as condições de locais (concentrações da população indígena realizadas por civis
solo e clima, são conhecidas), o que permite ter-se uma idéia so- ou clérigos; redistribuição da população no espaço; urbanização,
bre a densidade das populações; 2) técnicas arqueológicas: me- etc.); 4) estudo da mestiçagem e da composição étnico-social da
população em várias épocas, etc.
Os métodos empregados são, geralmente, os desenvolvidos pe-
27 Cf. Ciro Flamarion S. Cardoso, La Guyane française (1715·1817): As·
pects économiques et sociaux. Contribution à l'étude des société$ escla- los historiadores demógrafos europeus, adaptados - no entanto
vagistes, l'Amérique, Paris, 1. H. E. A. L. e Universidade de Paris X, 1971, tomo - às peculiaridades da documentação e das estruturas sociais da
II. pp. 471-497 (tese datilografada). Na lista de fontes indicada por Mellafe América Latina. Voltaremos ao tema no final deste capítulo, em-
faltam os registros de casamento - cartoriais e paroquiais - para o
estudo das migrações (quando indicam a origem dos cônjuges). bora limitados, apenas, a algumas das categorias passíveis de pes-
28 W Borah, NLa demografía histórica ... ", artigo citado. quisa.

146 147

1

3. AS GRANDES LINHAS DE EVOLVÇÂO DA POPULAÇÃO resentadas por alguns autores - além de l 00 milhões - refle-
LA TINO-AMERICANA ( 1492-1900) ap claramente· a influência das admitidas por Borah, Cook e
tem .. . . .
Simpson para o México .central, em l 5 19 ( est1mat1vas q~e varia-
ram de 11 a 30 milhões e se fixaram em pouco mais de 25
milhões)· 30
Não buscaremos descrever aqui a história demográfica da
América Latina, mas somente mencionar seus grandes traços, fato-
res e fases principais, com base em sínteses já existentes. 2 9 29 A catástrofe demográfica ( 1492-1650)

Não há qualquer dúvida quanto à realidade desta catástrofe.


o que é discutido são as dimensões, causas e a duração da re-
1<.> População indfgena da Á mérica em 1492 dução populacional. Sobre o primeiro ponto, tudo depende da
idéia que se faça da magnitude da população em 1492. As estima-
tivas sobre a intensidade do despovoamento são, portanto, neces-
A idéia que tivermos sobre .os efetivos populacionais indíge-
nas no moinento da Descoberta afetará, evidentemente, toda a ava- sariamente variáveis. É possível que pelo ano de 1650 a população
liação da história demográfica posterior a 1492. Pois bem, ainda Jatino~àmericana tenha alcançado seu ponto mais baixo: reduúda
hoje .há opiniões diametralmente opostas a propósito. Se consi- a pouco mais de 1O milhões (ou menos ainda, segundo certos
derarmos apenas os estudos e estimativas feitas em nosso s~culo autores). Porém, há carência de estudos regionais: 'ºs que existem
veremos que . as cifras variam de 8,4 milhões ( Krõber, em 1939) mostram, todos, uma queda realmente àssombrosa - de uns 50%
até 90 a J 11 milhões ( Dobyns, em 1966) . Como a documenta- para EI Salvador, entre 1524 e 1551, por exemplo. Quanto ao
ção sobre a qual os cálculos estão baseados é, necessariameóte, caso do México central, Borah e Cook propuseram as seguintes
insuficiente e descontínua, as posições discordantes manter-se-ão cifras (em milhões):
por muito tempo ainda, ao que parece. É certo, entretanto, que
muitos especialistas tendem a optar, cada vez mais, por estima-
tivas situadas em posição intermediária entre os extremos citados; Anos População
quer dizer, consideram o volume da população em 1492 como
compreendido entre 40 e 50 milhões, ou pouco mais. Esta po- 1519 25,2.
sição, defendida há décadas por Spinden, Paul Rivet e Karl Sap- 1532 16,8
per, desacreditada nos 25 anos seguintes a 1930 ( Alfred Krõber, 1548 6,3
James Mooney, Angel Rosemblatt), volta a encontrar defensores 1568 2,6
(como Goran Ohlin, em 1965). 1580 1,9
1595 1,3
o fator mais inportante dentre os provocadores de crítica
1605 1,0
às posições •·minimalistas" foi, sem dúvida, a atividade dos pesqui-
sadores da escola de Berkeley, aludidos acima. As cifras hoje

29 N. Sánchez·Albornoz La poblaciô11 de América Latina, Madrid, Alianza (Ver Figurm· 9 a 11)


Editorial !973; Jiílio Morales, Notas sobre la evolución histórica de la
pob/ació~ de América Latina hasta el sigla XIX, Santiago do Chile,
CELADE; 1970, (mimeografado); para as estimativas relativas a 1492, tam- 30 Cf. Piem;: Chaunu, "La population de l'Amérique +ndienne, Nouvelles
bém Borah, "La demografía histórica ... • art. cit., pp. 75-77. recherches", em RevttP ffistnriqtte, 1964.

148 149
Há alguns estudos interessantes sobre a imigração européia e
Que poderia ter causado uma catastrofe de tais proporções'!
g ra embora reine ainda grande incerteza quanto à importância
Afastando, por excessivamente ·simplista, a "teoria do homicídio" ne
de tais ·
' contribuições, tema a que voltaremos adiante ( V er F'1g. 12 ) .
baseada em Bartolomeu de Las Casas (matanças, crueldade, ex-
trema exploração, etc.), os autores de hoje orientam-se para ex-
plicações mais elaboradas: o complexo trabalho/ dieta/ epidemia d,. 39 Recuperação e aumento (1650-1900)
que fala Mellafe; o complexo desengano vital/reacondicionamento
econômico e social/ epidemias de Sánchez-Albomoz e Moreno. A A maioria dos especialistas admite que depois de 1650 a po-
quebra de ·todos os valores culturais dos indígenas pela conquista
- gerando o "vazio continental" a que se refere Laurette Séjour-
pulação latino-americana começou a recuperar, aumentandose
desde então a ritmos variáveis conforme as épocas. Por volta de
né 3 1 - sua transformação em rebanho sem posses e superex- t 900, se quisermos saber se a aludida população já havi? recup:ra-
plorado, as mudanças radicais i.ntroduzidas no sistema social e do ou superado os efetivos de t 492, teremos de convir que isto
econômico, as enfermidades que vieram com os europeus e pai:a dependerá, naturalmente, do volume atribuído à população indígena
as quais os indígenas não tinham defesas biológicas (tifo, febres nesta última data.
diversas, varíola, peste bubônica ... ) , bastam para explicar a re-
Julio Morales resume em dois quadros as posições de diversos
dução drástica de sua população, que por muito tempo não pôde
autores sobre a evolução absoluta e relativa da população total
ser compensada pela chegada de europeus, pela imigração forçada
latino-americana entre 1650 e 1900. (Quadros 4 e 5). ·
de africanos e pelo advento de uma população mestiça. ·O fator
de maior importância foram as epidemias, mas a superexploração,
a miséria e a subalimentação faziam as massas nativas ainda mais
vulneráveis à mortalidade. Figura 9:
Quase todos os autores admitem que por meados do século Evolução da população de Teot/apan (México) - (900-1940)
XVII a queda populacional terminou. Nesta época, a América
Latina tinha, talvez, uns 2,2 % da população muf!dial. Como re-
sultado da redução dos efetivos ipdígenas, da chegada de europeus 500
e africanos e da mestiçagem, a composição étnica do conjunto
da América Latina seria, em 1650, segundo Rosemblatt:
400
•• ·"""'
•• ••
rll
a;
'º 300
Brancos 6,4% :5
~


••
..•
·5
Negros,
Mestiçós
7,3%
3,5% E
200
. •
• " •' ••
\

Mestiços de cor
lndios
2,4%
80,4%
a;
o
·=e; 100

••' .•
••

.· '
••••• '
\ '-. /V
.!
:::s •• •
Q.
o o •
Q...
900 1100 1300 1500 1700 1900
31 Laurette Séjourné, América Latina, 1. Antiguas culturas precolombinas,
trad. de J. Oliva de Coll, coleção de História Universal Siglo XXI, 1971,
pp. 85-91. FONT.E: Reinhard, Armengaud e Dupâquier, op. cit., p. 142.

150 151
Na realidade, o aumento ubservado entre 1650 e 1900 rela-
Figura 10:
ciona-se, exclusivamente, aos cfi.:itos diretos e indiretos da imigra-
I!' ,
,,1' ção européi<! e negra - e à mtstiçagem; os . índios diminuem
:,i ,' E1·0/11çàv das populações branca e indígena do
sempre, cm termos relativos e absolutos: Rosemblatt calcula
li::' México Central úmido
que por volta de . 1825 os branrns e negros,_ conjuntamente, .re·
!ti
l) .'. 1 1
presentavam uns 40% do total da população da América Latina,
05 mestiços e mulatos uns 30% e m índios outros 30%. Os
8- '. População
indígeria
800 imigrantes europeus e seus descendentes não se acostumavam aos
7 ' 700 climas dos altiplanos muito elevados (onde se fixaram, principal-
' /
ó ' V
600 mente, as altas culturas indígenas) e procuravam regiões mais
'' População

"..
5 500 temperadas e baixas. Os escravos riegros destinavam-se; sobretudo,
branca ,,/
..
.- .. ....
4 400 às zonas de plantações tropicais. Enquanto em 1492, qualquer que
/V
.\
2
'••,
.. ,. .. ./.· ../ ... - 300·
20().
seja a estimativa admitida· da população, esta se cone.entrava prin-
cipalmente nas duas áreas das altas culturas pré-colombianas (Meso-
1
- ;:.:.; 100 América 'C região andina), que abrigavam pelo menos uns 70%
do total, em 1900 ·as referidas zonas somente contavam com uns
-
1:>20 16011 -1700 1780•
40% dos efetivos totais da América Latina e a mesma percen-
H\gem localizava-se, também em 1900, ·só em três países da costa
atlântica (Brasil, Uruguai e Argentina). Em conjunto, a redistri-
Figura 11: buição da população global na área latino-americana deu-se do
norte e do oeste para o leste.
O gado expulsa o homem (1'vféxico Central) No caso da América Latina, é< fondamental o estudo da imi•
gração: responsável exclusiva por um certo tempo e, em seguida,
milhare, de brancos sempre muito importante como fator do aumento e da composição
IOO - dell'.nas de milhares de bmino~ ...___,._____,_ __.. 100 populacional do subcontinente. Sobre a quantidade de europeus e
"• • • • • centenas de milhares de índios de negros vindos para a América, as estimativas são extremamente
90 .......... centenas de milhares de ovinos 9o
80 1. branco = 11~ bovinos = 100 ín. l!O
variadas, o que reflete sérios . problemas .de documentação, sem
1
70 d111s = 100 ovinos 70 dúvida, e mais ainda a ausência de sólidas pesquisas regionais.
60 -+""r..:-,.+-~-t---1---1--4"--,lo!:...........+----l..~~ 60
.. Por exemplo, a r~speito dos. africanos transportados pelo tráfico
~ - .. ~ 50
durante todo o período em que este perdurou (grosso modo: 1500·
40 ......... 40 1850), a cifra admitida até bem pouco - 15 milhões - foi
rebaixada para 9,5 milhões, em um trabalho recente. 32 Na se-
30 30
gunda metade do século XIX deu-se o começo de um grande
20 .... ··--- 20 movimento migratório, basicamente de europeus, que afetou vários
10
..
, .- .........
10
países latino-americanos; mas este movimento, ocorrendo . em um
1540 1550 1561) 1570 1580 1590 1600 1610 1620 16'30

32 Cf. Philip D. Curtin, The Atlantic Slave Trade.: A Census, Madison,


FONTE: Fig. 10 e 11: Fréderic Mauro, L'Expansion européen- 1969. Sobre a mestiçagem ver, principalmente, Magnus Morner, La mezcla
ne (1600-1870), Paris, P.U.F., 1964, p. 337. Mauro de fazas en la hsitória de América Latina, trad. de J. :l?itagorsk,y', Buenos
baseia-se em trabalhos de W. Borah e L. Simpson. Aires, Paidós, 1969.

152 153
período já plenamente estatístico, em geral, pode ser mais facil- .mente" pela presença de crises demográficas relacionadas a epide-
mente estudado do que a imigração colonial. mias e fomes generalizadas. :14
O. comportamento das variáveis rei.ativas ,ao movimento in• Entretanto, as diferenças são igualmente importantes.· Em se
terno da população latino-americana entre 1650 e 1900 é difícil tratando dos países latino-americanos, é impossível fazer-se a abstra-
de generalizar, primeiramente devido à grande heterogeneidade ção, em certas circunstâncias, dos movimentos migratórios, o que
regional, depois . porque os estudos de casos já empreendidos são é possível no caso da França moderna, por exemplo; a qualidade
poucos. As tentativas de análise global para o conjunto da Amé- dos registros é quase sempre· inferior à dos europeus; a~ contrário,
rica Latina têm de basear-se, dada a escassez de monografias ·a natalidade ilegítima sempre foi bem superior. A estrutura familiar
locáis, em artifícios estatísticos, como o de supor uma população é diferente, nos dois casos. A escravidão e a mestiçagem, as dife-
teoricamente estacionária (em que os nascimentos e óbitos. se equi- renças étnico-sociais, em geral, complicam o :quadro demográfico
libram}. a:i Entre 1650 e 1750, uma análise deste tipo como a da América Latina. Afinal, a catástrofe demográfica relativa à
população indígena americana é algo que não encontra precedente
feita por J. Mo rales, - sugere uma taxa de natalidade anual de
ou paralelo na história da Europa.
cerca de 50%, uma taxa de mortalidade igual ou levemente maior,
Se considerar:mos, para concluir, o fenômeno conhecido por
e uma taxa média de imigração de 4%, pelo menos. Depois, a partir
"revolução demográfica" veremos que aqui atrasou-se em quase
de 1750, provavelmente dá-s~ uma queda da taxa de mortalidade
dois _séculos relativamente à Europa. ocidental, pois começou, em
e um aumento da taxa de fecundidade, devido a melhores condições
de vida. Desde então o crescimento deixou de depender só da imi-
gração.
Figura 12:

4. CONCLUSÂO e::J"'
~c::i 111r- dr 50
~6e5l•IClll
m:lil:J HIOl•l541
~tk251•5UO
1111JHSOl11.llll0
-111ai1Ml.G80

. .
Participação controlada do1· divenos territc1rios espanhóis (provín-
cias atuais) na emigração para a América, no período de 1509-
Se compararmos a história demográfica da Europa Ocidental . 1534. Este mapa mostra como a corrente foi um fato exclusiva-
de -ancien régime com a da América Latina, entre o início de sua mente castelhano: os ~úditos da Coroa de Aragão deixaram-se fiCar
colonização efeti~a e o fim de seu período documentário proto- à margem do. fenômeno.
estatístico - as duas datas variáveis de país a país - constatare-
mos algumas importantes semelhanças. Nos dois casos, os regis- Fonte: Jordi Nadai, La población espanola, Barcelona, Ariel,
tros paroquiais constituem as fontes essenciais da pesquisa, o que 1971, p. 66
gera uma convergência dos métodos aplicáveis. Além disto, tam-
bém em ambos os. casos, o r~gime vital caracteriza-se, principal- 34 Cf., para o caso brasileiro, Katia Maria de Quei-roz Malloso e Johildo
L. de Athayde, Epidemias e fl11111ações na Ba11ia nv século X l X (informe
mimeografado, Paris, outubro de 1971); Lisanti e Mariá Luim Marcilio, infor-
33 Le Concept de population stable: Applictition à l'étude des. populations me cit.; Altiva P. Balhana e outros, Estudos de demografia histórica no Para;.
des pays rn1 disposant pa.s de bonn·es statistiques démografiques, Nova ná <informe datilografado, Roma, setembro de 1972) . Ver- também N. Sán-
Iorque, ONU, 1965. chez-Albornoz, "Les registres paroissiaux ... " cit.

154 155
ll!"i''

nosso subcontinente, entre 1920 e 1930. Além disto, ele se apre- Figura 13:
sentou, na América Latina, revestido de características distintas -
e muito - das verificadas na Europa, balizadas por três fato- A revolução demográfica em uma comunidade predominantemente
res fundamentais, que são: 1)' o efeito da imigração: 2) a queda indígena da Guatemala
brusca e radical da mortalidade; e 3) a manutenção - e às vezes
o aumento - da natalidade. a:1 (Ver as Figuras 13 e 14)

Evolução da população /atino-americana em valores absolutos


(milhões) e relati vos ( % )

t\,\úlli~1as gra~d~s ~~i-~emias ocorreram em 1916-7: uuíola, 1:ripe e!itpanhola.


QUADROS 4 e 5 .... l \lt.IHJ llE NASCIMENTOS E ÓHITOS E TOTAi. llA POPl'l.A(ÀO
~ll'ólcll'JOS DE osn:N('Al.('0 E PALESTINA DE l.OS AI.TOS ~ Umero de habi-
t1rnle~

Ano Mellafe Rosemblatt Willcox e. Saunders Ohlin Durand Guatemala. 1880-1960

21.flOO
1650 11,4 12 7 12 10 - ·- População total X Censo Olici1.t da Guatemala
"-·--- Óbitos O População, segundo as Nações Unidas
16
·~
1750 19,2 13 10 11 ,úmero de nas-
imcntos e óbiros
........ Nascimenlos (' l>opulaçào, M"gundo Colher

1800 19 23 19 24 18.000

1850 37,6 33. 33 33 35 38


1900 63,0 "63 63 63 63. 74

9.000
Em relação à Em relação às áreas
populaÇão mundial de cultura européia

Ano Willcox C. Saunders Ohlin Durand Willcox C. Saunders Ohlin

1650 1,5 2,2 1,8 6,2 10,2 8,8


1750 1,4 l ,5 2,1 2,0 6,4 7,0 9,5 1880 1900 1910 ·1920 1930 1940 1195tl ·1960

1800 2,5 2,1 2,5 10,3 8,7


1850 3,0 2,8 2,6 3,0 9,9 9,9 10,4.
1900 4,0 3,9 3,8 4,5 11,0 11,0 11,0

Fonte: Juio Mloraes, Notas sobre la evolución histórica de la


pob/ación de América Latina hasta el siglo XIX (cf. nota
n9 29), p. 3.
Fonte: O. H. Horst, "EI espectro de la vida y d~ la muerte en una
35 Cf. N. Sánchez-Albornoz e J-L. Moreno, La població1;1 . .. , dt. pp. 132- comunidad de los altiplanos de Guatemala''.i_ em Cuadernos
155. de Antropología, Guatemala, junho de 1966, p. 25.

156 157
1

i
1 aos listas e descrições do conteúdo dos arquivos paroquiais para
i'
Figura 14: ºº ' .
1

orientar pesqmsas f ~turas. 36


A escolha da paróquia (ou das paróquias) a investigar deve
A Revolução Demográfica no México
50 submeter-se a vários critérios:

45 I) suficiente continuidade dos registros respectivos (mínimo

40
,,'
.. de lacunas) ;
2) representatividade no contexto econômico do país ou região
,, , na época es_tudada;
,. 3) representatividade quanto à estrutura social do país ou
,'' _Natalidade
,, região (que estejam representados todos os grupos da po-
, ,:.' -·-Mortalidade / pulação).
. . . /<'·, ----População
Na América espanhola era freqüente, na época da colônia -

-------· -
. ,--- _,,.'
.,
.,.,, principalmente nas zonas urbanas - existirem registros separados
para os grupos étnico-sociais: havendo, às vezes, só dois livros de.
........... cada categoria de registros - um para os espanhóis e outro para
. 1805-10 1821-25 1938 1946 1955 1965 as demais categorias da população - em outros casos havendo
livros separados para os espanhóis, os fndios, os escravos e as "cas-
Fonte: P. Salles e J. Wolff, op. cit., p. 176 tas"; mas, também pode acontecer que toda a população esteja
registrada nos mesmos livros. No caso brasileiro., mesmo nas zonas
D. A exploração dos registros paroquiais: 1 ) gene- urbanas, não há qualquer norma a respeito: em Salvador (Bahia)
raliqades; o método das recontagens globais por exemplo, toda a população está registrada conjuntamente; em
'·,
r ( aruí,1isc agregativa) outras cidades houve registros separados (no Rio de Janeiro, livros
diferentes para livres e escravos) .
Quando a população está registrada em separado, pelas cate-
1. GENERALIDADES gorias étnico-sociais, isto constitui uma circunstância favorável, por-

36 Exemplos: Altiva P. Balhana, Arquivo da paróquia de Santa Felicidade,


Curitiba, Universidade Federal do Paraná, 1971; a referida autora e outros
. O primeiro passo da pesquisa fundamentada nos registros paro- professores da universidade brasileira · do Paraná chegaram a um total
quiais deve ser sua localização, ordenação (se necessário) e catalo- de nove publicações relativas a arquivos paroquiais do Estado do Paraná;
Kátia M. de Queiroz Mattoso, Fontes para a história demográfica da cidade
gação, o que permitirá avaliar os dados disponíveis nas paróquias do Salvador, na Bahia (informe datilografado, Roma, setembro de 1972);
de um país ou região: período abrangido, estado de conservação Maria Bárbara Levy, informe cit. e importante;;, também, multiplicar a pu·
dos livros, quantidade' e qualidade da informação que podem pro- blicação de tipologias das fontes disponíveis: cf. R. Mellafe, op. cit., Vários
porcionar, lacunas, etc. Só um bom conhecimento do estado da autores, Fuentes para rm estudio de demografía histórica de Chile en el
siglo XVIII, Universidade de Concepción-CELADE, s/data; N. Sánchez-Albor-
docum~ntação permite elaborar as fichas, para o recolhimento e o noz e Susana Torrado, uPerfil y proyecciones de la demografía histórica en
processamento dos dados, realmente adequadas às necessidades la ArgentinaH, em Anuario dei Instituto de lnvestigacjgnes Históricas (Ro-
do caso específico em estudo. f muito útil a , publicação de catá- sario) n.• 8, 1965, p1>. 31-56.

158 159
2\1 não estudar paróql!ias isoladas: os resultados assim obti-
que permite um estudo demográfico socialmente diferencial: as dos terão um resultado apenas duvidoso, as conclusões
variações no compórtamento demográfico destas categorias são serão todas provisórias. Se os recursos não forem abun-
muito grandes. (V<;.>r aFIG. 15). Também são consideráveis as dantes, o melhor será multiplicar sondagens bem feitas a
diferenças do grau de confiabilidade dos dados: os espanhóis (mais propósito de várias paróquia:; de uma única zona;
urbanos e mais "cristãos") constituíam a parte melhor registrada 39' não esquecer a grande importância das migrações, que po·
da população colonial; os escravos eram registrados mais ou menos dem ter grande peso explicativo no atinente aos movi-.
bem, depois os mestiços e, por último, os índios (globalmente mais mentos constatados pelos registros; é preciso comparar
rurais, muitas vezes só nominalmente convertidos). A qualidade o que estes nos apresentam com os dados de outros tipos
geral dos registros depende muito, além disto, do grau de cultura de fontes (list.as, censos, etc.);
e de lntéresse dos padres encarregados de mantê-los, sendo muito 4'? sejamos mais historiadores-demógrafos do que demógrafos-
variável. · historiadores: as variáveis demográficas não deverão ser
A aplicação adaptada dos métodos elaborados na J;,ur.opa aos estudadas exclusivamente em si me~mas, ou umas em re-
arquivos paroquiais latino-americanos é possível; porém exige um lação às outras; melhor será relacioná-las com todo o
certo cuidado. No caso europeu, a igreja . rural era um ponto de contexto histórico (econômico, social, político, das men-
convergência de uma comunidade; na América Latina, nas regiões talidades, etc.); mesmo porque, sem isto a verdadeira
de alta densidade indígena, por muito tempo foi o símbolo da im- explicação se tomará impossível.
plantação . de um culto estrangeir~. Mais ainda, muitas vezes a
extensão das paróquias latino-americanas era enorme, de modo Figura 15:
que só aparece regularmente registrada nos ljvros a população que
habitava o núcleo onde estava situada a igreja paroquial; o registro Pirâmides de idades em Jujuy (A reentina), por. grupos étnicos,
das populações mais afastadas - às vezes superficialmente conver- em 1778-1779
tidas - dependia da maior ou menor atividade missioneira do
vigário. Não levando isto em consideração, um pesquisador pode ld•dn ldad•s

chegar a pensar que um volume mais importante de registros em


dado período indique, obrigatoriamente, o aumento da população - :iai~~~.I ~~al:~M
70-9
60-9
5().9
.
70-9
60-9
5-0-9
40-9 40-9 .
quando também pode indicar livros mais zelosamente mantidos, devi- 30-9 30-9
do a uma substituição do cura ou a instruções do bispo. 37 20-9
10-9 .
20-9
10-9
. .

Em resumo, é importante ter presentes, sempre, quatro regras M · , M ,


10 5 Espanhóis 5 10 15% IS ltl 5 Mestiços S IO 15 %
básicas, cujas duas primeiras estão indicadas em manual já citado: 3 ª.

1<.> B necessário limitar cautelosamente os objetivos, para só ldadts

À ~~~'1
chegar a resultados seguros (regra que também vale, evi-
dentemente, para qualquer pesquisa);
40-.9
30-9 •
20-9
10-9
0-9
37 Cf. N. Sânchez-Albornoz, "Les registres ... " art. cit. e o excelente arti- 15 10 .
lndios
s JO 15 %
go de Maria Luiza Marcílio "Dos registros paroquiais à Demografia Histórica
no 6rasil", em Anais de História, 1970, pp. 81-100.
Fonte: Guillaume e Poussou, op. cit., p. 107
3& Guillaume e Poussou, op. cit., p. 82.

160 161
Observação:
alterações pela leitura das curvas elaboradas, mas muitas vezes não
Notar a mortalidade (muito grande) de crianças entre os in- saberá o que as produziu (isto acontece principalmente nas evolu-
dígenas o grupo menos favorecido da população; a situação dos ções de longa duração).
mestiço~ já é melhor. No. caso dos espanh~is, a importância da Afinal, não é impossível combinar o estudo em extensão, que
imigração é observada, facilmente, na pirâmide - na faixa dos 20 constitui a análise agregativa, com o estudo em profundidade repre-
sentado pela reconstituição de família (sempre que este último não
aos 29 anos.
seja impraticável, em muitos países latino-americanos, por motivos
de que mais tarde nos ocuparemos): as contagens globais podem
servir para localizar as paróquias e os períodos que exigem ou
justificam uma análise mais profunda e dificil.

2. O MÉTODO DAS CONTAGENS GLOBAIS (ANÁLISE


AGREGATIVA, OU "MÉTODO INGLÊS"): VANTAGENS
E DESVANTAGENS. 39

3. PRIMEIRA ETAPA: COLETA DOS DADOS


o método de que primeiramente trataremos baseia-se na cole- EM FOLHAS ESPECIAIS
ta anônima dos dados contidos nos registros de batizados, casa-
mentos e óbitos, sem que o pesquisador considere a identida~e das
pessoas mencionadas, e no tratamento deste material para os fms da
história demográfica. ·
As vantagens do método de contagens globais são as seguintes:
1) permite ·pesquisar muito mais rápida e facilmente e, por tanto,
multiplicar os estudos de paróquias; 2) deixa menos informações Pode parecer, à primeira vista, que a finalidade desta etapa
de lado (no método de reconstituição de famílias os dados que inicial - a obtenção de uma espécie de cópia ou duplicação homo-
não podem ser relacionados a alguma unidade familiar conhecida geneizada dos livros de registros - é supérflua. Porque não pre-
não são considerados); 3) permite tomar conhecimento de grande encher logo as fichas-resumo de que falaremos a seguir, fazendo
quantidade de informações essenciais. . . os cálculos necessários a partir, diretamente, das atas manuscritas
As desvantagens consistem em que, sem fazer a reconst1tu1ção de batizados, casamentos e enterros, assim como estão nos livros
de famílias que é o centro do "método francês" (Fleury-Henry) será paroquiais? A experiênciá ensina que este modo de agir, longe de
impossível 'chegar a conhecer alguns fatos demográficos essenciais: poupar tempo, é uma fonte de graves equívocos e que uma conta-
a estrutura-familiar, os inervalos intergenésicos, muitas vezes a gem feita desta maneira além de lenta é incômoda. Freqüentemente,
idade no momento do casamento, ou da morte, etc. Pois bem, sem certas altas estão desordenadas nos livros; ademais, há ocasiões em
conhecer tais fatos pode ser impossível explicar muitas mudanças que se apresentam problemas de leitura ou atas coletivas (por exem..:
fundamentais no comportamento das três variáveis básicas: nasci- pio, várias crianças batizadas em uma visita missionária do vigário
mentos, casamentos e óbitos; e o pesquisador poderá constatar tais a regiões longínquas de sua paróquia, com -registro conjunto) ou,
ainda, atas mal separadas, etc. Ao contrário, dedicando o tenipo
passado no arquivo paroquial à coleta dos dados em folhas ade-
39 Nossa apresentação do método de contagens globais baseou-se em D.E.C. quadas e homogêneas, o pesquisador poderá, depois, em sua casa
Eversley, "Exploitation of Anglican Parish Registers by Aggregative Analysis".
en An Introduction .. ., cit. pp. 44-95; e em M. Fleury e L. Henry, Nouveau
ou escritório, tranqüila e facilmente, processar os... dados recolhi-
manuel..., cit., pp.. 35-70, 95-113. dos com menor possibilidade de erro.

t6l 163
~'

f: importante ter um conhecimento bastante completo dos Figura 15-A


registros, antes de elaborar os modelos das folhas que recolherão
os dados. Por exemplo, se ao planeja-las só nos fixarmos nas pri- f t anônima de dados relativos a. batizados, dabo-
foflza para co e a
meiras atas dos livros, bem pode acontecer que em fase ulterior raJ.a por Ciro F. S. Cardoso para pesquisas em arquivos paroquiais.
do período estudado as informações se tornem Il1ais ricas, com o centro-americanos..
que as folhas já não estarão adaptadas à nova situação. Recipro-
camente, é inútil sobrecarregar as folhas com colunas que, para
todo o período, ficarão vazias por falta de dados. As figuras 15
e 17 reproduzem as folhas de coleta de dados relativos a batiza-
dos, casamentos e óbitos que elaboramos para uma pesquisa em
paróquias da América Centra!, sobre o século XIX. Reproduzimo-
las aqui só a título de sugestão, pois é necessário que o pesquisa-
dor_ saiba, em cada caso, adaptá-las às peculiaridades de seus re-
gistros; por exemplo, para a época da colônia pode fazer-se preciso -e "'
...;:"'º...."'"'"'
'
a previsão de colunas em que sejam anotadas informações sobre a E
condição das pessoas ·mencionadas nas atas - livre, liberto, es~ ·- "'
e
~
cravo, índio tributário, etc., - desde que estas informações se apre:. .."'"' . o

sentem. É conveniente que as folhas de batismos, casamentos e


enterros tenham cores diversas, para evitar qualquer confusão -
="'
o.~
"'
e que sejam numeradas. Além disto, no alto de cada folha devem
ser an9tados os dados referentes à paróquia, o ano e, eventualmente,
as condições do livro de registro (possíveis lacunas, por exemplo). ·;"'
Q'
l/l ·;:"
Elaboradas as folhas, é preciso criar um sistema de codifica- ...
·O
~
ção para preenchê-las com poupança de tempo. A seguir daremos "'
Q..

algumas sugestões a propósito, na maioria das vezes seguindo os •.!. •.!. QJ

passos de Fleury e Henry. "<!"~E 1l


...J ·;: -=
~ .
o
"
rJJ
~9 - O/)servações gerais sobre o modo. de prt.,, tcher as
folhas de coleta de dados <>.
"'e o
.... ..,o =
Todas as datas devem ser transcritas em algarismos (os 1J,1eses "'.§"'
indicados com os números de 1 a 12). Os dados referentes à idade õí "'
Q
também serão transcritos em números inteiros exclusivamente, quan-
do se tratar de anos; tratando-se de idades indicadas em meses, :e
"' .
...........
'º....
ou em dias, é preciso acrescentar letras aos algarismos: por exem-
plo, "20 anos aproximadamente" é transcrito simplesmente com .- '" ..,"'
o"'
e .e "
20, 5 meses, como 5 m.; 10 dias como 10 d.; etc. Sendo de o.rdem
mais geral as informações (ex.: inocente, adulto, criança) 1serão
<O Q
'"
transcritas mediante letras: 1 para inocente, C para criança. A

164 165
Figura 16: Figura 17:

Folha para coleta anônima dt:' dados relativos a casamen.ws (mesma folha para recolhimento anôn.'mo de dados relarivos a óbitos (mes-
observação da Fig. 15) ma observação da Fig. 15)

..... .....
.
~

- .. !!
Q

166 167
!'!111!!11''
·~. '•
. ~· .

para adulto, etc. Quando em uma ata estiver faltando informação 39 - Folhas relativas a casamentos
sobre a idade colocar XX no espaço correspondente.
As informações sobre etnia, profissão, condição, paróquia OJJ Nestas, cada ata ocupará duas linhas, uma para o marido e
Jocâl de origem devem ser transcritas integralmente. E possível usar outra para a esposa: porém só na primeira será anotada a data.
uma abreviatura para significar "desta paróquia" (d.p.), indicando,
na parte reservada às observações, as indicações que surjam even- _ Estado civil anterior ao casamemo: S (solteiro, a) V
mente (aldeia, localidade. etc.). (viúvo, a) D (divorciado, a) XX (indeterminado; usa-se
um duplo X porque um único, mal feito, poderia ser con-
fundido com um V). São considerados solteiros os cônju-
2Q - Folhas relativas a batizados ges mencionados como ''filho (ou filha) de ... ", se não
for mencionada sua· condição de viúvo (a), por exemplo.
- Sexo: M (masculino) ; F (feminino) ; X (não indicado, / Esta última observação é também aplicável às atas dos
impossível de determinar). · enterramentos.
- Legitimidade: L (legítimo); J '(ilegítimo; é melhor não usar _ Jnfomu.içclv sobre os pais: ss (pai e mãe vivos no momento
· a letra I que às vezes pode ser confundida com um 1 do casamento); ds (pai morto, mãe viva); sd (pai vivo,
manuscrito); X (impossível de determinar). niãe morta); dd (ambos mortos). Estes dados somente
- Etnia e condição: havendo dados a respeito, é melhor trans~ são anotados a respeito do,s que se casam pela primeira
crevê-los por extenso, salvo se os registros forem tão bem vez.
conhecidos que se possam prever todos os casos possíveis: - Idade: havendo dados sobre a idade dos cônjuges, oü sobre
assim acontecendo, pode-se elaborar um código para estes a data de seu nascimento, devem ser anotados, reservando-
pontos, com. o cuidado de não usar símbolos já empre- se para isto colunas correspondentes na folha (a idade é
gados para designar coisas ·diferentes. O mesmo é aplicável transcrita apenas com o número de anos, mesmo que o
às folhas de casamentos e de óbitos. registro diga "24 ano·s e 3 meses", por exemplo).
- Naturalidade (ou lugar de reJidência): d.p. ( des,ta paró-
Se as atas revelarem a idade das mães - o que é raro mesmo
quia) ; transcrever os nomes das l~calidades (ou países)
na Europa - é necessário prever uma coluna para anotá-la. Sendo
possível determinar os casos de crianças nascidas mortas, ou aban.. de origem ou residência, caso os cônjuges (ou um só de-
danadas etc., isto deve ser inscrito na parte reservada a "outras les) nãcl sejam da própria paróquia em que a ata foi lavra-
informações ou observações". da; as indicações relativas a localidades situadas no interior
da referida paróquia serão transcritas na coluna resel"Vada
Afinal, como observa, Sánchez-Albornoz, é comum em certas
paróquias latino-americanas o fato de algumas crianças - morrendo a "outras informações ou observações". XX significará
sem batismo - não figurarem nos registros de batismo, mas com- que não há informações sobre a: naturalidade ou lugar de
residência. Estas observações aplicam-se, também. aos
parecerem no de el)tefro~: impõe-se, portanto, a comparação dos
óbitos.
dois registros e, verificados casos deste tipo, acrescentá-los aos bati-
Profissões: existindo dados a respeito, deverão ser anota-
zados: não fazê-lo levaria a erros consideráveis, até de uns 2-0% 40
dos em colunas reservadas à profissão- dos cônjuges (na
realidade, costuma constar somente a do marido)' de seus
40 N. Sánchez·Albomoz, ~l..es registres .. ., Cil. pais e das testemunhas.

168 169
1 ! '

4? - Folhas relativas a enterros rau de alfabetização da população sob exame observando se há


0 gi'naturas ou somente símbolos, se as assinaturas são desenhadas
ass não etc. Como· a coleta de tais
· dados ocupa tempo demais,· .so'
- Estado civil dos mortos: (para as pessoas de mais de 15
anos, salvo indicação expressa de estado civil no caso de
0 urá feita
• a anotaçao ·e
, dos por exemplo, s em
- re terente a certos peno
pessoas de menos idade; ou se a idade for désconhecida); s~dá 50 anos). Flery e Henry sugerem que a codificação seja feita
e Sexo: as mesmas convenções já indicadas no caso das e ssim: ausência de assinatura, ou assinatura substituída por uma
folhas de casamentos. ªruz - O; assinatura desenhando (indicando dificuldade de. escre-
- Idade: para as crianças pequenas, anotar os dias ou meses ~er) - M; assinatura não desenhada -B; e um Y para indicar
indicados; depois de um ano completo, · anotar s.omente o símbolo (reproduzindo este último na coluna reservada às obser-
número de anos, desprezando eventuais indicações de me- vações).
ses (ou, se a informação estiver em meses; convertê-la em
anos: 15 meses = 1 alio, por exemplo). Se não houver
dados anotar um duplo X (XX). Há casos em que só /
há a )ndicação de tratar-se de inocente (infante, ou párvu-
lo), triança _ou adulto, devendo ser usada a respectiva
inicial (I, e, A).
- Causa mortis: anotá-la in extenso, exatamente com as pa- 4, ·SEGUNDA ETAPA: ELABORA(' ÃO DE FICHAS-~ESUMO
lavras do registro (raramente consta das atas de óbitos, ANUAIS E DE F;JCHAS-RESUMO PARA O PERIODO
salvo no século XIX; às vezes há, em separado, listas de EM SUA TOTALIDADE
pessoas mortas durante epidemias).

Quando já tiv1mnos prontas as folhas 1.:m que foram ,recolhi-


Havendo indicações sobre o lugar de residêntia ou de origem
dos mortos( profissão etnia, condição, etc., deverão ser previstas dos os dados dos registros poderemos passar ao proCl!ssamento ini-
colunas correspondentes nas folhas. cial dos mesmos dados, mediante fichas-resumo dt: dois tipos -
um para cada diferente categoria de atas (haverá, pois um. total ~e
seis fichas-resumo: usar as mesmas cores empregadas para as tres
- AnotaçiJes de 6bitos à margem das atas de batismo: pode categorias de folhas destinadas à coleta dps dados): 1) fichas-
acontecer que o vigário, em vez de abrir uma ata de óbitos
tenha anotado, simplesmente, à margem da ata de batiza- resumo anuais, nas quais serão computados os diferentes dados,
dos a indicação da data da morte; nestes casos cumpre -mês a mês, eventualmente por trimestre, também; 2) fichas-resumo
. tratar tais indicações à margem como se fossem atas de gerais para todo o período estudado, que reunem os t~tais a~uais
óbitos (exceto, naturalmente, se só forem repetições de. indicados . ao pé das fichas-resumo anuais, sendo previsto, amda,
atas de óbitos devidamente preenchidas). o cál.culo de totais acumulados nos qüinqüênios e calculadas as
médias qüinqüenais (os qüinqüênios àevem começar com os anos
terminados em 1 ou 6. não nos que terminem em O ou 5; por
5.0 - As assinaturas exemplo: 1761-1765, 1766-1770, etc.).,
Nestas folhas são anotados os dados· que possam ser facil-
As vezes, mais freqüentemente no caso das atas matrimoniais, mente expressos em cifras, representando totais_ acumulados . m~~­
aparecem nos registros assinaturas que são do padre ou de seu repre- sais, trimestrais,· anuais, ou qüinqüenais; as informações que ex1g1-
sentante, dos padrinhos das crianças batizadas, dos cônjuges, de seus rem anotação demasiadamente extensa ou compl~ada ...,.... grup~s
pais, testemunhas, etc. Quando acontecer isto, será possivel estudar etários, profissão lugar . de origem, etnia. condição., etc., deverao

170 171
ser processadas e contadas à parte (eventualmente pode-se pensar Figura.18:
na elaboração de fichas adicionais).
Os modelos aq~i reproduzidos são os que usamos na mencio- ficha-i·esumv oiwal de bati:,aclus, sc,~undv D. E. e. Eversley, C0//1

nada pesquisa centro-americana, tendo sido inspirados diretamente pequenas lllterações


nos modelos ingleses sugeridos por D. E. C. Eversley (Ver Figu-
FICHA-RESUMO ANUAL
ras 18 a 23).
No caso dos batizados é importante prever, na ficha-resumo

lj
anual, uma coluna para as anotações relativas aos meses de con-
cepção das crianças levadas à pia batismal, para que seja possível
traçar-se a curva mensal das concepções.
j ,
/ ~~= ~
~~ ~

5. TERCE.IRA ETAPA: UTILIZAÇÃO E INTERPRETAÇÃO


DOS DADOS

Se as folhas de coleta de dados e as diversas fichas-resumo


foram bem concebidas e devidamente preenchidas, a última fase
ficará enormemente facilitada.

19) Elaboração das. curvas brutas anuais de bati~ados, casa-


mentos e enterros, de todo o perfodo

Estas curvas são construídas com os dados recolhidos nas fichas-


resumo para todo o período (Fig. 21-23) e traçadas em uma
única folha de papel milimetrado: os anos que constituem o perío-
do vão na abcissa (eixo horizontal), os números de atas de bati-
zados, casamentos e óbitos na ordenada (eixo vertical).
O desc:nho das curvas permitirá localizar os anos de crises de-
mográficas, marcados por uma alta mortalidade. A explicação de
tais crises e das curvas, em geral, depende de todo um contexto
social e econômico q1jo conhecimento é necessário. Em especial,
CC?mo tais crises são explicadas sobretu.do pela incidência de epide-
mias, de· fomes generalizadas, ou pelos dois fatores conjuntamente,
convém colher todo o material possível sobre as epidi;:mias veri-
173
172
·~·

Figura 20:
Figura 19:
Ficha resumo de enterros (mesmas observaçu-es d a Fig. 19)
Ficha-resumo anual relativa a casamentos (mesmas observações
da Fig. 18)

o ::

....
<(

z
<(

~
<1' ~
~
;:i: ~
~.e.,., "
;r--~t-r-t-+-tt-+-+--1--+il-+-1-+--1+--11-+-l-4i-~
-g -a
'õ ~ .:.. ~
::"" f- e
z ~4 -t--t+-t-tt-H-+-++-+-H-t+--+-+--Hf-__, ·~ ~...
-~·~ rr.
:j;;
~I ~:.
:ã_
;....?:
~.

;o
~ "'
É"'.g
§ :!
:e "...
-
<(

3
o
o
.e
~ .; E ~ .."o=
eo: E
·~ o
~

= !o ""e ..oe "


"" ""~ ].
o
~
~
·;; ~ o .g
·;: -~ ~
<!'.
:.. = = !! .! """ =
E .:; "" ~ ""
].
~
o i: :; o
<!'.
·7 ~ e
" " = "'
~
o f-

174 175
!'íil''I"",

Figura }1 : Figura 22:

Ficha-resumo geral de batismos (c/msma observaçílo da ·Fig. 18). ficha-resumo geral de casamentos (mesmas observações da Fig.
18 e 21)
Em ~ada ficha caber~o os dados relativos a 15 anos; a quantidade
de fichas dependerá, naturalmente, da extensílo do período estudado.

FICHA-RESUMO GERAL

FICHA - RESl. \10 GERAL

PAl!ÓQl:lA: Periodo
.,,,.-.- ----- - ----.~--
. --
·•;;
L~gí1. llf:gÍt. Turais Todos o~
Sno não
.\DO!I:. M t·. M t- batizados
idtnrifü·Mlio.

~lflllA
TOTAL:

\lf:IJIA:
nHAI.:

..J
<
g: :.
• .! N
~

"o::; ll
;i
CIJ
~
g:
\lflll\:
101 AI.: < <
:e 5
u O'
t;: o
"'.<

T
176 177
Figura 23: Figura 24:
,\.1ovimento anual dos óbitos da paróquia brasileira de Nos~a Se-
Ficlui-remmv geral dos óbitos (mesmas ob~·ervações das Fig. 19 e 22)
nhora da Luz de Curitibçit (Século XIX)

Os anos de grande mortalidade - 1806, 1818, 1831, 1838,


1856, 1866, 1868, 1873, 1878, 1883 e 1891 - correspondem a
epidemias de varíola, escarlatina e sarampo.

700

600

500

400

300

200

IOO

e ...
·.: ... -+-t-t-t-+--+--+-l-+-+-+-+--4-J-l-~..J--I
~~

Fonte: Altiva P. Balhana, A evolução demográfica de Curitiba


·no século XIX (informe mimeografado, Paris, outubro
de 1971).

178 179
~"I'

ficadas no país ou regiao, no período em estudo, sua cronologia nela 11 m é o resultado da divisão da cifra bruta relativa à
e extensão, comparando as curvas demográficas com as dos preços variável considerada no mês m, pelo número de dias do
dos alimentos básicos e, sendo possível, com as curvas salariais ·n mesmo mês; N é ,ª son;a dos 12 val~res de n para os 12
(Ver a~ Fig. 5, 6, 24). meses do ano; x e o numero proporcional relativo ao mês
m, que procurávamo~., Tais cálculos serão. feitos ano por
ano e para cada vanavel (concepções, casamentos e óbi-
29) Elaboração das curvas mensais de concepções, casamentos tos). Vejamos como trabalhar um exemplo concreto: supo-
e óbitos (movimento estacionai) nhamos que os óbitos ocorridos no ano de 1746 em dada
paróquia, tenham sido 100. Teremos, então: '
Os dados provêm das fichas-resumo anuais, das colunas rela-
tivas aos totais mensais (Fig. 18-20). 100
f:.particularmente importante elaborar tais cm vas para os anos 3,2 (média diária de óbitos em janeiro)
de crises demográficl!s, comparando-as com as curvas relativas aos 31
anos normais anteriores e posteriores para verificar a intensidade e a
cronologia das crises e verificar se os pontos culminantes da curvi:. Imaginemos qué para o referido ano N seja igual a 25, 70.
de cada variável coincidem, ou não, nos mesmos meses de anos O número proporcional relativo aos óbito~ de janeiro de
distintos; deve-se relacionar o movimento sazonal observado com 1746 será, então:
as variações climáticas vinculadas às estações, colheitas e preços.
Como os meses têm variável número de dias, toma-se necessá- 3,2 :..: · x janeiro x janeiro 3,2 X 1200 149 ( desprezan-
rio calcular a média dos fatos demográficos - nascimentos (ou 2.5;70 1200 25,70 do-se os
concepções) casamentos e óbitos - por dia e, a partir dos resulta- decimais)
dos apurados, chegar ao cálculo dos números proporcionais por
mês, que sérvirão, precisamente, para traçar as curvas. Procede.se Depois de calculados os números proporcionais relativos
do modo seguinte com os dados relativos a cada variável: às concepções, casamentos e óbitos de um ano dado pode-
mos t~açar as curvas do referido ano. Naturalmente, a curva
divide-se· por 31 as cifras rel,ativas a janeiro, março, maio, de concepções . - que devem ser preferidas aos nascimen-
julho, agosto, outubro e dezembro; por 30 as de abril, tos por serem muito mais prontame11te afetadas pelos fatores
junho, setembro I! novembro; por 28,25 as de fevereiro de crise - calcula-se a partir dos dados dos batizados
(se o período considerado contém 1/4 de anos bissextos; do realizados nove meses mais tarde:
contrário será necessário fazer a média. dos dias de feve- neste caso os anos começam, para efeito dos números prC>-
reiro durante todo o período); procionais, em outubro do mesmo ano e terminam em se-
somam-se os 12 números assim obtidos; tembro do ano seguinte. Exemplo: os números proporcio-
calculam-se os números proporcionais para cada mês se- nais relativos às três variáveis serão calculados, digamos
gundo a seguinte equação: para 1830, a partir dos dados seguintes:
nm = Xm nm X 1200
concepções: batizados de outubro de 1830 a setem-
N 1200 N
bro de 1831, tirados das fichas-resumo anuais de 1830
e 1831 (porém na curva representarão as rnndições
41 Katia M. Q. Mattoso e Johildo L. de Atrayde, informe cit. de janeiro a dezembro de 1830); -
180
181
casamentos: umoes de janeiro a dezembro. de 1830; das idades dos cônjuges que casam em primeiras núpcias. Cal-
óbitos: enterros de janeiro a dezembro de l83Q. cular, também, a idade mediana; quer dizer, . de tal modo que a
metade dos casamentos fique situada antes e a outra metade de-
pois. Exemplo (tirado de Fleury e Henry): entre 126 casamentos
39) Freqüência dos nascimentos ilegítimos em primeiras núpcias há 57 antes dos 21 anos, e 10 aos 21 anos:
isto significa que, como 67 dos 126 casamentos ficam antes dos
Podemos calculá-la para qualquer mês, ano ou qüinqüênio do 22 anos, a idade mediana estará compreendida entre os 21 e os
período estudado (os dados serão encontrados nas fichas-resumo 22 anos e será igual a:
anuais, ou gerais, de batizados), pela seguinte fórmula:
63-57
n<.> de batizados de filhos ilegítimos X 1000 21 + 21,6
10
n<.> total de batizados
Infelizmente, é rara a indicação da idade dos cônjuges.
Em geral, basta calcular esta freqüência cada 20 ou 50 anos
para verificar como variará. 42
5<? Mortalidade infantil

49) Freqüência de casamentos em primeiras e segundas núpcias; Não havendo uma taxa de 1m1gração líquida demasiado alta,
idade média dos cônjuges que se casam em primeiras a taxa de mortalidade infantil é calculada pela seguinte fórmula:
núpcias
Elaborar um quadro, com os dados tirados das fichas-resumo N<? de óbitos de crianças de 0-12 meses, em dado p·eríodo X 1000
gerais de çasamentos, sobre o estado civil dos cônjuges, organi-
zando tais dados em cinco colunas: 1) anos; 2) n9 total de N'! de nascimentos no me!:r'mo período
casamentos; 3) casamentos em primeiras núpcias para ambos os
cônjuges ( % ) ; 4) casamentos em que o noivo é viúvo ( % ) ; Os dados para o cálculo desta taxa - por ano, período ou
5) casamentos em que a noiva é viúva · ( % ) . qüinqüênio, etc. .:_ serão obtidos nas fichas-resumo gerais de ba-
·Calcular, segundo as informações contidas·· eventualmente nas tizados e enterros.
folhas de recolhimento de dados sobre casamentos, as médias anuais
6<? Idade e estado civil dos mortos
42 Novamente, insistimos na grande ·importância dos nascimentos ilegíti·
mos no caso da América Latina. Eis aí, por exemplo, as taxas de batizados Se as atas de óbitos registrarem dados exatos quanto à idade
de crianças ilegítims por cem nascimentos, (população livre), em São Paulo dos mortos, o que é raro, será possível indicá-la por ano de
segundo Maria Luiza Marcílio (La Ville de São Paulo.' .. , tese cit., p. 183):
idade de O a 9 anos; depois, por grupos qüinqüenais de idade
1741/1755: 10,24 (10-14, 15-19, etc). As cifras serão tiradas. das folhas de coleta
1756/1770: 18,28
1771/1785: 20,97 dos dados sobre óbitos.
1786/1800: 21,08 Será também calculada, em diversos momentos do período
1801/1815: 26,26
1816/1830: 30,15 estudado (de 5 em 5 anos, de 1O em 1O anos, etc.) a média
183111845: 31,49 de idade· dos mortos: somam-se as idades individuais (zero para
Con.iunto: 23,20 as crianças de menos de um ano) e divide-se o resultado pelo

182 183
número de óbitos. Já vimos que, em certos casos, só será possfvel paroquiais, preenchendo-se fichas de batizados, casamentos e . en-
trabalhar · com indicações vagas a· respeito ~ inocente ( párvulo) terros que contenham os no~es e sobrenomes pas pessoas men-
criança, . àdulto, etc. cionadas (crianças nascidas, seus p,ais e padrinhos; cônjuges, pais
Afinal, entre os mortos adultos - de mais de 15 anos - e testemunhas; mortos e seus familiares)., para, em outra fase. da
pode ser calculada a proporção de solteiros, casados e viúvos, pesquisa, organizando tais eleme_ntos mediant~ fichas familiares
tendo-se o cuidado de lndlcar, também, os dados impossíveis de que tenham como ponto de partida os casamentos realizados na
precisar; Os dados serão tirados das fichas-resumos gerais de paróq:1ia, chega~-se à reconstituição das _famílias da paróquia em
óbitos. Na realidade, quando for possível saber a idade, o mais questao, no penado em ·estudo, com o fim de proceder-se a uma
análise demográ{\ca em profundidade. ·
interessante será estabelecer a freqüência do celibato definitivo,
entre os mortos de 50 anos ou mais. As vantagens deste método são as seguintes: 1) é o único
que permite a análise pormenorizada da fecundidade, principal-
mente matrimonial, e das condições da nupcialidade, fatores · ex-
79 Outros aspectos a estudar
plicativos essenciais; 2) mais do que o método das contagens
Conforme a riqueza dos registros, ainda será possível. obter globais, este conduz. a um estudo que além de demográfico é
informações sobre vários outros aspectos: freqüência das assina- amplamente social; 3) afinal, todos os resultados a que se pode
turas. da menção· a certas profissões e dados sobre a etnia e a ·.chegar com o "método inglês" serão alcançados, mais minuciosa-
condição, o lugar de origem e de residência (que permitem ter-se mente e com maior precisão, mediante a reconstituição de famí~
uma idéia sobre as tnigrações) . lias.
Quanto à freqUência das assinaturas e das profissões, quando As desvantagens referem-se, antes de tudo, à enorme quan-
é possível estudá-las, basta em geral fazê-lo através das aras mais tidade de recursos, tempo e trabalho que se exige para a aplicação
ricas em in,~ormações: as referentes aos casamentos. do método franc6s; é possível reduzi-la reconstituindo apenas uma
amostra das famílias da paróquia. Entretanto, no caso da Amé-
rica Latina há problemas de outra· natureza. O método de recons-
tituição de fmílias é útil, principalmente, quando reunido um certo
número de condições, relativas a uma estabilidade e homogeneida-
de (étnica, religiosa, etc.), bastante grande da ·população estudada
a
à presença e estabilidade dos sobrenomes, a uma certa conçep-
E. A pesqutsa dos regtstros paroquiais: 2) o .Ção de família, a uma fecundidade ilegítima relativamente peque-
método da reconstituição de famílias na. Mlisi na América Latina, o peso da imigração e da mobilidade
poplilaCionai, a heterogeneidade étnico-social refletida em compor- ···
tametttos demográficos divergentes, a coexistência de concepções
diferêtttes de famítia (ma trilinearidade em certos grupos indígenas,
ertt contradiçãd com o sistema familiar europeu, por exemplo)
O método de reconstituição de famílias, sistematizado por M. levam, às vezes, à inexistência - por exemplo entr~ os éscravos
Fleury e L. Henry, baseia-se na coleta de dados. dos registros - oü ll uma grande instabilidade dos sobrenomes e à grande

43 A descrição do método de reconstituição de familias será feita se- 1~3-161; E. A. Wrigley; HFarriily Reconstruction", em Att Jr:rwd~~ction .. ,
aunndo: M. Fleury e· L. Hénry, Nouveau 11Ulnuel ... cit., pp. 33-42.. 117-131 c11 .. pp. 96-159.

184 185
quantidade de filhos ilegítimos: todos estes sendo fatores que po- DA TISMO Dara da ata
Ficha•'---
NY d• Ord. _ _
dem pôr eJll dúvida - exceto em certos casos privilegiados e, em Data do nâscimento doe,

geral só ·para uma parte da população - a validade e representati- Nomt:


Vilho/a - Logir./Na~, - Livro/Escra•o do
vidade do método. A prova disto está eµi que, embora já haja um Etnia Adullo/Pánulo
número considerável (apesar de ainda insuficiente) de estudos paro- Exposto ein casa de
quiais feito.s pelo método de contagens globais, ou de trabalhos que
têm co010 pontos de partida 0$ censos, as listas nominativas de habi- Pai
Natural do· Vive em
tantes, etc., a reconstituição de famílias mal ensaia seus primeiros Line/liberto/Escrarn de
passos na pesquisa histórico-demográfica latino-americana. Em Profissão
Maê
Etnia Esr. cMI
--
parte, isto ·pode ser devido às dificuldades inerentes ao método, Nã'hmil de Vive em
Livre/Liborta/Escran do
certamente; -cremos que mais se deva, entretanto, aos graves pro- Etnia Est. Ci•il
blemas vinculados a sua representatividade e, às vezes, _à· própria -:
possibilidade de sua aplicação no caso de um bom número de
povoações latino-americanas. A YÓS paternos

Natural de

Natural de

~"'ós maternos
Natural do
2. PRIMEIRA ETAPA: COLETA DOS DADOS EM FICHAS
Natural do

Obsena(ões Paróquia

Vila/cidade

A título de exemplo reproduzimos os modelos de ·fichas ela- Uno Página


borados pela professora Maria Luiza Marcílio, de São Paul-O (Bra-
sil) para pesquisas no citado Estado brasileiro (Figuras 24 a 26).
As fichas deverão, n'!-turalmente., - ser adaptadas às características
peculiares dos . registros daS; paróquias em estudo. Como no caso -
das folhas para coleta .de dados, de que falamos a propósito do
-métooo de contagens globais, é possível usar fichas de cores di-
ferentes para os batizados, casamentos e óbitos, evitando assim Figura 24-A:
qualquer coi:ifusão.
Ficha de batismo, segundQ 'o modelo Fleuty-Henry, adaptada à
No caso da coleta de dados para reconstituir famílias, cada documentação brasileira pelá profl.I Maria Luiza Marcílio. Como,
ata dá oportunidade ao preenchimento de uma ficha. As datas nas paróqui(lS estudadas, ~ção ·quase sempre as mesmas pessoas im-
são indicadas apenas com algarismos (ex.: 12 de fevereiro de portantes· ("homens_ bons") os padrinhos, não teria sentido anotar
1713 é 12-2-1713). Os sobrenome$ devem ser .registrados sempre os dados correspondentes, pois a. repetição de ~uns _nomes -
com maiúsculas e os nomes devem sér acompanhados pelos títulos sempre 0.1 mesmos - em nada ajudaria. a reconstituição de famílias.

186 187
,,
Figura 25: Figura 26:
:1
Ficha de ,casamento, segundo o modelo Fleury-Henry, adaptado à ficha de óbito, conforme modelo Fleury-Henry, adaptado à do-
I,',;
cumentação .brasileira. por Maria Luiza Marcílio.
documentação brasileira por Maria Luiza Marcílio. A ausência de
dados relativos às testemunhas deve-se aos mesmos motivos'expos-
tos a propósito dos padrinhos (FIG. 24-A). O dados referentes a
avós paternos e maternos (também presentes nos atos de batismo) ÓBITO
não costumam comparecer nos registros europeus; sãó de grande Ficho n • - - -
D111 do 111 N• de Ord. -·_
utilidade para a reconstituição de famílias. NÂo são ano'tados dados Dala da morle doe.
sobre assinaturas ( dem"asiado raras).
Nll01C

Idade Profissão·
N11ural de F.tnio
Causa mortis
U•re / l.iberto /E~;. de
l.ugar onde morreu
Fil.':ha n' ----- Exposto na casa de -·
o... - - - - - - - N• Ord. Doe. - - -

Avós palcrno1
E.,...
Nat. k - - - - -RnWmte
--- .. - - - - Nat. d e - - - - - - -
Eu.lo .... -·_ . . _ _ _ __
Lhrit/Ukrto/Ucr. •
Nai.dc _ _ _ _ _ __
!.!lli2
.. De
• Na1. • - - - - - - - Avós maternos
N111. de _ _ _ _ _....;.._
Fll.HO/A De
l Nalurol de

\'tino de
°'·------------
Nas.•------- }'I••· de-----'----
l."!lfl.
l.ivre/liberlo/Escr. de

Etnia
Nal.
Sat.• l..W.le•
Avó1 paternos
Nat. de _ _ _ _ _ __
•De
Natural d.-
Ealla
ll•rt/l.AwÍo/EKr....
.........- - ' - - -
Nal. de __..;..._____ l.irre/liberta/escr. de
Fll~o 1 De
de-"------ i-----------------
N11.
lqsn • Avót malcrnot E1ni•
Pliiat. e

°'------------ de------- Na1.


Na1. de---"----- . Nol. de---~---
~------------- Esposo/• de·
PM<óqulo Viúvo/a de

Vila/c:idada

P•róquill
Livro 1 Pa1in• OBSERVAÇÕES

'Vil•/Cld•de
'.

l.ivro PigiH

188
189
~'

que lhes atribuir a ata: doutor, professor, mestre, etc. Uma cruz dentro de um envelope plástico transparente - no caso da ficha
deve ser desenhada ao lado de uma pessoa morta (por exemplo, original - tratando-se das duplicatas das fichas de casamentos,
a mãe ou o pai de um dos cônjuges) . Quanto à transcrição proceder da mesma forma m.as acrescentar as fichas de batizado
das idades, seguir as regras indicadas anteriormente. Também, nes- e de enterro da. esposa. Assim, teremos em cada pasta, em pri-
te caso poder-se-á abreviar a indicação "desta paróquia" (d. p. ) , rneiro lugar, a ficha de casamento, em seguida, a de batismo e,
acrescentando qualquer indicação a mais que esteja no documento finalmente, a de enterramento. Se a pessoa em questão casou-se
original. f:. necessário agir como já recomendamos nos casos de· rnais d~ uma vez, .colocar em sua pasta as respectivas fichas, ou
indicações de óbitos feitas, simplesmente, às ma,,rgen~ das atas as ·duphcatas (~el~ ordem da celebração das bodas). Se uma ficha
de batismo: cada uma provocará a elaboração de uma ficha de de cas~mento md1car qu~ um dos cônjuges é viúvo(a), embora
óbito. A precaução relativa às crianças enterradas sem batismo não seja encontrado registro do ato deste matrimônio anterior,
também é ·i·ndispensável. deve-se preencher uma ficha (ou duplicata) relativa a tal casa-
Concluída a coleta de dados, encher-se-á uma duplicata de rnento.
cada ficha de casamento, com todas as indicações referentes à
esposa e apenas o nome e o sobrenome do marjdo. Estas dupli-
catas servirão para classificar o casamento sob o nome da esposa, 3<? Como preencher a parte superior das fichas familiares
além de fazê-lo pelo nome· do marido. (informações relativas aos pais)

Cada casamento - inclusive os que vimos de mencionar, em-


bora realizados em outras paróquias - dá lugar à constituição
3. SEGUNDA ETAPA: RECONSTJTUIÇÂO DAS FAMILIAS de uma ficha de família. Reproduzimos um modelo desta ficha,
·segundo E. A. Wrigley (Fig. 27).
Tomemos a pasta relativa a cada homem casado e a que foi
19 Ctassificação e numeraçà() das fichas constituída a partir da duplicata de sua ficha de casamento (ou
a~ liuplicatas, caso tenha se casado mais de uma vez). Preen-
chamos, então, a parte superior da ficha de família correspon-
Classificar erri. separado as fichas de batismo, casamentos ( in- dente a cada união, incluindo eventualmente os dados relativos às
clusive a~ duplicatas, classificadas pelo nome de solteira da es- segundas núpcias de um dos cônjuges (mas, como é evidente, os
posa) e enterros, segundo a ordem alfabética dos sobrenomes; casamentos· em . segund~s núpcias também. são objeto de fichas
para cada sobrenome, classificar as respectivas fichas pela ordem próprias). Inscrever um duplo X - XX - nos espaços cor-
cronológica das atas, ou pela ordem alfabética dos nomes de ba- respondentes às informações que não foram conseguidas.
tismo.
Numerar as fichas, tanto para manter facilmente a ordem
estabelecida quanto para poder dar-lhes um número de referência. 4<? Como preencher a parte inferior das fichas de família
(informações relativas aos filhos)

29 Constituição dos · expediemes . relativo.1· às pessoas que Para cada ficha familiar, cuja parte ·superior esteja quase
casaram na paróquia estudada preenchida, procurar na coleção de fichas de batizados - ou nas
pastas das pessoas casadas, que contenham tais fichas - as fichas
Apanhar, uma por uma, as fichas de casamento, a cada qual das crianças nascidas da união. Procurar saber, também, na coleção
acrescentando a ficha de batizado e de enterramento do marido, de pastas de pessoas casadas que não contenham fichas de bati-

190 19 [

1 i
Figura 27: .,ados, e na de óbitos, se não haverá filhos desta umao
Ficha de Jamilia,, segundo E. A . Wrig/ey (An lntroduction . .. op .. ~ascidos fora da paróquia, cuja filiação esteja indicada em uma
dt., p. 126.)• ficha de casamento ou d.e enterro. Seguindo a ordem de nasci-
mentos, preencher as linhas correspondentes a cada filho(a), a
partir dos. ~ados proporcionados pelas respectivas fichas batismais,
matrimomais ou de enterro; usar uma codificação semelhante à
indícada para as folhas de coleta de dados a que nos referimos
a propósito do método inglês; M, F, X (ma,sculino, feminino, im-
possível de determinar) quanto ao sexo; S, C, V, CV, X, (soltei-
ro(a), casado(a), viúvo(a), casado(a) ou viúvo(a) impossível
..................., {
- - - - - - - - . ·_ - - · - nonssAo
de determinar) para o estado. cjvil ao morrer. Indi~ar os casos
"'"'º"º _____ L_______ _ r-.• ---- -- -- ----- ..... -----------
.,.. ..,_ - -- .... -......... . de crianças nascidas mortas. Quando um dos filhos casou-se mais
..... {-- -------------- ---_.- ---- .......................... -- de uma vez, inscrever apenas a data das primeiras núpcias, indi-
cando o número da ficha relativa ao casamento seguinte (ou os
e-
ESPOSA - - - - - _I - --{'........,
1 <'...._.._ - -. - DAT45 O.. 1-. 2 • _._,,,_ das fichas, se for o caso) .
~ n.•...._P.~
_"_·_·_.._..___,1---_-_-1~ ;;_ ..... e---.
lliilldl99 =- '""" i--1

tsl'ClSO

l:SPOS4 1 59 Outras maneiras de /ater as· .fichas de família


&ATlSMOS ENTEllOS üt. CASAMENTOS SOIRENOM[
NOM[(•l 1>()(1)CONJUG[.(1}
S.1• n-.. D4T4 D.\T4 ct-. 1.... DATA 1....

...,. Em certos casos, a ficha de batismo de um filho batizado na


.... -'f---+---+--+--1---+-+---~---
' 1----l----1--1-4---1--l---~--1---
paróquia, pelo menos, permite preencher a ficha familiar relativa
..... -

- a um casamento do qual não foi encontrado outra informação


-'1----+---+--+--i---.l--.l------il---- (por exemplo, porque os cônjuges se casaram em outra paróquia

- -
-·1----+---+--+--i---.l--.l------il----

• t----+---+--+--+---+--+------il----
- talvez a da noiva - ou chegaram à paróquia estudada na
condição de · imigrantes) .

-
-----+--+--+--!~ -
M- 1--+-+-I~ _
T....

,.,...~--...___.._,

--
'
1
1----+---+--1-4----1--1-----i----
1---4---1--1--+---+-+----+---
-'i----i----+--+--+---+--1------il----
-"1----+---+--+--+---+-1------11----
As fichas relativas a filhos ilegítimos conduzirão, também, à
feitura das fichas familiares; se o pai for desconhecido., indicá-lo
no espaço correspondente.
---- _uf---+---+--+--+---+-f----1----
---- __ 121----+---+--+--+---+--1-----1----
- ~ - u 1----l----i--i-4---.1--1-----1----

- - - 14 f---+---+--+--+---+-1-----1---- 4. TERCEJRA ETAPA: EXPLORAÇÂO DAS FICHAS DE


- - - •! t - - - - + - - - + - - + - - i - - - + - - 1 - - - - - - 1 - - - - FAMILIA

1Q Operações prévias

Calcular: l) a idade que tinham, ao casar e/ou ao morrer,


os cônjuges e os filhos; 2) a· idade da mãe e o-tempo de du-

1.92 193
ração do casamento ao nascer cada filho; 3) intervalos inter- atas matrimoniais e mortuárias não indiquem as Ídades dos côn-
genésicos; 4) número de filhos, no total e por sexos; 5) even- juges mortos, estas podem ser deduzidas a partir das fichas de
tualmente, o intervalo entre o fim de um casamento e a nova batismo correspondentes.
união do cônjuge sobrevivente. Com estes cálculos obtém-se a Será possível o estudo das famílias segundo o número de
informação necessária para completar as fichas de família. As ida- filhos: a fecundidade legítima poderá ser examinada em todos os
des - salvo as das crianças mortas entre O e 12 'meses - e seus pormenores; tornar-se-á exeqüível a elaborarão rle tabelas
as durações das uniões serão indicadas em algarismos redà'ndos; de mortalidade relativas ao 10 ou 15 primeiros anos de! vida,
a duração do casamento por ocasião do nascimento do primeiro segundo os dados atinentes aos óbitos de crianças, separando·se
filho, a duração da viuvez e os intervalos intergenésicos serão cal- a mortalidade infantil ·endógena e exógena. ·
culados em meses, como as idades das crian_ps mprtas antes de Os dados relatiyos a assinaturas, profissões, etnias, condição,
completado um ano de idade (em dias para as que tiverem mor- ou lugar de origem e de residência possibilitam interessantes aná-
rido com menos de um mês) . lises de história social e proporcionam alguns conhecimentos sobre
Calcular, depois, a taxa de fecundidade legítima, pelos grupos 05 movimentos migratórios.
de idade das mães, aplicando a fórmufa:

N'? de crianças legitimas ,nascidas de mães de dado grupo _etário

N'? de mulheres· casadas do mesmo grupo etario

Na prática, o cálculo é feito dividindo-se o número total de


crianças legitimamente nascidas de mães de um determinado grupo F. Exploração das Listas nominativas de
etário pelo número total de anos de casamento vividos no dito habitantes e documentos análogos44
grupo de idade. As fichas de família facilitam· este cálculo.

29 Estudos possiveis

Na realidade, não podem ser feitos os cálculos mencionados 1. GENERALIDADES


relativamente a todas as famílias reconstituídas, pois as fichas fa-
miliares são muito completas no ·caso de uma presença integral
da família na paróquia, através do tempo, mas são bem menos
completas quando há m~is mobilidade. E necessário saber esco- Os registros paroqums tornam possível o estudo do movi·
lher as famílias a estudar a fundo, preferindo-se as que tenham menta vital de uma população. Ocupar-nos-emos., agora, dos do-
uma presença mais estável nas paróquias: união formada e en- cumentos que servem para uma análise do estado de uma popu-
cerrada aí, com todos os filhos batizados no local; e, entre estas, lação em dado momento, embora eventualmente permitam tirar,
prefvir ~guelas cuja_s fichas familiares sejam tnais completas (pois ainda, algumas conclusões sobre sua evolução . possível. Tais fon-
certas atas podem ter-se perdido). tes são os diferentes tipos de censos e contagens primitivas da
Todos os pontos enunciados na parte D-5 deste capítulo po-
derão ser estudados a partir das famílias reconstituídas; além
44 Baseamo-nos em Louis Henry, Man1Je/ de démographte historique, cit ..
disto, muitas lacunas serão supridas: por exemplo, embora as PP. 29-48.

194 195

l
39 Divisão por idades e sexos
população, característicos da fase proto-estatística: lista" nominati-
vas de habitantes, censo propriamente ditos, censos de tributários,
Quanto à repartição da população pelas idades, podemos clas-
padrões eclesiásticos, etc. Os critérÍos de elaboração é apresenta-
sificar esta última segundo critérios diferentes:
ção dos dados, o grau de ~onfiabilidade destes, a fração popula-
cional compreendida nas contagens e a riqueza da informação va- jovens: 0-19 ano'S
riam muitíssimo de documento para documento; na maioria dos adultos: 20-59 anos
casos será impossível fazerem-se todos os cálculos e análises que velhos: 60 anos e mais
trataremos· de resumir aqui, e o pesquisador terá de contentar-se Crianças: '0-14 anos
com os aspectos cujo enfoque seja admitido pelo tipo de fon- Pcpulação em idade ativa: 15-64 anos
tes de que se pode dispor. Velhos: 65 anos e mais

Figura 28:
Quadro destine.do a recolher alguns dos dados brutos de uma lista
nominativa, ou documento semelhante.
2. FASES DA EXPLORAÇÃO

J9 Elaboração do quadro de dados brutos ld•d• Suo mucullnu Suo feminino

Nos melhores casos, os documentos de que tratamos pro- (MRIJI) SoltclroH C'usudos Viúvos Toi.1 Sohl'lrH c ...d.. VIUnt!i Toi.I

porcionam informações sobre: 1) nomes e sobrenomes; 2) sta-


0-4
tus ou profissão; 3) sexo; 4) idade; 5) estado civil. S-9
Os nomes e sobrenomes não · nos interessarão, aqui. Diga- i0·14
mos, apenas, que podem servir para completar a informação so- IS-19
bre as famílias reconstituídas pelo método Fleury-Henry. 20-24
A primeira coisa a fazer é recolher alguns dos dados em 2S-29
um quadro, cujo modelo (conforme o sugerido por Louis Henry) J0-34
reproduzimos na figura 28. JS-39
40-44
4S-49
so.s4
29 Relação de masculinidade
SS-S9

Para estudar a divisão da população conforme o sexo, cal-


.. , ..
cula-se, geralmente, o número de homens por 100 mulheres, ou
relação de· masculinidade, obtida mediante uma divisão do núme-
ro de homens pelo de mulheres, com o resultado multiplicado
por 100. A relação de masculinidade pode ser calculada para
càda grupo etário e representada por uma curva (grupos de idade FONTE: Louis Henry, Manuel de démographie_historique, cit.
na abcissa, relação de masculinidade na ordenada). p. 33
197
196

l
!
1,

Quando há dados bastantes, é possível determinar a dite- Figura 29:


rença entre a população potencialmente ativa, quer dizer, o con.
junto de pessoas capazes de trabalhar, e a população ativa ocupada, População total e população ativa, na França
que é o conjunto .de pessoas que trabalham. Esta última fração (1954)
é sempre menor do que a primeira, pois a taxa de atividade
varia não apenas com a idade mas também com outros fatores,
como o sexo. As vezes é possível - como em certas colônias
escravistas francesas - acompanhar, pelos censos, a relação entre
a população ativa e a população .total, durante períodos bem
longos. (Ver as figs. 2 9 e 30).
Para representar, simultaneamente, a divisão etária e pelos
sexos elabora-se a pirâmide etária, de cuja construção e leitura . População ativa: j;;::. :{:l População inativa: · .-
já talamos.
1854
1864 ;..
49 Repartição proporcional por idade, sexo e estado civil
1874
=
o
Q..
Partindo-se do quadro de dados brutos, elaborado inicial- o
1884 :::
mente, pode-se construir outro em que, para cada sexo, o total
por linha é igualado a 100 ou ª' 1000; esta construção deixa de 1894 ""
lll
t")

lado as crianças (0-14 anos) e, àe preferência, atém-se a grupos 1904 ~-


etários decenais. Este novo quadro (Ver o· Quadro 6) permite
1914
=
ô
conhecer-se, para cada sexo, a. proporção ·de solteiros, casados e
viúvos em cada grupo de idades. 1924
1934
59 rnmposição das famílias e lares 1944
1954
Do ponto de vista estatístico, uma família compõe-se do 400 3 ºº 200 100 100 200 300 400
casal e dos filhos sobreviventes. Assim. por exemplo. um viúvó Efetivos por geração anual (em milhares)
ou uma viúva sem fiihos constitui um; .,família. Segundo os cri-
térios adotados, podem ser computados em uma família: 1) to- FONTE: P. Salles e J. Wolff, op. cit., p. 152
dos os filhos vivos, de qualquer idade; 2) os filhos vivos de
menos de uma certa idade ( 15 anos, por exemplo) ; 3) os fi-
lhl)S vivos solteiros q~e vivem na casa dos pais. Os docume'!!ºs
estatísticos antigos só incluem os filhos que vivem com seus pais.
Na prática, portanto, o número de famílias é igual ao número
de casais, mais os viúvos e viúvas (e, eventualmente, · os divor-
ciados e divorciadas). ~ interessante classificar as famílias pelo
número de filhos vivos e pela idade (ou grupos etários) dos

198 199
8"' QUADRO 6:
Divü.ifu conforme o sexo. a idade e o estado civil
da população de Sainghin-Melantois (França) em
18Sl "
Idade Sexo masculino Sexo feminino
(anos) Solteiros Casadas Viúvas Conjunto Solteiros Casadas Viúvas Conjunto

IS:..19 1.000 - - 1.000 1.000 - - 1.000


20-24
25-29
972 28 - 1.000 928 72 - 1.000
750 250 - 1.000 544 427 29 1.000
30-34 516 453 31 1.000 345 655 - 1.000
35-39 373 608 19 1.000 250 750 - 1.000
40-44 17() 809 21 1.000 184 790 26 1.000
45-49 98 784 118 1.000 71 810 119 1.000
50-59 102 773 125 1.000 84 769 147 1.000
60-69 74 722 204 1.000 119 610 271 1.000
70 e mais 77 511 346 1.000 34 207 759 1.000

FONTE: Louis Henry, Manuel de dé'mographie historique, p. 39.

NOTA: ~. sobretudo, no caso de uma população muito pequena que convém estabelecer os grupos
etários apenas decenais e não qüinqüenais (para reduzir as flutuações aleatórias).

r----
-~
;i.. I .w I~ f.l ~ ';>
e5z "TI
.....
g a:i j 80ºf.. de A ~
~
L..:.....,...,~--;T::-·~
.,,o .,,o .,,o o
e
@
n "O "O "O -
e:: e: e ~
~~;-- w
'°o~· '°o~· '°o~· o. o
a
('D ('D -
;i...
-
~
QC
"'"'o
('l ('l
..........
~~­
< ~
<
-
~
'.T1
til
- iS'" C')
·:::S 'n -
t:u ~, :::::.
e e §
~
w
ál 1 8i% de A
Ul ~

~
-o - ("'}
~
.....
e.
~ C)
:::se..._
C)

f) 148% deA
59%de8
1M
~
~
• El ~ -
'.:;2º ;- o
"'

e~-;::;
o :::
~ iS' g

;!>-
(; :::se - ""
:::i
"'
C1)
""~
-. e
~.,,.,
..
-
N
g. ~
:::i "' ""e
~ _ e::
1-~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~--..~~~~--'

85% de A • . ;;
t...
0--
N
""
e.

-""
( 'l
~""""
e n ;:::
"" ;:i.... :::i
e 25 '2,
-
~ ' ~ :;-.. "" "" e

- S'"' ~
- !,.; ::l
""l 1 55% de A 64% de 8 õc o
o ~ ~
"-~~~~~~~~~~~~~~~~~~~-e
~ iS' C), ~

--
N

- t=-------_:_~-;d~e~A~-;-~------~;:;----=========J
___.: __ .
-.J """" e :::i
-<::

;!>-~=--~----'---­
:::-:'
~
..., -- -.
1:J :::i
::: '"""t-

~~~~~~~~~~-----_.:__;_ --=~~~~~~~~~~
"' :::i -<::
:;:i, :::i
"" 'n
"-'

-a.- 3
- Ul
'::' e
85% - N
N
""' e
~_j 1:g: ~
\O
o
oc ""J
-
67%
________ de 8 ______
..:..::__::_: t ?' ~1
chefes de família (fator segundo o qual varia muito o número entação pode permitir outros tipos de divisão populacional,
Ill
de filhos). A partir de tais dados., é possível calcular o número cu ' . . . (b rancos, escra-
ao distinguir, por exemplo, estratos etmco-socia1s
médio de filhos vivos por família, no total ou por grupos de vos, libertos, índios, "castas", etc.). , Ta?1b,é~ neste~ c~so o est~do
idade dos chefes de família. demográfico vincula-se amplamente a b1stona econom1ca e social.
Quanto ao lar (ménage em francês), estatisticamente trata-se
de um grupo de pessoas vivendo em comum, seja sob a autoridade
de um mesmo chefe, seja em uma mesma habitação. Um lar pode
compreender várias famílias e as pessoas que o compõe podem
ser vinculadas por laços de diferentes tipos (parentesco, amizade,
vínculos domésticos, pensionários). É interessante classificar ós la-
res pelo número de chefes de famílias; os· lares sem chefe de a. Conclusão
família compreenderão, assim, os solteiros que wvem sós, os c~n­
ventos, etc. Por outro lado, é evidente que os conceitos de família
e de lar variam conforme as sociedades e as épocas. No Brasil
dos séculos .coloniais - e mesmo no século XIX - uni lar
(fogo) compreendia, freqüentemente, uma ou mais famílias viven-
do sob a autoridade de um mesmo chefe, mais duas categorias Concluindo este capítulo gostaríamos de chamar a atenção
que não há na Europa: os escravos e os "agregados às casas" para certas facetas que nos podem valer censuras e de que esta-
- pessoas que viviam sob a proteção do chefe do lar e que mos plenamente conscientes. .
eram de tipos· muito variados (órfãos agasalhados, parentes pobres, Primeiramente, o caráter incompleto da apresentação que fi-
pessoas com profissão e até proprietárias de escravos, etc). Claro, zemos da história demográfica. Não é tarefa simples reduzir às
tais peculiaridades refletem-se nas pesquisas feitas a partir das proporções de um capítulo os aspectos essenciais de um dos ra-
listas nominativas e documentos assemelhados, do Brasil; a análise mos . mais dinâmicos da pesquisa histórica. Ao tentar realizá-la
torna-se econômica e social, além de demográfica, pois é possível vimo-nos forçados a fazer cortes, sacrifícios e opções - e não
distinguir lares com ou sem escravos, com muitos ou poucos es- são poucos os aspectos, r~lativos à problemática ou aos métodos,
cravos, etc. 4 J p:,tos de· lado ou insuficientemente tràtados. Este texto pretende
ser apenas uma iniciação ao assunto, d~ ·modo algum substitui
a leitura da bibliografia citada nas referências.
69 Divisão sócio-profissional
Em segundo lugar, sabemos que .muitas passagens deste ca-
As listas nominativas e documentos análogos contêm, às pítulo são resumos - às vezes até paráfrases - de partes subs-
vezes., dados sobre a profissão - em geral só no referente à po- tanciais de alguns tratados e manuais europeus mais importantes.
pulação masculina. Conforme a riqueza e a natureza das infor- Mencionamos isto sempre, certamente; nas notas. Parece-nos que
mações, e segundo o critério do pesquisador, tais dados poderão um manual de objetivos exclusivamentê didáticos, como este, não
ser organizados de diferentes modos: por ramo de atividade; por precisa ter pretensões a originalidade. Nossa intenção no presente
profissão; pelas categorias sócio-profissionais (ex: profissões Hbe• capítulo foi, singel.amente, a de pôr à dispo~ição dos estudantes
rais, proprietários agrícolas assalariados, etc.). Além disto, a do- latino-americanos alguns dos instrumentos de· trabalho mais im-
portantes elaborados pelos historiadores demógrafos nos últimos
anos. E nada mais, . salvo a preocupação de insistir nas peculia-
45 Ver os informes citados de Maria Luiza Marcílio, Tendences et es· ridades da · América Latina e nas conseqüênciaL daí resultantes,
truct11res des ménages ... e de Maria Bárbara Levy.
necessariamente, para a pesquisa.
202 203
Nosso esforço concentrar-se-á em indicar as áreas de pesquisa mais
importantes, ou menos exploradas, com seus problemas peculiares;
a bibliografia mencionada constituirá um ponto de referência ou
de exemplificação, sem ter pretensões a ser completa.
De ·um modo geral, pode-se dizer que conhecemos muito
melhor - do ponto de vista propriamente histórico - a história
econômica colonial da América Latina do que a dos séculos XIX
e XX. Por muito tempo, os historiadores tradicionais da região
acumularam, em lento e valioso trabalho de erudição, obras gerais,
bibliografias, publicações de documentos e grandes coleções de
fontes impressas sobre o período que mais os fascinava: o da co-
lônia. Embora raramente se caracterizassem por uma preocupa-
ção específica com o econômico, legaram-nos, mesmo assim, im-
portantíssimo. acervo também referente aos fatos econômicos, à
legislação e à política econômicas, etc. Se juntarmos a isto o fato
CAPlTULO V dos arquivos latino-americanos - organizados quase sempre por
(ou sob a direção de) · historiadores (profissionais ou não) de
perfil tradicional - estarem melhor catalogados no relativo à época
da colônia, é fácil concordar com Enrique Florescano, qu"1ndo
ele afirma que o historiador econômico da Colônia vence seu
PROBLEMATICA DA HISTÓRIA ECONÔMICA DA período de estudos "com muito maior segurança e rapidez do que
AMltRICA LATINA os colegas ocupados com outras épocas." :i
Embora seja certo que tanto a história colonial como a da
etapa de independência política sofreram, e sofrem, o impacto re-
novador dos trabalhos dos economistas e sociólogos (Celso Fur-
tado, Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto, Osvaldo Sunkel
e Pedro Paz, etc.), importantes porque colocam uma nova próble-
A. Generalidades
mática, os historiadores da colônia criticaram e assimilaram, às
·vezes, tais contribuições juntamente com a nova metodologia che-
gada da Europa e dos Estados Unidos, e passaram a utilizá-las em
Fique bem claro que não tentaremos fazer, no presente capí- uma produção propriamente histórica; enquanto isto, em relação
tulo, uma espécie de resumo da história econômica latino-ameri- aos séculos XIX e XX pouca coisa encontramos além de hipóteses
cana, muito menos uma análise pormenorizada da bibliografia re-
cente - felizmente já bem considerável - dedicada ao ramo. 1
The Journal of economic History, XXXI, março de 1971, pp. 222-253; a
parte relativa a bibliografia e documentação do 'livro de F. Mauro, l!ex-
pansion eurnpéenne. . . cit., (tradução para o espanhol: Barcelona, Labor,
1 Ha algumas análises e listas bibliográficas úteis. Cf. sobretudo os dois 1968) também é muito útil.
rnlumes de: La Historia E~·onómica en América Latina, cit.; Frédéric Mauro,
"La historia cuantitativa de Iberoamérica", cm Atldntida, VII, n.• 42, no- 2 Enrique Florescano, "La historia económica de la época colonial en
\ cmbro-dczt:mbro de 1969, pp. 592·604; Stanley J. Steln e Shane J. Hunt, América Latina; desarrollo y resultados", em La ltistOl'ia económica en
"Principal currents in the Economic Historiograp~y of Latin America", em América Latina, cit., II, pp. 11-81.

205
204
de 1rabalho propostas, por exemplo, pelos "sociólogos da depen-
outras fontes que pernutem reconstituir séries de· preços., salários,
dência'' e por Celso Furtado, exceto trabalhos de feição tradicio-.
etc.
nal ou tentativas grosseiras e acríticas de transplante direto de pro- Quanto ao tema das dificuldades e insuficiências do trabalho
blemáticas e técnicas da econometria retrospetiva européia ou no campo da história econômica latino-americana - que leva,
norte-americana. O que há de melhor sobre a história econômica naturalmente, ao das prioridades desejáveis na pesquisa - devemos
contemporânea do. subcontinente é obra de estrangeiros - princi- con~tatar, primeiramente, a forma anárquica . e esporádica de se
palmente norte-america1ios - o mesmo podendo ser dito de boa desenvolverem os trabalhos, o que dificulta sua progressão lógica
parte da história política de melhor qualidade. Porém, é justo e a coordenação de esforços. Os que se dedicam à história econô-
acrescentar que. os historiadores norte-americanos trabalham em mica, nos países ibero-americanos, têm poucas oportunidades de
condições privilegiadas tendo, inclusive, não raras vezes acesso, se reunir para o debate dos problemas metodológicos e de suas
nos· países latino-americanos, a acervos documentais recentes cuja possíveis soluções e para a avaliação crítica dos resultados obtidos
consulta é negada aos historiadores nacionais: estes só podem con- e a comparação de planos e realizações. Por outro lado, as inova-
sultar tais fontes quando encontram um modo de se valer das cole- ções metodológicas não são introduzidas homogeneamente nos
ções microfilmadas que as universidades e bibliotecas norte-ámeri- ambientes acadêmicos do subcontinente: alguns núcleos dinâmic0s
de pesquisa situam-se em poucos países· - nos demais a história
canas têm delas ... ª
tradicional segue predominando cabalmente. Passando da questão
A renovação metodológica e conceituai da história econômica
da organização dos trabalhos à de seus pressurmtns teóricos, temos
passou a colocar o problema documental de modo diferente, tam-
de repetir algo muito importante já afirmado em capítulo anterior:
bém em relação à América Latina. Fontes de novo tipo foram des-
a inexistência de uma verdadeira teoria econômica das estruturas
cobertas e usadas, caracterizando-se sobretudo por sua natureza e conjunturas histórico-econômicas peculiares da América Latina.
seriada: registros da Casa de Contratación de Sevilla, documentos Quanto à temática, finalmente, há lacunas. que é imperioso preen-
referentes ao dízimo, livros contábeis de· conventos e hospitais; e cher: por exemplo, a insuficiência de estudos relativos às técnicas
de produção, aos diferentes tipos de mercados, às produções a
3 No colóquio internacional de Paris sobre a história quantitativa do eles vinculadas, e às unidades típicas de produção - fazendas,
Brasil (outubro de 1971), certos trabalhos evidenciavam o desejo de trans· minas, plantações, indústrias .. , - observadas a partir de um ponto
por, acríticamente, para o caso brasileiro a metodologia e a problemâ- de vista micro-econômico.
tica da ciência econômica atual, ao modo da '"história quantitativa• de
Marczewski. Uma tendência anâloga, surgida no colóquio de Roma sobre
história econômica da América Latina (setembro de 1972). provocou vio-
lenta e, a nosso ver. justificada, reação do professor Ruggiero Romano.
Quanto às interpretações do processo histórico-económico latino-americano
feitas por economistas e sociólogos, são freqüentes duas posições antagô-
nicas: alguns dos chamados "intelectuais de esquerda" cos'tumam enamo-
rar-se de tais interpretações, desapercebidos de que são interess.antes
edifícios de hipóteses cuja comprovação histórica não existe; alguns his-
toriadores de novo perfil, muito propensos a um entúsiàsmo exclusivo e
pouco crítico pela metodologia européia e norte-americana, mantêm -
contrariamente - uma atitude negativa ou de desconfiança ante algo que
não sabem como integrar a seus marcos de referência, e não percebem o
esforço que representa no sentido de uma elaboração teórica especifi·
camente latino-americana. Em ambos os casos, fica afastada a possibi·
!idade de comprovar as hipóteses, levantadas pelos economistas e soció-
logos. através de pesquisas históricas.

206
207
·r-·-

B. A época colonial vilegiadas sobre cujas atividades e constituição dispunha ele meios
de intervenção, de todas as maneiras.
A política comercial e colonial tornou-se um elemento essen-
cial da atuação dos Estados modernos, fato que cumpre focalizar
em uma perspectiva ~p.ternacional de rude concorrência e de ten-
tativas de aplicar políticas de hegemonia marítima ou continental.
1. CONTEXTO GLOBAL: EXPANSÂO COMERCIAL Isto quer dizer .que a história da colonização moderna (séculos
E COLONIZAÇÂO ~ XVí a XVIII, principalmente) é inseparável de um contexto euro-
peu muito complexo. Cumpre, portanto, considerar constantemente
grande número de fatores de importância explicativa primordial:
conteúdo social dos Estados, grau de evolução econômica e finan-
A colonização da América foi condicionada por seu caráter de ceira de cada país metropolitano, sucessão de etapas conjunturais,
corolário da expansão marítima e comercial da Europa. Constituiu, poderio militar - e principalmente naval - dos diversos países,
realmente, um dos aspectos deste último processo: sem dúvida o posição social e política da burguesia mercantil, em cada caso,
mais complexo e, também, marcado com o selo da "revolução ratares determinantes das políticas coloniais, etc. Tais elementos -
comercial" dos séculos XV a XVIII, cujas marcas eram muito e outros da mesma natureza - não apenas definem relações de
visíveis na vida econômica das colônias. Por outro lado, para bem torças que interessam à evolução .das áreas metropolitanas, às
situar , a questão deve-se -ter em conta, ainda, outro elemento de rivalidades e conflitos comerciais e coloniais das potências euro-
muita importância: os vínculos existentes na Europa entre os mer- péias, mas ainda condicionam a história interna) das colônias e
cadores - no artlplo sentido que se ajustava ao termo na época podem, muitas vezes, chegar a determiná-la. · .
focali~ada __:_ e os Estados centralizados de feição moderna. Tais Os traços mencionados refletem-se· na preocupação tributária
vínculos no,s interessam, aqui, apenas no atinente à expansão marí- que dominava o aparelho administrativo colonial - mais forte no
tima, à colonização e defesa das colônias. A inexistência, ao menos caso dos países ibéricos, porém nunca ausenfe - e se refletem,
no princípio, de formas de organização das empresas que permi- ainda, no setor do Mercantilismo ocupado com as relações com as
tíssem a concentração das enormes quantias necessárias, e o en- colônias: o que os franceses chamam de "exclusivo" e nós deno-
frentamento dos riscos inerentes às atividades marítimas e colo- minamos (impropriamente) de "pacto colonial". Este traduz um
niais, foi um dos fatores que levaram à associação do capital mer- dos aspectos centrais da- política e da vida econômica da era db
Mercantilismo: o monopólio. O mecanismo monopolista. do comÚ-
cantil e financeiro com os Estados para promoverem .a expansão
.cio colonial, manejado pela metrópole, permitia a prática da mani-
comercial e as tl'ntativas de colonização. A referida associação teve
pulação· dos preços d9s produtos importados e exportados pelas ·
importância mesmo quando o Estado não assumiu diretamente o
colônias; os mercadores. metropolitanos - ou alguns deles -;-
controle das ope_rações, preferindo entregá-lo a companhias pri-
constitu\am, em relação às áreas coloniais, ao mesmo terripo um
4 cr Fernando Novais, ·o Brasil nos quadros do antigo regime colonial", oligopólio e um oligopsônio, pois controlavam tanto as compras
cm Brasil ern perspectiva,, São Pauio, Difusão Européia do Livro, 1968, quanto as vendas realizadas pelas colônias .,-,- com isto aumentando
pp 55-71; apesar do título, trata-se de um resumo de toda a. problemá- a própria capacidade de acumulação de capital. Simultanea~ente, 'a
tica da colonização da América, com seus distintos tipos. Para uma aplicação, da exclusividade comercial favorecia o Estado, do ponto
visão de conjunto dos sistemas econômicos coloniais, rccomen.damos, ain-
da. duas sínteses recentes: Richard Konetzke, América Latina, li. La época
de vista fiscal ( adu~nas, percentagens sobre as· transações) e, só- .
cu/oriiul, ciL Stanley J. e Barbara H. Stein, La herencia colonial de bretudo, tendia. a orientar as estruturas econômicas da colônia no
América Latina, trad. de A. Licona, México, Siglo XXXI, 1971 (2a. edição>. sentido de uma complementariedade em relação às metropolitana~,

209
os fatores que condicionaram o processo genético-evolutivo
evitando o desenvolvimento de setores competitivos, com êxito de todas as sociedades coloniais da América; embora com
maior ou menor, conforme os casos. É verdade, entretanto, que o variações e graus diversos: o fato colonial; a conquista,
rigor do pacto colonial foi compensado e mesmo reduzido, na encarada economicamente como formação da base territo-
p1~áticú, por importante comércio ilícito ( entrelopo), pela pirata.ria, rial da colonização e como organização dos indígenas co-
e pela pressão dos interesses coloniais (que, às vezes, conseg.mam mo força de trabalho e massa sujeita a tributos; e o trá-
fazer-se ouvidos nas metrópoles), ou mesmo pela necessidade fico de escravos africanos;
derivada da manifesta incapacidade metropolita:-ia para atender a .- aspectos cuja incidência foi extremamente variável con-
crescente demanda colonial - o que levou a exceções como o forme as regiões latino:..americanas: características geográ-
asiento (concessão a estrangeiros para o tráfico negreiro em direção ficas e recursos naturais; densidade da população indígena
às colônias espanholas) e o navio de registro. 5 em diversas épC?cas; períodos, formas e tipos de coloniza-
Ao estudarmos a política metropolitana relativa às colônias não ção; posição relativamente ·às grandes correntes da nave-
devemos cair na "ilusão voluntarista", antes tão freqüente entre os gação oceânica, etc.
historiadores tradicionais - e que consiste em acreditar que as
estruturas coloniais resultaram, simplesmente, "das necessidades, de-
sejos e objetivos da potência imperial" u Conforme destacamos em
artigo recente, 7 tts referidas estruturas derivaram de vários tipos
de fatores:
2. Os fatores da produção
as características dos elementos postos frente a frente pela
colonização, quanto a nível técnico, organização econômi-
ca, financeira, peso demográfico, etc.; sem esquecer que,
19 - Os recursos naturais e sua apropriação
pol sua vez, cada um destes elementos - europeu, indí-
gena e africano - era heterogêneo;
Consideraremos somente dois dos principais recursos natu-
r;iis: as minas de metais preciosos e o solo.
No caso da América . espanhola, houve o saque dos tesouros
5 Sobre o Mercantilismo, o livro cle E. F. Heckscher, Mercantilisnz, 2
vai. Londres, 1955, (trad. para o espanhol: México, Fondo de Cultura Eco-
indígenas e a extração do ouro lavado .nas~ areias dos rios (que
nómica) continua sendo essencial como fonte de dados; ver a pequena predominou até cerca de 1560), a exploração de minas de ouro
síntese de Pierre Deyon, Le mercantilisme, coleção "Questions d'histoire", e, sobretudo, de prata. A existê.ncia de minas de prata. nos vice-
Paris, Flammarion, 1969. Quanto à política colonial e as companhias pri· reinados de Nova Espanha e do Perú, simultaneamente com outras
vikgiadas, há imensa bibliografa, cuja indicação poderá ser encontrada
nos livros já citados de F. Mauro, R. Konetzke, S. e B. Stein; tornaremos condições necessárias a tal exploração mineira - o mercúrio de
ao assunto neste mesmo capítulo. Ver, também, o livro recente de Michel Huancavelica e a mão-de-obra indígena - foram os fatores que
Devéze, L'Europe et le monde à la Jin du XVIIIe siecle, col. "Ib~volution deram o aspecto peculiar e essencial do sis-tema imperial hispano-
de l'Humanité", Paris, E. Albin Michel, 1970.
americano, basicamente votado à produção, transporte e proteção
6 Rob..?rto Cortés Conde, "Problemas y prioridades en el estudio de la
historia económica latinoamericana", em La historia económica en Amé- da prata. As minas de Potosí feiram descobertas em 1546, e no
rica Lati11a, cit., II, pp. 117-133. :ano seguinte começaram a ser exploradas as de Zacatecas, no norte
7 Ciro F .. S. Cardoso, "Sobre los modos de producción coloniales de do México. Cumpre não perder de vista a· íntima-vinculação entre
An1~ric.:i", art. cit.

211
210
os recursos naturais e o nível técnico: assim, por exemplo., as e dos moinhos usados para tratar a prata ficava legalmente prote-
minas de Pcitosí cuja exploração rendia cada vez menos devido à gida contra o seqüestro por dívidas. 8
inadequação da técnica indígena de extração à lei do mineral das No caso do Brasil, o "ciclo do ouro" caracteriza principal-
mesmas jazida·s, tiveram um grande surto depois da introdução do mente o século XVIII, até 1770. As minas foram descobertas so-
método de amálgama de mercúrio (as minas de Huancavelica foram bretudo entre 1695 e 1734. Na maioria dos casos tratava-se de
descobertas em 1563). Portanto, a economia hispano-americana ouro de aluvião - e não de verdadeiras minas - o que permitia
a exploração com capitais relativamente modestos. A zona aurífera
da prata dependia não apenas das minas deste metal, mas do for-
compreendia partes dos atuais estados de Minas Gerais, Goiás,
necimento de mercúrio, também, o que criava sérios problemas de
Mato Grosso e Bahia. Os terrenos auríferos eram concedidos em
transporte (no México foi usado tanto mercúrio espanhol quanto
Jotes denominados da/as, de tamanho proporcional à quantidade
·d'1 'Eslovênia). Por sua vez, a produção de azougue em Huanca-
de escravos de que o mineiro dispusesse; os descobridores das
velica requeria grandes quantidades de lenha e logo esgota_ram-se
jazidas tinham prioridade na escolha de seus lotes. Devido ao
os escassos recursos florestais da região (situada a grande altitude), próprio caráter das jazidas e às técnicas muito primitivas, o ciclo
colocando um sério problema que só foi resolvido ao descobrir-se do ouro foi de breve duração. Também na região de Minas Gerais
a possibilidade de usar um combustível vegetal abundante na região: foram descobertas jazidas de diamantes, em 1729; a princípio a
o iclw ( *). O estudo da história mineira da América Espanhola. Coroa arrendou sua exploração a particulares, mas de 1771 em
do ponto de vista dos recursos naturais em associação com o nível diante realizou-a com agentes próprios.
técnic~, apresenta lacunas importantes, principalmente quanto à Como no caso das minas, o solo como recurso natural deve
decadência peruana do século XVIII,. pouco analisada de modo ser considerado tendo-se em conta, também, o nível técnico e as
quantitativo. idéias dos homens da época sobre os vários tipos de terrns e sua
Como a exploração das minas importantes requeria grandes fertilidade difÚencial. Por outro lado, o processo de constituição
capitais, era. comum., no princípio, a associação de várias pessoas ·da propriedade fundiária revestiu-se de características diversas, con-
para explorarem a mesma jazida. No Perú, desenvolveu-se um forme os casos; por exemplo: foi distinto nas zonas com fortes
sistema .s.emelhante ao da parceria - comerciantes de Lima, que concentrações de indígenas e nas que contavam apenas com popu-
dispunham de grandes cap:tais (aviadores) emprestavam dinheiro, lação aborígene dispersa. Um dos temas polêmicos, relativo à apro-
sob hipoteca, a um empresário que conseguia uma concessão mi- priação da terra na América hispânica é a existência, ou não, cit!
neira e a explorava. Apesar da enorme importância da mineração vínculo entre a encomienda e a formação da propriedade agrícola;
na América Espanhola, tratava-se de um negócio concentrado em é facilmente demonstrável que, em princípio, a encomienda não
muito poucas mãos: até o fim do século X VI umas 800 pessoas ·criava direitos sobre a terra. mas isto não significa que, na reali-
entre o México e o Peru, participavam dele; em 1791 um relató- dade, não facilitasse a expropriação dos indígenas e a ocupação do
rio do vice-rei revela que havia no Peru 588 minas de prata e 69 -solo, como recentes estudos o demonstram. n Isto reflete um fato
de ouro - e 728 mineiros - mas que predominavam as peque-
nas minas trabalhadas aleatoriamente e os mineiros miseráveis e
sem recursos. É interessante observar que a propriedade das minas :8 Sobre os assuntos !ralados aqui, cL All·aro Jara, Tres e11sL1vos sobre
""·01w111ía 111i11era Jzispanuamericana, Santiago do• Chile, Centro -de Inves-
t igaciones de Historia Americana (Universichid de Chile), 1966, pp. 35-43;
Kondzke, op. cit., pp. 282-283: cita o relatório do Vice-Rei; Marie Helmer,
"Potosi à la fin du XVIIIe siecle (1776-1797)" em Joumal de la Société
* N. do T.: do quíchua ichu - "Pajón", (aumentativo de palha), cana eles Américanistes (Paris) vol. 40, 1951, pp. ~1-50.
alta e grossa, espécie de gramínea de escasso valor alimentício para <> 9 Cf. para o caso melhor estudado - o do Méxiêô: Sílvio Zavala,
gado. Encomie1u/as y propriedad territorial en a/gunas regiunes de la América

212 213
básico: os estudos sobre a ocupação da terra na América Latina, que - consideradas como 'iipóteses de trabalho ·__,. cremos que
que por tanto tempo se limitaram ao exame da legislação respectiva., poderão orientar pesquisas úteis:
~omeçam a se interessar pelo processo real de açambarcamento do - De um modo geral, parece ter predominado a concessãe>
solo, muito menos conhecido, porém muito mais importante. A de terras como propriedade· liyre e hereditária, sem entraves do
tendência atual · à multiplicaç~o de trabalhos monográficos sobre tipo enfitêutico. Isto não quer dizer que, em certos casos, inexis-
fazendas deverá lançar alguma luz sobre este aspecto. 10 tissem em princípio, (de direito) limitações ao direito de pro-
Não podemos resumir aqui o complicado e multifor:me processo priedade; ~ignifica que, na prática, o sistema de· distribuição de
de fórmaçào e desenvolvimento da propriedade rural na América terras funcionou, quase sempre, como processo de constituição de
espanhola, no Brasil e nas colônias francesas - especialmente propriedades livres e heredit~rias. Por exemplo, em todas as colô-
rnri1pkxo na área hispano-americana, dada a coexistência e···~ re- nias a terra era concedida sob certas condições: confirmação real
laçãc (variável conforme ª"
épocas e regiões) de diferentes tipos (colônias ibéricas); exploração efetiva; delimitação do imóvel. No
<le propriedade dos .espanhóis, dos índios (privada e comunal), das entanto, foram muito raros em todo o território colonial os casos
cidades ( ejidos), otc. 11 No entanto, daremos algumas indicações em que o não cumprimento de tais condições i~plicou. efetiva-
mente, ,ª perda da concessão - sanção prevista nos regulamentos
vigentes. Na América espanhola, a pressão da Coroa sobre os
que o~u~ava~ mercedes( *) não confirmadas tinha, principalmen.te,
Espafiola,. 1940; François Chevalier, "La fonnación de los grandes latifun- um objetivo fiscal: o de forçar o acerto da situação irregular, me-
dios em México", em Problemas Agrícolas e Industriales de México (Mexico), diante o pagamento de uma composición. Cuba parece constituir-se
janeiro-março de 1956; Charles Gibson, Los aztecas bqjo el dominio espafiol
em uma exceção, ao menos parcial, à nossa hipótese; o estatuto
(1519-1810), Buenos Aires, Siglo XXI, 1972; Enrique Florescano, Estructuras
y problemas agrarios de México (1500-1821), Sep/Setentas. Mexico, Secretaria de de indivisibilidade das mercedes não confirmadas só foi derrogado
Educación Pública, 1971. · de todo em 1819, com a instauração da proprierhtrle sem limites
10 Cf. J an Bazant "Una tarea primordial de la historia económica latinoame- sobre estas e todas as terras ocupadas d~sçk,quan:ma anos antes.
ricana: el estuffio de la economia de las haciendas en el siglo XIX (el caso de
- Em contraste com o que acontecia nas colônias holandesas
México)", em La historia económica... cit., II, pp. 111-116. Quanto à época
da colônia, a tendência ao estudo de unidades de produção é relativamente e ingl~~as: onde para o fim da etapa colonial a propriedade da
antiga no caso das Antilhas francesas: cf. os trabalhos de Gabriel Debien, por terra Jª tmha um caráter claramente capitalista, nas colônias de
exemplo: Aux débuts d'une grande plantation à Saint·Domingue (1685-1714), ~ortugal, E,spanha e França a referida propriedade apresentava,
Havre, 1953; "Comptes, profits, esclaves et travaux de deux sucreries de Saint- amda no seculo XVIII., forte caráter patrimonial. Isto refletia os
Domingue (1774-1798), em Revue de la Societé d'Histoire et de Géographie d'Haiti,
distint0s graus de desenvolvimento alcançados, então; pelas diver-
vol. 15, n!l 55; Études antillaises (XVI/e s.), Cahiers des Annales n!l 11, Paris,
A. Colin, 1956. Mais recentemente, tivemos o trabalho de Pierre Léon, sas metrópoles coloniais, no atinente a suas estruturas agrárias,
Marchands et spéculateurs dauphinois dans le monde antillais du XVII/e siicle, comerciais e financeiras. Enquanto ·os proprietários coloniais dos
Les Dolles et les Raby, Paris, Les Belles Lettres, 1963, No caso da América domínios lusitanos, espanhóis e franceses ficaram sempre protegidos
lbéric.. , hâ alguns anos Frédéric Mauro estudou o Engenho de Sergipe do
Conde (Brasil), em sua tese: Le Portugal et l'Atlantique au XVI/e siecle (1570- cont~a o s~qüestro. de seus bens, no caso de dívidas não pag/as (e
1670), Étude économique, Paris, SEVPEN, 1960; ver ·também do mesmo autor, segmdamente vendiam terras oneradas por dívidas e hipotecas não
"Teoria econômica e história econômica", em Nova história Novo mundo, canceladas) nas colônias holandesas e inglesas do século XVIII o
S. Paulo, Ed. Perspectiva, 1969, pp. 1340. Recentemente multiplicaram-se os
estudos de fazendas e plantações na América hispinica colonial; cf. E~ Flores·
seqüestro das pro;Jriedades era fácil e rápido; quando os donos não
cano (coordenador), Haciendas, lati/Undios v. plantaciones en América Latina. cumpriam suas obrigações financeiras; além disto, os prazos de
México, Siglo XXI, 1975.
11 Ver, principalmente, F. Chevalier,· op. cit.; José da Costa Porto, Estudos
sobre o sistema sesmaria/, Recife, Imprensa Universitáia, 1965; G. Debien, Etudes * N · do T.: Dádiva ou graça que os reis fazem a seu.g- vassalos de em-
antillaises, cit. pregos, dignidades, etc. [no caso, terras].

214 215
,pagamento eram muito mais curtos nestas colônias do que nas -- Finalmente, certos aspectos e casos especiais devem ser
anteriormente citadas - e os devedores insolvcntes eram encar- consid~rados: os mayomzgos, * e 2s propriedades comunais de
cerados. diversos tipos, na América espanhola; a relação com a terra em
- Em todas as colônias havia disposições vigtmte~ para gra- zonas não agrícolas, mas. de coleta florestal, como em grandes
duar e limitar o açarnbarcamt:nto Je terras e, principalmente no regiões da Amazônia portuguesa; os casos cm que o controle da
caso ela América espanhola·, o desapossamento dos indígenas; ta·m- água era mais importante do que o do rnlo; as zonas em que os
bém cm toda a América tais disposições não lograram impedir as rebanhos eram criados em superfícies niio delimitadas, etc.
fraudes, a formação de latifúndios, o avanço sobre as terras co-
munais, etc. Mas é preciso prestar atenção às enormes variações
rcgicnais. No ·Brasil,, por exemplo, o tamanho das concessões 29) Mão-de-obra
(sesmarias) oscilava - de um modo geral., eram muito maiores
no norte do que no sul da colônia - variando, também, o tama- Si~vio. Zavala destaca o papel capital da distribuição geográfica
nho das grandes propriedades, embora por toda a parte se encon- e da densidade, da população pré-colombiana, relativamente ao
trassem meios de possuir mais terras do que as legalmente permi- povoamento e a f?rça de trabalho no período colonial. 1~ A partir
tidas. O estudo de tais variações deve, logicamente, considerar o de tal ponto de vista cumpre distinguir:
nível técnico e o tipo de atividade.
~ Predominante foi a concessão gratuita, não a venda de a área nuclear da população indígena, onde havia con-
terras pelo Estado - embora no caso da América espanhola, centrações demográficas realmente importar.tes., baseadas
sobretudo, as vencias de terras realengas, por motivos fiscais, tenham em uma agricultura sedentária mais ou menos adiantada
sido muito numerosas em certos períodos. A venda sistemática de (partes do México, da América Central. e da América
terras coloniais pelo Estado foi novidade instituída experimental- Andina);
mente pela Inglaterra nas ilhas que obteve em 1763 (Granada, ~od? o resto. da América se caracterizava por populações
Dominica, São Vicente e Tobago); inovação admirada mas não md1genas mmto mais dispersas, de caçadores, pescadores
imitada pelas autoridades coloniais francesas. No entanto, seria ou coletores, com ou sem agricultura itinerante de baixas
exagerado construir toda uma teoria da história da América com técnicas; em certos casos, grandes zonas constituiam ver-
base, um tanto simplista, no que alguns autores chamam de dispo- dadeiros vazios demográficos.
nibilidade ilimitada de terras; a disponibilidade do fator terra, embo~
ra indubitavelmente importante, foi variável conforme as regiões, Na área nuclear a exploração colonial apoiou-se na força de
as épocas e os tipos de produção. A "sede de terras" era seletiva: trabalho representada pelas comunidades indígenas, que sofreram
prdendia-se as que eram adequadas a este ou àquele produto; reorganizações radicais: concentrações, transferências de uma região ~
as que tivessem melhores possibilidade de aprovisionamento de para outra, etc. Como a aludida zona se concentrava toda na His-
111~\(1-cle-obra indígena (no caso da América Espanhola); as mais pano-América (embora fosse esta bastante maior) isto explica
pníximas das costas, dos rios navegáveis, dos caminhos, dos núcleos
de população, dos portos, etc. Na especulação fundiária, que logo *. ~ :. do T.: O Dicciunáriu de la Real Academia registra grande gama de
se estabeleceu nas colônias., o valor da terra era muito variável sigmf!cações; basicamente, é uma instituição espánhola de direito civil que
- segundo o caso - e também sua "disponibilidade", sobretudo tem por o~j<:to perpetuar na família a propriedade de certos bens, se-
gundo cond1çoes predeterminadas.
nas zonas de povoação mais ou menos antiga, dedicadas à pro-
~~ S~lvio, ~vala'. "lndigênes et colonisateurs dans l'histoire d'Amérique",
duçáo de certas mercadorias cujas exigências ecológicas limitassem Cahzers de 1 Inslllllt dcs Ha11tes Etmles ele 1'41'11eºriqz1e Latine n º 6
a c~colha dos solos a alguns tipos bem determinados. 1964, pp. 7-25. • ~ ' . '

216 217
porque os territórios espànhóis receberam muito menos escravos _ Faltam trabalhos relativos à mão-de-obra nos obrajes; ( * J
negros de origem africana ·do que o Brasil ou as. Antilhas, por também não têm sido estudados os salários urbanos e ruràis na
exemplo. 13 A população colonial foi, na área nuclear, euro-indígena., América espanhola, salvo em pouquíssimas exceções ( Çhile e
No resto do continente, com a conquista houve a expulsão, des- pero).
'1
truição e eventual assimÍlação parcial do índio, dando lugar à for- A escravidão negra e o tráfico de africanos são conheci-
mação de dois tipos de populações: 1 ) euro-africanas, onde po- dos, de üm modo geral, melhor do que a mão,.de-obra indígena
diam ser ·estabelecidas, com mão-de-obra indígena e sobretudo no caso do Brasil e das Antilhas; obviamente, ainda resta muito
africana, plantações de alimentos ou de matérias-primas tropicais por fazer neste terreno e persistem, em muitos aspectos., posições
de grande demanda na Europa, ou exploradas jazidas auríferas divergentes ou totalmente contraditórias. rn No entanto, observa-
(Brasil, Antilhas, sul dos Estados Unidos de hoje, Guianas, algu- remos que: 1) é necessário considerar a variação da importância
mas partes da América es;ianhola continental); 2) euro-americanas, relativa da escravidão negra na América espanhola, ante o movi-
como no Canadá, Nova Inglaterra e - já no século XIX - a mento demográfico da população indígena; Hl 2) no caso do Brasil
região dos pampas. · a escravidão de índios continuou sendo importante por muito tem-
Deixando de lado os· casos menos importantes - mão-de-obra po, ·.depois do início do tráfico negreiro, até mesmo dominante
livre empregada no artesanato, como capatazes e em outras ativi- em determinadas áreas (Amazônia, São Paulo).
dades; engagés ou indentured servants levados para a;; colônias - Se as diversas formas de trabalho forçado dos indígenas
francesas e inglesas, etc. - faremos al!'11mas observações e indica- - escravidão, repartimiento, encomienda, naborias, mita e cuatequil
ções a propósito dos aspectos que, para a pesquisa, nos parecem - começam a ser mais ou menos bem conhecidas, ao menos em
mais essenciais ao problema da mãe-de-obra dos tempos coloniais. algumas partes da América espanhola, .º mesmo não se dá com
- Duas precauções importantes: 1) não extrapolar automa-
ticamente os dados e a evolução de uma para outra zona (por
exemplo,· sempre houve a tendência de generalizar as fases caracte- La patria dei crioilo, E':;sayo de interpretación de la realidad coloniaf
rísticas, e mais conhecidas, da mão-de-obra no México a toda a guatemalteca, Guatemala, Editorial Universitaria, 1971, contém um inte-
ressante estudo· concreto das formas de apropriação real do trabalho
América espanhola; 2) não limitar - como. anteriormente era indígena. Do mesmo modo,· para o México, o ·Chile e o Peru foram feitos
costume fazer - o estudo da mão-de-obra ao mero exame da cstu:'.os assim, por autores como L. B. Simpso.n, C. Gibson, E. Flores-
legislação res:;ectiva, com menosprezo pela análise da evolução cano, Mario Góngora, Marcello Camargnani, Alvaro Jara, Rolando Mel-
real. 14 lafe, D. A. Branding, A. Crespo Rodas, etc.
·~ N. do T.: Grifo nosso. Obraje é 1. Manufatura / / 2. Oficina ou local
onde são trabalhados tecidos e outros objetos para uso comum// 3. Presta-
13 J:! possível que a América ·Espanhola tenha recebido apenas 1/15 da ção de trabalho que se impunha aos índios da América e que as leis
totalidade dos escravos africanos do tráfico: cf. Charles Minguet, Ale- procuraram extinguir. No caso cabe a primeira acepção.
xandre de Humboldt, Paris, F. Maspero, 1969, p. 508, nota 8; Minguet admite 15 A bibliofrafia a propósito é imensa. Uma boa introdução à · proble-
um total de 15 milhões. de escravos tran.sportados pi;ira a América entre mática,. e às polêmicas relativas a diferentes aspectos da escravidão na
os séculos XVI e XIX, 1.050.000 dos quais para a Hispano-américa. América, é a antologia preparada por L. Foner e E. O. Genovese, Slavery
Admitidas as cifras de P. Curtin, op. cit., - 9,5 milhões no total - seria in the New World, A Reader in Comparative Hist9ry, Englewood Cliffs
preciso reduzir o montante para a América Espanhola; ao contrário, Ro- (New Jersey), Prentice-Hall, 1969, que ainda contém excelente bibliografia.
lando Mellafe, La esclavitud en Hispa1wamérica, Buenos Aires, EUDEBA. Um livro coletivo, /ntrodución a la cultura africana en América Latina,
1964. p 59, considera que os territórios espanhóis receberam um total Paris, 1970, também traz bibliografia muito útil" e uma sinopse da do-
d~ 3 milhões de negros do tráfico, o que parece exagerado. cumentação disponível em cada país latino-americano.
14 Um exemplo de livro concebido como estudo institucional do proble- 16 Cf. por exemplo: Frederick P. Bowser. The Freé Person of Color in
m;1 da mão-de-obra é: Silvio Zavala, Contribución a la historia dé las Me:rico City and Lima: Manumission anã Oportunity, 1580-1650. (informe
i11,tituciones coloniales en Guatemala, Guatemala, Editorial Universitária, mimeografado; Rochester, março de 1972). pp. 4-5. li_ escravidão mexi-
1967 .. (1.• edição: México, 1945). Já o livro de Severo Martínez P'éláez, cana foi estudada por Gonzalo Aguirre Beltrán.

218 219
outras formas de mão-de-obra dependente: o peonaje (analisado colônias caracterizadas pelo mais baixo nível técnico: Bra-
no México por F. Chevalier) e todas as formas de posse precá- sil, colônias espanholas, Grandes Antilhas, Guiana Fran-
ria, estudadas principalmente quanto aos séculos XIX e XX e cesa;
pouco conhecidas no referente aos sécu!.os coloniais. 17 colônias que apresentavam um nível técnico superior
- Ao abordar o problema da origem e do caráter das formas (embora baixo, de qualquer modo) : Pequenas Antilhas
de exploração da mão-de-obra indígena e africana na América inglesas e francesas (nas Grandes Antilhas inglesas e fran-
L1tina colonial, e freqüente a exp!.icação a partir· de "antece- cesas as técnicas açucareiras eram suiJeriores às de Cuba
dentes medievais": a escravidão colonial mantida por genoveses e e do Brasil, mas as técnicas de cultura eram muito exten-
venezianos no Mediterrâneo, o repartimiento ibérico, etc.; isto tam- sivas e devastadoras);
bém se dá em relação a outros setores estudados (plantações açu- caso especial: técnicas de drenagem e exploração de terras
careiras, tipos de concessões de terras, aspectos da administração, recobertas pelo mar ou por águas fluviais, parcialmente
etc.). Sem dúvida, é útil estabelecer tais correlações mas há, tam- ;, introduzidas na Guiana Francesa a partir das colônias ho-
bém, o perigo de mascarar os caracteres peculiares, ou novos, do landesas vizinhas (Suriname, Berbice, Desmerara, Es~e-
processo colonizador latino-americano em proveito de analogias quibo). ··
formais. Uma instituição muda forçosamente de conteúdo ao trans-
Cremos na superioridade da abordagem comparativa para es-
ferir-se para um ambiente social e econômico diferente; a escra-
clarecer as questões ligadas às técnicas de produção, .mas as obras
vidão americana, por exemplo, é algo muito diverso, por suas pro-
escritas a partir de tal enfoque não são muito numerosas. 20
porções, características e conseqüências, da verificada nas pequenas
Aqui vão algumas recomendações, sumárias, relativas à pes-
colônias escravistas mediterrâneas ou nas ·ilhas ocidentais afri-
quisa no setor que ora nos atrai a atenção:
canas. 18
- Tratando-se das minas de metais preciosos, muitos aspectos
técnicos continuam mal conhecidos e, portanto. deveriam ser pes-
39) T/cnicas quisados. "1 Na mineração de ouro brasileira houve o aproveita-
mento de processos africanos de metalurgia do ferro. ~~ Os proble-
O estudo comparativo permite a distinção dos vanos níveis
técnicos no que se refere às colônias da América. Ao examinar-
20 Citemos a excelente t..:se, infelizmente inédita, de Alice P. Canabrava,
mos o r.roblema, limitando-nos às colônias escravistas e ao século A i11dústria do açúcar nas ilhas inglesas e francesas do Mar das Antilhas,
XVIII, encontramos pelo menos três categorias: rn São Paulo, Universidade de São Paulo, 1946 (mimeografada) e a edição
feita por Andrée Mansuy de: André João Antonil, Cultura e opulência
do Brasil por suas drogas e minas, texto da edição de 1711, tradução
17 Cf. Magnus Morner, Tenant Labour in the Andean South America francesa e comentário crítico de A. Mansuy, Paris, l.H.E.A.L., 1968.
Since the Eighteenth Century, A. Preliminary Report, Moscou, "Nauka" Nos dois casos, trata-se de uma comparação sistemática das técnicas
Publishing House, 1970 (há tradução para o espanhol); Mario Góngora, brasileiras de açúcar com as aplicadas em outras colônias: Antilhas in-
Origen de los "it4q11ilinos" de Chile Central, Santiago do Chile, 1960. glesas e francesas, principalmente, no primeiro caso; colônias escravista~
18 Ver Charles Verlinden, Précédents mediévaux de la Colonie en A111é- francesas, nas notas de autoria de A. Mansuy.
riq11e, México, Instituto Panamericano de Geografia e História, 1954; Do 21 Cf., entre outros: A. Jara, op· cit.; D. A. Brading e Harry E. Cross.
mesmo autor: "Esclavage médiéval en Europe et esclavage colonial en "Colonial Silvcr Mining; Mexico and Peru'', em Hispanic American His-
Amérique", no número citado de Cahiers de l'l.H.E.A.L., pp. 29-45, e tnrirnl Review, novembro de 1972, pp. 545-579; Clrarles Boxer, The Golde11
rc,· orige11es de la civilisation atlantigue, Paris, Albin Michel, 1966; H. B. Age of Brazil, 1695-1750, Berkeley, 1962 (ed. brasileira, em português:
Johnson Jr., "The Donatary Captaincyn in Perspective; Portuguese back- São Paulo, Cia. Edit. Nacional, 1963); Sérgio Buarque de Holanda,
;l rnuml tu the S<!!tlcment of Hrasil", em Hispanic American Historical artigos em História Geral da Civilização Brasileira, São Paulo. Difll-
Rel'h;w (Duke University Press), vol. 52, n.º 2, maio de 1972, pp. 203-214. são Européia do Livro, 1960 (tomo 1, ·vol. 2, pp. 228-310).
19 Ciro F. S. Cardoso, "Sobre los modos de producción ... ", cll"t. cit., 22 Cf .. Caio Prado Júnior, Formação do Brasil Conte1>rporâ11co, Colônia,.
PP 75-77. São Paulo, Brasiliense, 1957 (5a. ed.), p. 218.

220 221
disto, em certas regiões d:i África ·pré-colonial houve grupos de
mas técnicos e suas soluÇões são muito diferentes conforme se tra- ..ig ricultores que· conseguiram uma situação de
tcrr, de minas verdadeiras ou de jazidas de aluvião. O estudo com- . . equilíbrio
. . entre
, . a
. rodução, .a população e os recursos naturais, mediante tecmcas
parativo entre . as técnicas mineiras européi~s .e ame(icanas e a
formaçáo profissional de um pessoal espec1ahzado (tentada na
~ascadàs igualmente na agricultura itinerante, a prática do roçado
América espanhola durante a segunda metade do século XVIII) e 0 uso da enxada, embora algumas vezes tenham chegado, também,
deveria ser intensificado. a associar o pastoreio à agricultura, a usar ·o adubo ou a irriga-
- As plantações de cana de açúcar, cacau, anil, café, tabaco, ~ão, a aperfeiçoar o instrumental (graças à metalurgia muito adian-
etc., usavam simultaneamente técnicas agrícolas e industriais (estas tada) e a desenvolver a divisão do trabalho. ·
na fase de beneficiamento do produto), e o nível técnico poderia - Isto nos conduz ao ultimo ponto: a questão do nível
'Ser distinto nos dois setores da atividade produtora. A abundância técnico . só tem sentido no .contexto social e econômicó global da
da terra favorecia ·o emprego de técnicas agrícolas rudimentares, colônia e sua metrópole: 1) finalidade do ramo de produção estu-
mas um engenho açucareiro hidráulico, por exemplo, embora tosco, dado; 2) efeitos do regime de trabalho, do nível de vida e do
'Supunha técnicas um pouco mais sofisticadas e. investimentos rela- grau da formação profissional do trabalhador, sobre as . poss~b'.l'.­
tivamente importantes em equipamentos, importados em grande pro- dades técnicas (inch,isive a divisão do trabalho); 3) d1spomb1h-
porção. dade de capitais e formas de crédito à produção; 4) imobilização
- Outro tema interessante é o constituído pela difusão das importante de capital na compra de mão-de-obra, quando se tratar
técnicas. A união dinástica de Espanha e Portugal (l 5 80-1640) de uma colônia escravista; 5) organização do aprovisionamento
levou à instalação de holandeses e de judeus portugu,eses na parte de matérias primas, maquinaria, etc., às regiões coloniais ( espe-
mais importante da região açucareira do Brasil. Ali aprenderam cialmente importante no caso das zonas açucareiras); 6) transfe-
as técnicas do açúcar e, quando expulsos pelos portugueses as di-
rências de capitais às áreas metropolitanas devido à relação colo-
f tindiram · nas Guianas e Antilhas; porém, nas ilhas as ditas técni-
nial, e seus efeitos sobre a acumulação e o investimento nas colô-
cas sofreram alterações que, no curso. do tempo, as tornaram bem
,diferentes ·das brasileiras, pois estas quase não mudaram. nias; 7) nível técnico alcançado pela própria metrópole, etc.
- Por outro lado, deve-se estudar a constituição das técnicas
coloniais a partir de elementos europeus, indígenas e afric~nos.
49) Capitais
Um terreno ainda mal explorado é o da análise comparativa entre
as técnicas africanas e indígenas com as do colonialismo; parece
A instalação e a manutenç&o de empresas de mineração ou
que nas colônias escravistas teria havido alguma regressão técnica,
agrícolas de certa importância exigiam consideráveis capitais -
não só em relação à Europa como, também, quanto à África tro-
freqüentemente conseguidos mediante a associação" do mineiro,
pical, pois os processos agrícolas adotados foram aquele.s.. muito
ou fazendeiro . (sociedade que podia assumir formas muito distin-
primitivos, praticados pelos indígenas de fora da área nuclear de
tas) com financistas ou comerciantes residentes na colônia, na
pcpulação pré-colombiana, os quais somente conheciam uma agri-
metrópole., ou no estrangeiro. Em certos casos eram criados ban-
cultura itinerante, baseada na roça, sumária, e o uso de um ins-
cos expressamente para o financiamento das atividades coloniais,
trumental extremamente grosseiro.
por e)(emplo o de Law, na 'França, e o Real Banco de San Carlos,
- Entretanto, é preciso ter consciência do perigo que se
ligndo à mineração do Alto Peru, - ambos no século XVIII.
·csc~;ndê no julgamento dos níveis de técnicas agrícolas tropicais a
Há alguns bons estudos, centrados no financiamento da pro-
partir ·de critérios oriundos da observação das regiões temperadas.
dução, por exemplo, do Brasil açucareiro, das minas de Potosí
Por exemplo: os 'solos. ·tropicais são, freqüentemente por demais
e das Antilhas; mas, em outros casos, este aspecto é seguidamente
frágeis e pouco espessos para agüenta_r o arado de rodas; além
223
222
menosprezado. ~3 Trata-se, no entanto, de um tema fundamental, mente os holandeses, pois estes especializaram-se, no século XVIII,
passível de divisão em diversos subtemas: 1) proporção e formas. no crédito à produção de suas colônias e das colônias alheias).
de intervenção das organizações creditícias locais, metropolitanas
e estrangeiras; 2} conjuntura favorável ou desfavorável a certas.
zonas e produtos coloniais; 3) endividamento dos empresários_ co- 3. OS SETORES DA PRODUÇÃO
loniais; 4) estudos microeconômicos orientados para os investi-
mentos e seu prazo de reposição, os custos da produção, a acumu- A América Latina colonÍal tinha suas zonas nevrálgicas, que
lação de capitais, os .lucros e sua destinação (reinvestimento, con- eram outros tantos núcleos exportadores, mineiros ou agrícolas,
sumo suntuário, etc.), a contabilidade da empresa. produzindo - para o grande comércio oceâ~ico e para o abasteci-
Estudando a questão dos investimentos de capital, no caso da mento dos mercados metropolitanos - metais preciosos, açúcar,
Guiana Francesa, :? 4 chegamos a distinguir as seguintes categorias: café, cacau, anil, fumo, etc. Tais núcleos exportadores geravam
tonas subsidiárias de produção que os aprovisionavam de alime,n-
Investimentos públicos: tos, mão-de-obra indígena, matérias-primas (como o couro) e
- financiamento de tentativas de colonização e povoamento; animais de tração. Enfim, certas regiões mantinham-se relativ·a-
propriedades estatais (inclusive o que chamaríamos, hoje, mente isoladas dos centros dirigentes coloniais e do mercado inter-
de "fazendas experimentais"); nacional; eram pouco povoadas e tinham peso muito secundário
obras públicas; na vida latino-americana. Por exemplo, no Brasil português vemos
- créditos concedidos aos colonos e, às vezes, assistência formar-se nos séculos XVI e XVII um primeiro núcleo exporta-
técnica; dor - o de açúcar - cujo centro estava no nordeste da colônia:
Investimentos semipúblicos: os das companhias privilegiadas, em função do açúcar desenvolveu-se a zona pecuária complemen-
estritamente controladas pela administração colonial metropolitana tar do sertão. No século XVIII outro núcleo exportador - i o
e, portanto, vinculadas à conjuntura político-financeira do Estado; das minas de ouro - provocou, por sua vez, a constituição de
economias subsidiárias: zonas de agricultura. e criação e, também,
1nvesttmentos privados: de particulares e de sociedades por
a pecuária do sul, que fornecia principaimente animais de carga.
ações.
A Amazônia e São Paulo, embora contribuindo eventualmente
com escravos indígenas para as necessidades da zona açucareirn,
Além disto, tentamos estudar as consequencias do atraso da
mantiveram-se como áreas mais ou menos marginais e secundá-
França de ancien régime no domínio financeiro, em comparação
rias durante a maior parte do período colonial.
com a Holanda e com a Inglaterra, quanto ao financiamento da
produção em suas colônias; e, também, os resultados da legisla- Tendo como critério classificatório o tipo de produção e <>
ção relativa ao seqüestro de bens dos devedores insolventes, cuja tipo de vinculação aos distintos mercados, podemos. distinguir v,á-
aplicação nas colônias francesas· - por negar garantias suficientes rios setores produtivos:
aos credores - afugentava os investidores estrangeiros (principal-
- os voltados para o mercado mundial: 1) mineração de
metais preciosos; 2) agricultura (ou agro-indústria) tro-
23 Por exemplo: Alice P. Canabrava, tese cit.; Celso Furtado, Formação pical de exportação (grande lavoura);
econômica do Brasil, cit.; Manuel Moreno Fraginals, El Inienio. El com- os que produziam para os mercadós - locais ou intercolo-
p/ejo económico social cubano dei aziícar, tomo 1 (1760-1850), Havana,
Comisión Nacional Cubana de la Unesco, 1964; os trabalhos de Gabriel niais: 1) setores agrícolas; 2) pecuária; 3) setores arte-
Debien e Pierre Léon, já citados, sobre as Antilhas francesas. sanais e manufatureiros;
24 Ciro ·F. S. Cardoso, La Guyane française .. . , tese cit., tomo I, pp. os dedicados à economia de subsistência, _sem vinculação
222-241. permanente com o mercado.

224 2,25
~··

Os primeiros foram., sobretudo, os que nos acudiram à mente car. Houve épocas, na Guiana Francesa, em que. os engenhos esti-
ao falarmos dos fatores da produção; concentremo-nos agora, por- veram dedicados somente à produção de aguardente. ~ 0
Tema interessante é o constituído pela análise das relações
tanto, nos demais.
das zonas agrícolas ou pastoris subsidiárius com os núcleos expor-
Quanto à agricultura, mencionamos alguns dos problemas rela- tadores. Os vínculos agrícolas das minas de Potosi · estendiam-se
tivos à formação da propriedade e a outros fatores de produção. até a região do Rio da Prata, Paraguai e., ainda, ao Brasil; e as
Como é óbvio, ao fazer-se uma pesquisa sobre um caso concreto relações entre as duas economias, fáceis inicialmente, tornaram-se
(determinada colônia, região ou fazenda) o mais importante é conflitantes ao desenvolver-se o setor agrícola e ao estabelecer-se
conhecer-se o peso relativo dos diferentes fatores, suas formas es- a disputa da mão-de-obra. :: 7 No caso brasileiro - segundo afirma
pecíficas, sua correlação e evolução. O perfil de um dado regime Celso Furtado - as fases conjunturais depressivas dos cicl.os do
agrícola semprç dependerá: 1) do meio ambiente e dos recursos açúcar e do ouro fizeram com que as zonas compiementares se
naturnis; 2) dos modos de apropriação do solo, das característi- convertessem, em grande proporção, em áreas pastoris ou agrícolas
. cas e do valor relativo deste; 3) do que for produzido; 4) da. de subsistência, caracterizadas pela regressão da economia mone-
demografia indígena e da qualidade da mão-de-obra aborígine., que tária e pgr baixiss11na produtividade. Trata-se de uma análise
condicionam o tipo de aprovisioname:1lo da força de trabalho; 111uito verossímil e de grande poder explicativo para grandes áreas
· 5) das vinculações com determinados tipos de mercados; 6) das do país,. más não se pode dizer. que tenha estimulado tentativas de
formas de financiamento; 7) do estado das técnicas; 8) de fato- comprovação mediante estudos históricos baseados na pesquisa de
res institucionais, etc. Tais elemen[os são, por sua vez, estrutu- fontes .primárias. 28
rais - há características, padrões e proporções globais válidos Quanto à pecuária, conhecemos suficientemente bem, graças
para longos períodos - e mutantes conforme as fases conjun- aos mencionados trabalhos de F. Chevalier, a formação dos lati-
· turais. fúndios pastoris do norte do México em função da catástrofe de-
mográfica e do declínio da mineração no século XVII. Na Hispano-
Os estudos realmente econom1cos da agricultura colonial que América os tipos de exploração dos rebanhos foram muito variados,
produzia p~ra mercados locais ou intercoloniais são poucos. O conforme as zonas e as épocas. Também, no caso do Brasil havia
Chile, cuja produção tritícola destinava-se ao consumo peruano é, importantes diferenças entre as três zonas de criação mais impor-
talvez,· o caso mais estudado; sobre o México temos ótimos tra- tantes: a do nordeste e a. do sul (pecu~ri.a extensiva., mas dife-
balhos de Enrique Florescano. ~;-, No Brasil, como em todas as co- rentes sob muitos pontos de vista) e a região de Minas Gerais
lônias açucareiras, ao lado do açúcar era produzida a aguardenté (com técnicas melhores). Em toda a América Latina colonial a
- destinada em grande parte ao mercado local e, no caso brasi- produção de animais de carga para o transporte e, às vezes, para
leiro, também exportada para a África. Em certos casos, pequenos força motriz dos engenhos não qidráulicos, constitQÍa um elemento
estabelecimentos especializavam-se exclusivamente na produção de econômico fundamental. Da criação pôde originar-se um ramo
exportador: os couros, o charque, etc., freqüentemente remetidos
·aguardente - menos complicada e mais barata do que a de açú-

26 Por exemplo: Antonil (ed. de A Mansury). pp. 132-133, 252-253, 266-267,


25 Marcello Carmagnani, "La produción agropecuaria chilena (1680-1830)", •384-385, 394-395; Ciro F. S. Cardoso, tese cit., IV pp. 304-321.
em Cahi<1n des Amériqi;es Lat ilu:s (Paris, Institut des hautes études
de l'Amérique latlne>, nº 3 1969 rr 3-21; do mesmo autor: "Formazione
27 Rolando Mellafe, "Agricultura e historia colonial hispanoamericana",
em Temas de historia económica hispanoamericana, ·Paris-Haia, Mouton,
de un. ffiL'tT •.i!o coloniale: Cile, 1680-1830", em Rivista Storica Italiana, 1969, 1965, pp. 23-32. Ver também: William H. Dusepberry, The Mexican Mesta,
pp 480-500: Enrique Florescano, Precios dei maíz y crisis agrícolas en Urbana, 1963.
México ( 1708-1810), México, El Co!egio de México, 1969; do· mesmo autor:
lisr ruct11ras y problemas agrarios . .. , cit. 28 Celso Furtado, op. cit., pp. 83-88, 104-106 (capítulos XII e XV).

226 227

l
para mercados europeus ou intercoloniais. Mas, em geral, ela se fossem às vezes suprimidas por intervenções metropolitanas. Tais
vinculava muito mais à vida das próprias colônias, originando com- atividades industriais visavam ao abastecimento de mercados locais
plexos ·econômicos e culturais do couro, do cavalo, da carne seca ou inter~oloniais (a s~~a. dos obrajes mexic~n~s, por exemplo, che-
e salgada ("carne de sol", cecina, * charqui, * chalona oa Bolívia), gava ate o mer~ado fihpmo). No caso bras1leuo, somente, existem
das tropas de mulas, caracterizados tais complexos por relações estudos de con1unto. Quanto ao artesanato hispano-americano há
econômicas e sociais bem diversas das predominantes nos núcleos vários livros dedic~d~s a~s grfünios'. ~as :eferem-se, principalm~nte,
exportadores. ~~ a seus aspectos h1erarqmco e admm1strat1vo. As análises de certas
As povoações de índios guaranis, fundadas e controladas pelos atividades manufatureiras da América. espanhola são boas às vezes,
jesuítas na América do Sul, especializaram-se em abastecer várias principalmente as que tratam dos obrajes mexicanos e da indústria
regiões do continente com erva mate; o produto era comercializado de carne salgada da Argentina. Falta um estudo conjunto da in-
pela Companhia de Jesus nos centros urbanos - Assunção, Santa dústria colonial hispano-americana que integre a pesquisa econô-
Fé, Buenos Aires - e chegava até a mercados longínquos corno mica e o exame da correspondente política metropolitana. 3 1
Lima e Quito. Depois da ex.pulsão dos jesuítas (1768), os aludidos Se passarmos das atividades dedicadas aos mercados locais
povoados, por umas duas décadas, remeteram grande quantidade ou intercoloniais para as de subsistência, sem vinculacão conside-
de produtos para o mercado do Rio da Prata, mas isto refletia rável ?u cont~nua ~om o ~nercado, veremos que não há quase o
a exploração extrema da mão-de-obra indígena pelos comerciantes que dizer, pois nao suscitaram bastantes pesquisas atinentes à
e funcionários espanhóis - e sua destruição __,_ o que fez com etapa colonial. É verdade que a documentação disponível tem
que, no curso do tempo, as antigas missões desaparecessem. So- caráter fragmentário e quase exclusivamente qualitativo: trechos
mente ao desvanecer-se a focalização mística, romântica ou utópica, breves da corres.pendência ou de relatórios oficiais, de livros de
do regime econômico das missões jesuíticas, antes muito comum, viajantes, de obras gerais contemporâneas sobre economias colo-
começamos a conhecê-Ias devidamente: 80 niais (como a de Antonil sobre o Brasil). No caso das colônias
Apesar do "pacto colonial'', na América Latina houve, além escravistas, os senhores se descartavam total. ou parcialmente do
de artesanatos variados, manufaturas verdadeiras, embora estas encargo de alimentar e de vestir seus escravos, embora isto fosse
proibido pela legislação vigente, concedendo-lhes (ao menos a
alguns deles) o usufruto de parcelas de terra, o tempo para as
* N. do T.: Cecina, de um modo geral, é carne salgada e seca ao sol';
cultivarem e, freqüentemente, a possibilidade de comerciarem livre-
na Argentina é tira de carne delgada, seca e sem sal. Chalona é carne
de ovelha salgada e seca ao sol. (0 original usa a palavra quichua mente o eventual excedente. Em certas colônJas, a vinculação desta
clwrqui que origina "charque", tanto em espanhol quanto em portu- economia "camponesa" de escravos com o mercado local foi im-
guê"l).
19 Cf. entre outras obras: José Alípio Goulart, O Brasil do boi e do
couro, Rio de Janeiro, Ed. GRD, 1965; Alfredo Ellis Júnior, "O ciclo do 31 Heitor Ferreira Lima, Formação industrial do Brasil, Período colonial,
muar", em Revista de História, (São Paulo), n.º 1, 1950, pp. 73-81; F. Rio de Janeiro, Fundo de Cultura, 1961; Miriam Ellis, "Primórdios da
Chevalier, op. cit.; Emilio. A. Coni, Historia de las vaquerías del. Rio indústri;;i saladeril no Brasil colonial", em Revista do Instituto de Es-
de la Plata, 1555-1750, Buenos Aires, 195§; Héctor José Tanzi, "La activi- tudos Brasileiros (São Paulo), n.ó 4, 1968, pp. 31-42; Fernando A. Novais
dad agropecuaria en el Virreinato del Río de la Plata", en Investigaciones "A proibição das manufaturas no Brasil e a política econômica portuguesa
v F11,ayus, vol. 2, 1967, pp. 261-287. no fim elo século XVIII", na Revista de História n.º 67, 1966, pp. 145-166;
30 Magnus Mêirner, Actividades políticas y económicas de los jesuítas en W~drow Borah, Silk Raising in Colonial Mexico, Berkeley - Los Angeles.
el Rio de la Plata, Buenos Aires, Paidó.s, 1968; Luiz Gonzaga Jaeger, "La University_ of California Press. 1943; Héctor Huberto "Samavoa Guevara,
Companía de Jesús en e! antiguo Guairá (1589-1631)", em Pesquisas, Los gremios de artesanatos ne la ciudad de Guatemala, 0524-1821), Gua-
rnl 1, 1957, pp. 93-121; Juan Carlos Garavaglia, Las actividades ganaderas temala. Ed.· Universitaria, 1962; Richard E. Greenleaf, "The Obraje in
e11 Ta vida económica del pueblo de indios de Nuestra S~íiora- áe los the late Mexican Colony", em The Americas. XXXII, janeiro de 1967,
Santus Reyes de Yapeyú: 1768-1806 (informe apresentado ao colóquio de PP. 227-250; Alfredo J. Montoya, Historia de los saladero-&- argentinus, Bue·
Roma. setembro de 1972). nos Aires, 1956.

228 229
·~-
1

portante (venda de aves, mandioca, cereais, etc.), mas acontecia dados relativos à navegação:· tipos e capacidade dos navios.,
muitas vezes que o tempo concedido aos cativos para cultivarem rotas, técnicas de navegação;
suas parcelas era por demais marginal e insuficiente; nas colônias portos e caminhos, :sistemas de transportes, feiras, aduanas,
açucareiras, quando chegava a época da safra e do trabalho nos circulação monetária, formas de crédito e de empresas co-
engenhos., mesmo os domingos e feriados religiosos não eram res- merciais;
peitados. 3 ~
Deixamos completamente de lado, neste capítulo, o exame Política comercial metropolitana: companhia.\· privilegiadas e
da problemática relacionada com outros tipos de atividades: coleta sistemas de frotas; consulados de comércio :;~
florestal, pesca (a da baleia no Brasil, por exemplo), caça de
escravos indígenas, busca de pérolas, exploração de salinas, mine- Tipos de mercados e de comércio
ração de metais não preciosos, etc., e o caso das regiões de trânsito,
vinculadas ao sistema das frotas e do comércio exclusivo. 33 - mercados locais e intercoloniais, abastecimento das cida-
des, portos e minas; 3u
- o tráfico negreiro e as exportações para a África;ª'

nial", em Revista de História, n.º 4, 1950, pp. 495-515; Carlos Martins


4. CIRCULAÇÃO E CONJUNTURA Filho, "Os três caminhos para as Minas Gerais", em Anais do Congres-·
so .. . , Rio de Janeiro. Imprensa Nacional, 1965, p. 171-218; José Alípio.
Goulart, Tropas e tropeiros na formação do Brasil, Rio de Jandro, Con-
quista, 1961; Estela B. Toledo, "El comercio de mulas en Salta, 1657-1698",
cm Anuario dei Instituto de !11ve:;tigacio11es Históricas, Rosario, VI, 1962-
Quanto ao comércio, podemos sintetizar assim os mais impor- 1%3; Ruggiero Romano, C11estiones de historia económica la!i11oameri-
tantes ao;;pectos temáticos: cwza, Caracas, Univ;;;rsidad Ct:!ntral de Venezuela, 1965.
35 Eulália Maria L. Lobo, "As frotas do Brasil"', em J ahrbuch f iir Ges·
Problemas técnicos e de equipamento 31 chichte von Staat, Wirtschaft und Gesellschaft Lateinamerikas (Colônia),
1967, pp. 465-488; da mesma autora: Aspectos da atuaçüo dos cmisulados
de Sevilha, Cádiz e da América Hispânica na evolução econômica do
século XVI II, Rio de Janeiro, 1965; a bibliogr.afia sobre tais temas é
imensa. Cf., principalmente: Huguetle e Piare Chaunu, Séville o:t /'Atla11;.
íique (1504-1650), Paris, SEVPEN, 1955-1960 (12 volumes).
32 Cf. Antonil. ed. citada, pp. 94-99, 126-127, 129; David Brion Davis,
36. Enrique Florescano, "EI abasto y la legislación de granos cn el
Til!' J>roblem of Slavery in Western Culture, Itahaca, Cornell University
Pre<>s, 1966, pp. 223-243; Antoine Gislet, L'Esclavage aux Antilles fra11çaises siglo XVI", em Historia Mexicana, XIV, n.º 4, 1965, p. 1965, pp. 567-630;
(X\'/le - X!Xe siecle), Friburgo, Suissa, Ed. Universitaire, 1965. 35-46; Miriam Ellis, Contribuição ao estudo do abastecimento das zonas minera·
fran-Claude Nardin, La mise en va/e11r de l'ile de Tobago (1763-1783), doras do Brasil no século XVIII, Rio de Janeiro, Ministério da Educa-
Pari' - lfaya, Mouton, 1969, p. 258. ção, 1961; Oscar Altimir e outros, "Las relaciones económicas int.:rregio-
B Cf. Miriam Ellis, Aspectos da pesca da baleia no Brasil coloniaT
na!es. Metodología para su estudio, en la época virreinal", em Jornadas
Sào Paulo, Coleção Revista de História, 1958; Arthur Cézar Ferreira Reis. de. historia y economia argentina en los siglo_s· XVIII y XIX, Buenos
A'f"'ctos da experiência portug11esa na Amazônia, Manaus, Edições Go Aires - Rosario, 1965.
l'cTno do Estado do Amazonas, 1966; Marie Helmer, "Cubagua, L'ile des 37 Philip D. Curtin, op. cit.; Rober Anstey, The Vulm11e a11d Profitability
pcTk>"'. em A•males E. S. C., 1962, pp. 751-760. 0f lhe Atla11tic Siave Trade 1761-1810 e Johann.:s Postma, Slaving Teclzni-
34 Cf F. Mauro, L'expansion européenne .. . , cit., pp. 101-124, 269-288: ques and Treatment uf S/aves: The Dutclz Activities un_J/ie Guil;ea Coast
J\111 i~1n Ellis, "Estudo sobre alguns tipos de transporte no Brasil colo· (informes datilografados, Rochester, março de 1972) .

230 231
'i'
"!
I!.:
l
!'.

1.
\11
o comê.reio com a Europa, importação e exportação, con- escassez de análises como estas encarece a necessidade de sua
trabando e pirataria. 38 :multiplicação em várias regiões cb Am~rica Latina: talvez assim
se pudesse elaborar uma verdadeira teoria das flutuações conjun-
É muito necessário que se multipliquem os estudos sobre alguns turais da economia colonial.
dos aspectos acima mencionados, por exemplo: 1) os sistemas
de transportes na América colonial (mais ou menos bem conhe-
cidos quanto à Argentina, México e Brasil); 2) organização dos
mercados locais e intercoloniais., e a importância do respectivo mo-.
vimento comercial; 3) o .peso dos setores monetários e não-mone-
tários das economias coloniais e os modos de se inte.r-relaciona-
rem, o abastecimento colonial em moedas; 4) análises de conjunto
das reformas burbônicas (Espanha) e pombalinas (Portugal) quan-
to à política comercial; 5) o comércio intercontinental e interco- C. Os séculos XIX e XX
lonial no Pacífico, muito menos conhecido do que o comércio
atlântico; 6) comerciantes e empresas comerciais na América La-
tina.
Os trabalhos de Pierre Chaunu e Frédéric Mauro insistem
na unidade da conjuntura européia e latino-americana: esta última
foi estudada, sobretudo, em função da Europa, das repercussões
l. A INDEPENDÊNCIA E O LENTO NASCIMENTO DAS
das flutuaçõt~s européias no comércio exterior e na produção da
ECONOMIAS DE EXPORTAÇÃO
América Latina, e dos efeitos dos metais preciosos e produtos
tro;:iicais latino-americanos sobre a conjuntura européia (monetária,
de preços, /Comercial, etc.). Sl No entanto, os poucos trabalhos
disponíveis sobre as conjunturas internas de algumas regiões da
América Latina, estudadas sem perder de vista o aspecto estrutu- Se os anos transcorridos entre 1810 e 1824 foram decisivos
ral, também apresentam definidas divergências quanto às fases da 111as lutas pela Independência da América espanhola, ao estudar-se
conjuntura européia. Assim, por exemplo: não houve no século o problema de uma perspectiva mais ampla eles se apresentam
XVIII uma alta de longa duração dos preços de 16 produtos, em como um .período extremamente breve entré as crises da estrutura
Santiago do Chile, estudados .por Ruggiero Romano; nem dos pre- colonial e o nascimento de sociedades de um tipo novo, também
ços do milho do México, estudados por Enrique Florescano. 40 A incluídas em um novo sistema de domínio mundial. Na verdade,
a derrubada das velhas estruturas coloniais começou muito antes
38 F. Mauro, Le P.ortugal. .. , tese cit.; H. e P. Chaunu, op. cit.; E. J.
e prosseguiu por muito tempo depois da agitada cronologia política
H::imilton Amcrican Treasure and Price Revoltllion in Spain, Cámbridge e militar característica do período 1810-1824. 41
(Mass.), 1934; A. Jara, op. cit.; Anuario de Estudios Americanos, XXV,
1%8, etc.
39 Obras citadas na nota anterior; Fernando A. Novais, Notas para o cit.; Enrique Florcscano, Precios dei maíz .. . , dt.; H. B. Jolmson Jr.,
eçtwlo do Brasil no comércio internacional do fim do séclldo XVIII e Money and Prices in Rio de Janeiro (1760-1820) informe mimeografado
hdcin do séc11lo XIX (1796-1808), informe datilografado (Paris, outubro (Paris, outubro de 1971). '
de 1971). 41 Cf. Heraclío Bonilla, Piern~ Chaunu, Tulio Halperin D., Eríc Hobs-
-40 Ruggiero Romano. Una economia colonial: Chile en el sigla XVIII, bawrn, Spalding, Pierre Vilar, /,a iluleprnclc1Zcia e1z el J!.ertí, Lima, Insti-
Buenos Aires, EUDEBA, 1965; do mesmo autor: C11estiones de historia .. ., tuto de Estudios Peruanos, 1972.

232 233
A comparação com o 'caso do Brasil' é sumamente ilustrativa sumir matéri,:s-primas em grande escala: até então, só tivera um
a propósito, pois ali quase não houve guerra de lndependênci~ interesse na periferia - o de vender seus tecidos; 4 ~
- principalmente porque Portu~aL desde o tratado de Methuen 29 - que houvesse a consolidação de um Estado-Nação sob
( 1703) era mais uma dependem:1a cu1111:rcial da Inglaterra do que 0 governo dos grupos sociais interessados nos setores ..produtivos

uma verdadeira metrópole, no sentido colonial do termo, e porque dedicados ao mercado mundial, cuja estruturação correspondesse
houve a transferência da corte lusa para o Rio de Janeiro em 1808 às necessidades de funcionamento do novo tipo de produção para
dando lugar à possibilidade de ser criado um verdadeir~ aparelh~ exportação. Isto. pressupunha garantir uma oferta adequada de
de Estado na ex-colônia. A nova vinculação externa do Brasil com fatores de produção (terra e mão-de-obra, principalmente), do-
o capitalismo industrial foi, em conseqüência, muito mais sim- tando ainda, a economia, do capital social básico indispensável:
estrutura financeira, comunicações, portos, vias férreas.
ples, direta e menos sangrenta do que a da América espanhola.
Para a história econômica e social da América Latina, há Quais os principais campos de interesse para a história econô-
inenus interesse nos processos políticos conducentes à independên- mica da "grande espera"?
cia du que nos, bem mais complexos, de desagregação da velha Por um lado, a penetração inglesa, através de empréstimos,
ordem ou de estruturação da nova. Estabelecer uma cronologia o controle dos circuitos comerciais, a invasão do mercado com des-
precisa das aludidas crises e do período mais ou menos longo de truição do artesanato local. No atinente à influência política há
transição para o capitalismo periférico não é tarefa fácil: sobre- dois problemas, pelo menos, que devem ser esclarecidos: um refere-
tudo na presente fase dos estudos. Porém, uma série de problemas se à possibilidade da Grã-Bretanha ter apoiado, deliberadamente, uma
gerais já está suficientemente traçada. política de balcanização da América Latina, favorecendo a desa-
Em primeiro lugar, as formas distintas e a duração da passa- gregação de repúblicas federais., como é o caso da centro-america-
gem para o capitalismo variaram conforme os seguintes fatores: na; ~ 3 outro é o relativo aos conflitos momentâneos, ou de maior
l) fatores vinculados ao passado colonial, como o grau de crista- duração, por vezes manifestados entre a política da Inglaterra e
lização da economia predominante nessa época, a importância rela- os interesses locais: é o caso do Rio da Prata, com os bloqueios
tiva da exportação, etc.; 2) fatores vinculados ao próprio processo anglo-franceses de 1838 e de 1845-1848, ou o do Brasil -
de emancipação; 3) fatores relacionados com a forma dos novos com a questão da abolição do tráfico de escravos. H De qualquer
laços externos, principalmente no referente à facilidade ou não de modo, os referidos conflitos foram resolvidos porque os interesses
c-.,1abclccê-los. Combinando tais critérios, é possível formular uma globais das oligarquias locais vinculadas f1 exportação e ao co-
tipologia que justifique tanto as formas diferentes de economias mércio inglês tinham um peso consideravelmente maior.
rc,ultantes deste período de transição, que Tulio Halperin Donghi
chamuu de "grande espera'', quanto sua duração, que variou con- 42 !Uem, PP. 175-204: artigo de E. J. Hobabawm; e do mesmo autor:
~idnavelmente de país para país. Las revul1Lciu11es b1Lrg1Lesas, Madrid, Ediciones Guadarrarna, 1971, capi-
tulo II.
Em segundo lugar, a organizaç<lo de uma economia de bases
43 Sobre isto há opiniões cli,·crgenks. Ver por exemplo: Mal'io Rodrí-
11"' :h n;lo podia ocorrer sem:
guez, Chatfield, Có11sul Brilâ11ico e/l Cc/l/ru América, Tegucigalpa, Banco
19 - que existisse um mercado mundial suficientemente de- Central, 1970.
\~11 rnl\ ido, com países industriais que consumissem matérias-pri- 44 Cf. Miron Burgin, Aspectos económicos d;l federalis111u argenli110,
mas e países periféricos que absorvessem produtos manufaturados Buenos Aires, Solar - Hachet te, 1969, pp. 308 e seguintes; Alan K.
Manchesla, British Preeminellce i11 Brazi/, ils Rise a11d Decline, Nova
-- e isto dependia, basicamente, do desenvolvimento do capitalismo
Iorque, Octagon Books, 1964 (2.' ed.); Richard Graham, "CallSL'S for the
indu-,1rial, assim como atuava na Grã-Bretanha. P.ois bem, apenas Abolition of Négro Slal'ery in Brazil: An Intcrprct:1ti\'e ~-;ay", na l!ispwzic
na segunda metade do século XIX a Inglaterra começou a con- Amcric~111 Hislorical Rcl'ien', 1966, pp. 123-137. -

23-1- 235
Por outro lado, a situação interna dos países latino-americ~nos, 0 centro - desfavoráveí à periferia sempre que ultrapassava a en-
no período em pauta, pode resumir-se em torno . dos seguintes trada líquida de novos investimentos.
problemas: 1) as lutas e anarquias derivadas de vazios de poder; 3} Um controle total dos países industriais sobre os circuitos:
2) os conflitos entre protecionistas e livre-cambistas, que na ver- comerciais externos, (sob a forma de controle das linhas de na,.
dade eram conotações profundas das lutas pela organização do vegação e, portanto, dos fretes) e das grandes empresas do comér-
Estado Nacional. 45 cio de exportação e importação.
4) Uma grande sensibilidade à conjuntura metropolitana, cujos
efeitos faziam-se sentir na totalida9e da economia exportadora.
De todos estes mecanismos, o papel mais importante é o de-
sempenhado pelos investimentos estrangeiros - pois são . eles que
inserem os países latino-americanos neste novo sistema mundial
.., O AUGE DA ECONOMIA DE EXPORTAÇÃO 46
de dominação: o do capitalismo industrial já em marcha para sua
etapa monopolista. Isto implica estabelecer relações de dependência
além da esfera comercial, afetando as próprias estruturas da pro-
dução.
O desenvolvimento das economias dé exportação, cujo auge
No atinente às diferenças entre distintos tipos de' economias
extraordinário foi verificar-se entre o fim do século XIX e a crise
de exportação, são· correntes duas tipologias: ·uma que classifica
de 1930, apresentou consideráveis variações conforme as diversas
as economias pelo tipo de produto; outra que .põe ênfase no con-.
situações históricas da "grande espera". De qualquer jeito, houve
trole nacional ou estrangeiro da produção. Na primeira, é usuaf
uma série de mecanismos comuns a todos os países, que a seguir
indicamos. distinguirem-se economias de· agricultura temperada, economias.
A expansão das economias de exportação supunha uma íntima de agricultura tropical e economias de mineração. 47 Logicamente,
vinculação econômica entre países industriais e .países periféricos, o tipo de capitalismo pei·iférico é distinto nos três casos, tratando-se
manifestada em: de produções também diversas. Tal tipologia, embora útil, não
l) Uma divisão do trabalho entre países industriais e países ultrapassa o estágio descritivo.
produtores de matérias-primas. Os países industrializados da Euro- Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto 48 partem da dis-
pa, fundamentalmente a Inglaterra, consumindo uma série de maté- tinção entre o controle nacional ou estrang~iro da produção. Cer-
rias-primas agrícolas e minerais que não podiam produzir em suas tamente, a variável escolhida é muito mais importante tratando-se·
próprias fronteiras, ou que só produziriam a. muito custo. de chegar a uma tipologia. explicativa. No entanto, revela-se de
2) Uma corrente de ~apital estrangeiro, mais ou menos con- uma generalidade excessiva para que seus resultados sejam de utili-
siderável, conforme os países, investido basicamente em ferrovias dade à história econômica. O objetivo principal da_ tipologia de
e comunicações, instalações portuárias, bancos e empresas comer- Cardoso e Faletto é absolutamente legítimo:
ciais importadoras/exportadoras. Os investimentos estrangeiros, fos-
sem diretos ou empréstimos a governos, exigiam o pagamento de
um serviço que implicava um fluxo de excedente da periferia para 47 Celso Furtado, La economía latinoanzericana desde la conqllista ibé-
rica hasta la revolución cubana, México, Sigla X'XI, 1969, p. 50.
48 Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto, Dependencia y desarrollc,.
4.'i Cf por exemplo, o excelente estudo de José Carlos Chiaramonte, Na- en América Latina, Ensayo de interpretación sociológiéa, México, Sigla XXI,
ciuna/ismo y liberalismo, Buenos Aires, Solar - Hachette, 1971. 1969. Destacamos a importância do ensaio de Cardoso e Faletto, uma·
41> Piderimos a expressão "economia de exportação" a "desenvolvimento interpretação em que o historiador encontrará intercssA.ntes hipóteses e-
p.t1 a fora", correntemente usada nos estudos da CEPAL.
sugestões para pesquisas.

236 237'
~--

"A perspectiva adotada neste ensaio requer a análise tanto de subsist~ncia) e de terra (ísto. pelo menos na- fase inicial de
das condições quanto das possibilidades de desenvolvimento e de desenvolvimento) e uma demanda internacional totalmente elástica
consolidação dos estados naciopais latino-americanos segundo o para ur11 ~erto nível de :preços. Em tais condições, Furtado pensa
modo como os grupos sociais locais conseguiram estabelecer sua par- que .ª maior parte da inversão necessária ú expansão das culturas
ticipação no processo produtivo e definir formas de controle insti- reduza-se a insumos de mão·de-obra:
tucional capazes_ de assegura-la.'' 49
Discutível é se tal distinção entre controle nacional e controle 'Desta maneira, a própria expansão da agricultura cria
estrangeiro da produção resulta, ou não, por demais analítica para os recursos que· alimentam o processo de inversão. Assim se
proporcionar uma visão adequada do que se pretende estudar. Va- explica porque duplicou em um período de cinco a seis anos,
mos indicar os defeitos principais para sugerir, daí, novos campos na década de 50, a produçüo brasileira .de café, sem que isto
de estudos e de pesguisas. representasse qualquer pressão maior sobre os recursos ou
O controle nacional do processo produtivo define-se, basica- qualquer __ desvio dos investimentos correspondentes a outros
mcnt.e, pelos seguintes critérios: setores" "3

19 - "As decisões de investimento 'passam' por um momepto O trabalho de Furtado tem, sem dúvida, ·o mcnto de atacar
de deliberações internas, das quais resulta a expansão 11111 prob 1e'.11a .essencial,- sugerindo uma explicação de grande inte-
ou a retração da produção; isto significa que o caphal resse. Porem, como demonstração, limita-se à análise léoica de
tem seu ponto de partida e seu ponto terminal no sis- uma série de variáveis, mostrando suas inter-relações .. N~nhuma
tema econômico interno" 5o prova. ~istórica é tentada como verifícação do modelo proposto.
~ .aqm e, ond,~ com~~am os pro?!emas: A idéia, interessante, .de que
2Q Observam-se as seguintes restrições à referida autono- f01 P?ss1v~l lançar . ~ produçao agncolu para a exportação com
mia relativa de decisões: um frnanc.iamento mm1mo requer comprovação histórica. Isto pode
ser d1scuudo no caso da expansão cafeeira da Co:sta Rica ou do
/condições impostas pelo mercado internacional;
Brasil; "4 a expansão agrícola da Argentina contraria a idéia em
capacidade dos grupos exportadores locais para instau- pauta, pois o setor latifundiário pastoril fez, durante todo o século
rarem uma "ordem nacional" em que desempenhem um XIX, consideráveis inversões fixas, enquanto o setor de aoriculto-
res imigrantes ficou basicamente na dependência de adiant~mentos
papel hegemônico. i>i
financeiros das casas exportadoras de cercais ou de seus re.;.líesen-
No que se refere ao mecanismo' de formação de capital, os tantes. :;:;
autores se reportam ao importante trabalho de Celso Furtado Outro problema, talvez mais importante, deve ser acrescido
"Factores estructurales que impiden el desarrollo'', 52 em que é ao anterior: Furtado limita-se a analisar as "decisões" de inves-
feita uma análise do aludido mecanismo em uma economia expor-
tadora em que se desenvolva a moderna agricultura capitalista com
uma oferta -ilimitada de mão-de-obra (proveniente da agricultura 53 Jbidem, p. 73.
5~ Cf., C. Hall, El café y el cfrsarrullu histórico-geográfico de Costa
Rica: São José, . Editorial Costa Rica em co-edjção com a Universidad
49 Idem, p. 39. ~ac10nal, 1~7~; Stanley. J .. Stein, Gra~zdeza. e .decadência do café, São
aulo, Br~s1hense, 1.961, Pierre Munbe1g, Pwnnzers et planteurs de São
50 Ibidem, p. 46.
P~ulo, Pans, Fondat10n nationak des sciences politiques, 1952.
SI Ibidem, p. 47. 5). Cf. James R. Scobie, Revu/ucióll en ·las Pampas Historia social dei
52 Celso Furtado. Subde.sarrol/o y estancamiento en América Latina, Bue tngo argentino, 1860-1910, Buenos Aires, Solar-Hachet,te 1968 pp. 115 e
:scg. :..J-- '
nus Aires, EUDEBA, 1966, capítulo III.

238 239
timentos a nível de empresa individual e isto é insuficiente para "A produção é um prolongamento direto da economia
poder explicar a rápida expansão da economia., sobretudo nO pe- central, em um duplo sentido: uma vez que o controle das de'-
ríodo inicial. 5u cisões de inversão depende_ diret.amente do exterior e porque
Muito mais impreciso, I)las bem mais rico em :possibilidades de os lucros gerados pelo capital (impostos e salários) somente
análise, é o conceito de acumulação originária elaborado por Marx~, '.passam', em seu fluxo de circulação, pela nação dependente,
para explicar as origens do capitalismo europeu, e que pode ser mdo_ aumentar a massá de capital disponível para investi-
aplicado ao estudo do processo do advento das economias expor- mentos da economia central". r.~
tadoras, com as ressalvas cabíveis. 58 A análise das modalidades do
processo de acumulação :primitiva em cada sociedade concreta é, A isto acrescenta-se o fato das conexões entre o enclave *
talvez, muito mais explicativa das razões pelas quais pode ou não e a sociedade local serem debilmente econômicas, manifestando-se
surgir uma economia de exportação com "a produção nacional- antes a nível da extrutura de poder, de que dependem as concessões
mente controlada". Logicamente, a orientação e a intensidade do de exploração. "Do .ponto de vista do mercado mundial as rela-
mencionado processo dependerá dos grupos sociais capazes de se ções econômicas se estabelecem no âmbito dos mercados cen-
beneficiarem da acumulação originária em causa. trais."
As economias de enclave, controladas por empresas estran- Os autores distinguem com cuidado duas situações: uma e~
geiras, representam, na abordagem de Cardoso e Faletto, a face que "os setores econômicos nacionalmente controlados, por serem
oposta das ec·onomias com controle nacional. Neste caso, o fato in~a?azes de ~e~gir ~ d~ com~etir na produção de mercadorias que
fundamental é que: ex1gian:1 c~nd1çoe;_s :ecmcas, sistemas de comercialização e capit.ais
de mmta 1mportanc1a foram paulatinamente deslocados"; e a outra
em que a economia de enclave constituiu o início da economia de
56 É inkressante lembrar as observações de Eric Hobsbawm ( E1t torno
a /us urígrnes de la reiiolución industrial, Buenos Aires, Siglo XXI, 1971,
exportação, como em Honduras e, em mençir escala, no Equador,
p. 49) sobre o mesmo problema, relativamente à revolução industrial na Bolívia e na Venezuela. 60
1 ! inglesa: "Afirma-se, às vezes, que o caráter fragmentário e barato das _ Se deixarmos de lado uma série de confusões sobre o caso
primitirns instalações industriais - por exemplo das fábricas de algodão · centro-americano, "1 a anális.e da segunda situação torna-se absolu-
- permiti(1 que fossem financiadas com muito pouco capital inicial e
reinvE:stindo eis lucros. O exemplo é desconcertante. Devemos ter em
conta não só o investimento total necessário para colocar em anda-
mento a firma individual · como, também, o investimento total necessá- 59 Cardo~o e Faletto, op cit , p. 53.
rio para dar um rápido início a uma economia ·industrial: estradas, ca- * N. ~.: encl~ve é vocábulo não registrado pelo Diccionariu de /a Real
nais, cais, navios, construções de todo o tipo, investimentos agrícolas, Academia Espanola, nem pelo Novo Aurélio - conservamo-lo por expres-
minas, etc. Na verdade, uma industrialização rápida precisa não só sar um conceito familiar aos economistas e historiadores.
d,·ste equipamento inicial mas, ainda, de uma contínua inversão da 60 Ibidem, pp. 48 e seguintes.
mesma natureza. Isto dá à economia que tem reservas acumuladas (di-
f<1111us, por exemplo, a Grã-Bretanha do século XVIII), uma ampla van- 6~ Idem, ~-. 8?=. "A alternativa desta situação [refere-se aos setores mé-
t.1~,·111 sobre a economia que não as tem (p. ex., a Áustria no século dios que mobilizam os camponeses para enfrentar o sistema de domi-
X\' 11 I) Esquece-se também, freqüentemente, o fato de que todos os nação pol~t~ca] seria uma lenta transformação do setor agrário n;:icional,
!'li\ nnus tentaram, nos últimos tempos do século XVIII, industrializar- que . permitisse a redistribuição da terra, dando assim oportunidade ao
'L'. mas poucos o conseguiram." _surgimento de setores de proprietários rurais médios e pequenos. como
acont~ceu, embora de modo limitado, em Co~ta Rica". Na verdade, a
S7 Cf. K;:irl Marx, EI Capital, ed. cit., capítulo XXIV. Ver também as
intt'l't'ss;mtes observações de Alexander Gerschenkron, El atraso económico ~ro~nedade •pa~celar gerada _durante a colônia ·e os primeiros tempos
n1 SZL perspectiva 11istórica, Barcelona, Ariel, 1968, pp. 97-124. e. mdepende~c1a .de Costa Rica sofreu, com o advento da expansão ca·
f~eira, os efeitos da concentração; embora as grandes propriedades não
'K Cf por exemplo Alonso Aguilar Monteverde, Dialéctica de la econo- tivessem absorvido a totalidade das pequenas propriedades, absolutamen-
""" mexicana, México, Ed, Nuestro Tiempo, 1968, pp. 95 e seg., em que te, seu monopólio do lucro do café e do' crédito _I?ermitiu que sub-
trata de aplicar o conceito ao caso mexicano. metessem os minifundiários a rel;:i"Ções de dependência e lhes permitiu

2-10 241
tamente justificada. Entretanto, as dúvidas começam a se esboçar As explicações propostas são de diversos tipos. A mais sim-
a propósito dos países em que o controle nacional da economia ples, geralmente vinculada ao pensamento da CEPAL, 65 sustenta
de exportação coexiste com ,o enclave: Chile., Peru, México. Nestes que a formação do mercado interno relaciona-se, antes de mais
casos não é evidente a razão porque se pensa que a economia de nada, com a distribuição da renda. Um quadro de distribuição
! 1 . enclave determina um tipo de desenvolvimento muito diferente do palarizada significaria a inexistência de setores médios e, conse-
das economias nacionalmente controladas. É bem difícil decidir se qüentemente, a limitação do mercado interno: a oligarquia expor-
o peso relativo da influência externa é maior no México do que tadora com um consumo ostentatório de bens importados e a
na Argentina; não é dara a razão pela qual se considera a Co~ grande massa da :população relegada ao consumo de sqbsistência,
lômbia como uma economia nacionalmente controlada, 6 0) embora excluída do circuito mercantil. Esta visão é, entretanto, simples
nela existam setores de e)l:portação que são de enclave. A com- demais e, na maioria dos casos, pouco realista.
paração do México com a Bolívia 63 baseada em que os setores Celso Furtado pensa que o decisivo é a elevação da produ-
médios incorporam-se ao poder político, rompendo o poder oligár- tividade que ocorre em conseqüência da expansão da economia
quico, é predominantemente formal. E a incorporação dos setores exportadora, diversificando a composição da demanda global no
médios à aliança de poder é, no caso da Argentina e do Chile, sentido de dar origem a "um aumento mais do que proporcional
da demanda de produtos manufaturados". 66 Assim, os países "va-
bastante mais comparável do que no do Chile e do Peru, apresen-
zios" como a Argentina e o Uruguai, - onde a extensividade da
tado no texto. u4 Estes são simples exemplos, evidentes à primeira
agricultura impunha um uso intensivo do fator trabalho e, por
vista, da insuficiência dos critérios adotados :para elaborar uma conseguinte, salários relativamente altos - tinham condições óti-
tipologia realmente explicativa. Outros poderiam ser acrescenta- mas para que a economia de exportação engendrasse, rapidamente,
dos: entre a Guatemala (economia de enclave) e El Salvador (eco- um importante mercado interno de manufaturas. 67
nomia nacionalmente controlada) as semelhanças são bem mais Os enclaves mineiros, como é o caso da Bolívia, tenderiam
significativas do que as diferenças. - pela própria natureza da economia exportadora - a modificar
Porém, /consideremos outros aspectos importantes das econo- apenas a demanda global dos grupos vinculados ao próprio en...
mias de exportação. Um, de significação especial, é o da formação clave. Nesta situação, é sumamente limitado o mercado interno
de um mercado interno, desenvolvido com maior ou menor inten- gerado: reduz-se aos trabalhadores das minas e a uma minguada
sidade conforme o tipo de economia de exportação, e que será burocracia administrativa e comercial. No Brasil, a zona cafeeira
essencial para possibilitar os :processos de industrialização. de São Paulo tem, parcialmente, as caractt;rísticas dos pampas do
cone sul: zona "vazia", necessidade de atrair mão-de-obra do ex-
. terior, dada a abolição da escravatura, em 1888. Porém, no con,..
obter nos pequenos sítios os peões para <IS colheitas e os carreteiros
para o transporte do café para o porto de Puntarenas. Além disto, não
junto da economia brasileira · o efeito diversificador sobre a de-
den:m ser esquecidos os efeitos da aparição do "enclave" bananeiro nas manda é menor do que no caso argentino. 68 • Quanto ao México,
costas atlànticas. Ct Rodrigo Facio, Estudio sobre economía costarri· merece um destaque especial. :É o único país da América Latina
cense, San José, Ed. Costa Rica, 1972, pp. 44 e seguintes, 60-61; Samuel
Stone, "Los cafetaleros" na Revista de Ciencias Jurídicas (Universidad em que a formação do mercado interno não se relaciona direta-
Je Costa Riça), n." 13, junh,) d.: 1969, pp. hi7-217; Ciro Fla'marion San-
tana Cardoso,· La formacfón de la hacienda cafetalera costarricense en el
siglo X l X, informe mimeografado (II Simpósio sobre História Econô- 65 Porém, na forma grosseira que mencionamos ~qui, caracterizaria melhor
mica da América Latina, Roma, Setembro de 1972). as colocações da esquerda latino-americana "tradicional".
62 Cardoso e Faleto, op. cit., pp. 76 e seguintes. 66 Celso Furtado, La economia latinomericana.. cit., p. 98.
63 Ibidem, pp. 86-89. 67 Ibidem, p. 100.
IH Ibidem, pp. 94-95.
68 Ibidem, p. 101.

242 243
r! i(
I,!

mente com a expansão da exportação. O desenvolv~~ento conse-


guido pelo artesanato na fase colo~ial - e as dific~ldad~s de do, é evidente que o tipo da divisão social do trabalho determina,
comunicação da meseta central - fizera~ co~ que ah a mdu~­ estruturalmente, as possibilidades de. emergência dos referidos gru-
pDS- W
trialização de esboçasse mais como contm~.aça? d~ de~~nvolv~:
mento do artesanato colonial . do que como efeito chvers1f1cador Outro aspecto· que devemos sublinhar, por fim; é o referente
da produção para a exportação. ~11 • _ • _
aos ciclos econômicos nas economias de exportação latino~ameri­
Sendo sumamente rica a anahse .de Furtado, como exphcaçao canas. Aqui é necessário colocar os seguintes problemas:
é insuficiente. O que explica, por exemplo, que a Argentina tenha
tido · um processo de industrialização desde épocas relativamente
recuadas enquanto o Uruguai continuava, sempre, dependendo da l 9 - Primeiramente os ciclos produtivos, quer dizer, o es-
importação de bens de consumo manufaturados? O "tamanho do tudo· quantificado e datado dos vários, produtos exportados ·para .o
mercado" é, aparentemente, semelhante nos doi~ casos. 70 ~~rdoso mercado -mundial. Em muitos casos a localização dos produtos
e Faletto apontam um bom caminho quando afirmam que. a fo~: principais já foi feita, especialmente a partir das últimas décadas
mação de setores produtivos orientados para o mercado mterno do século XIX. Este melhor conhecimento foi possibilitado, sem
é função "do avanço do processo de divisã~ .social do.. tr~balho, dúvida, pela existência de estatíisticas de comércio exterior elabo-
por sua vez vinculado ao grau de desenvolvimento capitalista da r;idas pelas repartições públicas. No entanto, o mesmo não se
produção agropecuária." 71 pode dizer quanto- às eta:pas anteriores. Desde o declínio das ex-
Mas há um problema, ainda mais importante, a ser destacado portações coloniais de metais preciosos e alguns. produtos da agri~
não basta a análise da estrutura econômica: cultura tropical até os últimos anos do século XIX o conheci-
mento é muito fragmentário ou inexistente. Em muitos casos a
" ... mais do que a diferenciação econômica ·em s~, con~eg~i­ falta de estatísticas e, às vezes, a falta de documentação básica
da durante o período de expansão para fora, a d1ferenciaçao para construi-las constitui obstáculos difícil de superar. Este vazio
i1 social e, correlativamente, o equilíbrio de poder entre os ·gru- documentário pode ser superado, em grande parte, mediante o
!
:pos soéiais são os fatores que 'explicam' o tipo de desen- uso da correspondência di:plomática, sobretudo da consular, con-
volvimento alcançado nos diversos países". 72 servadas nos arquivos europeus e norte-americanos. H
Porém~ se os grupps sociais que surgem em e.ada· sociedad.e
1. dão a chave da explicação do modelo de desenvolvimento ocorn-
29 - A seguir vem o problema dos ciclos econômicos em
'1'
relação ao estudo da conjuntura. Naturalmente, isto se vincula
69 Ibidem, p. 102; .cf. Francisco López Cán:iara, La estructura . económica · intimamente com os ciclos produtivos. Infelizmente, a inexistência
y social de México en la época de la reforma, México, Sigla XXI, 1967, de trabalhos sobre este aspecto é quase total. Hoje há· um sólido
PP- 52 e seguintes. _ .
70 O mesmo poderia ser dito ao comparar-se Brasil. e Costa Rica. Celso
conhecimento das flutuações econômicas da Europa e dos Estados
Furtado tende a considerar o tamanho do mer.cado interno como um Unidos, assim como das repercussões da conjunfüra mef rópolita:n~
fator exógeno. Àssim, por exemplo, diz (Subdesarrollo .. .. ci_t., p. ~1)'. nos países latino-americanos. Quase nada há de eqmvalente a pro-
"As duas formas [refere-se à regressão a formas pré-cap1~alistas e a m·
dustrialização] foram utilizadas em toda a parte em d1fer~ntes grai.i:s,
pósito
-
de estudos das flutuações
·~ - ·econômicas vistai> da .perspec-
.,_.

porém o êxito da industrialização foi muito desigual, fenomeno facll·


mente explicável tendo-se em conta que tal· industrializa~ão apoiava-~e
cm mercados internos cujas dimensões também eram dissemelhantes . 73 Ibidem, p. 81.
71 Cardoso e Faletto, op, cit., pp. 63-64. 74 Um bom exemplo deste tipo de trabalho é a tese de_ Hcraclio Bo-
72 Ibidem, p. 79. nilla, Aspects de l'histoire économique et sociale du Pérou au XIXe siecle
Pa1is, 1970 (mimeografada).
244
245
tiva interna das economias periféricas. 7 ; Pensamos que os estudos Cumpre ver em que medida esta crise foi somente "'externa", em
de história econômica dos anos víndouros deverão empenhar-se suas origens. Em muitos· casos parece que estavam para ser al-
em esclarecer isto. Alguns temás de pesquisa podem ser imedia- cançados os "limites" do desenvolvimento para fora.
tamente sugeridos. O mais sólido conhecimento da conjuntura - Os processos de industrialização, o "desenvolvimento para
metropolitana faz com que tenda a se explicar uma determinada dentro" nem são concomitantes à crise de 1929, nem seu resul-
crise da economia de exportação - por exemplo, de 1913 ou tado automático. O caso do México é significativo: já foi des-
1929 - quase exclusivamente pela ação dos fatores externos. tacada a continuidade verificada entre o artesanato colonial e o
Boa parte dos estudos da CEPAL consideram o "desenvolvimen- desenvolvimento industrial; quanto ao Brasil e à Argentina, ambos
to para fora" como uma espécie de idade dourada interrompida., conheceram um desenvolvimento relativo e importante durante a
maleficamente, pela tempestade de 1930. Em casos como o da guerra. de 1914-18 - ou pelo menos freqüentemente atribuído á
Argentina, pode-se colocar o problema de estarem ou não 1a esta. 76
definitivamente alteradas., em 1929, as condições internas do de- . P~r _out~o lf!d_o, cumpre ter em conta que se uma política de
senvolvimento agro-exportador, a exigir uma redefinição que a mdustnah~açao _foi ~ alternativa mais inovadora para as dificulda-
grande crise do referido ano somente acelerou. O mesmo tipo de des da cnse, nao fo1 a mais generalizada: na década de 1930 so-
problema .pode ser colocado a propósito de todos os países da mente o .Brasil, a Argentina e o México apresentaram um forte
América Latina, e isto somente será possível se houver uma rup- d,esenvolv1m~nto industrial. 77 Apenas na Segunda Guerra e· no pe-
tura definitiva com os esquemas de análise do liberalismo do sé- nado de pos-guerra o processo de industrialização intensificou-se
culo XIX, que viam na divisão internacional do trabalho im- na Colômbia, no Peru e no Chile, enquanto nos demais países
plantada pela revolução industrial inglesa, um manancial de pro- latino-americanos só se fez sentir no fim da década de 1950 e
gresso infinito e inesgotável. sob a forma de. investimentos diretos de empresas estrangeiras.
Quanto aos .típicos processos de industrialização por substi-
tuição de importações, que se intensificaram em especial desde
os anos do decênio de 1930, trataremos de especificar seus prin-
cipais traços estruturais.

3. A CRISE DE 1929 E SEUS EFEITOS POSTERIORES


19 O processo de acumulaçâo de capital

Qual é a origem social dos capitais investidos na indústria?


A crise de 1929 impõe um corte necessano cm qualquer con- Este assunto tem importância singular, pois seu conhecimen-
sideração sobre os períodos da história da América Latina, A der-
to ~juda a caracterizar os empresários como um grupo social e
rocada da demanda externa significa a recessão brutal da economia
de exportação e, em muitos casos, o início do "desenvolvimento para explica boa parte de sua conduta econômica e política. No dcsen- .
dentro", quer dizer, em função do mercado interno. Duas precauções
impõem-se, desde logo: 76 CL . A. Dorfman, História de la industria argemina, Buenos Aires
Solar-Hachettc, 1970; A. E. Bunge, La i11d11sttia argentina durante la
- A crise de 1929 não foi a primeira da economia expor- guerr.a; . Revista de Economía Argentina, 1929; Caio Prado Júnim- Historia
tadora, embora tenha sido a mais importante quanto à intensidade. econo1111ca dei Brasil, Buenos Aires, Editorial Futuro, 1960. CF. infra e
debate sobre as etapas da industrialização brasileira.
77 Pormenores matizados sobre este processo estão m!.!.ito bem expostos
~s CI. infra, notas 87 e 88. cm Cdso Furtado, l.a eco110111ía l(lti11ua111erica1111 .. . , capítulo 11.

246 247
F

bilidades de oferta de mão-de-obra praticamente ilimitadas toma-


volvimento latino-a..-nericano, duas fontes alimentaram, basicamen- ram possível o crescimento concomitante dos dois setores. s1
te o investimento industrial: o setor artesanal-urbano e o setor Outr? p:oblema ~ue nos últimos anos se fez importante é o da
,, '
1'11
a~ro-exportador. A inversão de recursos agropecuários em indústrias margmaltdade social ~ quer dizer, a impossibilidade permanente
como a da alimentação e a da semi-elaboração de produtos agrí- de. um setor d: trabal~adores urbanos encontrar empregos está-
colas é típica do período do desenvolvimento para fora, veis. I~to rel~c10na-se ,a adoção de um esquema de desenvolvi-
constituindo em quase todos os casos o ponto de par- mento mdustnal com um limitado mercado interno e técnicas de
tida do desenvolvimento industrial. O setor têxtil mais pa~ pro?ução do tipo poupador de trabalho (labor-saving), e um setor
rece proveniente do setor artesanal, assim como a metalurgia e a agncola que permanentemente expulsa a população para as cida-
fabricação de ferramentas. 7 s A ação do. Estado tem uma impor- des. 8 ~
tância única. Passados os efeitos da proteção automática à in-
dústria nacional derivada da conjuntura dos anos da década de
1930, a intervenção do Estado é que proporciona os créditos e 39 Industrialização e alianças de classes
tarifas asseguradores do andamento da ref~rida expansão indus-
trial. 7() A inflação parece ser um dos mais importantes mecanismos No referente ao sistema de poder, o advento de uma classe
da redistribuição da renda, dado o delicado equilíbrio mantido trabalhadora ur~ana, politicamente mobilizada, introduziu varian-
entre os setores agrário e industrial. 80 tes._ suma~~nte mt~ressant,e~. ~ alian.ç~ populista, quer dizer, a
umao poht1ca de empresanos mdustnais nacionais com a classe
operária e uma :parte do exército é o exemplo mais típico de tais
29 Formação do proletariado e expansão do mercado interno mudanças. 83
~ industrialização substitutiva, que teve um auge nos anos
O rápido processo de industrialização também formou, rapi-
das decadas de 1930-40, começou já no decênio seguinte a ma-
damente, l}m proletariado industrial urbano, que juntamente com
nifestar uma crise que tenderia a fazer-se mais e mais séria . Os
os ,setores médios constitui um mercado de consumo de produtos
principais pr?blemas referem-se à necessidade de reequipamento
manufaturados. O crescimento do proletariado não poderia verifi-
e de abastecimento de combustível e insumos básicos, como aço
car-se a não ser a ex:pensas da mão-de-obra agrícola. Em países
e produtos q.u~micos. As dificuldades ·de financiamento e os pro-
como a Argentina, onde as possibilidades de absorção da mão-
bl~n:as cambiais pr~voc~dos pela desvalori~ação dos produtos pri-
de-obra logo esbarraram em seus limites., o próprio setor agro-
~an~s de ex:portaçao fizeram com que tanto os empresários na-
11
exportador começou a deter-se e a decair ante o desenvolvimento
1: cwna1s q~anto o Estado fracassassem no empenho de garantir o
industrial. Em outros países, como o México e o Brasil, possi-
desenvolvimento de Uma indústria pesada. O recurso da aquisição
de patentes e da associação com empresas estrangeiras começou
78 Sobre o empresariado, cf. Fernando Henrique Cardoso, Empresário a tornar-se, .então, dominante - e os setores-chaves da indústria
rndu•trial e desenvqlvimento ecu1aômicu 110 Brasil, São Paulo, Difusão começaram a ser desnacionalizados. Politicamente, a aliança po-
Européia do Livro, 1964; D. Cuneo Comportamiento y crisis de la clase
empresaria, Buenos Aires, Pleamar. 1967; Luciano Martins, "Formação do
empresariado industrial no Brasil" na Revista ·do Instituto de Ciências 81 Ver ? desenvolvimento desta tese cm C. ·Furtado Subdesarrolo y
Sociais. vol. III. n.º 1. estancamrento .. , cit., p. 81 em diante. '
79 Cf. Octavio Ianni, Estado e capitalismo: estrutura social e i11dustria" 82 Cf., sobre o problema da marginalidade: A. Q.tújano, Redefinición
il~ci('âo do Brasil, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira 1965. de . la depende neta
C · Y margina· l"zzacwn
· · e11 América Latina Santiacro do
80 Cf Sunkel, Maynard, Scers, Oliveira, lnflaciún y estructura econúmica, hile, CESO (Universidade do Chile) mimeografado. ' º
Buc·nu~ Aire~ Paidós, 1967; Dcnis-Clair Lambert, Les inflations s1~d-amé­ 83 Cf · Car d oso e Faletto, op. czt.,
. Ip. 102. e seguintes.
-
riccii11es, Paris, Institut des hautes études de l'Amérique latinc, 1959.
249
248
pulista chegou ao fim e o controle do Estado passou para novos 19 Estudo quantitativo do comércio exterior e da cnnjuntura
grupos ele poder. '~
No caso brasileiro, como fios dos outros países latino-ame-
ricanos, o estudo adequado do comércio exterior nos séculos XIX
e XX exige o apelo a documentos e a fontes impressas conser-
vadas em arquivos e bibliotecas da Europa e dos Estados Unidos,
4. POLEMICAS E ORIENTAÇÕES TEMÁTICAS RECENTES: alé~ das fontes disponíveis no próprio país. s::; As análises quan-
titativas do comércio exterior brasileiro são, ainda, muito insufi-
O CASO BRASILEIRO cientes; por ocasião do mencionado colóquio, os trabalhos apre-
sentados a propósito provieram, principalmente, de autores alemães
que se valeram de dados conseguidos nos arquivos de alguns paí-
ses da Europa, além de outros extraídos de jornais e de fontes
A escolha do caso do Brasil para a apresentação de algumas impressas. &i · ·
tendl:ncias recentes da pesquisa histórico-econômica relativa aos sé- Quanto à conjuntura econômica em seus vários aspectos -
culos XIX a XX deve-se, sobretudo, ao fato da realização de preços, salários, produção, exportação, etc. - podemos distinguir
um colóquio internacional dedicado à históri.~ quantitativa do Bra-
as pesquisas dedicadas à conjuntura interna e as interessadas nos
sil, principalmente no período 1800-1930 (Paris, outubro de 1971),
resultados da inserção do país latino-americano (no caso o Brasil)
permitir a percepção, mais facilmente do que em outros países
no mundo econômico ocidental.
latino-americanos, das abordagens adotadas na atualidade por al-
guns especialistas brasileiros e estrangeiros que trabalham com a O primeiro grupo abrange trabalhos feitos, ou em andamento,
história econômica do referido país. Como é óbvio, não se pode sobre Rio de Janeiro, Bahia e Recife. Particularmente interessan-
pretender - devido à grande heterogeneidade da América Latina te é a pesquisa de equipe, em andamento, dirigida pela professora
- que os modos de abordar a história brasileira e as problemá- Eulália Maria Lahmeyer Lobo, sobre os preços, salários e custos
ticas correlatas esgotem as possibilidades e temas colocados para da alimentação no Rio de Janeiro (1820-1930), com ampla uti-
a pesquisa em toda a área ibero-americana. Além disto, mesmo lização de métodos estatísticos e de computacão. As fontes utiliza-
cm relação ao Brasil somente apontaremos certos problemas e das são de âois tipos: livros contábeis de i;stituições hospitalares
focalizações que se nos afiguram importantes ou inovadores. O e religiosas (Santa Casa de Misericórdia Ordem Terceira de São
que aqui apresentamos tem, portanto, valor meramente indicativo. ' .
E cumpre não esquecer que os autores brasileiros que citaremos
constituem uma pequena minoria no ámbito da pesquisa histórica 85 Seria muito útil a multiplicação de catálogos e informes sobre os
depósitos documentais localizados nos países latino-ami:ricanos e no ex-
ue seu país., ainda nitidamente dominada por esquemas mais tra- terior. Cf., por exemplo, Dean Kortgc, "Centro América cn los archivos
dicionais. británicos (siglo XIX)", cm Cstudiu,- Suciales Centroamericanus, n.º 3
setembro-dezembro uc 19i2. pp. 206-210.
86 Jürgen Schneidcr, Le commercc de la Fra11ce avcc /e Brési/ e11 co11-
1'4 Subr.· a uesnacionalização ver F. H. Cardoso, "Hegemonía burguesa sidérant spécialement la posi:ion du cum111ercc frnnçais sur l~s divers
' indepenuencia económica: Raíccs estructurales de la crisis política marchés du Brésil entre 1815 e/ 1848, e Hern,;ian Kclicnbenz, Données
hr;t'ill'iia", em Brasil: 1zoy, México, Siglo XXI, 1968, pp. 86-123; aborda- stat1stiques sur le systémc rotttier Hambvurg-Terre Neuve-Brésil (premie-
l'L'''' mais gerais sob1-e o períouo em referência podem ser encontradas re ?p.oitié, du XIXe siecle>, informes mimeografados, Paris, outubro de
"m Thcotonio dos Santos, Depe11dencia y cambio social, Cuadernos de 1971. Ver também: István Jancsó e Kátia M. de Quéiroz Mattoso, Como
''1 t!dios socio-cconómicos, 'l." 11. Santinrw do Chile, CESO (Universida- estudar a história quantitativa da Ballia WJ século XIX, e Ist\án Jancsó
.i .. do Chikl. 1970: e J. Petras e M. Zcitlin (editores), Latin America. As exportações .durante a República V e/lla ( 1889-1930 ),-infonrn:s mimeo-
H, !"' m ar Rl:'l·u/11tion?, N. York, Fawcet Paperback, 1968. grafados (Paris outubro de 1971).

250 251
i'
1
Francisco da Penitência) e listas de preços publicadas por um 29 As etapas da industrialização brasileira
jornal - o "Jornal do Comércio" (1840-1930). São estud~das
séries relativas a 40 tipos de salários; e os preços de 13 artigos A ex plicação freqüentemente admitida para o processo da in-
1

de consumo local (alimentos: feijão preto., arroz, farinha de man- dustrialização do Brasil e de outras zonas da América Latina, de
dioca, açúcar moscavo, charque, café, bacalhau, carne bovina, que tal proce·sso iniciou-se em função da substituição de impor-
manteiga, toucinho; óleo de iluminação; tccidu de algodão) esta- tações vinculada aos dois conflitos mundiais e à depressão dos
belecendo-se índices de custo da alimentação com diferentes pon- anos da década de 1930 foi, recentemente, posta em dúvida prin-
cipalmente por autores norte-americanos: Warren Dean, Werner
derações baseadas em critérios sociais (tipos de. consum,o variáveis
Baer, Nathaniel Leff. 8u Conforme W. Baer e Anibal Villela, no
segundo os níveis de renda). No caso da Bahia, no seculo XIX,
atinente à industrialização brasileira podem ser constatadas as se-
procurou-se comparar a evolução dos preços com as curvas rela- guintes etapas:
tivas ao movimento vital da população da cidade rle Salvador; as
fontes disponíveis - livros da Santa Casa de ~:isericórdia em várias épocas, antes de 1914, principalmente desde
permitiram a elaboração de séries de preços relativamente a 18 o começo da era republicana (que se implantou em
produtos, mas não a de séries de salários. O estudo dos preços 1889) houve fases de desenvolvimento de indústrias leves
na cidade de Recife (1890-1940), baseado em uma amostragem vinculadas a auges da exportação, a incentivos governa-
dos dados publicados por jornais locais, abrange sete produtos: mentais, a manipulações cambiais e a medidas protecio-
açúcar, café., feijão, farinha de mandioca, arroz, carne bovina e nistas;
aguardente. 87 · a Primeira Guerra Mundial estimulou a produção, mas
Entre as pesquisas dedicadas à conjuntura do cdmércio ex- não- o investimento; a interrupção do comércio marítimo
terno brasileiro, citemos os trabalhos de Cecília Maria Westphalen tornou difícil a importação de bens de capital, necessários
sobre a exportação de erva mate da província brasileira do Pa- ao incremento da caipacidade produtiva, e que o Brasil
raná para os países do Rio da Prata, pelo porto de Paranaguá, no ainda não produzia; em vez de ampliar ou mudar a ca-
século XIX, mostrando como tal atividade refletia os ciclos da pacidade produtiva industrial brasileira, a guerra ·conduziu
economia ocidental e, também, naturalmente, as variações da po- à maior utilização da capacidade produtora das indústrias
lítica do Império do Brasil (relativamente à região do Rio da de alimentos e têxteis, já instaladas;
P'rata e às mudanças políticas ali ocorridas). ss nos anos da década de 1920 houvé um período de lento
crescimento da :produção industrial, mas de grande im-
87 Eulália Maria L. Lobo, "Una invesfigación sobre historia de los pre-
eius y salarios en Rio de Janeiro", em Estudios Sociales Centroameri-
' 1111(», n.º 2; maio-agosto de 1972, pp. 143·154; Eulália M. L Lobo e
e
89 Warrcn Dcan, The ln:lustriuli~at•u11 of Siio Paulo, 1880-1945, Austin
outro:;;, Evoluticm des pri:i; et du cout de la vie à Rio de Janeiro (1820- (Texas>. The University of Texas Press, 1969; wemer Baer, A industriali-
zação e· o dcsenvolvime11to eco11ômicu do Brasil, Rio de Jam:iro, Funda-
1903 >. informe mimeografado <Paris, outubro de 1971); Katia M. de Quei-
ção Getúlio Vargas, 1966; Nathanicl H. Leff, "Lonrr-Tcrm Br:l?ilian Eco-
roz Mattoso, "Caminhos estatísticos na história econômica da Bahia". em
nomic :bevelopment", em The Journal of Economic- History, setembro de
l '11i1·ersi1as, (Salvador, Bahia, Brasil) janeiro-agosto de 1971. pp. 135-153;
1969, pp. 490 e seguintes; Wcrner Bacr, The Devel-opment of the Brazilian
Ciadid Perruci, Les prix à Recife (1890-1940), informe mimeografado IP~­ Steet lndustry, Nashville (Tenessee), Vanderbilt University Press, 1969;
ri>. outubro de 1971). .Werner Baer e Annibal V. Villela, Industrial Growth and lndw1trializatio11:
88 Cecília Maria Westphalen, Paranaguá e o Rio da Prata no século XIX. Revisions in t11e Stages of Brazil's Economic Development, informe mi-
inturme mimeografado (Paris, outubro de 1971); da mesma autora: meografado (Paris, outubro de 1971). Os referi.dos autores apoiam-se.
O pur/u de Paranaguá e as flU/uações da economia ocidental no século XIX t~mbém, em obras anteriores, por exemplo: Stanley J. --Stein, The Brazi·
inlurme mimeografado (Roma, setembro de 1972). lzan Cotton Manufacture, Cambridge, Harvard University Press, 1957.

252 253
portação de bens de capital e grande co~sumo _de cimento
e aço, fatores que indicam important~s mversoes; _
T formas de financiamento (o que inclui as formas de relaciona-
mento com o capital e a tecnologia estrangeiras); efeitos: excessi-
durante a depressão do decênio segumte, a n~duçao das va concentração regional, problemas de distribuição de renda e
importações brasileiras conduziu a uma exp.ansao d~ pro- de balança de pagamentos ~ não empobrece em demasia a ex-
dução industrial, mas diminuiu muito a imp~rt~çao de plicação. Paradoxalmente, a· análise de um economista como Celso
bens de capital; isto e o exame de outr~s ~ndicadores furtado. é muito mais aberta ao contexto histórico global e, por
das inversões mostram que, durante a primeira. met~~e isto, torna-se mais interessante e fértil, do ponto de vista histó-
da década,, a produção aumentou através da ma10r utili- rico, do que o citado ensaio de história econômica. 9 0
zação da capacidade produtiva existente (em grande parte · Por outro lado, podemos duvidar da "novidade" do esquema
instalada nos anos do decênio de 20), enquanto a se~un­ proposto (enquanto interpretação global), embora certamente seja
da metade viu aumentar, também, a capacidade pr_?du_tiv~: útil para esclarecer e matizar certos aspectos. A importância da
expansão da produção de aço, cimento .e papel; ª. i.ndustna industrialização anterior à Primeira Guerra é algo admitido há
já se fazia um setor motor da economia do Brasil, muito tempo no· Brasil. ui
a segunda Guerra Mundial caracterizou-se pelo_ aumento
da produção, acompanhado por pequena expansao da ca-
pacidade produtiva, salvo os setores do aço ~Volta Re- 39 Crescimento e desenvolvimento: ·medida, fatores e dese-
donda) e do cimento que acusam grande mcremento; quilíbrio
momentaneamente, aumentam as exportações brasileiras de
Mircea Buescu defende o interesse de uma "quantificação glo-
produtos manufaturados;
bal da economia brasileira desde a época colonial", baseada na
fase 1947-1962 (maior intensidade em 1956-1962): des-
observação da variação da renda total ou per capita, e inspirada
de o fim dos anos cinqüenta a parte da indústria na for-
pelas tendências contemporâneas para uma econometria retrospec-
mação do produto nacional é superior à da ·agricultur11; a
tiva muito pouco crítica. Sua tentativa é, mais do que uma quan-
expansão compreende tanto os bens d.e consumo qu~~­
tificação, uma "ponderação global", como assevera Pierre Chaunu;
to os bens intermediários e de capital - e se apoia
entretanto, Chaunu considera tal ponderação "satisfatória", com o
na política do governo; a industrialização caracteriza-se,
que não estamos de acordo. Além da documentação usada ainda
então, claramente, pela substituição de importações;
ser muito mais insuficiente, heterogênea e dispersa do que a em-
Fase 1962-1967: estagnação, declínio drástico da taxa de
pregada por Toutain em seu estudo quantftativo da França rural
crescimento industrial; isto reflete o fato da substituição
de importações já não proporcionar força motriz suficiente do século XVIII ( cf. capítulos 1 e II deste manual) - que senti-
ao crescimento, e reflete ainda a necessidade de serem en- do poderão ter, para um historiador, avaliações da renda per capita
contradas outras bases para o dinamismo industrial. do Brasil de 1600 a 1950, apresentadas sem solução de continui-
dade? As transformações da sociedade brasileira fazem-nos duvidar
Como se pode ver, a :periodização proposta fundamenta-se na
distinção entre o crescimento da . produção e o das inversões ~·
90 Celso Furtado, Análise c/u "moddo" brasileim, Rio de .Tanc'Íro, Civili-
· portanto, da. capacidade produtiva - e ?ªs muda~ças est~turais zação Brasileira, 1972; do mesmo autor: Subdesar.rollo y estancamiento .. . ,
da industrialização . Tomamos as fases acima resumidas do mfor- dt. Ver também a crítica ao modelo de Furtado por M. C. Tavares e
me apresentado por Baer e Villela em Paris (outubro de 19!1, J · Serra, "Más allá de! estancamicnto. Una discusión sobre el estilo de
desarroll9 recientc en Brasil", na Revista LatinomrÍ~ricana de Cie11cias
colóquio citado). Podemos indagar-nos se o fato de t~r~m sido Sociales (Santiago do Chile, FLACSO), junho-dezembro de 1971, pp. 2-38
postos de lado, explicitamente, certos elementos . essenciais, - a 91 Nícia Vilela Luz, A luta pela industrialização do Brasil, São Paulo,
análise da política econômica do Estado nas diferentes epocas; Difusão Européia do Livro, 1961. - .

254 255
da validade de tal procedimento, e às considerações do autor so- propósit_? de Deni~-Clair Lambert no sentido d~ preservar as
bre "a renda dos escravos" baseiam-se em uma só fonte ... concepçoe~ do dualismo. estrutural - já tão justamente criticadas
e desacreditadas no Brasil e em toda a América Latina _ deslo-
A quantificação é um instrumento de grande ut.ilidad~: po:é~,
cando-as do plano regional, ·. da oposição. entre 0 ur b ano mo-
ou
não uma quantificação qualquer. Quando as pes~~1sas d1spomve1s .
não são suficientes (para não falar das fontes ut1hzadas) - algo derno e o rural arcaico, para o nível da diferenciação entre "inte-
que Buescu reconhece - é muito mais útil tratar de contr}b~ir grados" e "~arginais", entre "participantes" e "não participantes"
para que 0 sejam mais do que especular sobre ponto de referencia do,, desenvolvimento.
. O problema abordado - 0 da •• margina · l"d
i a-
de_ . -- ex1s~e e d,eve ser estudado; porém é difícil ver qualquer
tão precário. 92 ut1hdade no ab~r~a-lo em tern:ios dualistas, quer dizer, simplistas e
o mesmo autor apresentou outro informe ao colóquio de Pa- puramente des~nt1vos. Uma afirmação do tipo da feita por Lambert
ris dédicado ao problema da inflação no Brasil de 1850 a 1870
("º. setor arca~co deslocou-se, com o êxodo rural, do campo para
_' que é mais interessante ao abordar as possíveis expt.icações mo-
a cidade, particularmente para o seio das atividades residuais de
netaristas e estruturais do processo inflacionário aludido, vinculado
serviço") apresentada em um contexto em que o autor parece
à expansão cafeeira e a outros fatores, como o aumento do preço
atribuir-lhe valor explicativo, não passa da simples colocação do
dos escravos em seguida à abolição do tráfico, em 18~0. 9 :1 que deveria ser explicado. 9~
Podemos observar antes e durante o colóquio, uma preocupa-
ção ou abordagem d; moda que suscitou vários estudos de geó- 49 Evolução da mão-de-obra
grafos, economistas e - mais recentemente - sociólogos e histo-
riadores: o estudo do crescimento ou do desenvolvimento ece1nô=" Os aspectos melhor estudados, até o momento, do fator mão-
mico do ponto de vista dos "pólos" urbanos (pólos de crescimento, obra na história econômica do Brasil nos séculos XIX e XX são
de desenvolvimento, de integração; possibilidades de planejar a a escravatura e o tráfico e sua abolição. E a transição para o tra-
p.olarização), a expansão da rede urbana, as relações entre campo balho assalariado. Alguns dos mais importantes trabalhos r~lativos
e cidade, 'os desequilíbrios regionais, etc. 94 a tais aspectos foram realizados por sociólogos: são trabalhos que
Afinal, no plano das interpretações globais da realidade eco- contêm, em geral, muito mais do que a simples análise· do escravo
nômica e social brasileira recente, é uma su:Dpresa constatar-se o como mão-de-obra, e da escravidão como fato meramente econô-
mico. 96
92 Mircca Buescu, Pour une quantification globale de l'économie brési-
lienne depuis l'époque. coloniale, e Pierre Chaunu, Pour une histoire sé- ~S Denis-Clair Lambert, Le degré de dualisme de l'éco110111ie brésilienne s'est·
rielle du Brésil au XVIII• siecle, informes mimeografados (Paris, outubro 11 atténué e11 un demi-siecle? 1930-1970, informe mimeografado ( P&ris ou-
de 1971). Certos problemas teóricos da contabilidade de unidades de tubro de 1971). ' ·
produção baseadas no trabalho não livre foram totalmente postos de la-
do: d. Witold Kula, op. cit., pp. 16-28 (principalmente p. 19); F, Mauro 96 Cf. Florestan Fernandes, A integração do negro à sociedade de 1::l11sses
Lc Portugal. . , cit.. pp. 213 e seguintes. São Paulo, 1965; Fernando Henrique Cardoso, Capitalismo e escravidã~
93 Mircea Buescu, Monétarisme et Structuralism11: L'i11flation bresilienne no Brasi~ Meridional, São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1962; ocfa-
v~o Ianm, As metamorfoses do escravo, São Paulo, Difusão Européia do
de 18SO a 1870, informe mimeografado (Paris, outubro de 1971).
~vro,_ 1962; ~lia Viotti da Costa, Da senzala. à colônia, São Paulo,
94 ; Louis Jeanjean, Crissance urbaine et crOissance régio11ate au Brésil de- D1f~ao Europeia do Livro, 1966; iPierre Verger, FLux et reflux de la
pitis l'indépendence, e Jacques R. Boudeville, Pôles de développement et trazt~ des 1:.égres entre le golfe de Bénin et Bahia de Todos os santos
p<ik' de cruissance brésiliens au XXe siecle, informes mimeografados (Paris, ~~ d1.x-sept1eme au dix-neuviéme siécle, Paris - Haia. Mouton, 1968; Peter
outubro de 1971) ; Paulo Israel Singer, Desenvolvimento econômico e evolu- Eisenberg, "Abolishing Slavery: The Process on Pernambuco's Sugar
~·ào urbana: Análise da evolução econômica de São Paulo, Bl11menau, Porto Plantations", em. Hispanic American Historial Review, nQYembro de 1972,
Alegre, Belo Horizonte e Recife, São Paulo, Companhia Editora Nacional - PP· 580-597, etc.
l:1ll\t:rsidade de São Paulo, 1968.
257
256
....-
1 1

''
'
Mais receniemente, o come~o de pesquisas de demo~ratia his- ficuldade de con~eguir · financiamento e apoio institucional asse-
tóri.:;; permitiu a colocação do problema da mão_-de-obra _Je. o~tr~s guradores da continuidade dos pwjetos de pesquisa: eis as desvan-
outros pontos de vista: sua evolução quantitativa, a d1stnbu1çao tagens graves co!ltra as quais temos de lutar. Sua própria gra-
dos escravos pelos lares, a categoria dos "agregados" e sua pro. vidade é a melhor prova da vitalidade e da fecundidade das novas
gressiva desaparição., etc. Entretanto, tais abordagens ainda são concepções pois, apesar .de obstáculos tão difíceis a superar, há
bem pouco utilizadas: ficam limitadas ao Rio ?e J.aneiro e a Sã_? uma dinâmica e decidida minoria de historiadores sensíveis aos
Paúlo e só abrangem os primeiros anos de vida independente. u, progressos de sua disciplina que vêm conseguindo numerosos re-
sultados da maior importância e de indiscutível valor científico.

D. Conclusão

A historiografia latino-americana dedicada aos aspectos eco-


nômicos, e caracterizada pelo uso de técnicas e métodos atualiza-
dos com a evolução da ciência histórica ~ rriuito recente: tem,
quando muito, uns vime anos de existência; em certos países, entre-
tanto, nem .mesmo se apresentou. São .bem impressionantes os êxi-
tos conseguidos em tão pouco tempo: especialmente em se tratan-
do da época da colônia. Por outro lado, é Indubitável que, em
termos de quantidade da produção, as perspectivas tradicionais
continuam a predominar em nossos países, mesmo no campo d.ii
história econômica. As forças da inércia e da resistência à mu-
dança - muitas vezes entronizadas nas instituições acadêmicas -
a insuficiência de informação e de coordenação, a formação de-
ficiente dos historiadores em universidades que ainda confundem
a metodologia com a teoria ou filosofia da história, a imensa di-

97 Luiz LisanLi, "População e economia: bases para a industrialização. O


caso de Campinas", em Anais de. História, 1970, pp, 101-108; Maria Luiza
Marcílio, "Algunos asi>ectos de la cstructura de la fucrza de trabajo cn
la capitania de São Paulo", cit.; da mesma autora: Tendences et structures
des ménages dans la capizainerie de São Paulo ( 1765-1828) selon les listes
nominatives d'habizants, cit.; Maria Bárbara Levy, Aspectos da história de·
mográfica e social dn Rio de Janeiro ( 1808-1889), dt.

258
259

l
dor um curso introdutório de ·economia ou o estudó de algum ma·
nua! deste nível. 1
Discutiremos alguns conceitos básicos, que sem dúvida pro-
vêm da economia mas já têm· l.ugar de honra no vocabulário dos
historiadores.
Primeiramente estudemos o conceito de conjuntura. Entende-
mos como conjuntura, antes de tudo, movimento: elevações e que-
das da produção, flutuações no volume dos intercâmbios, oscila-
ções de preços. Assim, pois, as mudanças, os movimentos dós com-
ponentes essenciais da vida econômica são aludidos por esta noção
de conjuntura. Em outro sentido, a palavra também é empregada
para designar o ramo da economia que se dedica ao estudo e à
previsão das flutuações. chamadas, justamente, de conjunturais ou
cíclicas. Voltando ao primeiro sentido do vocácul~. digamos de pas-
CAP1TULO VI sagem que não se limita à esfera econômica. Também há uma
conjuntura social - dada pelas variações nas relações de força
dos diferentes grupos e classes sociais - uma conjuntura política,
CONCEITOS, MÉTODOS E TÉCNICAS etc. 2 Entretanto, até o momento tem sido a econômica a conjuntura
mais estudada - ao ponto de contar-se, presentemente, com por-
DA HISTORIA ECONÔMICA"
menorizada classificação dos diferentes tipos de flutuações econô-
micas.
Observemos, agora, um fato importante: a conjuntura, o mo-
vimento da vida econàmica. caracteriza-se pela repetição, pela re-
A: Um vocabulário básico. corrência. Aos movimentos de alta sucedem-se os de baixa, para
logo voltar a alta, etc. Isto faz com que, habituafmente, sejam con'."
sideradas as flutuações econômicas como cíclicas, falando-se corren-
temente em ciclos econômicos. Assim, "a conjuntura, como fenô-
meno repetido é, pois, um movimento estrutural". :i Deste modo, o
1. ESTRUTURA E CONJUNTURA movime·nto não se mostra anárquico ou aleatório, mas apresen-

1. Lamentavelmente, não há cm espanhol um manual adaptado às neces·


siaades do historiador, como o de Jean· Bouvier, Initiation au vocabu-
Antes de estudannos os métodos e técnicas da história econô- laíre et aux mécanrsmes éco11omiq14es co111emporai11s, cit.: uma cxcelenie
mica será necessária uma bre\'.e recapitulação dos conceitos fun- introdução à economia é a de .R. Lips.:y, lntróducción a la economia
damentais que, neste campo, serão manejados pelo historiador- positiva, Buenos Aires, Ed. Vicens Vives, 1970, 2.' ed. -(com exercícios).
economista. A referência à teoria ecpnômica é, naturalmente, obri- 2 Sobre. estes aspectos, ver alguns estudos de' F. Braudel, inseridos na
antologia: La histuria y las ciencias sociales, eh.. · ·
gatória para a análise dos mecanismos de funcionamento da so-
3. Ernest Labrousse, "Estructura v mov1m1ento en historia", em Las
ciedade capitalista e, quanto a isto,. será indispensável ao historia- esiructuras y lo.f hombres, cit., p. "97.

260 261
tando - no fundo- - uma sene de regularidades, de repetições as diferenças regionais nos preços são notáveis e, consequentemente,
que tornam seu estudo possível. Pois bem, o movimento - e po. não podemos falar de mercado nacional e sim de mercados locais
demos dizê-lo legitimamente - é cíclico em comparação com algo ou, no máximo, de regionais. A indústria é, sobretudo, de bens de
es.tável: e esta permanência é o que denominamos de estrutura. consumo: os ramos têxteis e da construção são os mais impor-
Definimos, pois, a estrutura como "um conjunto de relações maj 0 • tantes, enquanto as técnicas continuam, no essencial, dominadas
ritárias" (em outras palavras, uma "constelação de dominantes pelo artes~nato ~ ~ob o predomínio do trabalho manual. A demanda
solidárias"), a sulidariedade e proporção existentes entre um con- de bens 1,ndust~1a1s depende da prosperidade ou da crise da agri-
junto de componentes, a interdependência entre o todo e as partes. 1 cultura .. so em epocas d~ auge pode o camponês-produtor consumir
·Não se deve identificar estrutura com estática. Em história, os referidos. bens .. A cnse de subsistência é, então, 0 prelúdio da
como em todas as ciênéias humanas, a mudança, o movimento, são estagnação mdustnal. ·
essenciais e partes inseparáveis das estruturas. A permanência, a esta. Com o capitalismo industrial, a estrutura econômica modificou-
bilidade relativa" da estrutura é simplesmente uma questão atinente se sensivelmente: a produção industrial tornou-se dominante e a in~
à rapidez ou velocidade da mudança. O que nos permite opor estru. dústria de bens de capital predominou sobre a de bens de consumo.
tura a conjuntura é, meramente, esta diferença dos ritmos do movi- A agricultura perdeu, relativamente, em importância. A revolução
mento, que, como ficou claro na exposição, é igualmente essencial nos transportes (ferrovias, navios a vapor, etc.) permitiu a cons-
tanto a uma quanto a ou!ra. · tituição de um verdadeiro mercado nacional e mundial, enquanto
Vejamos, agora, o. problema das estruturas econômicas mais mudava a natureza das crises ernnômicas: já não mais serão de
especificamente. subsistência mas de superprodução.
As "relações majoritárias" de que falamos apresentam-se com Pois bem, considerando os exemplos anteriores, qual será a
um certo tipo de equilíbrio ou desequilíbrio entre os grandes setores vinculação entre estrutura, e conJuntura? As análises de Ernest
da vida econômica e, especialmente, entre a agricultura e a indús- Labrousse sobre o século XVIII, na França, demonstram clara-
tria. Logicamente, este equilíbrio não implicará apenas relações
mente que os fenômenos conjunturai~, como urria crise de subsistên-
quantitativa,s de proporcionalidade entre os setores da atividade
cia, vêm à luz e se explicam pelas contradiçõçs da estrutura eco-
econômica mas, e sobretudo, relações de interdependência entre
nômica do ancien régime. De modo análogo, uma crise de· sup·er-
eles. A estrutura econômica de a11ciei1 régime. estudada brilhante-
produção, como a de 1929, é um fenômeno de conjuntura; entre-
mente por Ernest Labrousse para a França do século XVIII. e a
tanto, como crise, revela igualmente as contradições estruturais do
estrutura do capitalismo industrial proporcionam-nos dois exem-
capitalismo em uma fase peculiar de seu desenvolvimento. Outros
plos de indispensável apresentação. Que encontramos no primeiro
exemplos: a crise de 1811 é cíclica, mas também reflete o bloqueio
caso? Antes de m!liS nada, um predomínio esmagador de uma agri-
continental imposto à Inglaterra por NapoleãO; a crise de 1847
cultura dominada pelo problema das subsistências, com uma baixa
é Cíclica, mas é também estrutural - dá-se a ruína das manufaturas
produtividade por hectare - resultado das insuficiências do desen-
rurais, o que se reflete negativame.nte na renda das massas 'cam-
volvimento científico e técnico. A perda da colheita significa, auto-
po~esas - e, além disto, o advento da Revolução de 1848 a pro-
maticamente, a crise de subsistência. A elevação brutal do preço longa e aprofunda. "
dos cereais implica a fome do povo. O encarecimento dos fretes
é a conseqüência direta da insuficiência dos meios de transporte,
5 Deve-se .ter presente que muitas crises são de tipo "misto", isto é,
uma combinação de crises de subsistência e de crises industriais de
4 Ibidem, pp. 94-95. A expressão "relações majoritárias" t! usada por superp:odução; a última destas, na Europa industrial, foi a de 1847; cf.
Labrou,se para sublinhar que "tudo t! meramente majoritário nas rela· ª analise de Erncst Labroussc, "Tres fechas cn la historia de la Francia
ções, nas leis estatísticas que as ciências· humanas nos permitem esta- ~1°dcrna", em E. Labrousse. Fluctuaciones económicas e lristoria social",
bl'kccr" ~ ·• PP. %14n. -

262 263
·~ ... ·"'·
·~-'-

2. CRESCIMENTO E DESENVOLVIMENTO 3. ARRANCADA (TAKE-OFF)

Outra sene de conceitos de uso corrente, no vocabulário dos Outra noção obviamente vizinha do conceito de crescimento
historiadores-economistas são os referentes aos problemas do cres- é a de arrancada ( take-of f em inglês, despegue em espanhol) im-
cimento econômico. plantada por Walter W. Rostow. u Não repetiremos o que há de
arbitrário e absurdo na teoria das "etapas" de Rostow. 10 Entre-
Crescimento (growth, em inglês) é um termo tomado da bio- tanto, será necessário esclarecer que o conceito de arrancada refe-
logia, alusivo a duas características do desenvolvimento dos seres re-se a um probkma de interesse fundamental, que é preciso situar
vivos: as modificações quantitativas, isto é as variações dimensio- em perspectiva teórica adequada.
nais, e as modificações qualitativas, ou sejam as mudanças estrutu- Como e por que, em determinado momento histórico dá-se
o desenvolvimento !ndustrial? f: <lifícil a resposta, .11 pois pr~ssupõê
rais. Assim, por exemplo, o crescimento da população tem um
aspecto quantitativo medido, basicamente, através das taxas de o estudo das relaçoes e das influências recíprocas de uma porção
natalidade e de mortalidade, e outro qualitativo dado pelas mo-
de. fatores, datando e quantificando com a máxima precisão as mu-
dificações na estrutura etária e de sexos da população urbana e danças ocorridas. Como indicação geral, só insistiremos na absoluta
rural, ativa e inativa, etc.
necessidade de estudar-se a arrancada em cada caso part.icular, com
Convém notar que termos como progresso (Colln Clark) ou a idéia de "reagrupar" os diferentes fatores: nada se revelou mais
desenvolvimento (Hoselitz, Meier, Ellis, etc.) referem-se ao mesmo perigoso e infrutífero do que a confiança em ,um único fator, ou
fenômeno e, no fundo, não há grande diferença entre o uso que num grupo de fatores interpretados de modo ·mecanicista que os
se faz deles. 6 isole do contexto social. ·
O problema fundamental do historiador será o de considerar
o crescimento como crescimento ·- ou declínio ou estagnação -
de um determinado grupo social, ou, em outras palavras, como um
fenômeno social que é preciso situar historicamente. Se este é o 4. TOTALIDADE E SETORES: MACROECONOMIA E
ponto de partida", como separar, em um estudo de 'casos', cresci- MICROECONOMIA; MODELOS GLOBAIS E
mento biológico, crescimento econômico, crescimento político, cres- MONOGRAFIA; O RURAi E O URBANO
cimento do 'potencial' intelectual (técnico, científico) e1 inclusive,
espiritual?" T
Trata-se agora de ·cofocar o problema das dimensões do uni-
Por isto, como observa Pierre Vilar, a m1ssao da análise his-
verso de análise: o mundo inteiro, um grupo de países, um país,
tórica, será, antes, a de reagrupar os diferentes fatores do cresci·
mento para buscar uma interpretação de conjunto. 8
9 W. W. Rostow, Las etapas dei crecimiento económico, México, Fondo
de Cultura, 1962.
6 Witold Kula, • Histoire et économie: la longue duréeff, em Annales E. 10 Críticas e discussões básicas da ohra de Rostow há em La economia
S. C., março-abril de 1960. dei despegue hacia. el crecimie11tu autosostenido, .puplicado sob a direção
de W. W. Rostow. Madrid, Alianza Editorial, 1967; Paul Baran e Eric
7 Pierre Viiar, Creci1711iento y desarrollo. Economia e Historia. Refle- Hobsbawm, "Las etapas dei crescimiento económico" em El Trimestr.e
xiones sobre el caso espa1iol, Barcelona, Ariel, 1964, p. 50. ; 9conómico, n.• 118, 1963, pp. 285-295; P. Vilar, Creclmiento... cit., pp.
8 Observe-se a semelhança desta abordagem . da historiografia francesa 5
-542.
com a adotada pela nova sociologia latino-americana: cf., por exemplo, 11 Cf., quanto l:l..> caso da revolução inglesa, os estudos de E. Hobs._
Cardoso e Faletto, 'op. cit., pp. 11-39. bawm, En Torno a los orígenes de la revolución industrial, cit.

264 265
$1

ser global em seu cume, com a condição de ser total em sua ba-
uma região, uma cidade, uma empresa agrícola ou industrial ...
Em cada caso, haverá problemas metodológicos específicos. se. " 12

Outra distinção setorial muito cbinum é a oposição entre


De um modo geral, chama-se macroeconomia o estudo das economia rural e economia urbana. As estruturas econom1cas ur-
variáveis econômicas globais, relativas a determinado conjunto
,'i
banas e rurais; o peso, a natureza e a proporção relativa da popu-
(grupo de países, país, região, etc.) - produção, circulação mo..
lação e das atividades econômicas do campo e da cidade; as rela-
netária, importação, exportação, crédito, etc. - e microeconomia
ções econômicas entre os dois setores: tudo isto é variável, confor-
o estudo econômico das unidades de produção, das empresas agrí-
me os distintos sistemas econômicos. A cidade como centro cer.i-
colas, de rilineração, comerciais, industriais, bancárias, etc. As va-
monial e administrativo, com escassa atividade econômica e pouco
riações macroeconômicas _afetam, naturalmente, as empresas mas
interc.âmbio comercial com as zonas rurais; a. cidade da Europa
há uma certa especificidade dos campos de estudo, o que é devido: ocidental nos Tempos Modernos, centro econômico (comercial,
1<?) a tipos diferentes de fontes (estatísticas nacionais ou regio- financeiro, artesanal, etc.) já importante mas inserida em um con-
nais, livros alfandegários, documentos capazes de apresentar sáies texto caracteri1.ado pelo predomínio quantitativo i.ndubi'tável e
variadas e contínuas de prci;os, salários, etc. - no caso da macro- maciço da economia rural; e a cidade sob o capitalismo industrial
economia; e contabilidade ou balanços de empresas, informações e contemporâneo, concentrando a maioria da população e da ativi-
correspond~ncia comercial, etc., - no caso da microeconomia);. dade econômica dos países denominados, "desenvolvidos": em cada
29) a problemáticas e vari,áveis distintas: portanto, a justaposição caso temos algo muito diferente quanto a funções, estruturas e
de monografias microeconômicas não basta para determinar a na- importância relativa. Analogamente, a agricultura das aldeias da
tureza e a importância dos problemas macroeconômicos, embora seja Ãfrica equatorial, extensiya e rudimentar em suas técnicas, e a
útil, sem dúvida, para controlar as afirmativas globais através de agricultura capitalista altamente mecanizada dos Estados Unidos
estudos monográficos regionais, de empresas, etc. representam universos rurais muito distintos. Em tais condições
seria arriscado tentar esboçar características diferenciais da economia
O estudo feito a diferentes níveis permite fazer-se uma idéia
rural e da urbana 4ue pretendessem ter validade geral. -Digamos
bem mais matizada e rica de uma evolução histórico-econômica. A somente - limitando-nus a épocas históricas relativamente recentes
história serial "setorial", aplicada a espaços diferentes e de dimen- - que a vida econômica rural, caracterizada por maior dispersão
sões dissemelhantes, conduz à descoberta e à análise dos desequi- do habitat, apresenta uma tendência para o tradicionalismo e um
líbrios entre nações, regiões, setores da economia, etc. A história caráter conservador no atinente às técnicas, à organização do tra-
11 serial '"global", embora realizada no âmago de uma zona limitada, balho, às formas dos movimentos· sociais:· tenhamos em mente
'1 conduz à análise dos desequilíbrios temporais entre os diferentes o caráter "messiânico" de talllas insurre1çoes rurais latino-
ritmos de evolução dos distintos níveis da atividade humana. Os americanas; ·sua evolução segue um ritmo geralmente mais lento
dois pontos de vista são, portanto, complementares e indispensá- do que -0 da economia urbana. No entanto, esta última, mais diver-
veis. Os economistas atuais constroem modelos globais: definem sificada e complexa, é também mais vulnerável. Metodologicamente,
!
variáveis globais e as avaliam com o auxílio da estatística e da a problemática, as fontes e as técnicas de trabalho variam de modo
1
econometria. A aplicação de tal processo ao passado pode-se fazer considerável, conforme se estude por um lado a economia agrícola
' i
1 ! sempre 4ue a documentação for suficiente, e considerados os peri- e, por outro, os variados tipos de atividades urbanas. O historia-
gos do anacronismo. Entretanto, convém completar este tipó de dor da agricultura tem de estar atento para· a pulsação climática,
estudo com outro: a monografia, que ,examina "com a massa dos
·documentos, todas as conexões concretas em épocas determinadas"
12 Jean Meuvret, Eludes d'/Jistoire économique, cit., p. 312; consultar.,
e serve de "garantia da validade das construções ulteriores", glo- também, François Furei, "L'histoire quantitative ... ", aL.t. cit., e André
bais. Como diz Jean Meuvret, "A história econômica pode tentar Nouschi, up cit , capítulo 4.

266 267

!
1

dação, que tendo às vezes grande importância econômica não apre-


para o movimento das colheitas a esta vinculado, para o fato de
sentam um caráter periódico ou cíclico.
que em muitos tipos de sociedàdes a propriedade da terra além
de constituir um fator econômico avulta como fator de poder e de A_ classificaçã~ mais comum considera dois grandes grupos de
prestígio social. A indústria, que habitualmente consideramos uma flutuaçoes: os movimentos breves (ou de curta duração) e os movi-
mentos grandes (ou de longa duranção).
atividade urbana, não o foi sob todos os regimes econômicos: pen-
samos, por exemplo, na manufatura dos séculos XVI a XVIII -
1.º - Movimentos breves (ou de curta duração).
simultaneamente atividade urbana e rural.
Movimentos cotidianos como o consumo de eletricidade e
de· água, por exemplo'.
Movimentos semanais.
- Movimentos estacionais: Inferiores a um ano e não têm
necessaria,mente, uma causa climática, reproduzindo-se regularmen~
te ano apos ano. As variações yinculadas às condições atmosféricas são
de grande importância na economia agrícola e fundamentais à econo-
B. As flutuações econômicas
mia pré-industrial. Outros exemplos de flutuações estacionais: as
atividades do setor . de construção, a oferta de produtos agrícolas
com preços variáveis conforme a época ,da colheita, etc.
- Movimento inter-anual ou ciclo Kitchin: Trata-se de mo-
vimentos que afetam vários anos., tendo a duração menor do que a
do ciclo decenal ou Juglar. Estudaram-nos Joseph Kitchin e A. H.
Primeir.o exporemos os principais tipos de flutuações econô-
Hansen. 13 Sua duração-oscila de três a quatro anos. Hansen iden-
micas, do ponto de vista descritivo, usando a classificação mais
tificou, segundo a experiência norte-americana, entre 1857 e 1937,
corrente. Sobre os tipos de flutuações há, hoje, um entendimento
23 ciclos breves de uma duração média de 3 a 4 anos. Tomando
bastante amplo entre economistas e historiadores. A situação muda
como indicadores as compensações bancárias, os preços de ata-
no referente às explicações propostas. Examinaremos este problema
cado e as taxas de juros, Kitchin encontr.ou, para os EUA e a
em segundo lugar, expondo resumidamente as principais teorias
Grã-Bretanha (de 1890 a 1922) uma tendência cíclica periódica
explicativas.
de 3 l /3 anos, ou seja, 40 meses. Os estudos anteriores baseiam-
se no princípio de que os grandes longos podem ser decompo;;to"
em uma série de movimentos de menor duração.
Movimento intradecenal ou ciclo Jug/ar (ou simplesmente
ciclo econômico) : Estes ciclos constituem os movimentos mais
1. PRINCIPAIS TIPOS DE FLVTUAÇOES típicos das flutuações econômicas. O nome de Juglar é o do eco-
nomista francês que os estudou pela priméira vez; e intradecenal

13 Kitchin, em Review of Economic Statistics, janeiro de 1923; A. Han·


Em primeiro lugar, é preciso classificar separadamente as va- sen, Política fiscal y ciclo económico, México. Fondo -àe Cultura Econó·
riações acidentais, como uma guerra, um ·terremoto o~ \lffia inun- mica, 1963, pp. 19 e seguintes.

268 269
foi acrescentado por François Simíand. 1 ~ A duração deste ciclo Figura 31:
oscila entre 7 e 10 anos e, em geral, seus efeitos transcendem em
conseqüências _sociais, conforme as variações do emprego, dos pre- Partes constitutivas· do ciclo juglar
ços, da distribuição de. rendas, etc. Seu auge ou sua depressão
são perceptíveis para o público, coisa que em geral não acontece fonte: Marcel Gillet, Teclmiques de l'histoire économique, 1, Paris,
com os ciclos de Kitchin. só detectados mediante a análise esta- C. D. U., 1969, p. 5 (mimeografado).
tísticu. i:.
Consideram-se quatro momentos diferentes do· ciclo econô-
mico: 1 '; Depressão ou
Expansão contração
a expansão ou o auge, isto é, o período ascendente de pros- ou
peridade; Auge
a crise, isto é. o momento de inversão da tendência asccn ...
dente;
a depressão ou contração;
a recuperação,. ou seja, o momento do reinício da pros-
peridade.

Estes 4uat110 momentos podem ser expressos graficamente


como é mostrado pela FIG. 31. Johan Akerman 11 pensa, entre-
tanto, que ~sta distinção de quatro fases é insuficiente e propõe Figura 32:
a Õistinção de seis: (FIG. 32) a fase 1 é o nível mais baixo da
depressão caracterizada por tipos de juros, salários e preços ......:..., Fases do Ciclo Juglar
todos baixos e estáveis; a fase 2 é o breve momento em que é
iniciada a expansão; a fase 3 é o período de auge; e a fase 4 é a Segundo Akerman ( Cf. nota 17)
de "equilíbrio aparente que precede, justamente, a crise"; a fase S
representa a crise; e a fase 6 representa a depressão. A justifica-
ção de Akerman para estas seis fases consiste em sustentar que 4 5

14 C Juglar, DeI crises ccimmerciales, Paris, 1889 (2.' edição); François


Simiand, J.es · fluc111atio11s écunomiques à fungue périude et la crise mon·
diule, Paris, F. Alcan, 1932.
15 J A Esi.:y, Trntaclu .sobre los cido.s económicos, México, Fondo de
Cultura Económica, 1962, p. 26.
ló W C. Mitchell. "Los ciclos económicos", cm E11sayu.s sobre el ciclo
ecu11ó111icu, publicado sob a direção de Haberler. México, Fondo de Cul-
tur·a Económica, 1956. 1
17 J. Akcrman, Estructuras y ciclos económicos, Madrid, Aguilar, 1962.
p 194

'270 27\
a distinção de . quatro momentos, apenas, torna mais difícil a Figura 33:
análise das mudanças de tendência.
Os ciclos de J uglar são bem conhecidos no que se refere ao Flutuações econômict:s durante o Século X/ X
século XIX. Os anos de crise, segundo Akerman, são: 1825, 1836
184 7, 1857, 1866, 1813, 1882, 1890, 1900 e, já em nosso século' Fonte: D. Furia e P. - Ch. Serre, Techniques et sociétés,
1907, 1913, 1920, 1929 e 1937. Para os Estados Unidos, Mitcheli Uaisons et évolutions, Col. U, Paris, Armand Colin, 1970,
fixou os seguintes anos de crise: 1812, 1818, 1825, 1837, 1847 p. 226. (Segundo G. lmbert, que se baseou em uma análise
dos preços).
1857, 1873, 1884, 1890, 1893, 1903, 1907, 1910, 1913, e 1920'. lndice
enljuanto Hansen conclui que de 1795 a 1937 houve 17 ciclos com' dos
pre~os

a duração média de 8,35 anos. 150r""...-:::-~~+-~~~+-~~~-+-~-~-I-

2. 0 ) Movimentos lnogos (ou de longa duração)

- Movimento interdecena/ 011 ciclo de Kondratieff: A pri-


meira denominação deste movimento é de Simiand, que também
chama de Fase A a ascendente e Fase B a descendente; Kondratieff
- - - Movimento secular
é a denominação usada por Schumpeter e que, além disto, perpetua Movimento Kondratieff
o nome do economis~a russo que pela primeira vez estudou siste- ~ Ciclos de Juglar

maticamente tal movimento. 18 Trata-se de movimentos de longa du-


1815 '1835. 1855 1875 1895
ração, que geralmente oscilam entre 50 e 60 anos, consideraclas as
duas fases. Cumpr~:. notar que às vezes os historiadores chamam de
- A tendência secular: (em inglê<> trend, embora esta palavra
c1clo de Kondratiff so uma das fases, sep a de ascensão seja a de
baixa. o que é inexato. Os ciclos de Kondratieff do século XIX, são possa designar, ambém, movimentos longos de duração não defini-
bem conhecidos. Até hoje foram bem estudados os seguintes: da). Este movimento demonstraria a tendência geral de mais ou
menos um século para a alta oú a baixa. No que se refere a
preços, é hoje mais conhecida a tendência à elevação do século XVI,
à baixa do século XVII. à elevação do século XVIII e à baixa
1792-1817: fase de elevação ou Fase A; do século XIX. tu Na figura. 33 é ilustrado o caso do século XIX.
1817-1851: fase de baixa ou Fase B; -O interciclo: trata-se de uma flut4ação intermediária entre
1851~1873: fase de elevação ou Fase A; o ciclo de Juglar e o movimento de Kondratieff, que abrange um
1"873-1896: fase de baixa ou Fase B; ciclo intradecenal completo e uma parte de outro ciclo .. Dura de
1896-1920: fase de elevação ou Fase A; 1O a 20 anos e orient~-se para a elevação ou a baixa. O interciclo
1920-1939: fase de baixa ou Fase B. não se repete com a periodicidade dos outros mo~imentos estu-
dados até agora. Emest Labrousse foi o único, até agora, que fez
A Figura 33 ilustra a ''decomposição'' dos Kondratieff em cicols um estudo satisfatório do interciclo. Para o século XVIII francês,
d~· Juglar. ele mostrou que, em uma tendência secular de alta para todo o

19 A obra mais completa sobre a tendência secular e os movimentos


18 Nikolai Kondratieff, "Los grandes ciclos de la vida económica", em Kondratieff é a de J. lmberl, Des Mo11veme11ts de /011gile-d11rée Korzdralieff,
En:;ayos sobre el ciclo económico, cit., pp. 35-57. Aix-en-Provence, 1959.

272 273
século o período de 1772-1787 caracteriza-se por uma regressão corn a América Latina colonial 21 são, assim, plenamente fundamen-
intercíclica que prepara o "pano de fundo" da revolução de 1789, tadas e nenhuma resposta satisfatória pôde, ainda. ser oferecida
ao afetar as rendas de todos os setores populares, especialmente neste campo.
os viticultores. Este interciclo de baixa é o único que se conhece,
até o momento. E parece que o capitalismo industrial não apre-
senta nenhum movimento deste tipo.

3<?) As flutuações nas economias pré-industriais. 2. A EXPLICAÇÃO DAS FLUTVAÇOES ECONÓMICAS

Com exceção do interciclo, a exposição anterior sobre os


principais tipos de ciclos econômicos baseia-se exclusivamente nos
numerosos estudos feitos sobre o capitalismo europeu e norte- A busca de uma explicação para as flutuações econômicas
americanos nos séculos XIX e XX. Neste s.entido, trata-se de flu- vincula-se ao próprio nascimento da economia política como c1en-
tuações exclusivas do capitalismo. Mais ainda - quase podería- cia. É bem conhecida a influência das explicações sobre a elevação
mos dizer - que são do capitalismo até a depressão que veio após a dos preços no século XVI na formação do pensamento JT\el'canti-
grande crise de 1929. Quaisquer que sejam as razões, o certo é lista. As característicali deste manual não nos permitem tentar uma
que a periodicidade das crises desaparece relativamente, enquanto exposição da história das diferentes teorias formuladas para expli-
a intensidade das depressões e auges parece ter sido amortecida. car os movimentos econômicos, nem sequer uma exposição siste-
Que h~ com as.economias préíndustriais? Qual é a natureza de suas mática das referidas teorias. Limitar-nos-emos a uma apresentação
flutuações? sumária do problema, remetendo o leitor interessado a uma biblio-
Os estudos de história dos preços, que se vêm acumulando grafia mais especializada.
há mais de quarenta anos, não deixam dúvidas quanto à existência A primeira explicação das flutuações econômicas é encontrada
das aludidas flutuações, embora seu conhecimento seja bastante no monetarismo do século XVI. Como é bem conhecido, a afluên-
imperfeito, ainda hoje. A única exceção, talvez, é a constituída cia de metal precioso americano surge como a causa do aumento
pelo século XVIII francês, exaustivamente estudado a partir das vertiginoso dos preços no curso do século XVI. Esta idéia de vin-
grandes obras de Ernest Labrousse: as variações cíclicas do preço cular as variações da produção de metais .Preciosos aos ciclos da
do trigo têm um período aproximado de 13 anos. Para outras vida econômica teve, e tem em nossos dias, considerável quanti-
províncias francesas e outras épocas temos algumas monografias
. dade de adeptos. No séculó XIX o 'economista francês Juglar foi
bem feitas. Porém, no conjunto, as questões sem respostas são em
quem, ao estudar pela primeira vez os ciclos da economia capitalis-
número esmagador e não só dizem respeito à escolha do preço de
tal ou qual produto, dos salários desta ou daquela atividade, ou dife-
rentes tipos de fo!ltes., porém, referem-se a problemas como a As teorias do desenvolvimento econom1co que se baseiam no estudo
significação que o preço ou o salário têm no conjunto da socie- das oscilações da moeda e no deslocamento dos · metais · preciosos. só
dade, quando a economia mercantil está longe de ser dominante. poderiam responder por um setor muito reduzido. da economia medieval.
Só este setor estritamente limitado da economia [refere-se ao setor mer-
As preocupações de Rodney Hilton a respeito da economia me- cantil] é que podemos supor .influenciado pclás clássicas sucessões dos
dieval, 2º ou as de. Enrique Florescano e de Ruggiero Romano períodos de prosperidade e de crise.•
21 Cf. Enrique Florescano, "La historia de los precios en la época
colonial de mspanoamérica: tendências. métodos de trabajo y objetivos",
20 R. Hilton, "Y-eut-il une crise génerale de la feodalité?", em Anna•les no Ariuario de estudios latinoamericanos (Universidad .Nacional Autónoma
E S C janeiro-março de 1951: de México) 1968, p. 121 em diante.

274 275
ta, de modo sistemático, propôs sua explicação em termos mone- Qu<1l1ío a Marx, apesar de, na afirmauva de ·Schumpeter, sua
tários. No pensamento de Juglar, as variações do tipo de juros, a análise dos ciclos econômicos ser um "capítulo não escrito" 2a -
política dos bancos centrais e as modificações dos estoques de metais nos livros II e III de O Capital, nas Teorias da mais-vaUa e na
preciosos eram as origens das flutuações econômicas. Alguns auto- correspondência com Engels o problema das crises surge em uma
res, como Akerman, :1 2 qualificam a explicação monetarista de infinidade de observações baseadas na evolução da indústria inglesa.
endógena por vincular as causas do ciclo econômico a fatores pura- No entanto, falta em sua obra um tratamento sistemático do proble-
mente econômicos - neste caso, monetários. ma, o que faz com que - embora nela haja uma teoria E?lobal do
Na mesma época da análise de Juglar, em 1875, o economista ciclo na economia capitalista - isto não tenha sido posto ~m desta-
inglés W. S. Jevons apresentou uma explicaçã<? .baseada nas alter.a- que a não ser muito temp.o depois, .e provocando mais de uma polê-
çõc:s das manchas solares que, influindo na at1v1dade solar, e pois, mica. :1~
nas colheitas regulariam todas as atividades econômicas. Em opo-
sição à explicação monetarista, é comum classificar a teoria de Je- A partir da segunda metade do século XTX, o estudo concreto
vons como exógena, porque faz intervirem fatores não relaciona- da conjuntura fez com que fossem conhecidos, com bastante evidên-
dos diretamente com a economia. Dentro do mesmo tipo dever-se-iam cia empírica, os ciclos da economia capitalista:· Entretanto, a teoria
classificar muitas das explicações, hoje abandonadas, que fazem das flutuações conjunturais, já presente na análise de Juglar, não
das guerras, das epidemias, dos fatores cósmicos ou meteorológicos se integrou na teoria geral. :é.· fácil constatar as causas disto. A
as principais explicações do Ciclo e(:Onômico. economia marginalista procurou, antes de mais nada, a formulação
Nem a fisiocracia, no século XVIII, nem a Economia Polí- precisa de uma teoria da formação dos preços dos bens e serviços
tica Clássica dos séculos XVIII e XIX tiveram grande preocupa- oferecidos e demandados em um mercado capitalista típico. E esta
ção teórica com a explicação das variações cíclicas da economia análise expressou-se em termos de equilíbrio, isto é, foi definido
capitalista. O interesse centralizava-se no conhecimento das, ~ariá­ um sistema de equações que descrevia o dito mercado, formulan-
veis essenciais da vida econômica: a renda, o lucro, o salano, o do-se, logo, problemas deste tipo: que acontece com as outras
valor, o préço e o custo das mercadorias,· por exemplo. A ela- equações do sistema quando se altera o valor de uma equação
boração de um modelo teórico que explicasse à produção, a dis- dada? Um. exemplo disto seria: qual a relação preço-custo de
tribuição, o intercâmbio e o .consumo de bens e serviços na socie-
uma mercadoria produzida por uma empresa dada, que assegu-
dade capitalista conduziu, assim, a forjar antes de mais nada, os
rasse urna renda total, líquida, máxima1 O interessante em tudo
instrumentos conceituais da análise econômica. Nenhum esforço foi
isto é que a análise em termos de equilíbrio é, por definição, está-
feito tendo em vista a integração dos dados da história da econo-
mia capitalista nos aludidos modelos; dados, muitos deles, já bem tica. E, justamente por isto, a teoria da conjuntura ficava sempre
conhecidos pelos economistas clássicos. Deste modo, a análise da à margem da teoria geral, antes de mais nada como uma acumu-
economia política clássica culmina, na obra de J. S. Mill, com lação de dados empíricos e de explicações limitadas ao campo da
w;na série de predições sobre a estagnação secular a que estaria conjuntura. Com a crise de 1930, o pensamento keynesiano mudou
condenado o capitalismo - que os fatos não confirmavam. Esta em grande parte a problemática da economia política. Assim, do
incapacidade para integrar as flutuações cíclicas em um modelo problema do equilíbrio geral de um mercado de bens e serviços
geral é significativa porque autores como D. Ricardo e J. S. Mill passou-se para coisas bem mais concretas - como o pleno ernpre-
conheceram as questões monetárias, :pelas quais manifestaram
grande preorupação em muitos trabalhos e, em especial, conhece-
ram a inflação de guerra ( 1793-1815). 23 J. Schumpeter, History of Economic Analysis, Londres, 1954, PP. 747-
748.
24 Sobre isto, consultar P. M. Sweezy, Teoría dei denirrollo capitalista,
22 Akerman, op. cir ., p. 182. México, Fondo de Cultura Económica. 1969. S.• edição, III parte.

276 277
i
1

il
go em determinadas condições monetárias e de utilização dos fa- ao consumo; como a quantidade de receita reserváda ao consumo
tores de produção. Entretanto, a obra de Keynes usou os mesmos é menor, as vendas caem e., conseqüentemente, os estoques aumen-
princípios de análise estática que vinham predominando na econo-. tam. Ante este aumento a produção diminui e, com isto, vem a
mia desde o tempo de Ricardo, passando por Marshall, Walras e redução do número de trabalhadores e de horas de trabalho nas
a economia marginalista. Porém, ainda em conseqüência da própria fábricas: o que fará cair a receita total, pois os lucros terão sido
crise de 1929 e da depressão da década de 30, tomou-se necessá- reduzidos e haverá menos salários a pagar. E o processo prosseguirá
rio o estudo dos ciclos econômicos com o objetivo de serem cria- de modo cumulativo até estabelecer-se novo equilíbrio entre o
das políticas anticíclicas. Isto levou os economistas a se preocupa- consumo e os . estoques acumulados, ainda por vender.
rem, também, com a dinamização dos modelos marginalista e Temos aí uma explicação de certo tipo de variação conjuntu-
keynesiano. Do interesse no equilíbrio estático passou-se, ·agora, à ral, mediante um raciocínio lógico que estabelece algumas inter-
formulação de questões como a seguinte: qual é o valor que assu- relações de causa-e-efeito a partir de uma séri~ de conceitos conhe-
me determinada variável no curso do tempo? A econometria nasceu cidos. A observação empírica não intervém de modo algum na
com esta preocupação central, nas obras de Ragnar Frisch e J. formulação da explicação.
Tinbergen.
- Explicações empíricas: São, por exemplo, as derivadas de
O acúmulo de estudos sobre o ciclo econômico do capitalismo uma análise estatística e/ ou qualitativa dos ciclos da economia
- devido à econometria - . não levou, entretanto, a formulações capitalista. Neste caso, a construção da explicação dá-se de modo
teóricas sobre as causas do ciclo econômico, uniformemente admi- indutivo,' generalizando a partir da observação de casos concre-
tidas. Mais ainda, pareceria que atualmente o tema das flutuações tos. Os trabalhos de W. C. Mitchell ou de Clapham são exemplos
econômicas pertencesse ao passado e que sua explicação interessas- desta tendência. ~:;
se mais à história. Isto está relacionado, sem duvida, com a desa- Logicamente, a maior parte d'as pesquisas do ciclo econômico
parição dos ~iclos de Juglar, desde o pós-guerra. situari1-se entre estas duas posições extremas. Isto é, coinbinam a
Até aqui temos tratado de apresentar as teoria~ das flutua- dedução teórica com a observação estatística. A econometria co-
ções cíclicas em relação à evolução do pensamento econômico. Mas, loca-se nesta perspectiva, assim como a teoria de Schumpeter que
cumpre mencionar, ainda, uma série de autores, importantes por põe a inovação no centro da explicação dos ciclos. Algo semelhante
seus estudos da conjuntura e consideravelmente afastados das ocorre com as alternativas de uma explicação puramente endógena
linhas acima esboçadas. Tais explicações das flutuações econô- ou exógena do ciclo - no sentido já abordado. A presença de
micas podem ser classificadas em dois grandes tipos: explicações ·aspectos institucionais (fatores não exclusivamente econômicos)
dedutivas e explicações empíricas. como parte da explicação das flutuações econômicas foi conside-
- Explicações dedutivas: Derivam de alguma teoria e care- rada com ênfase especial nos trabalhos de W. C. Mitchell, J. Schum-
cem, quase sempre, de comprovação empírica. Consideremos o se- peter, J. Akerman e W. W. Rostow. :.!ü
guinte exemplo, versão bem simplificada do que os economistas
denominam de ciclo de estoques.
Suponhamos uma economia em equilíbrio, cuja receita total 25 W. C. Mitchen, Business Cycles. The Problt!m and ,Jts Setting, 1927;
J. H. Clapham, An Economic History o/ Modern Britain, 3 vol., 1926-
(salários, mais lucros, mais rendas, mais juros) tenha um nível
1938.
determinado, em que a poupança total da população iguala a in-
26 W. C. Mitchel, "Los ciclos económicos", cit.; Akerman, op. cit.:
versão total. Suponhamos, também, que a população resolva aumen-
J. Schumpeter, Business Cycles, 2 vols., 1939; W. W. Restow, The Proce,~s
tar sua poupança, para isto destinando parcela menor da receita o{ Economic Growth, Oxford. 1953.

278 279
indagação clássica na profissão de historiador: o -que é um fato
ORiiENTAÇAO BIBLIOGRAFICA PARA AS
FLUTUAÇÕES ECONOMICAS: histórico? À contestação do positivismo, relacionando-o ao acon-
tecimento, apresenta-se a alternativa da série estatística. 2 1 Pierre
Chaunu denominou de "história serial" a esta nova abordagem, que
na verdade já nem é muito nova, pois tem mais de 40 anos de exis-
tência significativa. 28
Quais os requisitos exigidos às fontes da história ·serial? Os
As diversas teorias explicativas da conjuntura são magnifica- três seguintes são, indubitavelmente, essenciais: 211
mente expostas, embora a nível bastante elevado, na obra de G.
Haberler, Prosperidad y depresión, México, Fondo de Cultura Eco- Validade ou segurança: isto é, absoluta confiança quanto
nómica, 1953. Uma exposição mais simples será encontrada na se- a tratar-se de um documento que realmente registre o que
gunda parte de: Jame~ Estey, Tratado sobre los ciclos económicos, se pretenda medir;
México, Fondo de Cultura Económica, 1962. Na recopilação dos continuidade e abundância: são necessárias séries l-0ngas e
artigos de G. Haberler, Ensayos sobre el ciclo económico, México, contínuas para autorizar conclusões verdadeiras;
Fondo de Cultura Económica, 1956, também há matéria interessan- homogeneidade: a fonte deve ser da mesma natureza, sem-
te. Para o historiador, a obra ·de Akerman, Estructuras y ciclos pre que possível, para todo o período em estudo.
económicos, Madrid, Aguilar, 1962, contém sugestões e ensina-
mentos interessantes, enq4anto a introdução geral do trabalho de O objetivo é, pois, a reconstrução de uma série - de preços,
Ernest Labrousse, La crisis de la economía francesa ai final dei por exemplo - da maior confiabilidade, continuidade e homoge-
antiguo régimen y al principio de la Revolución (em E. Labrousse, neidade possíveis. Uma precaução deve ser constante, entretanto:
Fluctuaciones económicas e historia social, Madrid, Tecnos, 1962) a história serial não é um objetivo em si, é só um passo no sentido
constitui leitura indispensável. da história total. "A história 'conjuntural', em verdade, como foi
concebida na França por François Simiand e Ernest Labrousse, re-
clama uma análise social das mais complexas"."º Especialmente os
tão mencionados trabalhos de Labrousse convertem a análise "con-
juntural" na "mais perfeita lição de história total que se possa
desejar". 81 O perigo de "ficarmos" na história serial é grave:
conduziria, como observa Furet, a privilegiár -o "equilíbrio de um
C. Quantificação e est~tística em história: 1) As fontes sistema" ao destacar-se a mudança, o movimento de uma det~rmi­
- e. sua elabaração nada variável, mas arrisca-se a ficar cego para as mutações estru-
turais. 82

27 Cf. F. Furet, "L'histoire quantitative .. " art. cit., p. 65.


28 Cf. P. Chaunu, artigos citados (Cap. 1, nota 10).
1. PRINCIPAIS TIPOS DE FONTES 29 F. Furet, art. cit., p. 68 -em diante;, E .•Florescano, "La história
de los precios ... ", art. cit., pp. 126-127. -
30 P. Vilar, Crecimiento y desarrollo, cit .. p. 16.
31 Ibidem, p. 16.
32 F. Furet, art. cit., p. 66. Furet observa, acertadamente, que os
A introdução da quantificação na história, a princípio feita debates sobre a "arrancada" industrial estão relacionados diretamente
só no domínio da história econômica, gerou uma nova resposta à a isto. Assim, por e:templo, as transformações tecno)ógicas são um fator

281
280
1

i i'

Vejamos, agora, os principais tipos de fontes a usar, no atinente " processo de elaboração da~ aludidas médias. os·· livros contábeis
à história serial econômica. Dois problemas, na verdade, serão de hospitais, conventos, casas nobre~, et"c., permitem que conheça-
analisados juntos: que variáveis desejamos quantificar, e através de mos os preços das transações repetidas periodicamente. Deste modo
que tipo de fontes. a comparação fica assegurada. Hamilton usou tais fontes em seu~
A quantificação começou pela história dos preços: os trabalhos · estudos clássicos sobre a Espanha. No entanto, elas também têm
de Simiand, Hamilton, Labrousse, Beveridge, entre outro·s, mar- suas inconveniências: é possível que o preço registrado não reflita
caram · este início. a:i Em primeiro lugar porque o preço de certos tão bem quanto a. mercurial'. o preço de mercado que afeta a maio;
artigos e suas flutuações constituem um indicador da atividade eco- part: dos consumidores, pois um comprador importante. pode con-
nômica de indiscutível validez. Em segundo lugar porque "os preços seguir, ,por vezes, um tratamento preferencial por parte do ven-
dos bens e os salários registrados nos livros contábeis da época dedor. 3 ~ ·

[trata-se da era prato-estatística] constituem os dados econômicos Para o i:aso da .A.mérica Lati.na, a situação é de ausência quase
contínúos mais antigos de que é possível dispor-se". 34 com~leta de. ~e~cuna1s (ou eqmvalentes), o que força a recons-
Do ponto de vista das fontes, duas possibilidades diferentes truçao da h1sto~1a dos preços cidade por cidade, região a região,
se apresentam: os livros contábeis por um lado, as "mercuriais" com base nos livros de contas disponíveis. au
pelo outro. Os estudos de Labrousse baseiam-se nas m-ercuriais Outras fontes podem ser acrescentadas aos livros contábeis e
estabelecidas na França pela Repartição de Subsistência, a partir às mercuriais - e não só interessam à história dos preços;
de 166 7: trata-se de uma estatística oficial que registra os preços
de cada região e de cada cidade, regularmente. São, obviamente, - relações, memórias e outros documentos oficiais;
preços elaborados, preços médios, e isto faz os partidários dos livros jornais diários e periódicos em que haja cotações de certos
contábeis porem em dúvida sua legitimidade, porque é ignorado artigos, movimento marítimo, etc.;
documentos aduaneiros;
registros cartoriais (que permitem apurar os preços de
"exógeno" em uma serie de. curvas que certamente as refletem, mas os bens de raiz, de grande validez). a1
motivos da adoção das referidas técnicas não podem ser deduzidos das
próprias curvas. As possibilidades de quantificação não se limitam aos preços.
33 F. Simiand, Recherches a11ciennes et nouvelles sur le mo1wement gé-
néral des prix du XVI.e au XXe siecle, Paris, Domat-Montchrestien, 1932; A história demográfica, estudada em outro capítulo, também pro-
do mesmo autor: Le salaire, z•evolution sociale et la monnaie, 3 vols. porciona dados quantitativos de grande valor para a história eco-
Paris, Alcan.' 1932; Earl Hamilton, Money, Prices and Wages in Valencia. . nômica, inclusive a oferta de mão-de-obra e o consumo inferidos
Aragon and Navarra, 1351-1650, Cambridge <Massachussetts>, 1936; Sir Wil- de urna população em crescimento ou em d.eclínio.
liam Beveridge, "The Yield and Price of Com in the Middle Ages#, ·~m
Economic Swvey Review, 1927, reeditado em Caros-Wilson, (Essays in. O estudo da produção é outro grande tema da quantificação.
Economic History, vol. 1, Londres, Arnold, 1966); do mesmo autor: .Prices Indiscutivelmente, é bem mais difícil do que o estudo dos preços,
·and Wagei ln England (rom the Twelfth to the Nineteen1h Cenrury, Lon-
dres, Longmans, 1939i Ernest Labrousse, Esquisse du mouvement des prix
et des revenus en France au XVIII e siecle, 2 vols., Paris, 1932; do mesmo 3~ Cf. P. Vilar, Crecimiento y desarrollo, cit., pp. 210 e seguintes. 242
autor: La crise de l'économie française à la fin de L'ancien régime et au e seguintes.
début de l~ Révolution, Paris, 1944 (As duas obras de Labrousse foram ~6 A melhor exposição do problema para a América Latina, que conhe-
publicadas, fragmentariamente, em espanhol: cf. Fluctuaciones económi· cei:nos, é a dos trabalhos de Enrique Florescano: "La historia de los
cas e historia social, cit. ); cumpre considerar, também, os artigos, extre- P;ecios ... ", art. cit., e Predos dei maiz )' ciisis agrícolas e11 ,\fé.tico
mamente importantes, de Jean Meuvret, reeditados em Etudes d'histoi· c1t.. 1 e II uartes
re économique, cit. 37 Inventári~ exau~tivo e de sumo interesse para o historiador latino-
34 Earl Hamilton, "Uso y ·abuso de la historia de los precios", em americano há na comunicação de lstván Jancsó e Katia M. d~ Queiroz
Hamilton, El florecimiento dél capitalisnw · y otro~ ensayos de historia ~ai.toso, Como estudar a história quantitativa da Bahia do século XIX,
eronómica, Madrid, Revista de Occidente, 1948, p. 233. ans. outubro de 1971 (informe mimeografado).

282 283
r.f' 1

sobretudo no referente às fontes. Deste ponto de vista, na E.urupa. porcionam dados de grande interesse, assim como . as recopilações
quanto aos séculos XIX e XX, e na América Latina quanto ao estatísticas dos Estados.
presente século, principalmente, as estatísticas oficiais proporcio- f: necessários lembrar que hoje, como já observamos no capí-
nam uma orientação indispensável, embora deva-se ter em conta tulo anterior, a quantificação transcende a história econômica. A
sempre o problema· daquilo que possa ter escapado ao crivo da história social, mesmo a literária e a das mentalidades, e certos se-
estatística oficial. No que tange à era proto-estatística, os documen~ tores da h~stória política, interessam-se pelo que pode ser quanti-
to~· de empresas, as fontes tributárias e as relativas ao comércio in- ficado. Adiante apresentaremos alguns exemplos destas novas ten-
ternacional, constituem o material mais freqüentemente disponível. dências; agora passaremos aos procedimentos gráficos e · estatísti-
As· fontes fiscais- proporcionam sempre uma medida indireta, mas cos. ~onvém ~bs,ei:var qu:, ~mbor~ o· façamos a partir de exemplos
va:io~a. da produção - e, considerando-se sua relativa abundân- extra1dos d_a historia economtca, tats procedimentos são válidos para
cia, ~ão um material indispensável. 38 Os documentos das empresas qualquer tipo de estudo serial.
proporcionam dados de primeira mão, mas de nível microeconô-
mico. Conseguir dados agregados é impossível, salvo no caso de
empresas que atuem em plano monopolista (concessionários mine-
radores, "enclaves" de gr;Jtlde lavoura, companhias privilegiadas,
etc.). ·
O estudo das flutuações das rendas surge quase junto com o 2. A CONSTRUÇÃO DA CURVA
dos preços. "" Para os salários e, em geral, as receitas do fator
trabalhe'. os livros contábeis e estatísticas. ofióajs serão fontes abri~
gatórias. Para os lucros e rendas da terra os métodos diferem con-
forme as fontes: o mais direto é o cálculo por empresa, usando Reunida a série de dados e disposta em um quadro, ·é preciso
documentação correspondente; "° o mais indireto implica fazer analisá-los. O primeiro pàsso será sua representação gráfica: dois
o cálculo dos lucros· com base nos preços, na produção, no volume tipos de curvas podem ser usadas para isto - curvas aritméticas
dos negócios, nos estoques e custos. ~ 1 ou curvas logarítmicas (na verdade, em história usam-se mais as
Por fim, quanto à receita do Estado, as fontes. fiscais e as curvas semilogarítmicas, conforme veremos.).
estatísticas oficiais impõem-se como obrigatórias.
Os intercâmbios são outro importante aspecto da história ec~
nômica quantificada. Os documentos aduaneiros, os livros de re- 1Q) Curvas aritméticas
gistro dos portos, ferrovias e outras empresas de tr~nsportes pr~
No caso das curvas aritméticas. os pontos são definidos por um
par de coordenadas cartesianas, c'ujas divisões são aritméticas:
38 Exemplos de emprego das fontes fiscais encontram-se em Gonzalo
Anes. Las crisis agrarias en la Espaiía moderna, Madrid, Taurus, 1970;
uma discussão geral sobre este tipo de fontes, especialmente as relativas
aos. dízimos, há s:m J. Goy, E. Le Roy Ladurie, Les Fluctuations du y
produit de la ctime, Conjoncture décimale et domaniale de la fin du
moyen dge au XVII/e siecle, Paris-La ~ye, Mouton, 1972·.
39 Cf. ·as obras citadas na nota 33 .
.40 Os livros contábeis, contratos de arrendamento, etc. ·ExemplUS disto
cm Pierre Vilar, La Ca.talogne dans l'Espagne moderne, t. 2.; Paris.
SEVPEN, 1962.
41 Cf E. Labrousse, La críse de l'économie ... cit., segunda parte. o X
284 285

:
L
~ 1

da ordenada. Duas curvas paralelas iudicam o mesmo crescimento,


Na abscissa "X" representa-se o tempo (em anos, meses, etc.); em valores absolutos:

?
na ordenada· "Y" as quantidades (de produção, preços, salários,
exportações, etc.) .. Nos dois eixos., a escala de representação é
aritmética. O modo mais simples de traçar uma curva aritmética é 55~
mediante um papel milimetrado comum. Para exemplificar, re-
presentaremos com uma curva destas o quadro que dá o valor c2V
das exportações argentinas de milho, entre 1884 e 1914, em milha-
res de pesos-ouro. (Ver Quadro 7 e a Fig. 34). 50 500 ~
Algumas cautelas necessárias são as seguintes:
- calcular o gráfico de modo que os intervalos marcados
Os dois segmentos sã9 paralelos, pois o aumento em valores
sobre a abscissa tenham um comprimento semelhante aos dos mar-
absolutos é igual em ambos os casos. Note-se que 0 aumento per-
cados sobre a ordenada: assim o gráfico ficará proporcionado e
centual é, entretanto, bem diferente: 100% em t e 10% em 2.
elegante;
- os diferentes pontos da curva são unidos mediante uma
liPha contínua, sendo reservada a linha pontilhada para o caso de 29) Curvas semi/ogarítmicas
faltarem dados; quando forem representadas duas. ou mais curvas
em um mesmo gráfico será necessário distinguir cada uma mediante A mesma curva construída em papel semilogarítmico - isto
o moçlo de unir os pontos que as compõem (uma será em linha é, um papel mili?1etrado cuja ordenada tem uma ~scala logarítmica
contínua, outra em linha pontilhada, outra uma sucessão de peque- enquanto a. abscissa tem uma aritmética. - apresenta os dados
nos traços, etc.); de modo mais elaborado. O papel semilogarítmico é vendido co-
,_,._ não traçar mais de três curvas num só gráfico, pois a mercialmente, em folhas de 2 a 3 módulos, conforme a ~scala
superposição dificulta a leitura; logarítmica esteja reproduzida sobre a ordenada duas ou três vezes.
- havendo necessidade de mudar a escala de medida da Para traçar uma curva semilogarítmica não é necessário conhe-
abscissa ou da ordenada, corta-se a linha correspondente com dois cer a ~ase matemática dos logarítmos mas, apenas, ter em conta
traços, para indicar a mudança (imaginemos, por exemplo, uma ,as segumtes regras de emprego do papel semilogarítmico:
curva cujos valores estejam todos. com'preenqidos entre O e 100,
salvo um que é igual a 2. 000: se representarmos este. único ponto - o zero não pode ser representado ,_. porque o logarítmo
na mesma escala a curva terá dimensões exageradas, de difícil rea- de zero é igual a menos infinito; 1 (um) é o valor inicial
da ordenada;
lização gráfica, o que não ocorrerá se apelarmos para o artifício
indicado). em cada módulo só podem ser representados os valores
compreendidos:
- traçadas mais de uma curva e a escala da segunda sendo
diferente da primeira, pode-se traçar esta última na vertical direita
entre 1 e 10;
do papel ( cf. por exemplo, rio capítulo· IV, a Fig. 5) . entre 10° e 'ion+ i
- em todos os casos é necessário indicar precisamente o Exemplos: de 10 a 100 ( 101 a 10~)·
título do gráfico, as unidades de medidas em que os dados são de 1O.000 a 100. 000 ( 10 4 a 1O;'), etc.;
expressos e a procedência dos mesmos.
O princípio fundamental da leitura da curva é simples: quanto assim, se a série vai além da extensão do primeiro módulo,
mais pronunciada for a inclinação maior a diferença dos valores será necessário usar o 29 e o 39, conforme a necessidade,

286 287
para preservar a continuidade da curva. Por exemplo: ·de QUADRO 7:
1 a 100 são precisos dois módulos., de 1 a 1 . 000 três
módulos, de 1 . 000 a 100. 000 dois módulos, de_ ..... . Exportações Argentinas de Milho
(Valor em milhares de pesos
1 . 000. 000 a 1 . 000. 000. 000 três módulos.
ouro - 1884-1914)
A leitura da curva deve basear-se no seguinte princípio: as Anos Valor
diferenças de ordenadas iguais correspondem a aumentos ou redu-
ções percentuais iguais e não a diferenças absolutas iguais. Por 1884 2.274
exemplo, uma mudança de 50 para 100 aparecerá paralelamente .1885 3.957
a uma de 300 a 600 (aumento de 100% em ambos os casos); 1886 4.653
mas uma de 50 para 100 não será paralela a outra de 100 para 150 1887 7.237
(embora o aumento do valor absoluto seja df 50 nos dois . casos). 1888 5.444
'I
1889 12.978
Assim, pois, ao construir a curva em papel semilogarítmico pode-
1890 14. 146
mos ler os aumentos e reduções diretamente em termos__percen-
1891 1 .450
tuais. •:i
1892 8.561
A comparação das duas curvas construídas a partir dos dados 1893 1. 578
relativos aó valor .das exportações argentinas de milho entre 1884 e 1894 1.046
1914 (Fig. 34 e Fig. 35) nos permitirá ilustrar as· diferenças 1895 1o.193
entre a curva aritmética e a logarítmica. 1896 15.995
1897 5.479
1898 9.274
42 Isto é possível graças a uma propriedade dos logaritimos, facilmente 1899
demonstrável: se x. 1 , x. 1 , x.:i são valores que têm distâncias iguais em 13.043
uma esca~a aritmética, então: 1900 11 . 934
1901 -18. 887
X3 - X~ = X~ - Xt
1902 22.994
1903 33. 147
Aplicado os logarímos resulta: 1904 44.391
1905 46.537
1906 53.366
log Xa - log X:i = log x~ - log x 1 1907 29.654
1908 41.557
Ou seja: 1909 58.374
1910 60.261
Xa X;i 191 1 2.767
log - - = log - - 1912 108~908
X;i X1 1913 112 .292
1914 77. 720
O que indica que temos mudanças proporcionalmente iguais na variável.
Cf R G D. Allen, Análisis matemático para economistas, Madrid, Agui· Fonte: Anuarios de la Dirección General de_Estadística
lar. 1%8, 8.• edição, pp. 214 e seguintes.
(República Argentina)
288 289
tica são manifestas quando se examina as altas e· baixas de uma
,,::;;.I curva. Entretanto, é preciso considerar os seguintes prublcmas:
}.gani l4 ,11 a curva semilogarítmica é muito mais sensível às rcquenas
~ ,,... ,., .... ·~1 ~ -~..,"'""-' J, \f :1,,.
•" •rc' r~1 ;"''"' •'·•'"' ~q l~I~ ! ' do que às grandes variações;
'"'""' '""'·" '~- , r~"·' .i._,, ..i~~'"
J.> 11~·'"'. -
quando são iguais as percenatgens de aumento as curvas
são paralelas, como vimos, o que às vezes pode deturpar
a interpretação: por exemplo, a passagem de urna para
""""'\
....... 1 duas toneladas tem a mesma representação que a passa-
"'''u•!
1
gem de dois milhões pi:tra 4 milhões de toneladas; obvia-
mente, do ponto de vista econômico, em uma produção
qualquer a significação da passagem de 2 milhões para
4 milhões é diferente (e muito mais difícil) do que um
salto de uma para duas toneladas.
Estas duas premissas devem ser consideradas, embora sempre
que possível devam ser usadas curvas semilogarítmicas, porque
Figura 35:
são muito grandes as vantagens de sua leitura e relativamente sim-
__!!!!
ples o trabalho de elaborá-las.

3. OUTROS PROCESSOS GRÁFICOS

19) O gráfico de colunas

1 Podemos representar nossos dados mediante curvas aritméticas


'""''! I \i
ou semilogarítmicas, sempre e toda vez que as variáveis a repre-
;::::::: : ; rni 0{ 1
,1\ /
.
,1
sentar na ordenada e na abscissa forem c9ntínuas. E uma variá-
vel é continua quando pode assumir qualquer valor em uma gama
:::::;' ( \;\ 1 \ de valores dada. Assim, por exemplo, se uma de nossas varLáveis
'·"" + i~ . é o tempo, digamos o período de 1810-1850; estaremos diante de
. . L~---··---~~---· ....~-.J
llLK' l~l 111'1~ l'l!Mf 1'111~ to,110 1<11'-
uma variável contínua, pois neste lapso dado nossa variável poderá
assumir qualquer valor. Conforme interesse a nossa pesquisa, pode-
No primeiro caso ooservamos um movimento ascendente. remos dividir o período 1810-1850 em anos, meses ou períodos
bicvemente alterado entre 1884 e 1895, que logo tem duas quedas menores, segundo nossas necessidades. O mesmo se dará com a
significativas: uma em 1907 e outra mais acentuada em 1911. No variável preço: dada a unidade monetária, o preço de um produto
segundo caso observamos, igualmente, um movimento ascencional. poderá flutuar - digamos, entre 1O e 20 pesos - assumindo
mas vemos que as quedas de 1891 e 1894 são quase tão acentua- qualqller valor; como 16,5 ou 11,33. O fundamental na medição
da\ quanto a de 1911. enquanto as de 1897 e de 1907 são sensi- de uma variável contínua está em poder-se estabelecer numerica-
velmente mais atenuadas do que se poderia depreender da curva mente o valor da distância entre dois pontos de uma dada escala;
aritmética. As vantagens da curva semilogarítmica sobre a aritmé- assim, entre 12, 1O e 12,50 há um intervalo de 0,40.

290 291
Muitas das variáveis usadas nas ciências sociais e em história 2.°) O histograma e o polígono de freqüências
não são contínuas, porém discretas (ou descontínuas). U~a va-
riável é discreta quando só pode assumir certos valores .fu:os. e, Resta, para concluir, outro tipo de apresentação gráfica dos
portanto, toma-se impossível medir numericamente as d1stanc1as dados, de uso muito comum nas ciências sociais. Trata-se do histo-
entre os mesmos. Assim, por exemplo, se tivermos a população grama e do polígono de freqüências, . duas variantes utilizáveis
de uma cidade classificada por sua nacionalidade, nossa variável quando represent~mos uma variável contínua cu_i?s v~,l_ores- ,;ej~~
"nacionalidade" poderá assumir valores como: chileno, peruano, categorizados e111 intervalos (por exemplo, a vanavel idade d1v1-
mexicano, etc. A seguir explicaremos à representação gráfica deste dida em intervalos: de 0-4, 5-9. 1O-14 anos, etc.). Neste caso
tipo de variáveis. _ segue-se o mesmo procedimento do gráfico de colunas, salvo por
O princípio é o mesmo já visto para a elaboraçao de uma uma só diferença - a variável é contínua e por isto cada inter-
curva aritmética. Tomamos um sistema de coordenadas cartesia- valo terá seu retângulo submetido à sucessão numérica dos refe-
nas: na abscissa representamos nossa variável (no exemplo cita- ridos intervalos. Se representamos mediante retângulos (traçando
do, nacionalidade) expressando seus valores fixo& do modo que cada segmento vertical nos extremos do intervalo) temos um
nos parecer mais elegante - um ponto ou um segmento. Na orde- histograma. Se assinalamos um ponto na metade de cada intervalo
nada representamos as freqüências de cada valor de nossa variável e unímos tais pontos com segmentos temos um polígono de fre-
(isto é, no exemplo da nzcionalidade, a quantidade de indivíduos qüências. O polígono de freqüências é equivalente ao histograma
existentes de cada nacionalidade, ou suas percentagens sobre o e as superfícies dos dois gráficos são idênticas. O exemplo seguin~e
total). O resultado será o que se conhece como gráfico de colunas. (fig. 37) mostra os dois tipos de representação: o leitor os en-
Se escolhermos um ponto na abscissa teremos uma série de segmen- tenderá facilmente.
tos perpendiculares de diferentes comprimentos, se preferirmos
um segmento teremos uma série de retângulos diferentes. Um
Figura 37:
exemplo esclarecerá bem este tipo de representação gráfica (Ver
Fig. 36).
25 navios ingleses classificados pela grandeza da tripulação (1907)
)\jY de
Figura 36: navios

Origem nacional e es:rq/lgeira os habitantes da República Argenüna,


segundo os dados do censo de 1947
/
:

/
: ""

... ... 10-14 ÍS-19 20-14 lS.29° 3(1..).4·

GrandeH da trlpulaçio

Fontt: Roderick Floud, An 1ntroduction td Quantitative Methods


for Historians, Londres, Methuen, 1973, p. 53.
Fonte: Gino Germani, Estructura social de la Argent!na, B. Aires Observação: (na Fig. 37) a linha ponteada repre~enta o po/igono
Editorial Raigal, p. 86. de freqüências/ os retângulos constituem o histograma

292 293
4. A ELABORAÇÃO DE INDICES Critérios para escolher o ano de base: Para o cálculo dos índi-
ces, · é importiante o problema do ano-base, pois de sua escolha
dependerão, em grande pane, as conclusões a que se chegará. A
At~ agora construimos as curvas usando diretamente a série solução mais simples é a de fazer o primeiro ano da série igual
, de dados, sem elaboração: valores, preços, volume de um pro- a 100, assim obtendo uma comparação da mudança percentual,
duto, etc. Construimos o que se denomina de curva bruta, isto relativamente ao ponto de partida. Entretanto, nem sempre esta
é, uma curva traçada com os dados originais e suas unidades solução é objetiva. Em geral, tratando-se de apreciar aumentos
de medida: cruzeiros, dólares, toneladas, etc , As curvas brutas ou reduções, é necessário escolher um ano nµrmal, isto· é, nem
apresentam suas inconveniências, quando se pretende comparar, excepcionalmeme próspero nem excepcionalmente crítico, ou, melhor
pois é impossível representar, no mesmo gráfico, séries expressas ainda, um grupo de anos. (Neste caso o valor médio dos anos é
em unidades diferentes (por exemplo: toneladas e litros)'. Para . igual a 100). Talvez a solução mais objetiva seja adotar como
resolver este problema, e outro que veremos após, é comum expres" base a média de todo o período considerado. Isto foi feito, por
sar .as séries em números índices, cujas vantagens são as seguintes: exemplo, no Quadro 10 ( co)una 3) em que igualou-se a 100 o
valor 3838 ( 1(}1 toneladas métricas), isto é, a média da produção
permitem perceber logo os ritmos de crescimento ou de argentina de milho entre 1899 e 1918.
decréscimo, mesmo que · a curva seja· traçada em papel Mudanças de base: Em muitos casos, especialmente -ao estu-
não semilogaritmico; dar-se um período muito longo, é indispensável mudar o ano-base.
permitem sintetizar em urna só curva a evolução de series Esta operação é relativamente- simples. Seja, por exemplo, a se-
diferentes ( p. ex.: um í.ndice da · produção industrial ou guinte série:
agrícola);
permitem comparar a evolução de séries expressas em 1810 100
diferentes unidades de· medida, como já foi dito. 1820 95
1830 150
17: possível construir três tipos de índices: simples, compostos 1840· 200
e ponderados ou sintéticos. 1850 300

Neste exemplo, 1810 constitui o ano-base (índice 100) Supo-


2Q) I ndices simples nham os que em · 1sso devamos - por m0tivos definidos na pes-
ouisa - fazer uma mudança de base. Isto significa que a 1850
O princípio do cálculo é ·extremamente fácil: dada uma série ~orresponderá o índice 100; como o valor atribuído ao ano 1850
cronológica, escolhe-se um ano (ou grupo de anos) como base a é de 300, para converter os índices calculados pela base original
que corresponderá o índice 100. Depois, calculam-se os demais à nova base bastará dividi-los por 3. Assim:
índice~ usando a seguinte fórmula:
1810 33,3
lx = a x 100 Sendo: lx = índice relativo a um
1820 31,6
ano x;
b da 1830 5JJ
.1840 66,6
a = valor correspondente ao
1850 100,0 -
ano x;
b = valor correspondente ao Como acabamos de ver, a mudança de base _j uma operação
ano (ou aos anos) de hase. sumamente fácil - no caso dos índices simples e quando a base

294 295
considerada é um só qno. Em outros casos o cálculo é bem mais exemplo, no caso anterior é evidente que, dada a importância dos
complicado, pelo que recomendamos ab leitor interessado que se cereais e do linho para a economia argentina, tanto do ponto de
valha de algum dos manuais ou tratados de -estatística citados nas vista do volume da produção quanto do volume das exportações,
notas deste capítulo. é conveniente dar-lhes maior peso d.o que às oleaginosas, no índice
total. Esta operação, chamada de ponderação é realizada multipli-
cando-se cada índice pelo coeficiente de ponderação escolhido e
39) lndices compostos dividindo-se pela soma dos coeficientes o resultado da soma dos
produtos assim obtidos. Por exemplo: atribuindo um coeficiente 5
Se quisermos manejar, simultaneamente, duas ou mais sertes aos cereais e ao linho, e um coeficiente 2 às oleaginosas, 0 resul-
cronológicas pertencentes à mesma categoria de atividade, teremos tado será o seguinte:
de elaborar um índice composto. O procedimento para construi-lo
é bem fácil: Ano cereais e linho Oleaginosas índice ponderado

QUADRO 8: 1935 157 X 5 22 X 2 (l57X5) ± (22x2) 118,4


7
lndice da produção de cereais, linho e oleaginosas
·na Argentina Logicamente, é necessano justificar em cada caso a razão
da escolha de certos coeficientes de ponderação, e não a de outros.
(1960 = ·100) Por fim, observemos que se o período considerado for muito grande
., é possível ser preciso mudar os coeficientes de ponderação con-
anos cereais e linho Oleaginosas tndice composto forme se altere a estrutura da variável que se mede. Tratando-se,
por exemplo, de um índice de custo de vida no curso de 50 anos,
1935 157 22 89,5 nem os produtos nem as ponderações do início do período serão
1936 117 21 69,0 iguais uOS do final, Caso OS pesos relativos dos diferentes bens
1937 137 22 79,5 tenham-se modificado (caso muito provável) no orçamento fami-
1938 97 29 63,0 liar.
1939 134 29 81,5
59) Um exemplo de elaboração de índi~es em história: o índice
Fonte: Boletín estadístico, 1962 (Banco Central de la República "anual da produção industrial francesa no século XI X, de
Argentina) François Crouzet

Somam-se os índices e divide-se o resultado pelo número de Para ilustrar a elaboração e aplicação de índices na história
índices somados (no exemplo, dividiu-se a soma por 2). econom1ca, resumiremos a seguir . a metodologia empregada por
François Crouzet para a construção de um índice anual. da pro-
dução industrial francesa no. século XIX. 4 ª O .objetivo do traba-
49 lndices ponderados ou smtéticos lho é claro: estabelecer um índice anual dó volume da produção

Seguidamente ocorre ser desejável dar mais importância a um


43 François Crouzct, "Essai ele cunstruction d'un indice annuel de la
setor, em detrimento de outros, em se tratando de construir um proctuction industrielle française au XIXe siêcle", em Arniales E. S. C., ja-
índice composto. Os motiyos disto são de fácil compreensão: por neiro-fevereiro de 1970.

296 297
industrial francesa, entre 1815 e 1913, que permita medir não só 69) Deflação ou correção pur mudanças de preços
o crescimento global da produção industrial como, também, as
diferenças entre os diversos ramos da indústria. Não nos Teferire- f. muito freqüente na história ,econômica dispor-se de uma
mos ao problema das fontes, pois interessa-nos essencialmente 0 série de valores expressos em volume monetário. Em épocas de
aspecto metodológico da elaboração do índice. Os passos que leva- inflação, se o meio monetário não é constante, uma elevação dos
ram ao resultado buscado. foram os seguintes: valores do índice de produção, por exemplo, não expressará neces-
sariamente um aumento da produção mas, talvez, apenas uma ele-
Foram definidos 36 ramos industriais, significativos para vação de preços. Em muitos casos será preciso corrigir nossos
todo o período considerado, sendo calculadas, pois, 36 séries dife- valores monetários, deflacionando-os, isto é "desinflando-os" do efeito
rentes de índices elementares. enganador da alta dos preços. Para deflacionar uma série de pre-
- Estes 36 índices elementares foram reunidos, para cada ços será necessário referi-los a um meio monetário constante -
ano, em 7 grupos distintos: que poderá ser, conforme o caso, uma moeda ·com padrão ouro ou,
em sua falta, um índice de preços. Para o càso dos países latino-
l. Indústrias de mineração; americanos é relati"9amente fácil a conversão em moedas com
2. Metalurgia primária; padrão ouro (a libra e o dólar, conforme o caso) até a crise de
3. Indústria de transformação de metais; 1929. A partir deste momento, a desvalorização das divisas metro-
4. Indústria química; politanas e o paulatino abandono do padrão ouro forçam a utiliza-
5. Indústrias alimentícias; ção dos índices de preços. O exemplo seguinte ilustra este tipo de
6. Um grupo de indústrias diversas, reunindo as novas in- procedimento:
dústrias surgidas no século XIX;
7. Indústrias têxteis. QUADRO 9:
Deflação através de índices de preços
Para cada grupo foi calculado um índice ponderado. Os coefi-
cientes de ponderação foram estabelecidos proporcionalmente à anos Renda per lndices de Renda real
importância relativa de cada indústria determinada segundo o valor capita (dólares) preços: em dólares de
agregado. O valor agregado pelas indústrias mudava significativa- 1926 = 100 1926
mente em um período de cerca de 1O anos. Isto fez com que os
coeficientes de ponderação tivessem de mudar conseqüentemente. 1926 643 100 643
- Foram reagrupados os índices ponderados em dois grupos 1927" 657 95 691
maiores: um englobando os índices dos grupos 1 a 7, outro agrn- 1928 658 97 678
pando os índices dos grupos 1 a 6, mais um índice dó têxtil, 1929 668 95 703
considerando-se apenas os índices elementares das indústrias de 1930 555 86 645
algodão e . seda, ponderados conforme seu valor agregado. 1931 434 73 595
- Por fim, foi elaborado um índice da atividade das indús- 1932 320 65 492
trias mecânicas: produção de máquinas a vapor, locomotivas, na-
vios comerciais a vapor e navios de guerra. Construídos os índices, Fonte: J. A. Estey, Tratado sobre los ciclos económicos, cit.
tratou-~c de estudar o movimento de longo prazo e as variaçõeJ
conjunturai·s da produção industrial francesa. A diversidade ·de Na segunda coluna expressa-se a renda per capita dos Estados
índices calculados para cada ano tornou possível uma análise muito Unidos, em dólares, na terceira coluna um índice de preços (Base,
requintada. 1926 = 100) e na quarta coluna a renda real, isto é, a renda real

298 299
,.
' '

per capita deflacionada. Esta última calcula-se para cada ano pela artifícios é possível . dissociar do movimento geral os vanos tipos
fórmula seguinte: de flutuações. Os gráficos eia FIG. 38 dão uma idéia do trabalho
de dissociação a fazer.
Renda per capita X 100
lndice de preços

Assim, a quarta coluna representa a renda per capita em dóla-


res constantes de 1926, isto é, a renda pressupondo que os
1. O MOVIMENTO DE LONGA DURAÇÃO
preços tivessem sido constantes em todo o período. Com este método
pode-se deflacionar qualquer série cronológica expressa em valores
monetários, desde que se tenha um índice de preços adequado.
Deve-se· observar que a correção de uma série de preços, para
A tarefa consiste em eliminar as variações cíclicas (Juglar)
expressá-la em valores constantes, sempre depende das hipóteses
para só representar o movimento de longà durâção; além de métodos
e das finalidades da pesquisa. Relativamente a preços, ·o debate
gráficos mais ou menos toscos, três processos estatísticos são, em
é bem antigo. Nos anos da década de 1930 a escola francesa
geral, empregados: o método das médias móveis, o dos mínimos
discutiu com a escola de Chicago o problema: preços nominais -
quadrados e o do ajustamento exponencial. A escolha de um ou
preços metálicos. Earl Hamilton chego_u, mesmo,. a . afirm~r ~ue a
outro método . depende das características da série de dados a
quantidade de metal de uma moeda nao tem mais 1mportancia do
elaborar e do grau de precisão que se pretenda para o cálculo.
que 0 papelão de uma passagem de ônibus. -Evidente~ente, os
preços nominais têm, quanto ao efeito psicológico, um grande
valor para o estudo da conjuntura e seus efeitos_ soci?is. ~nt~et~n_to; 19) Procedimentos gráficos
para a avaliação do. m•. ·imento. de longa duraça? _so tera ,s1gmf1ca-
ção uma série de preços deflac1onados. Como d1Ztamos ha pouco,
Método aproximativo, mas de suma utilidade, é o procedi-
a~ finalidades da pesquisa deverão presidir a opção respectiva.
mento gráfico que consiste em traçar "a olho" uma re~a que pas~e
aproximadamente pelo meio da curva, de modo a ficar o ma!s
próxima possível de todos os pontos da m.esma. Um processo gra-
fico um pouco mais exato é o dos pontos médios (Ver a Fig. 39).
As vantagens dos dois métodos estão na simplicidade e na
rapidez. Com eles tem-se rápida idéia do movimento de longa
duração e das mudanças de tendência. O inconveniente reside na
D. Quantificação e estatística na história relativa imprecisão e, no caso do méto,d~ dos pontos, ~édios, o
peso relativo atribuído no traça?o aos max1?1os e aos m1?1mos: er:n
2) Representação e análise das flutuações econômicas certo tipo de curvas isto podera falsear muito a percepçao do mo-
vimento real de longa duração.

29) O método das médias móveis


Os diferentes tipos de flutuações, suscetíveis de descrições É um método que elimina o movill!ento de curta duração, mini-
analíticas, confundem-se na curva bruta. Mediante utna série de mizando a influência dos valores extremos. -

300 301
Figura 38: Figura 39:
Trabalho de dissociação a partir de uma curva bruta Determinação do movimento de longa duração, pelo processo
gráfico dos pontos médios:
Fonte: André Marchai, Economie politique et technique ~tatis­
tique, Paris, Librairie Générale de Droit .et de Junspru- 1) Ligar entre si os pontos máximos da curva (M, M', M");
dence, 1961, (4~ edição) p. 191 e fazer o mesmo com os pontos mínimos (m, m', m", m"');
140
2) De cada ponto máximo, traçar uma perpendicular que vá
140
1jo1l---l---t---+--hi:;---1 130 encontrar a linha que une os pontos mínimos; e de cada ponto
120~-+--1--+----1~TI 120 mínimo traçar uma perpendicular à linha que une os pontos má-
110l--+--t--~r----1"/;1t1
110
1on~--+--l--,1~~-1Jl,r--"1 1110
ximos;
... ~7T./tf'l,i\--t--.J-+-"'rr---i 90
3) Determinar os pontos médios de cada perpendicular e
80
70
uni-los: a curva Mi - M~ - Ma - M~ - M.~ representará o
bO movimento de longa duração.
5 10 15 20 is
a) Cu na bruta

b l l\lol'imento de longo prazo

..... , ---
m"
~--

e) :\lmimento cíclico

~; ,ut ,.. ·!" .. ·t· .. ·~L .. "


on• ou WilWW
.
Wri WiW Vt""\N VITWH ......
11
110900º FONTE: Marcel Gillet, op. cit., II, Foi. 1O
1 5 10 15 20 25
Dispondo-se de uma série de dados - as médias móveis poderão
d 1 \lo•imento estacionai ser calculadas tanto com base nos números absolutos quanto à

302 303
base dos índices efetivos - o primeiro a fazer é procurar o número QUADRO 10:
total de ciclos, determinando sua duração média; feito isto, serão
calculadas as médias móveis, usando-se em cada cálculo as cifras Produção argentina de milho, em 10 8 toneladas métricas·, lndices
relativas a tantos anos quantos forem os que tiverem de duração efetivos (1899-1918 = 100) e médias móveis
média os ciclos que deverão ser eliminados. Imaginemos uma série
de 25 cifras l n 1 '.l n"'') que delineiam uma curva cujos movimentos
cíclicos - que queremos eliminar ou atenuar para tornar' visível
o m imento de longa duração - duram cinco anos, em média. Os Anos 103 Tm: lodices efetivos: Médias Médias
cálculos para estabelecer as médias móveis serão, sucessivamente, os (dados brutos) (1899-1918 = 100) móveis móveis
seguintes (entendendo-se que mi. m 2 , .ma. . . m2 1 representam as (5 anos) (9 anos)
médias móveis calculadas):
,
1
1899 1. 700 44
n1 ± n~ + Il;i
± ºJ + n~
1900 1. 412 37
5
1901 2.510 65 60
n~ +
5
na + Il4
+ n~. + ·n11
1902 2.134 56 74
1903 3.738 97 85 76
1904 4.450 116 98 81
m~ na + 04 + O;; + nn + n7 1905 3.574 93 96 90
5 1906 4.951 129 95 96
1907 1. 823 47 95 91
m~1 n~1 + n~~ + n~:1 + n~-1 + n~:-;
1908 3.456 90 100 102
5
1909 4.500 117 78 104
1910 4.450 116 107 113
No exemplo apresentado no Quadro 10 e na Fig. 40 as 1911 703 18 115 123
médias móveis foram calculadas a partir dos índices· efetivos, to-
1912 7.515 196 127 129
mando-se por base de c~lculo primeiramente 5 anos e depois 9
1913 4.995 130 147 124
anos.
1914 6.684 174 164 123
A atribuição da média móvel é feita, em geral, ao ano mediana
1915 8.260 215 133
de cada grupo, mas não há inconveniente em atribui-la ·a outro
ano, se houver motivo para isto. Ernest Labrousse, por exemplo, 1916 4.093 107 130
calcula o movimento percebido, atribuindo a média móvel ao ano 1917 1 .494 39
final de cada grupo. O argumento é que o historiador se interessa 1918 4.335 113
predominantemente pela percepção que os contemporâneos puderam
ter da conjuntura; neste sentido, os anos futuros nãó devem ser Fante: Ministério de Agricultura de la Nación; Dirección General
incluídos no cálculo. de fütadística y Censos.

304 305
Figur~ 41:
Figura 40:
Reta dos mínimos quadrados (princípio geral)
Produção argentina de milho (1899-1918 ): índices
(1899-1918 =
100) e médias móveis (5 e 9 anos)

Dados do QUADRO 10

l11din:":
2?11
\ltdi•" RlO\~Ü1
t!i llfill'>t
2lHI
tlf llllU'>I

um

lbO

1-111

1211

IOO

"" Ou seja, que a soma dos quadrados CD, EJ, HK e MI sejam


"" um mínimo. A demonstração matemática deste. método pode ser
40
estudada em um tratado de estatística: Aqui nos limitaremos a
!li
mostrar o método de cálculo e os casos em que podem ser aplica-
1900 1905 l'Hll dos os mínimos quaprados. Como acontece com as médias móveis,
o cálculo tanto pode ser feito a partir das cifras absolutas quanto
O processo das médias móveis é bastante fácil de aplicar,
dos índices efetivos. Em geral, com o emprego dos índices os
entretanto tem dois inconvenientes básicos: l ) supõe ciclos de
cálculos ficam mais fáceis; elaboramos a partir deles o exemplo
duração uniforme, o que às vezes apresenta dificuldades; 2) força
apresentado no Quadro 11 e na Fig. 42. Quanto ao Quadro 11:
a deixar sem dados os anos dos extremos da série, o que pode
ser uma inconveniência grave em séries curtas.
Coluna 2: fndices efetivos (cf. o Quadro 10).

39) Método dos mínimos quadrados Coluna 3: Variável de cálculo x, relativa à abscissa: ê
atribuído o zero ao ano mediana do período
Usado mais freqüentemente pelos economistas, este processo (deixamos de lado o dado relativo a 1899, para
permite representar o movimento de longa duraçao por uma reta ou termos um número ímpar de dados, o que faci-
uma parábola. Aqui só explicaremos o caso da reta, o mais apli- lita os cálculos) isto é, 1909, cuja abscissa cor-
cável dos dois. O problema consiste em traçar uma reta que passe responde ao ponto centrai M da reta dos míni-
o mais perto possível de todos os pontos da curva. Matematica- mos quadradós. A partir da abscissa. O, atri-
mente, é preciso que a soma dos quadrados dos segmentos de buída ao ano 1909,. atribuímos abscissas nega-
ordenada compreendidos entre os pontos da curva e a reta sejam tivas ( - 1, - 2. . . - 9), pa@ a esquerda, e
um mínimo: positivas ( l, 2 ... 9) para a direita.

307
306
- Coluna 4: Variável e cálculo y, relativa à ordenada. Em as ordenadas de longa duração relativas aos pontos ·da reta de míni-
primeiro lugar cakula-se a média dos dados da mos quadrados,. cuja abscissa é a de cada ano da série:
série (neste caso, os índices relativos à produ-
ção de milho) que é 103 no exemplo discutido; 1909: 103 +o = 103
a referida média constitui a ordenada do ponto
central M da reta dos mínimos quadrados, cuja 1910: 103 + (4 X 1 ) = 107
abscissa é a correspondente ao ano mediana da 1911: 103 + (4X2) = 111
série ( 1909). A variável y resultará, para cada
dado da série, da operação de subtrair o índice
médio (103) do índice efetivo do ano; assim, 1918: 103 + (4X9) = 139
teremos para 1900: 37-103 =- 66; para 1913: 1909: 103 o = 103
130-103 = 27; etc. 1908: 103 ( 4X1) = 99
1907: 103 ( 4 X2) = 95
- Coluna 5: O resultado da multiplicação das . variáveis de
cálculo x e y, separando os resultados positivos
dos negativos.
1900: 103 - (4X9) = 67
- Coluna 6: Resultado da elevação ao quadrado da v:iriável
de cálculo x. Observações: A propósito do que dissemos sobre a coluna 3
(variável de cálculo x), quando a série contar com um número
- Coluna 7: Ordenadas de longa duração.· Para seu cálculo, par de cifras o zero será atribuido à mediana da série, que estará
em primeiro lugar, é preciso conseguir o declive da compreendida entre duas cilras (por exemplo: se a série tiver 20
reta dos mínimos quadrados, isto é, seu ângulo dados, ou cifras, a mediana estará compreendida entre a 1011- e a 1111-
ou inclinação relativamente ao eixo da abscissa: cifras e a tal ponto se atribuirá o zero, tendo em vista a variável
como já conhecemos um ponto da aludida reta, de cálculo x). Depois se darão valores positivos ou negativos, con-
o ponto M (abscissa: a de 1909; ordenada 103), forme a série for ascendente ou descendente, mas em lugar de
se tivermos o ângulo que a reta faz com o 1 ( + ou - ) o primeiro valor será 0,5 e o segundo 1,5, o terceiro
eixo horizontal poderemos traçá-la sem difi- 2,5 etc. Por outro lado, quando a curva, cujo movimento de longo
culdade. A inclinação é Cl!lculada segundo a prazo queremos determinar, for descendente, a inr.linação da reta
_seguinte fórmula: dos mínimos quadrados, relativamente ao eixo horizontal, será nega-
tiva; devemos, pois, marcá-la no eixo das ordenadas abaixo do
l x.y 2. 148 eixo horizontal e, depois, traçar a reta dos mínimos quadrados como
IV
..., ,, - 3,77 = 4 .urna paralela à reta assim desenhada. (Ver a FIG. 43). Outro mé-
... x- 570 todo mais simples de traçar a reta de longo prazo é calcular dois
pontos da ordenada e traçá-la com base neles. A prop6$ito da
Como sabemos que o índice médio 103 corresponde ao ponto Coluna 6 deve-se notar que, como só é usaqa nos cálculos a soma-
central M da .reta, cuja abscissa é a do ano mediana 1909, 103 é tória dos quadrados, o resultado poderá ser lido diretamente em
a ordenada de longa duração relativa a 1909; do referido ano em uma tabela (Ver a tabela incluída no Aplndict:.).
diante calcu:amos as ordenadas relativas aos anos seguintes. so- ,Por último, cumpre advertir que os cálculos que levaram ao
mando 4, 4X2, 4X3, ... 4x9 a 103; e de 1909 para trás sub- Quadro ·11 não são necessários para traçar. a r~a dos mínimos
traimos 4, 4X2, 4X3, ... 4x9 de 103; assim, conheceremos quadrados, mas para outras operações de que adiante falaremos.
308 309
1 '

Produção argentina de milho de 1900-1918


.g ~ :a Indices efetivos ( 1899-1918 = 100) e reta dos mínimos qua-
C/) o
.. - o.
~ drados ( Cf. quadro 11)
~~o
u·- o.o
Para traçar a reta:
"O > e
o.. e-
o o 1 ) Determinar o ponto médio M.
2) Determinar um ponto cuja abscissa seja igual
à unidade e a ordenada igual a 4 (inclinação
da reta dos mínimos quadrados) : traçar a
e..., reta que passar pelo referido ponto e pelo
....
o ponto de cruzamento dos eixn~ hori?Ontal e
'g V)
vertical.
& oCl<( 3) Traçàr uma paralela à reta mencionada aci-
G ci::
Cl ma, que passe pelo ponto M: esta reta será
<(
éO'
..... ::> a dos mínimos quadrados.
.....
..... o +
°'.....
o~ ºe
°'.....
"'o
~
o '-
~
<: o
::> :5 ~
a E
...." ô
o Figura 42:
"';: oo
.!;
. o >( ...,
Q'\OOf"--...OV').q-(""'IN-
1 1 1 1 1 1 1 IO-N...,·~~~~~
~
~ J

"'o
'...."'
V.

"
...e
Q..

Reta dos mínimos quadrados: curv_a descendente

IS
e 8õS8~8~b~g~=~:!~~:~
<
-------------------
~~~~~~-~~~~~~~~~~~~~
Figura 43:

·\

Ponto M: abscissa de 1909; ordenada = 102,89 ~ ·l 03

Inclinação da reta de longa duração: I X· Y 2 .148


- - - = - - - = 3,77~ 4
570
311
Precauções a tomar: como a curva t ajustada a uma reta, as z. AVALIAÇÃO DO MOVIMENTO DE LONGA DVRAÇÀO
mudanças de sentido não aparecerão; assim apenas poderão ser
utiÍizados os mínimos quadrados quando a curva for claramente Agora. estudaremos os métodos de avaliar o movimento de
ascendente ou descendente, de outro modo teremos deformações Jonga duração. Logicamente variarão conforme o processo de · re-
de sentido nos movimentos de longa duração. Cumpre ter cuidado presentação e o cálculo adotado.
e não traçar uma reta de mínimos quadrados que se refira, de
cada vez, a uma parte ascendente e a outra descendente, pois
uma reta destas careceria de utilidade e nada significaria. Em J9) U!;ando as médias cíclicas reais
alguns casos podem ser empregados os mínimos quadrados depois
de terem sido usadas as médias móveis; a reta será, então, cal- .h o método mais simples. Consiste em calcular as médias
culada com base nas médias móveis e, obviamente, só será apli- de cada ciclo, ou, para abreviar, só do ciclo inicial e do terminal:
cável às posições da curva que tenham o mesmo sentido. Enfim, comparam-se, então, calculando-se si.: as diferenças em percenta-
é importante - na maioria dos casos - fazer com que cada reta gens. Este processo dá a medida rápida e aproximada da inten-
de mínimos quadrados comece e termine - supondo-se a cons- sidade do movimento de longa duração. Com os dados do Qua-
trução de várias retas sucessivas - em fases correspondentes do dro l O teríamos: · ·
ciclo, evitando assim incluir na mesma reta uma fase de prospe- Ciclo inicial e ciclo termfnal médias cíclicas
ridade ou de depressão a mais ou a menos, o que deformaria a
1899-1903 2.298."800
interpretação. . 1914-1918 4.973.200
E, portanto, entre 1899 e 1918 temos uma alta de 116 % .
49) Método do ajustamento exponencial (ou do juro com-
posto) 29) Usando as médias móveis

Este método possibilita uma avaliação mais refinada da · am·


Mediante o processo dos mínimos quadrados conseguimos plitude e duração do movimento de longa dur.ação:
ajustar uma série de valores a uma reta. Conforme foi explicado, Média móvel de 190 l .. 60
este processo pressupõe percentagens de aumento ou redução anual Média móvel de 1916 .. 130
desiguais. No exemplo apresentado (Quadro 11) o aumento Diferença absoluta .... . 70
entre 1900 e 1901 (ordenadas de longo prazo 67 e 71) foi de Diferença percentual ... . 70 X 100
5,97%; entre 1916 e 1917 (ordenadas de longo prazo 131e135) = 116,6%
o aumento foi de 3,5 % , etc. O método do ajustamento exponen- 60.
cial permite obter-se uma taxa de crescimento constante. Como tra- (Dados do Quadro 1O)
ta-se de um método utilizado comumente para calcular a taxa Isto é, a amplitude do movimento de longo prazo é de
de crescimento de uma série de valores, reservamo-nos p.ara ex- 116,6 % . Se a série tivesse sido decrescente a amplitude teria sido
plicá-lo no último parágrafo desta seção, quando estudaremos es- calculada relativamente à média móvel final e· não à inicial, como
pecialmente tal p'roblema. foi feito no exemplo apresentado acima.

312 313
.,,
1

4<?) Usando o ajustamento exponencial


O método, também, possibilita uma melhor avaliaçào da inten-
sidade do movimento de longa duração. Para isto, calcula-se a
média aritmética das médias móveis, comparando-se-a com a mé- Age-se de modo análogo ao indicado para as médias móvel
dia móvel inicial (ou final, se o movimento for decrescente): e os mínimos quadrados (os dados seriam os da última coluna
do Quadro 16).
Média aritmética das médias móveis .......... . 106,S
Média móvel de 1901 ...................... . 60,0
Diferença absoluta ......................... . 46,S
46,5 X 100 3. O MOVIMENTO CICLICO
Coeficiente de intensidade: = 77,5%
60 Para estudar o movimento cíclico precisamos eliminar o mo-
vimenr~ d~ lon~a. duração, permitindo que se manifestem claramente
Conseqüentemente, a amplidão do movimento ( 116,6%) é
as vanaçoes c1chcas. Os métodos usados dependem dos previa-
algo maior do que a intensidade ( 77 ,5 % ) .
mente empregados no cálculo do movimento de longa duração.

39) Usando os mínimos quadrados


19) Mediante as médias móveis
O processo é semelhante ao das médias móveis. A vantagem
está em termos, agora, dados para todo o período. Os dados do Calculam-se os desvios absolutos entre os índices efetivos e
cálculo abaixo procedem do Quadro 11. · as médias móveis de cada ano, anotando quando forem positivos
A mplltude do movimento de longa duração: ou negativos. Por exemplo (dados do Quadro 12):
Diferença absoluta entre a ordenada de longa duração últi-
mo ano e do primeiro ano da série: 139 - 67 = 72 1911 : lndice efetivo . . . . . . . . . . . 18
Média móvel . . . . . . . . . . . 115
Diferença percentual: 72 X 100
= 107,4%
Desvio absoluto . . . . . . . . . 18 - 115 = - 97
67
1901 : lndice efetivo .......... . 65
Intensidade do movimento de longa du~ação: Média móvel .......... . 60
Desvio absoluto ........ . 65 60 = 5
- Média das ordenadas . . . . . . . . 103
- Ordenada inicial . . . . . . . . . . . . 67 Os resultados assim obtidos são anotados em uma coluna
Diferença absoluta . . . . . . . . . . . 36 {Coluna 4 do Quadro 12); para representá-los graficamente
procede-se conforme o indica a Fig. 44-A.
- Coeficiente de intensidade 36 x 100
= 53,7% A. curva resultante represef!ta as variações cíclicas, eliminando
67 o movimento de longa duração.
Para .conseguir-se mais precisão, é comum éakular os desvios
Como se pode ver, usando os mm1mos quadrados são obtidos em_ termos relativos, isto é, usando percentagens. A fórmula a
coeficientes mais baixos, embora o sentido dos resultados seja o aplicar a cada ano é a seguinte;
mesmo nas duas análises.
315
314
desvio absoluto x 100 Análise dos desvios cíclicos: permite preci.sat tais observa-
ções (ver as Fig. 44 e 45). Confirmamos a impressão inicial:
. média móvel oscilações de grande amplidão em períodos relativamente curtos·
- 97 X 100 ( 2 a 3 anos), notando-se, especialmente, a queda de 1911 - a
Por exemplo, para 1911 teremos: = - 84,3% mais pronunciada tanto em termos absolutos quanto em termos
115 relativos.

Feito o cálculo para a sene toda, elabora-se o gráfico de


modo semelhante ao empregado para as variações absolutas (Ver 2.º) Amplitude e intensidade
Quadro 12 e Fig. 44-B) ."
Amplitude: tomamos um ciclo e, mediante os índices efetivos
(ou os dados originais) aplicamos a fórmula:
29) Mediante os minimos quadrados

Procede-se de modo análogo ao indicado para as médias mó- (Máximo - mínimo) x l 00


veis, aplicando-o agora às ordenadas de longa duração (Coluna 3
do Quadro 13) . A principal · vantagem está em dispor de dados mínimo
para todo o período em questão. São calculados os desvios ab-
solutos e relativos e construídas as curvas das variações cíclicas Usemos, para exemplificar, o ciclo 1907-1910:
(Ver o Quadro 13 e a Fig. 45).
(117 - 47) X 100
- - - - - - - - ·- 148,9%
47
(Dados do Quadro l O)
4. AVALIAÇÂO DO MOVIMENTO CICLICO
Ou seja, no ciclo 1907-191 O a amplitude da vanaçao cíclica
é de 149 % . Logicamente, a análise deve .ser feita considerando
Pode ser feita seja a partir dos dados or1gmais, seja dos ín· todos os ciclos e comparando a amplitude de suas variações .. Aqui
dices efetivos, ou usando os cálculos que partem das médias mó- somente apresentamos um exemplo para ilustrar o processo a apli-
veis ou dos mínimos quadrados. car.
Intensidade: · Procede-se da mesma forma que para a ampli-
19) Pela andlise de curvas tude, mas aplica-se a seguinte fórmula:

Andlise da curva bruta ou da curva dos lndices efetivos: Um (índicé médio - mínimo) x 100
rápido exame· de uma destas curvas (ver, por exemplo, a Fig. 40)
mostra-nos, primeiramente, que o volume da produção argentina mínimo
de milho oscila com muita amplidãe, em todo o período consi·
derado, sendo especialmente notáveis as variações· entre 1911 e Por exemplo, para o ciclo 1907..; 191 O teremos, segundo os
1917. dados do Quadro 1O, os seguintes resultados:

317
316
47 + 90 + l 17 + l 16 Figura 45:
lodice médio = = 92,5
4 Produção Argentina de milho (1900-1918) Flutuações cíclicas
(92,5 - 47} X 100 - Método dos mínimos quadrndos (Dados do Quadro J3)
Intensidade = = 96,8%
47 A - Desvios absolutos ~ IOll ,....

• KU

39) Desvio anual médio


....
• 211
Trata-se de medida estatística de dispersão que pode ser cal-
culada para um ou mais ciclos, ou para todo o período em causa.
Procede-se da seguinte forma: somam-se os .desvios absolutos ob-
'"
"'
Figura 44:
Produção Argentina de milho (1899-1918) - Flutuações cíclicas , liKI

- Métodos das médias mó,•eis (Dados do Quadro 12) B - Desvios relativos


.,_MO

+ 100

.-...
A - Desvios absolutos ...
. "'
• 2U

, . ....
. "'
.... ""
. 1110

100
tidos pelo método dos mm1mos quadrados (Cf. Quadro 13,
... coluna 4), considerando todos os desvios como positivos, e dividin-
B - Desvios relativos
... do-se o resultado pelo número de desvios:
. .t Exemplo: Ciclo 1900-1907:
• lO

!IHlll - Soma dos desvios absofütos: 198


'"
...
... - Desvio anual médio: 198
= 24,7
"' 8
- lllO t
319
318
QUADRO 12:
*'Produção argentina de milho ( 1899-1918) ~ cf. QUADRO 10
- Dewios cíclicos (método das médias móveis) -
Desvios
Anos lndiCcs efetivóS Mtdias Desvios cícli- da2 cíclicos
(1899-1918 = 100) móveis cos absolutos relativos

2 3 4 5 6

1899 ' 44
1900 37
1901 65 60 5 25 8,3%
1902 56 74 -18 324 -24,3%
1903 97 85 12 144 14,1%
1904 116 98 18 ' 324 18,4%
1905 93 96 -3 9 - 3,1%
1906 129 95 34 1156 35,8%
1907 47 95 -48 2304 -50,5%
1908 '90 100 -10 100 -10,0%
1909 117 78 39 1521 50,0%
1910 116 107 9 81 8,4%
1911 18 115 -97 9409 -84,3%
1912 196 127 69 4761 ' 54,3%
1913 130 147 -17 289 -11,6%
1914 174 164 10 100 6,1%
1915 215 133 82 6724 61,7%
1916 107 130 -23 529 -17,7%
1917 39
1918 113

QUADRO 1.3:
- .....,
~~-

-~
Produção Argentina de milho (1900-1918)

Dados do QUADRO 10

Ordenadas Desvios Desvios


Anos lodices efetivos de_~~ng3: cíclicos da:? cíclicos
(1898-1918 = 100) dl_!!ação absol.utos relativos

1 2 3 4 5 6

1900 37 67 -30 900 -44,7%.


1901 65 71 _:_ 6 36 - 8,4%
1902 56 75 -19 361 -25,3%
1903 97 79 18 324 22,7%
1904 116 83 33 1089 39,7%
1905 93 87 6 36 6,9%
1906 129 91 38 1444 41,7%
1907
1908 . 47
90
95
99
-48
-9
2304
81
-50,5%
- 9,1%
1909 117 103 14 196 13,6%
19~0 116 107 9 81 8,4%
19 1 l8 11 l -93 8649 -83,8%
1912 196 115 81 6561 70,4%
1913 130 119 11 121 9,2%
1914 174 123 51 2601 41.5%
w 1915 215 127 89 7921 70,1%
f\j 1916 107 131 --24 576 -18,3%
1917 39 135 -96 9216 '-71,1%
1918 l 13 139 -26. 676 -18,7%
Outro exemplo: Conjunto do período de 1900-1918: plicação do desvio "standard" por 100, dividindo~se o resultao
oela média, seja das médias móveis, seja das ordenadas de longa
- Sprna dos desvios absolutos: 695
Juração, ·conforme a que tiver sido empregada para calcular o desvio
- Desvio anual médio: 701 "standard".
= 36,9
Exemplo: Período de 1900-1918. Retomemos o desvio
19
"standard" calculado acima pelos dados obtidos
Também é possível calcular o desvio anual médio partindo com o método dos mínimos quadrados:
dos dados obtidos com a aplicação · do método das médias mó- tr = 47,7
veis (Quadro 12, coluna 4). Denominemos de "V" o cóeficiente de desvio procurado e
de "m" a média das ordenadas de longo prazo (Quadro 13, co-
4Q) Desvio standard luna 3):
Como o desvio médio, é medida de dispersão e também pode (j X 100
ser calculado para um ou para mais ciclos, até para todo o pe;. V =
ríodo em questão. Opera-se do seguinte modo: calculam-se os m
desvios absolutos - quer pelo método das médias móveis quer
pelo dos mínimos quadrados - , elevam-se ao quadrado; ( Cf. Qua- 47,7 X 100
dro 12, coluna 5 e Quadro 13, coluna 5); somam-se os V = = 46,3%
resultados e divide-se o total pelo número de desvios, calculando- 103
se, afinal, a raiz quadrada do referido quociente. O desvio "stan-
dard" é designado pela letra "s" ou por um sigma minúsculo. Tanto o desvio médio quanto o desvio "standard" e o coefi-
Exemplo: conjunto do período 1900-1918 (Dados do Qua- ciente de variação são medidas muito úteis em se tratando de
dro 13, coluna 5): comparar diferentes ciclos uns com os outros. Embora mais sim-
ples, o cálculo da amplit\lde e da intensidade do movimento cíclico
(j= ~= 19
47,7
em termos percentuais também é de muita utilidade. E no re-
ferente à clareza e à facilidade de interpretação, o coeficiente de
variação - também expresso em termos percentuais - será pre-
ferível, de um modo geral, ao desvio médio e ao desvio "standard".
O valor do desvio "standard" tem a particularidade de au-
mentar à medida em 9ue cresce a dispersão e .de diminuir quando
os valores são mais homogêneos.

59) Coeficiente de variação


S. O MOVIMENTO ESTACIONAL
Calculado a partir do desvio "standard", tem .a vantagem
de indicar a dispersão em termos percentuais~ Consiste na multi-

Como já foi dito, o movimento estacionai é uma flutuação


cíclica que surge ao longo de um período de cerca de 12 meses.

322 323
+
No caso dos produtos agrícolas, o movimento estacionai. é funda-
mental, por estar relacionado diretamente com as boas e más co-
lheitas.
·Para calcular o movimento estacionai é indispensável disp 01 N
de dados que permitam determinar médias mensais (de preços, o
volume de vendas, volume de produção, etc.) com as quais ela-
bora-se um segundo quadro, conforme o modelo apresentado no
Quadro 14.

QUADRO 14:
Modelo de Quadro para o estudo do
Movimento Estacionai (Preços)

Preço
mensal
Mês Ano 1 Ano 2 ................ Ano n médio

janeiro
fevereiro
março

dezembro

Ou, também:

Anos Janeiro Fevereiro Março . . . . . . . . Dezembro

Ano 1
Ano 2
u
Ano n :::1
CT
·;::
e
Preço Ul
mensal
médio
"'o
Fome: M. Gillet, op. cit., l, p. 61. .(

324 12'

·1. 11 'I 1
' 1
~
1 :

'1
Depois . de dispostos os dados no quadro, faz-se o cálculo 6. A COMPARAÇÂO DE DIFERENTES CURVAS
dos desvios das médias mensais relativamente às médias anuais.
Assim conseguimos os desvios mensais médios. Também podem s~r
calculados os desvios entre as médias mensais mais baixa e mais
alta: .neste caso temos o desvio estacionai. As duas diferenças Chegamos agora a um aspecto de grande importância, pois
ainda podem ser calculadas em percentagem: trata-se de passar da fase da descrição das flutuações econômicas
para a de interpretação e análise causal. O princípio metodológico
(média anual - média mensal) x 100 mais geral, neste problema, é relativamente simples: a comparação
e o estudo da correlação das diferentes curvas.
média mensal O primeiro passo consiste em fazer a comparação das curvas
que supomos relacionadas, sobrepondo seus gráficos contra a luz ou
(média mensal máxima - média mensal mínima) X 100 construindo as duas curvas em um único sistema de coordenadas
cartesianas. O segundo sistema é quase sempre o resultado da pri-
média mensal mínima meira análise "a olho". (yer Fig. 47)

A título de exemplos, apresentamos um gráfico e um quadro Figura 47:


elaborados por Enrique Florescano (Fig. 46 e Quadro 15).
Comparação dos preços do milho com. a delinqüência e as epide·
Figura 46: mias (México)
760
Tipus de movimento estaciona/. Movimento agitado. Altas de 700
primavera
b(l()
18
17
*C<I 16 400
OL
Q.i

...-....e
C<I 15 300

~ "' 14 200
250
C<I-
Q.i 13 .................. ....... 100
~-
1769-70 50
12 o.__.._._.......~_._._~-"--"-"-"'L..JJLL-1----L~--ll~
·/.:~........ ···· •1720 1730 1740 1750 17611 1770 1780- 1790 1800 UU01 1815

11
Fonte: Enrique Florescano, Precios dei ma1'z. . . CI"t ., ·p. 168.
Nov. Dez. Jan. Fev. Mar A. M. J. J. Ago. Set. Out. Preços do milho: 1726-1742 = 100
1
delinqüência:···- .••.•.•••. .1726-1742 • = 100
Fonte: Enrique Florescano, Precios dei maíz.; .. cit., p. 102. epidemias: •

• N. do T.: Fanega é medida correspondente a 55,5 litros (sesundo o . Deve-se .considerar que a comparação de duas ou mais curvas
p;idrào de Castela); ou a quantidade de 1rl.os correspondente, é sempre precedida por uma hipótese em que o historiador pressu-
326 327
ll'f
1"

põe determinada relação causal entre ambas, ou simplesmente um Figura 48:


certo tipo de associação, ou de co-variação. E tal suposição parte
de testemunhos de tipo qualitativo ou de raciocínios de ordem
Consequencias das grandes fomes gerais (1680-17/3) e das fomes
lógica, por isto a comparação gráfica, por sumária que seja, con-
gerais atenuadas (1755-1789) n1: regwo de Gien e em Dijon
firma ou nega a associação pressuposta na hipótese inicial. Não (França)
se trata, absolutamente, de sobrepõr curvas arbitrariamente para
ver se têm alguma correlação, pressupondo assim que um processo A - Epoca das rrandes fomes gerais (1680-1713)
da técnica de elaboração de dados nos vá proporcionar um conhe- 1709-10
cimento novo, ou a descoberta de uma relação causal inédita.
Vejamos outro exemplo, desta vez tirado de um célebre artigo 400
de Jean Meuvret. H O autor correlaciona as percentagens de morte~
e as concepções (isto é, uma curva demográfica), com as percen-
tagens do preço do trigo no tocante às medianas dos cinco anos
precedentes, (ou seja, uma curva de preços do principal cereal de 200
subsistência da França dos séculos XVII e X Vlll). A correlação
de ambas as curvas, sumamente elevada no sécuJo XVII e bem
menor na segunda metade da centúria seguinte, serviu para definir
as crises de subsistência do ancien régime econômico-demográfico, IOO
e a "revolução demográfica" do século XVIII. A partir deste estudo
pioneiro de Jean Meuvret, muitos outros sucederam-se com a mes-
60
ma perspectiva (Ver a Fig. 48).
_ _ Região de GIEN }
A comparação gráfica de duas ou mais curvas proporciona Porcentagens de óbitos em relação
às concepções
- - - DIJON
uma idéia, ná maioria das vezes insuficiente, do grau de associação - . - ROZOY Porcentagens do preço do trigo em relação
às medianas dos S anos anteriores
existente entre elas. A principal limitação do processo está em só
permitir estimar a correlação dizendo-se que é mais ou menos alta,. B- Epoca das fomes gerais atenuadas (1755-1789)
ou mais ou menos baixa, sem oferecer medida numérica que a
defina mais precisamente. Para solucionar isto há vários métodos
- relativamente complexos - que permitem avaliar a correlação
numericamente. As limitações deste manual e o uso pouco fre-
qüente de tais métodos pelos historiadores, levam-nos a remeter
o interessado em seu estudo a bibliografia ma.is especializada. Uma
regra importante, ao encerrar esta discussão: jamais usar processos
de cálculo numfrico da correlação sem ter procedido, ~ntes, · à
comparação gráfica das curvas. A poupança de tempo e de surpre-
sas desagradáveis compensarão a memorização desta advertência.
2 Pen:entagens dos óbitos
_ _ Região de GIEN
_ _ _ Região de ()IJON
J relativamente às concepções
Percentagens do preço do trigo relatll'amente
44 J. Meuvre1, "Les crises de subsistence et la démographie de la France - - ROZOY às medianas dos S anos anteriores
d'Ancien Régime", em Population, n.º 4, 1946 (reeditado em J. Meuvret,
E rudes d'histoire économique, cit, pp. 271·178).
Fonte: Jean Meuvret, Etudes d'histoire économique, cit., p. 274
328
329
7. O CÁLCULO DAS TAXAS DE CRESCIMENTO Aplicando a fórmula de "r":

Dada uma sene temporal, será de grande interesse para o


r ~ ~-1 44
historiador calcular a taxa de crescimento - ou de decréscimo -
anual. Assim, em nosso exemplo da evolução da produção argenti- Para aplicar logarítmos, sabemos que
na de mílho entre 1899 e 1918 (Quadro 10), perguntar-nos-
emos a quanto monta a taxa de crescimento anual. Agora estuda-
remos a metodologia a aplicar nestes casos, exemplificando com o
cálculo da taxa de crescimento. Os mesmos processos são aplicá-
log ~~ 44 19
log
113
44
veis à taxa dt; decréscimo, se a série tiver valores descendentes.
Calculando, resulta:

19) Método dos juros compostos 0,4096


log 2,5681 = = 0,0216
O método usado comumente, se conhecemos os dados inicial 19 19
e final de uma série, é a aplicação das fórmulas do cálculo de juros
compostos. Este último é calculado assim: Calculando o antilogarítmo encontramos o

r ~-1 valor de ~ = 1,0509


44
A
Substituindo na fórmula inicial teremos:
Sendo "r" a taxa de juro; "A" o montante inicial; "B" o mon-
tante final do período e "n" o número de anos do período. r 1,0509 = 0,0509 ou seja: 5,09%
Para simplificar os cálculos, lembremo-nos d1: que:
Assim, calculamos a taxa de crescimentÓ anual que é de 5,09%.

log~ =
Este método tem a vantagem da rapidez e a desvantagem de
log X só levar em consideração os valores extremos. Em muitos 'casos
n isto pode ser muito inexato, principalmente quando há flutuações
amplas no interior da série.
Agora podemos voltar ao problema colocado antes: qual é a
taxa de crescimento anual da produção argentina de milho entre
1899 e 1918? (QUADRO 10) 29) Método· do ajustamento exponenci'!1

A: índice inicial = 44 Este método introduz no cálculo todos os valores da série.


B: índice final = 113 Consideremos a evolução da produção argentina de milhp entre
n: 19 anos 1900 e 1918. Elaboraremos um novo quadrQ__ (Quadro 16)
r = ? cujas características serão as seguintes:
330 331
- Coluna 2: · índices efetivos; - Coluna 9: Como dispomos dos logaritmos dos índices ajus-
- Coluna 3: logarítmos dos índices efetivos; tados é fácil encontrar tais índices com a ajuda de uma
-'- Coluna 4: variável de cálculo "x" (atribuindo O ao ano tábua de logaritimos (procurando os antilogaritimos).
mediana, 1909: como no caso dos mínimos quadrados
ábandonamos o dado relativo a 1899, para ter um número Agora podemos calcular a taxa de crescimento ( r); já cal-
ímpar de dados e., assim, facilitar os cálculos); culamos o logaritmo de ( 1 + r), que é igual a 0,0139: se
- Coluna 5: variável de cálculo "y" (logaritmo do ano me- Jog (1 + r) == 0,0139 então ( 1 + r) = 1,032 e r = 0,032
no~ logarítmo médio: este último sendo a média dos dados = 3,2 % . A taxa de crescimento é, pois de 3,2 '7c:. Como os índices
da coluna 3 ) ; . ajustados da coluna 9 estão em progressão geométrica, sua repre-
- Coluna 6: elevamos ao quadrado os valores da variável de sentação e.m coordenadas aritméticas será uma curva. Já dissemos
cálculo "'x" e somamos os x2 ; que ~ partir dos índices obtidos pelo método do ajustamento expo-
- Coluna 7: multiplicamos a variável "x" pela variável "y" nencial pode-se calcular e representar os desvios cíclicos (absoluto~
e relativos). ·
e somamos os produtos x. y. A divisão da soma dos pro-
dutos x. y pela soma dos valores de x~ nos permite obter Se compararmos o método do ajustamento exponencial com
o logaritmo de ( 1 +
r), sendo "r" a taxa de crescimento o dos mínimos quadrados veremos que os cálculos feitos são os
anual; o número ( l +
r) corresponde à inclinação da mesmos, porém efetuados com os /ogarítmos das ordenadas (neste
curva exponencial em relação ao eixo horizontal; caso os índices efetivos) e não com as próprias orde~adas - no
Coluna 8: Cálculo dos logaritmos dos índices ajustados: que diz respeito às abscissas não há diferença.
atribuimos a média dos logaritmos da coluna 3 (em nosso
exemplo: 1,9435) ao ano mediana (neste caso, 1909);
depois procedemos de modo análogo ao já explicado a
propqsito dos mínimos quadrados, sendo:

Z: x.y 7.9111
= 0,0139
570 E. Quantificação e estatística em história:
teremos: 3. Emprego da amostragem
1909: 1,9435 + o = 1,9435
1910: 1,9435 + (IX0,9139) = 1,9574
1911: 1,9435 + (2XO,Ol39) = l,9713

1918: 1,9435 + (9X0,0139) = 2,0686 Muitas vezes, no curso de uma pesquisa, o historiador enfrenta
1909-: 1,9435 - o = 1,9435 situações em que motivos ligados ao tempo e ao custo tomam
1908: 1,9435 - (1X0,0139) = 1,9296 impossível o estudo da totalidade da documentação disponível.
1907: 1,9435 - (2 X 0,0139) = 1,9157 Assim, por exemplo, o estudo de testamentos, de registros carta~
riais de casamentos, de listas nominais de tipo fissal, eleitoral ou
1900: 1,9435 - (9 X 0,0139) = 1,8184 simplesmente censitário é bem difícil de ser feito exaustivamente.

332 333
Isto é, razões de custo t: de tempo nos impedem de estudar todos
os casos, forçando-nos a nos contentarmos com o exame de uma
parte apenas, através daquilo que os estatísticos denominam de
amostra.
A técnica estatística da amostragem permite resolver ·o pro-
blema básico da pesquisa com grande precisão. Para que o estudo
....
u

de todo o conjunto de elementos - p. ex.: testamentos de tal
e: cidade, em· tais anos - J'OSsa efetivamente ser feito somente atra-
vés de uma parte dos mesmos é preciso que a amostra satisfaça
uma sêne de requisitos:
- Que a seleção da amostra seja feita de modo probabilístico,
ou ao acaso.
- Que a amostra mantenha certas proporções relacionadas
ao tipo de estudo a fazer. Assim, por exemplo, se estudarmos testa-
mentos com o intuito de comparar .as fortunas legadas em três ou
quatro estratos sociais diferentes, será necessário prever algum
mecanismo que permita selecionar uma quantidade aproximada-
mente igual de testamentos correspondentes aos estratos a compi-
">< rar. Esta condição é importante pois se não for prevista no mo-
mento da seleção da amostra correremos o risco de não poder reali-
°'.., zar, depois, as comparações desejadas.
o
"'e:::> - Que no momento de estabelecer a grandeza da amostra
ó õu
seja definido o grau de precisão do estudo. Isto é, que se torne
possível a avaliação do grau de confiança da estimativa realizada
a partir da amostra.
.... O primeiro requisito requer que todos os elementos do universo,
ou seja, do conjunto completo · - em nosso exemplo, a totalidade
dos testamentos de tal cidade, em tais ano~ - tenham a mesma
probabilidade de estar incluídos na amostra. Isto exige uma sle-
ção feita por meio de sorteio, ao acaso. Os estatísticos estabelece-
ram dois processos básicos .para a seleção çie amostras:
N a) Por meio de tabelas de númerm; jurtuitus: São tabelas
elaboradas de modo que as séries de números se distribuam aleato-
riamente. Para eleger uma amostra com a tabela de número for-
tuitos pracede-se do seguinte modo (Ver tabefa de números fortuitos
no fim do volume): escolhr-<e º'"'''•ri:imcnte (sorteando a linha e
a coluna) um ~lgarismo para entrada na tabela. }>or exemplo: quinta
linha, terceira coluna. Suponhamos que, de um universo de 1 . 000,
elegemos amostra de 100 elementos: para extraí-!ª-. consideraremos
números de três algarismos., interpretando o tríplice zero como

335
'11
k

1 . 000, pois numeramos o uni verse 11 partir de l (um). Do ponto vés de um exemplo, o quanto é importante este reqms1to. Logo
inicial poderemos ler para baixo, par'a a direita, ou para a esquer- que definidos os estratos - por exemplo, diferentes categorias
da: porém, depois de começada a leitura deveremos prosseguir no sócio-profissionais, grupos etários de uma popul2ção, etc. _ cal-
mesmo sentido até estar concluída a seleção da amostra. Come- culam-se amostras para cada estrato, que passarão a integrar a
çando pela quinta linha e a terceira coluna, lendo da esquerda amostra global. Assim, assegura-se a representação, na amostra,
para a direita, elegeríamos: 082 - 619 - 704 - 860 - 438, dos estratos que nos interessam - e nas proporções requeridas
etc., até termos os 100 elementos. Naturalmente, desprezam-se (pois ao elegermos a amostra de um estrato levaremos em conta
os números repetidos. Assim, integrarão nossa amostra todos os seu peso, ou proporção, no seio do universo estudado).
elementos do universo que tiverem seus números indicados pela O terceiro requisito relaciona-se, diretamente, com o tama-
tabela. · nho df!. am()stra. Do que foi dito é facilmente dedutível que uma
b) Por meio de um intervalo sistemático: Este é um método amostra ao acaso representa o universo de que foi extraída, com
mais simples e, na maior parte dos casos, dá resultados semelhan- certo grau de probabilidade ou, o que vem a dar no mesmo, com
tes. Age-se assim: divide-se o universo pelo tamanho da amostra. certa percentagem de erro. O importante da amostragem estatística
calculando-se o intervalo. No exemplo dado: está no permitir-nos conhecer, com toda a exatidão, a referida
percentagem de erro, e assim podermos ter grande confiança, mate-
1. 000 maticamente definida, no estudo do universo feito mediante a amos-
= 10 tra. A determinação do tamanho da amostra implica um certo co-
100 nhecimento estatístico que seria longo explicar aqui. o pesquisa-
dor interessado em aplicar a técnica da amostragem pqderá con-
Isto quer dizer 4ue tomaremos um elemento de cada 10. O sultar bibliografia mai~ especializada - em casos de difícil solução
número inidal t! escolhido ao acaso entre 1 e 1O, por um processo poderá ser indispensável o assessoramento de um especialista_
de sorteio ou usando uma tabela de números fortuitos. Suponhamos
que o número eleito tenha sido o 4: selecionaremos os demais
somando o intervalo (neste caso 10) ao número inicial até termos
percorrido o universo todo. No nosso exemplo elegeríamos:

4- 14 - 24 - 34 - 44 - 54 - etc.

Paríl fazer a amostra ao acaso é preciso dispor-se do número F. História de empresas


total' Cle elementos que contém o universo. e de uma ordenação
numérica dos mesmos. O historiador encorytra satisfeita esta condi-
ção na documentação suscetível de amostragem, como as listas
nominativas, os testamentos, etc., e, em sua falta, quase sempre é
possível numerar os elementos, ou adaptar a numeração existente. 1. O CONCEITO DE EMPRESA E SEU
Por sua simpli'cidade, preferir-se-á a amostragem sistemática ao EMPREGO NA HISTóR1A
emprego de tabelas de números fortuitos. Entretanto, isto só será
possível nos casos em que a ordenação do universo .não_ implicar
qualquer sistematicidade.
O segundo requisito enunciado acima alude ao que os esta- Em seu sentido mais amplo, a palavra empresa quer indicar
tísticos denominam de amostragem e.rtratifícada. Já indicamos, atra- unidade de produção, isto é, o marco institucional de combinação

336 337
f,
·(
,'I ,

1:
,'
1

"' modo de evitar urna generalização da racionalidade capitalista, no


dos fatores de produção em uma sociedade dada. 4 j Não seria for- atinente à economia, a realidades históricas distintas. Admitido tal
çar o vernáculo até a beii:a do perigo da criação de m~l-en~en?idos ponto de partida, coloca-se um importante problema metodológico:
dar o nome de empresa às unidades de produção pre-cap1tahstas? com que conceitos é possível estudar a empresa "pré-capitalista"?
Evidentemente, tudo dependerá das cautelas tomadas - e nenhuma Evidentemente, noções como as de lucro, preço, salário, etc., não
confusão advirá se definirmos claramente o que entendemos por poderão ser aplicadas, pois têm sentido somente no âmago da
empresa. estrutura capitalista; mais precisamente, não poderão ser aplica-
Witold Kula, indagando-se sobre a propried·ade da expressão das automaticamente - seu uso deverá ser justificado e as noções
'empresa feudal'', declara: 46 redefinidas. 48 Isto pressupõe o abandono da idéia de que a econo-
mia política, em seu estágio atual, proporciona uma teoria geral
•·Em princípio, a propósito de uma empresa qualquer cumpre cujos conceitos são empregáveis na análise de qualquer sistema
formular as duas seguintes perguntas: 1) Quais foram os obje- econômico. 40 Então, qual será a solução alternativa? Maurice Gcr
tivos da atividade da empresa? O valor dos produtos obtidos delier, vendo o problema do ângulo antropológico, afirma que
representa total maior do que a soma dos bens utilizados em uma "teoria geral" utilizável seria:
sua produção? 2) Quais. os motivos e a orientação da ·atividade
do sujeito econômico observado (e, portanto, de outros sujei- ". . . a teoria das leis de funcionamento da economia no seio
tos homólogos, provavel_mente)? Assim concebida e formu- dos diversos tipos de estruturas sociais possíveis e de seu
lada, a análise· da empresa pode e deve ser tentada no quadro fundamento, e este conhecimento científico é amplamente vin-
de qualquer sistema econômico. O que é impossível, e vamos culado aos conhecimentos teóricos, desenvolvidos. de modo
prová-lo, é a aplicação dos métodos elaborados para a empre- muito desigual, dos fundamentos das estruturas sociais, de
sa capitalista à análise da empresa feudal." parentesco, de religião e políticas'~-50

Ou, em outras palavras, só elaborar a teoria geral depois de


Justameqte nesta última observação de Kula está o centro do
estudados os casos concretos, não inversamente. De uma perspecti-
problema. Poderemos falar de empresas, como unidades de pro-
va histórica, e em trabalho anterior ao de Godelier, Kula chegou
dução, sob a condição de que isto não implique a generalização de
às mesmas éonclusões::H
um certo tipo de racionalidade econômica: a que está associada à
empresa capitali'sta. "Um sistema econômico é, pois, um conjunto de dependências
Antes de prosseguirmos convém insistir no programa proposto econômicas reciprocamente ligadas qué, pelo fato de estarem
nas duas perguntas de Kula: primeiro, estabelecer o tipo de exce:- vinculadas, surgem mais ou menos ao mesmo tempo e se
dente obtido da produção; segundo, explicar a conduta da insti- ·desfazem, também, aproximadamente no mesmo momento.
tuição observada, o que ..,..-- obviamente - só poderá ser feito pelo Datar empiricamente sua ~parição .e desaparição é fixar os limi-
estudo da estrutura social ein que se insere. Isto implica reconhecer tes cronológicos de um dado sistema econômico. E elaborar
que "o econômico não possui, em seu prôprio nível, a totalidade a teoria econômica de um sistema econômico dado é deter-
de ~cu st:ntido e de sua finalidade, mas apenas uma parte deles" . .n
Em outras palavras, é preciso estudar as relações internas do siste-
48 Cf. os trabalhos pioneiros de Chayanov sobre a economia camponesa,
ma econômico de uma sociedade com sua estrutura social, único cm Chayano_y, The Tlteory of Peasani Econonzy, ·publicado sob direção de
Thorner, Kerblay e S"mith, Homewood <Illinois), The American Econo-
mic Associatiôn, 1966. ·
45 Cl. Mauricc Godclicr, Racionalidad e irracio11alidad en la economía, 49 Godc!icr, op. cit., p, 298.
M~·~i,·o, Siglo XXI, 1967, p. 261. 50 Ibidem, p. 290.
46 \V. Kula, Tl1éorie économique d11 systeme féodal, cit., P- 16. 51 Kula, op. cit., p. 140.
47 M. Godelier, op. cit . p. 23.
339
338
,
'
'
,,,

minar (ainda empiricamente) a lista mais completa poss1vel t:mpresas agrícolas, em primeiro lugar - como é natural em
das relações de dependência que o mesmo admite e determi- sociedades como as latino-americanas - dedicadas há vários séculos
nar as vinculações recíprocas que fazem deste conjunto de à ·agricultura e às atividades extrativas: fazendas, grandes lavouras,
estâncias, posses precárias, camponeses parcelários. . . Os proble-
relações um sistema único."
mas colocados variarão conforme o tipo de contexto. Convirá
Retomemos, agora, o tema da racionalidade econômica. Mini- reunir, antes de mais nada, dados estatísticos da produção, rendi-
mizar os custos ou maximizar os resultados é, sem dúvida, o 5jgno mentos e produtividade; 55 isto nos permitirá acompanhar a evolu-
de uma atividade econômica racional em qualquer sistema econô- ção da empresa a curto e a longo prazo, entender suas respos"tas
mico - e isto suporá que existam várias soluções po~síveis para à conjuntura. Depois., será interessante quantificar os insumos: in-
um dado contexto técnico e que haja possibilidade de compará-las versões necessárias, despesas de mão-de-obra. Isto será impossível
e escolher a variante mais econômica. '" Entretanto, maximizar a de entender se não estudarmos, também, as técnicas de produção,
produção ou minimizar os custos tem sentido somente dentro da a posse da terra e, ainda mais amplamente, os fatores naturais:
"hierarquia das necessidades e valores que se impõem aos indivíduos tipos de sol.o, climas, flora - que constituem o marco físico indis-
no ~ei ,o de determinada sociedade .e que têm seu fundamento na pensável. E logo aparecerão os problemas de mercado: como se
natu1eza das estruturas desta sociedade." 53, Deste modo, o problema usa o excedente da produção, onde é possível vender - e aqui
da racionalidade econômica está contido no da racionalidade social. intervém o problema dos transportes, dos fretes. Finalmente, se
houver um mercado haverá um preço, e este índice - tão anreci"-
As considerações anteriores pressupõem, portanto, que pma do na história econômica - nos permitirá calcular o lucro, medir
estudar as economias pré-capitalistas e suas empresas, em especial, a rentabilidade da empresa integrada a um circuito mercantil. :,;
é preciso construir a "teoria" dos referidos sistemas econômicos. Até o momento propusemos. uma análise que poderíamos chamar
Quanto à América Latina o problema se coloca agudamente em de microeconômica., no sentido de que encara a perspectiva da
relação à fase colonial e persiste, assim como o peso das formas empresa individual, mas a estrutura e o funcionamento de uma
arcaicas na evolução posterior. Felizmente., quase todos os estudos empresa só podem ser entendidos dentro da estrutura econômica
mais re~entes procuram explicar o que há de específico e próprio total.
em nossas sociedades e em sua história - e logo chegará o mo- Vejamos, agora, alguns temas de estudo. Antes de mais nada,
mento de podermos realizar sínteses e comparações úteis. 54 o problema da mão-de-obra: "repartimientos" de índios, "enco-
miendas", "mitas" e outras formas de trabalho forçado; escravos,
"peões", campn'}eses sujeitos a algum tipo de coação extr2-econô-
mica; semipropfietários, isto é, assalariados que não o são de modo
permanente; afinal., proletariado agrícola. A estrutura da oferta
da mão-de-obra será de grande importância para caracterizar o
2. TIPOS DE EMPRESAS sistema econômico em que se inserem as empresas estudadas; sua
análise não é, de forma alguma, independente da empresa agrícola
considerada em seus aspectos políticos e sociais. A fazenda, por
Tentemos, agora, traçar um programa de trabalho, um balanço
provisório em alguns casos.
55 Sobre o problem:i da produtividade, cf. Troisie111e conférence inter-
nationale d'histoire économique <Munique, 1965) Paris-Haia, Mouton,
1969 (vol. II, secção dirigida por Jean Meuvret}.
52 Ibidem, p. 129.
53 Godelier, up. cit., p. 303. 56 Logicamente, para que isto seja possível é preciso qüc tudos os fato-
54 Ver os Capítulôs I a III. res tenham um preço.

340 341
pormenorizado de empresas e não pela via contrária-: só assim taiíi
exemplo, não é apenas empresa; tambêrn implica um sist~n:a _de
tipologias seriam, realmente, representativas.
domínio particular. A dinâmica histórica do complex?. lattfundio-
minifúndio é, pois, de especial interesse; 51 Será nece~sano observar No caso das empresas agrícolas, outro aspecto importante a
as transformações do sistema de dominação, primeiramente ,como estud2r é o da "industrialização" ou beneficiamento do produto
constatação de uma permanência que pode atravessar, os ~eculos que, às vezes, pode ser realizado na própria empresa ou em esta-
ou, ao contrário, de uma fluidez extremamente se~sivel a _co~; belecimento a ela vinculado. Assim, os engenhos de açúcar, as
juntura; para, em segundo lugar, explicá-Ias. Françms Chevalier·' beneficiadoras de café, as charqueadas e os frigoríficos de carne
mcstrou brilhantemente, quanto ao caso da Nova Espanha, a cor- vacum, etc., constituiriam um capítulo importante do estudo das
respondência entre a expansão ou concentraçã.o mineira. e a. !~r­ empresas. Logicam.ente, tais atividades elaboradoras dos produtos
mação e à transformação da grande propnedade _I.attfundiana. agrícolas estão intimamente vinculadas à comercialização e à expor-
Épocas de auge, estagnação ou declínio _da produçao, fas_es de tação. <lt
longa e curta duração, vinculação inter-regional das economias - As empresas comerciais oferecem um campo de estudos muito
eis aí as variáveis decisivas para entender a conduta das empresas, importante:_ desde o comércio local e de intermediários até as
historicamente. 59 grandes empresas de importação-exportação, todas desempenham
A esta altura, é importante que tenhamos s~?linhado, até papel de primeiro plano, sobretudo .em sociedades como as da
a , 0 ra os estudos de empresas que partem da analise de casos, América Latina. Aqui será de especial interesse estudar a origem
i;dividualmente. Na verdade, não é esta a única a~ordage1'.1 pos- social dos capitàis investidos no grande comérci~: --~ nacionalidade
sível. Sobretudo para estudar a inserção ?e . determinado tipo . de dos investidores e suas atividades prévias constituem um bom começo.
empresa na globalidade da estrutura econ?mi~a recorre-se, muitas A nova empresa é um prolongamento de atividades ligadas à
vezes a tipologias que arrancam da generahzaçao de algumas carac- terra, ou trata-se do resultado da expansão de uma firma estran-
terísticas importantes, supostamente comuns a todas . ª:o
empresas geira que, agora, abre sucursal ou se associa a uma nacional que
a "represente"?
do mesmo tipo. Muitos dos estudos de Antonio Garcia sobre as
empresas agrícolas da América Latina apelam para este recurso. Do Boa parte dos "segredos" do funcionamento das economias de
ponto de vista do rigor da pesquisa, é preciso ter _em. c~nta , q~e exportação serão encontrados nas empresas comercializadoras. Co-
0 emprego deste tipo de análise, embor~ possa ~bnr md1scuttve1s mo oscilam as taxas de lucros destas empresas? Acompanham as
campos dt: interesse., apresenta. o grave mco~~emente da~ genera- variações cíclicas dos preços de exportação? -Não sendo assim, fica
lizações nem sempre com suficiente base empmca. Ademais, nunca evidente que as baixas de preços <;erão suportadas pelo produtor.
permite a riqueza analítica verificada quando s~ parte do ~om­ Há base para algum conflito de interesses entre produtores e comer-
pOrtamento de empresas, individ~alme~te ,consideradas. O ideal ciantes exportadores? Qual o grau de monopolização do mercado?
~cria, logicamente, só chegar a tipologias a base de um estudo
O mesmo tipo de estudo é extensível aos bancos e às socie-
dades financeiras: interessará conhecer, especialmente, o peso rela-
... ~-----
tivo dos bancos nacionais (determinando a que interesses estão
57 Ct os estudos de Antonio García, Refonn:i agrm:ia ?' ec011:°mí~ c1_n-
prnaria/ c 11 América Latina, Santiago do Chile, Ed1tonal Umvers1ta~1~, vinculados) comparativamente .aos estrangeiros. Qual a distribui-
J9ó7; Caio Prado Júnior, "El problema agrario en Brasil'', cm _Evol11cwn
ção dos créditos? Que papel desempenha no funcionamento da
po!il!ca dei Brasil, Buenos Aires, Editorial Palestra, 1959. Tais estudos
juram pioneiros no referente a isto.
S8 Ct F Chevalier, op. cit - óO A. García, op. cl/ ., especialmente o Cap. II.
~9 Rn:cntc e ótimo estudo é o de Petcr Klan~n. La formación de las
61 Estudo recente neste ~entidu é o de Manuel Maechi, Urqui~a, el
lia< 1n1das az11careras y los orígenes dei APRA, Lima, Instituto de Estu-
sa/aderista, Buenos Aires, Ediciones Macchi, 1971.
d1u' Pvruano~. 1970.

342
343
··~·

- e em .que. medida dá apoio financeiro 19) Empresas patrimoniais


produção para a ex_Portaçao
à indústria nascente? . . . , .
. · ln1 ente tratemos das empresas mdustnais. Ja menc1ona-
F ma Os livros de. contabilidade são a primeira fonte obrigatória.
' - (f . 'fº Se existirem, permitem a reconstituição das atividades da empresa,
mos um primeiro tipo - o vinculado às exportaçoes . ndg"ofn 1cos,
· . e ngenhos ' etc.) - que se dedica
immas, , . a elaborar,
, . em_ 1 erentes
. dia a dia, e a determinação do volume de tais ativídades das
·graus, um produto primário. As industrias t1p1cas s~r~o, a n~or, inversões e dos lucros. Entretanto, nada informam sobre as i~ten­
as vinculadas ao mercado interno: des~ertam: sem _duvida, notavel ções do empresário e quanto ·a sua atitude ante diversas situações,
interesse porque seu estudo esclareceria mmtos d1!emas d~ pro- quanto aos projetos e dificuldades. Para isto, será conveniente ape-
.cesso de industrialização substituidora. Qual a ongem so~ial de lar para a correspondência comercial e epistolar - esta última,
-seus capitais? Autofinanciam-se ou apelam _para algu_m ?tipo de possivelmente, conservada e importante enquanto a propriedade
.crédito? Quais as modalid2des da acumulaçao d~ ,c?p1tal. Como'
atuam no mercado de mão-.de-obra? Quando t~m. 101c10 ~ ~roce~~~
da empresa for familiar; e, em geral, é util apelar para todo o
tipo de documentos conservados nos arquivos familiares e referentes
de desnacionalização e quais as suas caractensticas. dommantes. .
à empresa. De grande interesse serão os contratos de produção ou
Convém dizer algo sobre os transportes e as vias de comun_1"'"
de venda, às vezes conservados nos arquivos dos cartórios.
cação. Seu papel é indispensável no estud~ de. qual~uer econom1.a
e, mais. ainda, nas economias de exportaçao. p.~r~ovias, P?~tos ou
rodovias: quais os lucros das empresas, ~errovianas? Just1!1caram,
;- 0 1"nvestimento? Qual é a pohtlca de fretes? ha algum 29) Empresas por ações
OU ndO, ·• · · d d l
controle nacional sobre a rede de transportes? O e_stu _o ,ª ev~ u-
ção da rede e das técnicas de transporte e comumcaçao e de im- Neste caso há, pela própria estrutura empresarial, uma série
portância primordial. 113 de documentos de acesso relativamente fácil: relatórios e balancetes
apresentados à assembléia de acionistas; atas das reuniões de dire-
toria; relações dos titulares das ações; correspondência comercial,
etc., fontes estas que se acrescentam aos documentos citados a
propósito das empresas patrimoniajs.
3. AS FONTES E Sl!A EXPLORAÇÃO

39) Empresas públicas

Até agora destacamo!> alguns problemas metodo.lógicos e algu~s Em uma certa etapa do desenvolvimento capitalista o Estado
temas dé pesquisa vinculadós à história de empresas. A seguu começa a realizar investimentos públicos, seja nacionalizando certos
e~hoçaremos os principais tipos de fontes para tais estudos.
serviços (como ferrovias, pórtos, telecomunicações, etc.), seja in-
vestindo diretamente em alguma área estratégica da indústria,. como
62 Cf. por l'Xcmplo: Dawn Kcrcmitsis, La i11dustria textil me~_ica11a, e~ o petróleó, a siderurgia, a fabricação de armrts, etc. Em tais casos,
:!i el siglo X JX, col. Sep/Setcntas, México, Sccretaría de Educac1on Pubh
il é necessário acrescentar à documentação tod·a a legislação baixa-
i' ca, 1973. .
!i1 63 Cit.:mos, entre os estudos sobre os transportl's, Claudio Veliz, Histo- da a propósito da empresa estudada. É óbvio qúe a atividade em-
il; na de· la marina mercante de Chile, Santiago, Universidad de Chile, 1961; presarial do Estado, fora do setor industrial, tamb§_m é muito im-
Raul Scal<ibi-ini Ortiz, Historia de los ferrocarrÚes argentinos, Buenos portante, às vezes: no setor bancário, no de seguros, etc.
\1\. ' Aires, 1957, 2.• ed.
li11
i· 345
.,1,. !

,··11; .
'i,1i
corresse a livros mais especializados. Realmente, já existem bon;
'19) Observações finais
manuais ou tratados de estatística traduzidos para todas as lín-
'

l,'I ,'
guas Gr. e esta obra não pretende propor-se a substitui-los - à
- A contabilidade da empresa não deve assustar ninguém.
que, além do mais,~ seria impossível tendo-se em vista os limi-
Em apêndice indicamos os principais elementos do balanço anual tes que nos impusemos, tanto no referente a espaço quanto no que
e da conta de lucros e perdas. Como o leitor verá, nenhuma genia- diz com o nível deste trabalho, estritamente de iniciação. Por outro
lidade financeira se faz mister para lê-lo, para os fins que inte-
lado, sabemos que alguns dos recentes manuais franceses de intro ·
ressam à história econômica.
dução aos estudos históricos (extremamente úteis e bem elabora-
- Campo de estudos de grande interesse é, sobretudo para
dos, quanto ao mais) contêm muitos erros e inexatidões porque
a sociologia e a ciência política, o dos empresários co~o. grupos
tentaram resumir em poucas linhas certas noções e processos cuja
dentro da sociedade analizando-se, por exemplo, suas atitudes ante
'
tais ou quais problemas. -
0 4 Para: estes estudos, as fontes serao os
correta explicação requer longas exposições; o pleno conhecimento
disto orientou-nos no sentido de nos limitarmos ao essencial, quer
documentos dos sindicatos patronais e, quando possível, entrevistas.
- Outro tipo de pesquisa é a que tenta estabelecer os v,!t1culos dizer, ao mais comum nas pesquisas históricas feitas por historia-
das empresas: fusões, controle de umas sobre outras, fenomen.os- dores. Não esconderemos do leitor que os dados contidos neste
Jigados à concentração econômica. As .diretorias ~ atas das socie- capítulo seriam apsolutamente insuficientes para a feitura de traba-
dades anônimas, (geralmente divul~adas pelas entidades que agru- lhos altamente especializados de econometria retrospectiva, por
pam os diferentes setores empresariais) são, neste caso, as fontes exemplo. Mas, (além das restrições que em outros capítulos fize-
mais acessíveis. mos a tais estudos e de nossa preferência claramente manifestada
pela escola francesa de Emest Labrousse) é evidente que a reali-
zação de trabalhos deste tipo implica o domínio de amplos conhe-
cimentos econômicos e matemáticos, que em caso algum poderiam
ser proporcionados por um manual como o presente, pois pressu-
põem toda uma formação universitária específica. ·

u. Conclusãn

Ao encerrar a exposição relativa à história demográfica des-


tacamos sua insuficiência; entretanto, agora ainda é mais impor-
tante salientar o caráter supletivo e incompleto do presente capí-
tufo. Várias vezes, tratando de procedimentos estatísticos relativa"' 65 Por exemplo: Frederick E. Croxton e Dudlcy J. Cowckn, Estadística
general aplicada, tradução de. T. Ortiz e M. Bi;avo, . México, Fondo de
mente complexos pareceu-nos necessário sugerir ao leitor que re- CultUra Económica, 1965, 2.• edição. E, em francês, duas obras que muito
nos serviram na preparação deste capítulo: André Marchai, Economie
politique et teclmique statistique, Paris, Librairic générale de droit ct
64 Cf., por exemplo, o estudo de Fernando Henrique Card(oso, ldfWl<>- ele jurisprudcncc, 1961, 4.• ed.; Marcel Gillet, Teclzlliques de l'lzistoire
gias ·de Ia burg11esía industrial en sociedades dependientes Argentina '! · éco110111iq11e, 2 vol., Paris, Centre de Documentation Uniwrsitaire, 1969.
Brasil), México, Siglo XXI, 1971. 2.• nl. (mimeografada).

346 347
é o estudo cientificamente elaborado das vanas atividades e
das diversas criações dos homens de outros tempos, captadas
em sua data, no marco de sociedades extremamente diferen-
tes e, no entanto, comparáveis umas às outras (o postulado
é da sociologia); atividades e criações com que cobriram a
superfície da terra e a sucessão das eras."

Podemos situar tais observações ao lado de uma bem conhe-


cida de Marc Bloch:
"O historiador deve estar onde estiver a carne humana."
Para os fundadores dos Annales, porta-vozes da história nova,
o eixo das preocupações do historiador, o objeto · da história, são
o homem e sua atividade. Cuidado, -entretanto, com as confusões
semânticas: quando se diz o homem não se quer dizer persona-
gem, em um sentido tão caro a tantos historiadores que viam
CAPITOI O VIJ
a história como o resultado da soma das ações dos heróis ou
dos gênios, cujo cenário natural era constituído pela guerra e pela
política. Na aludida conferência, Lucien Febvre. dizia: :!
A HISTÓRIA SOCIAL " ... o objeto de nossos estudos . não é um fragmento do·
real, um dos aspectos isolados da atividade humana, mas o
próprio homem, considerado 110 seio dos grupos de que é
membro."

Agora assume seu pleno sentido a frase anterior: "A história


que é, por definiçã~, absolutamente s9cial" e podemos entender
A Os sentidos da expressão "história social" bem que a história nova, que os fundadores dos Annales contri-
buíram decisivamente para criar, é uma história do homem e· de
seu grupo social, em suma: uma ''história da sociedade em· mo-
1. A HISTÓRIA SOCIAL COMO SÍNTESE vimento". ª
Esta disposição de não considerar a história social como
No infausto ano de 1941, Lucien Fébvre em conferencia pro- uma especialização com o mesmo status da história econômica,
nunCiada na Eco/e Nontiale Superieure dizia o seguinte: 1 demográfica, etc., certamente es,tá presente em muitas das obras
importantes da historiografia francesa dos últimos quarenta anos.
"Repito, portanto: não há história econômica e social. · Há Em balanço recente,. Eric Hobsbawm ao f~zer levantamento das
somente história, em sua unidade. A história que é, por de-
finição, absolutamente social. Em minha opiniã~ a históría 2 Ibidem, p. 41; destaque nosso.
3 Pierre Vilar, "Lá méthode historique", em Dialectique mar:âste e1
pensée structurale. Tables rondes à propos des travaux _s!'All/111sser, Paris
t Lucien Febvre, Combates por la historia, Barcelona, Ariel; 1970, p. 40. Cahicrs du Centre d'Etudes Socialistcs, 1968, pp. 35-43.

349
ciedades m~uievais com maestria indiscutível. A idéia é a de lançar
con4uistas e perspectivas das pesquisas de história social das duas
a história social em uma rota de convergência de uma história
últimas d~cadas subscreveu, . plenamente, tal posição sugerindo a
da civilização material e de uma história da mentalidade coletiva.
denominação de história da sociedade como expressão mais ade-
Duby esboça três princípios metodológicos para alcançar-se tal fi-
quada. 4 .
nalidade maior. O primeiro já é nosso conhecido: "o homem cm
A diferença de status entre história social e história demo- sociedade constitui o objeto final da pesquisa histórica". Só a
gráfica, política, etc., relaciona-se - no caso da Escola dos An- necessidade da análise nos leva a dissociar os fatores econômicos dos
nales de Marc Blach e Lucien Febvre - mais concretamente, por políticos, ou dos mentais: G
um lado, com o chamado à colaboração das distintas ciências
sociais para o estudo de um objeto comum a todas: o homem " ... a história das sociedades deve, sem dúvida, primeiro e
em sociedade; por outro lado, tem a ver com o espírito de sín- para comodidade da pesquisa, considerar os fenômenos a dis-
tese que os inspirava. Lucien Febvre, ao explicar porque tinham tintos níveis de análise. Que ela deixe, entretanto, de se con-'
escolhido um vocábulo como "social" para o título dos Annales, siderar a seguidora de uma história da civilização material,
expressa-se claramente: 5 de uma história do poder, ou de uma história das mentalida-
des. Sua vocação própria é a da síntese. Cumpre-lhe recolher
" ... estávamos de acordo em pensar que, precisamente, pala- todos os resultados das pesquisas efetuadas, simultaneamente,
vra tão vaga como 'social' parecia ter sido criada e trazida em todos esses domínios - e reuni-los na unidade de uma
ao mundo por um decreto nominal da Providência histórica visão global."
para servir de bandeira a uma revista que não pretendia cer-
car-se de muralhas, ma.s irradiar para todos os jardins da
O segundo princípio metodológico proposto por Duby con-
vizinhança - amplamente, livremente, até indiscretamente
siste em "Dedicar-se a descobrir, no seio de uma globalidade, as
um espírito, o seu espírito. Quero dizer um espírito livre, de
articulações verdadeiras". Aqui é onde se esboçam as vinculações
crític·a e de iniciativa em todos os sentidos."
- e ninguém lhes negará a complexidade - entre o econômico,
Se a história social, por sua própria natureza e .pela evolução o político, o mental. Tratar de descobrir as verdadeiras articula-
da metodologia, manifesta vocação de síntese, será indispensável ções quer dizer captar as vinculações importantes, as relações sig-
colocar os requisitos metodológicos necessários para levar a bom nificativas que nos fazem entender a totalidade de uma sociedade.
termo tal vocação. Não nos podemos conformar, já, apenas com Afinal, o terceiro princípio: 7
o fato do vocábulo "social" ser conveniente porque é o bastante
amplo para convocar a discussão interdisciplinária - admitindo, "Porém a pesquisa das articulações evidencia, desde o início,
afinal, que toda a história é social. que cada força atuante, embora dependa do movimento de
Como considerar, pois, a história social como síntese que todas as demais, tem a animá-la, no entanto, um impulso que
deve integrar os resultados da história demográfica, da história lhe é peculiar. Ainda que não _estejam de modo algum jus-
econômica, da história do poder, da história das mentalidades? tapostas, mas intimamente ·vinculadas em um sistema de in-
Georges Duby, em sua magnífica aula inaugural no College dissociável coerência, cada uma se desenvolve no interior de
de France: propôs um caminho ·frutíféro, aplicando-o logo às so- uma duração relativamente autônoma; .esta última está ani-

4 Eric Hobsbawm, "From Social History to the History of Society" em 6 Georges Duby, "Les sociétés médiévales. Une approche d'ensemble", em
l>:1nla/11s, inn:rno de 1971 ( Historical Studies TÓday ): resenha em Annales Annales E. S. C., janeiro-fevereiro de 1971, pp. 1-13.
F S (' , maio-junho de 1972, p. 673. 7 Ibidem, p. 4.
' luc·ic·n FL'b\Tl', op. cit., p. 39.
351
350
mada, além disto, nos distintos mve1s da temporalidade, pur Assim, apesar das colocações de Febvre e Bloch, constitui-se
uma efervescência de acontecimentos, por amplos movimentos uma "história social" que., precisamente, é mais uma especialidade
de conjuntura e por ondulações ainda mais profundas, carac- ao lado da história demográfica, econômica, política, etc. Seu ob-
terizadas por ritmos muito mais lentos." jeto parece estar delimitado como o " ... estudo de grandes con-
ju~tos, as classes, os grupos sociais, as categorias sócio-profissio-
nais. 9 Ou, conforme o . expressa Albert Soboul: to
Reconhecimento, pois, da irredutibilidade dos distintos mve1s
no estudo de uma sociedade. O problema da duração, dos ritmos
diferentes que afetam cada nível da vida social, surge como a "A h~stória social n~o. é .somente um estado de espírito, quer
primeira justificativa - certamente não a única - de tal prin- tambem s~r ~ma disctphna especial dentro do conjunto das
cípio metodológico. Difícil seria não lembrar aqui as reflexões de ciências históncas._ Neste sentido mais preciso, está vinculada
Femand Braudel sobre os diferentes tempos da história, embora ao e~tudo da sociedade e dos grupos que a constituem, em
já as tenhamos mencionado. s As proposições de Duby são., indu- suas estruturas e pelo ângulo da conjuntura; nos ciclos e na
bitavelmente, um convite à pesquisa. Não existe a pretensão de lunga duração."
antecipar uma teoriH sobre o que deveria ser a história social
como síntese. E isto não é, seguramente, uma. debilidade mas a Este . ~odo de sentir a história social é, sem dúvida, o que
prudência própria de um experimentado historiador. Nada seria tão ora predomma. Isto nos coloca o problema de uma possível con-
temerário quanto elaborar a teoria normativa de algo que ainda fusão entre os dois sentidos associados na mesma expressão, for-
está em vias de constituir-se. çando-nos, por isto, a especificar clàramente qual será. o conteúdo
das demais partes deste capítulo. Desde já, digamos que a histó-
ria soda!, no sentido de síntese global, constituirá o objeto do
Capítulo IX deste manual. Trataremos, a seguir, dos seguintes
aspectos:

2. O SENTIDO -MAIS COMUM DA EXPRESSÃO - as relações entre a história social vista como uma espe-
cialidade e os dados da história econômica;
os principais domínios da história social, entendida neste
sentido restrito: o estudo da estrutura social, das estra-
Na década de 1930 a influência maior sofrida pelos historia-
tificações, e a análise dos movimentos sociais;
dores, quanto a metodologia, técnicas de pesquisa. e elaboração
de dados, proveio da economia o que, logicamente, provocou um - afinal, falaremos brevemente sobre a história das menta-
forte desenvolvimento da história econômica. Somente no Congres- lidades coletivas, elemento necessário de uma: história so-
so de Ciências Históricas de Roma, em 19 5 5, foi colocada pela cial como síntese; ademais, muitos dos estudos sobre men-
primeira vez - de modo sistemático - uma metodologia de pes- talidades coletivas fazem parte do campo da história· social,
quisa relacionada com o estudo da estrutura e das relações sociais, em sentido restrito.
rnmparável ao que foi a da história dos preços na história eco-
nômica. 9 Jean Bouvier, "H~stoire sociale et histoire économique", em L'Histoire
Sociale, Sources et Méthodes, Paris, Presses Universitaires de France, pp.
239-250.
8 CI. Fernand Braudel, "La larga duración", em La historia y las cien- ·10 Albert Soboul, "Description et mesure en histoire s~iale", · em L'his·
uas socia/es, Madrid, Alianza Editorial, 1970, pp. 60-106. toire Sociale, Sources et Méthodes, cit., pp. 9-25.

352 353
B. História social e dados ecanômicos 2. HIERARQUIAS SOCIAIS E BASE ECONôMICA

A história social tem nos dados econômicos uma indispensá- . Enriquecimentos e empobrecimentos estão, invariavelmen'te,
vel coordenada de referência. Nenhum historiador poderia, hoje, entre as conseqüências sociais da conjuntura econômica. Cada so-
negar que a estratificação social~ a constituição dos grupos huma- ciedade distribui socialmente seu excedente econômico de acordo
nos, a estruturação das relações sociais entre grupos e indivíduos com regras específicas - e tal distribuição é o fundamento das
possam ser estudadas, ou mesmo compreendidas, sem que se con- hierarquias so.ciais . Ninguém reduziria, por outro lado 0 estudo
siderem as bases materiais da produção e distribuição do excedente das hierarquias sociais ao mero estudo da base econÔmica. No
econômico. Entretanto, é preciso precisar o modo da história so- comportamento de um grupo -social há muitos outro~ determinan-
cial usar os dados econômicos. Trê~ pontos, propostos por Jean· tes, ~lê~ d? interesse econômico. Entretanto, o estudo da base
Bouvier, resumem com muita precisão o problema enunciado - econom1ca e o ponto de partida indispensável.·
e a eles acrescentaremos um raciocínio de Adeline Daumard re- Um problema difícil - a ser estudado um pouco adiante -
lativo ao tempo, às durações. 11 pode ser co~ocado desde já: com que critérios definir as classes
sociais, ou estratos, em que classificamos uma população?. Aqui
não está posta em questão a validez da teoria das classes sociais,
mas a decisão sobre com base em que tipos de critérios convém
fazer a distinção de classes, ou categorias sociais, em um estudo
histórico. Basicamente, as alternativas são duas: uma, adotar uma
1. HISTÓRIA SOCIAL E CONJUNTURA ECONóMICA teoria determinada a respeito das classes e submetê-la a uma es-
pécie de verificação histórica; outra, que poderíamos chamar de
empírica, prefere buscar definição na própria . sociedade estudada,
considerando como anacronismo toda a tentativa de encontrar clas-
Segundo expressão de Emest Labrousse, a conjuntura apre- ses, por exemplo; em uma sociedade medieval - considerada, an-
senta-se ~orno o pano de fundo do cenário social . !sto não sig- tes, como uma sociedade de "ordens" ou estamentos. 1ª A escolha
nifica que a conjuntura determine, diretamente, o social. Em uma
de· uma teoria, tendo em conta sua eficácia explicativa, parece
crise pode haver ou não uma situação revolucionária. 12 O indis-
cutível é que a conjuntura contribui para a explicação do social, ser fundamental.. O perigo de anacronismo Ç real. Entr~tanto, de-
ve-se evitar uma confusão: que os homens da sociedade feudal não
ilumina-o. ·
Como os distintos grupos sociais vivem a conjuntura? pensassem em termos de classe social não implica que, para tomar
Uma alta ou uma baixa de preços não é a mesma coisa inteligíveis as relações sociais feudais, não possamos usar este
para um operário e para um empresário industrial . As reper- conceito. Seria o mesmo que pretender vetar o estudo dos ciclos
cussões sociais da conjuntura estão, assim, no centro da atenção Kondratieff do século XVI porque a metodologia para sua análise
da história social. só foi concebida há .DQucas décadas; ou porque, tratando-se de
flutuações de longá duração, os contemporâneos não . tinham cons-
ciência de sua existência. . . Outro problema - e agora é que
11 Acompanhamos, aqui a apresentação do tema no artigo de Jean Bou· pode surgir a· q~stão _d~ anacronismo - é saber qual a visão
vier citado na nota 9. Sobre as relações entre a história social e história
demográfica, cf. supra o capítulo IV.
dos homens da Idade . Média sobre as hierarquias sociais, quais
12 Cf. as observações, ·sobre este tema, de Ernest Labrousse, referindo-se
às revoluções de 1789 e 1848: MT.res fechas en la historia de Francia", em
Fluctuaciones económicas e historia social, cit. (última parte). 13 Cf. infra, a parte C deste capitulo.

354 355
i \
r'f
! 1

as opiniões dos contemporâneos sobre a alta de preços do século A história social só pode responder a tais indagações recor-
XVI, etc. rendo aos dados básicos da análise econômica, colocando-os em
suá própria perspectiva de estudo.
Assim, pois, a análise econom1ca isola uma série de fatores,
proporciona uma série de dados, ilumina uma série de ~ecanis­
mos. A história social toma tudo isto como ponto de partida e. o
reorganiza em função dos distintos grupos integrantes da socie-
dade:
4. O PROBLEMA DAS DURAÇOES

Sem pô,r de lado o estudo dos movi111entos de curta duração,


os historiadores da economia tratam de construir séries longas, de
3. DINÂMICA SOCIAL E PODER ECONóMICO estudar tendências e ciclos que abrangem muitas décadas e, se-
guidamente, muitos séculos. Isto é útil para a história .social, à
qual dá o marco e o sentido geral de uma evolução. Porém, no
interior de tal marco é preciso· situar o ritmo específico da evo-
lução das estruturas sociais. Como diz Adeline Daumard: 1"

Agora entramos no problema das relações de força entre os " ... para o estudo dos fatos sociais, pelo menos no estado
distintos grupos sociais. Novamente ternos de advertir contra o atual. da pesquisa, os limites cronológicos devem ser mais
economicismo. Na base da maioria dos conflitos sociais há mo- restritos. f: preciso considerar sempre o espaço de tempo
tivos de ordem econômica; mas não explicam a totalidade do con- suscetível de ser percebido no curso da vida individual; pe-
flito, nem sua evolução. u Enriquecimentos e empobrecimentos, ríodo que corresponde seja à vida ativa e lúcida - isto é,
ascensões e baixas na pirâmide social serão temas de grande im- quarenta a cinqüenta anos em média ,_ seja à duração de
portância: Qual a reação da burguesia industrial à organização três gerações, ou seja, cerca de um st!culo: pois cada indi-
operária e às lutas operárias do século XIX? Qual a sua influên- víduo se beneficia com a experiência. de seus pais e participa
cia e controle sobre o aparelho do Estado? Em que momento um da dos filhos. Nos países ·de evolução mais lenta, se as tradi-
grupo social alcança suficiente poder econômico para exercer o ções ancestrais perpetuam-se por muito tempo, sem mudanças,
poder político? talvez seja necessário considerar um lapso de tempo maior,
Que alianças, que acordos são feitos e desfeitos entre os di- mas isto não modifica os dados do problema: v quadro nor-
versos grupos no curso das lutas sociais? mal da história social vincula-se a um ritmo ligado ao estado
biológiço e à civilização que caracterizárn o ambiente estu-
dado."
14 Ver, por exemplo; Katia M. de Queiroz Mattoso, "Conjoncture et
societé ~u-·Brésil à la fin du XVIIIe siecle: Prix et salaires à la veille de
la révolution des Alfaiates#. em Cahiers des Amériques Latines (série 15 Adellne Daumard, "Données . économiques et histoire-sociale", em Re-
Sciences de l'Homme) n.• 5, janeiro-junho de 1970, · pp. 33·35. vue Economique (Paris, Armand Colin), n.• 1. janeiro de 1965, pp.62-85

356 357
"Fontes fiscais, entre as quais as listas ·nominativas do
e. Estrutura social e estratificação imposto direto, completadas e esclarecidas pelos arquivos
do registro e litígios, e por informações capitais que se
possam obter nos documentos cartoriais permitem, em
uma circunscrição geográfica limitada - uma cidade, por
exemplo - reagrupar de uma vez, profissionalmente, to-
dos os elementos da burguesia; estas mesmas fontes per-
1. ERNEST LABOUSSE E O INICIO DA QUANTIFICAÇÃO mitem, também, fazer-se um esboço, por grupos, n9 inte-
SISTEMATICA EM HISTóRIA SOCIAL. rior da profissão, ou no conjunto da cidade, da hierarquia
das fortunas"; ·
Em famosa comunicação apresentada ao X ~ongresso Inter- - "Fontes demográficas que, mais amplamente do que as
nacional de Ciências Históricas (Roma, 1955), Ernes-t Labroussc precedentes, permitirão descobrir a distribuição profissio-
lançou as bases do que seria uma história social quantificada, nal da população. A estas acrescentaremos a importante
embora limitando-se a um de seus aspectos - fundamental, certa.., informação, proporcionada pelos registros dos censos mi-
mente - 0 da história da burguesia ocidental entre 1700 e 1850. 16 litares sobre a profissão dos conscritos e de seús pais; e
Esboçando o princípio de que uma. defini?ão de burgu~sia deve~a -· por ora como· fonte complementar __ os expedientes
ser o resultado e não o ponto de partida da pesquisa sugenu 'profissionais' de particulares ou de funcionários, capazes
que esta fosse feita no quadro 'de uma atividade int~i:iacional co- de trazer um testemunho .de riqueza inusitada sobr~ a
ordenada estudando-se os seguintes aspectos, a proposito de todas profissão e sobre a sociedade."
as categ~rias suspeitas de pertencerem · à burguesia:
Na mésma linha mdicada por Labrousse, e usando os tipos
~ contagem e classificação por profissã~; _ rnenCionados de documentos, seus discípulos François Furet e Ade-
- estud,o da hierarquia no seio da prof1ssao; line Daumard dedicaram-se ao estudo da sociedade parisiense dos
- comparação das profissões, para estabelecer a hierarquia séculos XVIII e XIX, aperfeiçoando os métodos . de tratamento
existente entre elas; quantitativo. As fontes que lhes permitiram obter os mais interes-
- estabelecimento de hierarquia fora dos quadros profissio- santes resultados foram as dos arquivos cartoriais (contratos de
naii;. casamentos, testamentos, etc.), os inventários dos bens de pessoas
1

falecidas, os registros de deélarações de sucessão. Seus esforços


Para chegar a este resultado ·preliminar - isto é, essencial- orientaram-se, sobretudo, para o estabelecimento de uma ~strati­
mente uma estratificação sócio-profissional - Labrousse apontava ficação social segundo as profissões e as fortunas, para a percep-
três grandes categorias de fontes: 17 ção do jogo de alianças e da mobilidade geográfica (migrações)
e social. Na América Latina, embora existam, às vezes, fontes
- "Fontes eleitorais, entre as quais figuram esse~ incomp~­ análogas às indicadas por Labrouss~ só é conhecida uma tentativa
ráveis catálogos de notáveis constituídos pelas hstas cens1- recente de resposta ao chamamento feito em Roma: e tal intento
tárias"; frustrou-se por motivos que nada têm de científicos. 18

16 Emest Labrousse, "Voies nouvelles vers une hi~toire de la bourgeoisi~ 18 Maria Yedda Linhares, Levantamento .e andlise de fontes para uma
occidentale aux XVIIIe e XIXe siecles (1700-1850) em X Congresso ln história social urbana - Rio de Janeiro (18~1930), projeto de pesquisa
ternazionale di Scienze Storiche (Roma, 4-tl de setembro de 1955).. Rela· aprovado pelo Conselho de Pesquisas da Universidadtõ_ Federal do Rio
tioni, vol. IV: Storia Moderna, Firenze, Sansonl, 1955 pp. 365-396. de Janeiro em 1968 e interrompido em 1969 por uma onda de repn-u4<>
17 Ibidem. p. 372.
3.59
358
~i
i T
Na atualidade, muitas pesquisas de história social usam 9s nhos de toda a natureza é indispensável, pois somente eles
métodos quantitativos e a . comput~ção, e. 9ão apen~s ·para . o es- podem esclarecer as estatísticas e dadRs quantitativos reunidos.
tudo da estratificação social. Assim, ~1lbert Shapiro, ~nahsa ~s Além d.isto, em muitos do~íni.os, são_ os únicos capazes de
cahiers de doléances dos Estados Gerais de 1789; Regme Robm proporcionar uma resposta as indagações do historiador."
publicou, recentemente, um livro baseado no mesmo tipo de fontes.
Charles Tilly pesquisou as revoluções e movimentos populares na
França, entre 1830 e 1960 ( d00% para 1830-1860 e 1930-1960
e amostras para 1861-1929), dividindo-os em dois grupos que
compreendem, respectivamente: 1.200 m·ovimentos,. a propósito de
cada um dos quais foram consideradas 25 variáveis; e 550 movi- 2. UM EXEMPLO DE ESTUDO CONSAGRADO AS ESTRU-
mentos estudados muito mais a fundo. O mesmo autor, em co- TURAS E ÂS RELAÇóES SOCIAIS
laboração com Edward Shorter, pesquisou as greves da França
( 1830-1960): são 36. 000 greves para cada uma das quais con-
siderou 15 variáveis. Poderíamos citar, também, numerosos estu-
dos de estrutura e de estratificação social - além do~ de Furet Tomaremos como exemplo o trabalho de Adeline Da1_1mard e
e de Daumard, sobre os quais tornaremos a falar - realizados François Furet, Estruturas e relações sociais em Paris a meados do
com o auxílio da· computação, como os de H. J. Dyos, Merle século XVIII. 21 Interessa-nos, principalmente, o aspecto metodoló-
Curtis, S. B. Warner, S. Thernstrom, etc. 19 gico e técnico desta obra, mais do que os resultados e conclusões
sobre o caso específico estud.ado.
No entanto, em história social - como em história geral -
o método quantitativo tem seus limites. A propósito, diz Adeline As fontes usadas foram os contratos matrimoniais conserva-
dos ·nos arquivos dos cartórios de Paris, relativos ao ano de 1749.
Daurnard, na introdução de sua tese: 20
Este foi um ano de paz, podendo ser considerado típico, do ponto
de vista da nupcialidade; os 2. 597 contratos existentes represen-
"Por um lado, todos os grupos não pesam igualmente na tam 60,9 % do número total de casamentos. Dois problemas pré-
sociedade; os grupos dominantes, perdidos em uma estatística vios se colocam, a propósito deste tipo de fonte: 1) a freqüência
de conjunto, devem ser estudados de modo mais profundo com que eram assinados contratos de casamento em cartório [no-
que a massa; se necessário indo-se até o exame do caso indi- tário], relativamente ao número de casamentos; 2) a quantidade
vidual. Isto, na realidade, não contradiz o método geral, pois de contratos conservados, comparativamente· ao total dos contratos
o caso típico só assume todo seu valor quando comparado firmados. A representatividade da documentação dependerá das
ao conjunto. E. necessário insistir mais sobre a importância respostas que possam ser dadas a tais indagações .. O defeito prin-
da 'documentação qualitativa'. O conhecimento dos testemu- cipal dos contratos matrimoniais, como fontes para o estudo da
estrutura social em seu conjunto, está no fato da parte mais pobre
lançada nos ambientes universitários pelo governo militar do Brasil. A
da população casar-se, então, sem contrato em notário, pois este
professora Unhares trabalha, atualmente, em pesquisa baseada nas listas tinha finalidade de acertar questões relacionadas com os bens dos
eleitorais do Rio de Janeiro e nos mandou, gentilmente, seu artigo ainda cônjuges. Por isto, Robert Mandrou impugnou, até certo ponto, a
inédito: "As listas eleitorais do Rio. de Janeiro no século XIX, Projeto escolha de Daumard e Furet, considerando ·que melhor teria sido
de classificação sócio-profissional•.
19 Cf. Edward. Shcmer, The Historian and the Computer. A Praticai
Cuide, Englewood Cliffs (Nova Jersey) Prentice-Hall, 1971, pp. 19-25.
21 Adeline Daumard e François Furet, Structures et relations sociales
20 Adeiine Daumard, Les Bourgeois de Paris au•XIXe siecle, Paris, Flam-
à Paris au milieu ·du XV 111e siecle, Cahiers des Anna.J.es, n.• 18, Paris,
marion, 1970, pp. 9-10. Armand Colin, 1961.

360 361
. 'T'".

zas). • Os dados relativos às fortunas provinham· das estimativas


tomarem os inventários post mortem, que permitem obter amostra
feitas pelos notários e incluídas nos contratos matrimoniais, ou
mais completa da população. 22 De qualquer modo, trata-se de
foram calculadas pelas indicações dos contratos· relativos a bens
pesquisa pioneira, cujo valor está, essencialmente, na experi01en-
imobiliários, rendas, ofícios, etc.; é evidente que tais cálculos têm
tação de métodos novos. uma margem de erro, às vezes considerável . Os casos de avalia-
Os dados contidos nos contratos matrimoniais usados, ao for- ção. impossível foram postos de lado.
necer informações abundantes sobre profissões e/ou posição social,
níveis de fortuna, origens familiares e escolha do cônjuge e das O terceiro passo foi constituído pela elaboração de histogra-
testemunhas. possibilitaram um estudo das estruturas sociais ba- mas: no sentido horizontal as gradações numéricas relativas aos
seado na profissão e/ou no status social (importante em uma níveis de fortuna; no sentido vertical o número de casos apresen-
sociedade que reconhece estamentos juridicamente definidos, que tados pelos contratos . Estes histogramas foram construídos, pri-
distingue nobres e plebeus) e na fortuna, e a análise de relações so- meiramente, para o panorama global das fortunas, depois para
ciais muito importantes. O critério· fundamental para a classifica- cada categoria sócio-profissional; em todos eles foram agrupados
ção dos dados cons!stiu em tomar por base, mais do que a pro- em uma coluna à direita de cada gráfico os casos de avaliação
fissão, o status sócio-profissional. impossível, pois constituem um dado importante para ter-se uma
Agora vejamos, sumariamente os procedim~ntos empregados idéia do grau de representatividade das distribuições conseguidas.
em cada uma das três partes do trabalho. · També.m, os autores trataram de separar graficamente os casos
em que são conhecidas as contribuições tanto do marido quanto
da esposa, isolando-os dos outros casos em que só a contribuição
19) Estudo da "fisionomia social" feiminina é indicada (cada coluna do. histograma compreende em
preto a superfíc~e. relativa dos casos do primeiro tipo e em partes
Como passo preliminar os autores tentaram definir os níveis tracejadas a porção correspondente aos demais casos); ademais,
sócio-profissionais que deveriam servir de marco classificatório; não sob a linha horizontal de cada histograma foram computados -
se tratava de reunir em uma categoria só todos os elementos vin- nas colunas correspondentes - os casos em que foi impossível
culados à mesma profissão, porém de determinar categorias que estimar o valor de bens imobili~rios ou ofícios mencionados nos
abrangessem, cada uma delas, os elementos cujos status social ou contratos. A Fig. 49 reproduz alguns dos histogramas (de um
sócio-profissional se assemelhassem ou fossem relativamente homo- total de 18).
gêneos (nobreza, negociantes, mestres de corporações, empregados, Os processos resumidos acima - desde· que as categorias só-
·soldados e sub-oficiais, domésticos, etc.). :e essencial, para obter cio-profissionais tenham sido bem deterininadas e que as fontes
resultados de certo interesse, ter um conhecimento .suficientemente sejam bastante completas e representativas - permitem ter-se um
profundo da sociedade estudada, de modo a saber escolher cate- conhecimento global da gradação de fortunas na sociedade em
gorias adequadas. estudo e, sobretudo, favorecem comparaçõe~ de alto interesse entre
Em segundo lugar, foi elaborado um quadro destinado a ava- as diversas C!ltegorias sócio-profissionais.
liar o nível de fortuna das categorias·. sócio-prolissionais: estas úl-
timas sendo dispostas em uma coluna vertieal enquanto em sentido
• N. T.: Antiga moeda dé prata que valia pouco mais de sete soldos:
horizontal eram postas as gradações de fortuna (em libras tome- ·12.000 libras tornesas que lhe deu a vice-Rainhan. (Camilo, D. Luis de
Portugal, p. 21); cf. Caldas Aulete. O Diccionário de la Real Academia
Espafiola diz tratar-se de moeda .francesa cunhada na cidade de Tours,
22 Ribert Mandrou, La France aux XV/le et XVI/le siecles, Nouvelle valendo 80% da de Paris.
Clio, n.• 3.\. Paris, Presses Universitaires de France, 1967, p. 255.

363
362
Em estudos que se ocupam de todo um período, e não ape- 39 Origens familiares e contratos sociais
nas de um ano dado, será interessante comparar os histogramas
relativos à distribuição das fortunas em épocas distintas (Cf. A última parte do trabalho dedica-se à análise das origens
Fig. 50). geográficas e familiares dos cônjuges, da mobilidade social, dos
contratos sociais, da permeabilidade dos grupos sócio-profissionais,
etc.
29) A atividade profissional e a originalidade dos bairros
Figura 49:
Nesta parte de seu trabalho, os autores quiseram dar uma
idéia da atividade profissional de Paris, em conjunto, e estabele- A fortuna das famí/ias
cer, depois, uma topografia social da cidade pelo estudo compa-
Nhel de fortuna (em libras)
rativo das gradações de fortuna dos lares, segundo os. bairros. o 200 500 2000 .IOOOO 20000, 50000 lOQOOO ·sooooo 2\t
JOO, 1 34HJ t 1000 1 50001 1 'ISOOO• 1 ·30000 1 100000.1 Jdoo<)(J.1 1 ~I
~~~ ~~1~~~~1~~~1~
Quanto ao primeiro ponto, elaboraram um quadro relativo à
distribuição profissional das pessoas cujas profissões eram mencio- 1400 PANORAMA GLOBAL DAS FORTUNAS

nadas nos contratos matrimoniais, organizando-o em três colunas: ...~ 300 Casos
~ 200 lndeterminadms
1) setores de atividade (às vezes com subdivisões): alimentação,
construção e móveis, fabricação e vendas de tecidos, exército; etc.;
r
-;_ 100 __________..___ j.
2) número de casos; 3) percentagem. Também neste caso, o
120
valor do quadro depende de serem escolhidos setores de atividade
que reflitam, efetivamente, a estrutura econômica e profissional da 100

sociedade estudada, tendo importância, também, a representativi- 80 1


JORNALEIROS (Compagnons gagne·dernier)
dade da documentação. Uma pesquisadora brasileira tentou anali- 60

~~J
sar a distribuição profissional do Rio de Janeiro no século XIX 40

usando outro tipo de fonte: os almanaques publicados por certas 30

empresas ou organismos em ocasiões diversas. !!:i º........~-...........


No referente à topografia social de Paris em 1749, foi repre- 100

sentada mediante histogramas - um para cada bairro - que 80


DOMt5TICOS
expressavam os níveis de fortuna dos lares. (FIG. 51). Isto per- 60

mite o estudo comparativo das fortunas dos bairros populares, 40

comerciais, aristocráticos, etc. O estudo feito a partir dos histogra- 20

mas mencionados foi completado por algumas comparações dos


bairros: 1 ) quanto às fortunas, pelas categorias sócio-profissio-
nais; 2) quanto à quantidade de empregados domésticos men-
cionados nos contratos.

Fonte: . Adeline Daumard-François Furet, Structure et relations


23 Maria Bárbara Levy, Aspectos da História Demogrdfica e Social do sociales à Paris au XV/l/e siecle, Paris, 1961, p. 21 (Re-
Rio de Janeiro, informe mimeografado, Paris, 1971. produção parcial).

364
365
Figura 50: Figura 51:
Pirâmide [?era[ das fortunas em 1820 e 184 7

Fortunas das famWas conforme os bairros

IOOO IOOOO 100000 · 1~1


r-'1 T'"""'"1 ,..., r"""""1T"'J r i 11 r"1 t""""""\,..., ~
40
St KlH:h
20 L1 M udeleine
L.a vilh: d'evêque

Montante
das fortunas 20

1820

1
f ~s
M
M
00000
200000
p_, 1847

1 20
St Paul

1 100000 1
1 50000 1
1 2 0000 1
1 10000 1 411
1 5000 1 20
2000 1

1 l 11 1000
500 1
1

1 200 1 60
1 1 1 100 1
1 40
o 1
'.\úmero de 400
300 200 100 50 o 50 100 200 300 400 20
declaradas

:=1 número de óbitos de adultos N• de óbitos


de adultos íl 115000
20

611
s~. LI aN• de sucessões declaradas N• de sucessões
IOOOO•
40

d_eclaradas . n 5000
o 20

o"' 80
Fonte: Adeline Daumard, Les bourgeois de Paris au XIX Siecle,
Paris, Flammarion, 1970, pp. 370-371.
.""' 611
"
"O
40
e
"
E
·::I
20

Nível de fortuna (em libras)

Fonte: A Daumard-F. Furet, Op. Cit., p. 52.


366
367
O primeiro quadro elaborado destina-se à comparação entre que acaban:10s de examinar. O mesmo se dará com muitos ··tipos
o status sócio-profissional dos filhos com o de seus pais, além de de. trabalhos.. sobre
, . a estru. tura social, de modo que conv,ern exa_
determinar se os últimos eram de Paris ou das províncias. Para n:i1.nar _os pn~c1p10.s fundame~tais da construção da ~ludida clas-
isto foram dispostas, tanto verticalmente (filhos) quanto horizon- s1f1caçao. Alem d~s~o, ~sta , t~m a vantagem de poder assumir a
talmente (.pais) as categorias sócio-profissionais e ademais do dado forma de uma cod1f1caçao soç10-profissional, algo quê é necessário
global foram consideradas, em cada categoria, duas subdivisões para .t~aba~har-.se com computadores ou com qualquer espécie de
(pais domicilíados em Paris/pais domiciliados fora da capital). O quanttf1caçao sistemática.
quadro foi elaborado em percentagem. Permite o exame da im-
portância da imigração provincial em Paris e a comparação da A qua?tidade de aspectos a considerar para o estabelecimento
posição social de pais e filhos, mostrando em que proporção houve das categ_onas e. o pormenor das divisões e subdivisões adotadas
continuidade neste nível ou mudança de status de uma para a outra depender~o, ~asica?1ente, de dois fatores: J ) da riqueza da do-
geração .. ~umentaç~~ dispomvel; 2) das finalidades da pesquisa. Também,
Outro quadro foi construído, também em percentagens, para e ~ece~sano estarmos muito atentos para as possíveis · variações
a análise da escolha da esposa, que pode ser um fa.tor de ascensão regionais e. entre os meios urbanos e rurais; finalmente, devemos
social (ou· a confirmação de uma ascensão anterior), e um indi- ter
, presente
. que a val1'dez de uma c1assi·r·icaçao
- socio-prof1ss10nal
' · · ·
cador dos contatos entre grupos sociais. Na coluna vertical foram ~ relativa a , uma sit~~ção dada das estruturas sociais: mudadas
colocadas as categorias relativas ao status social dos maridos, e as mesmas e necessano construir nova classificação. o Quadro
horizontalmente as categorias relativas às. esposas (ou seus pais). 17 compara, por exemplo, quanto à França, a codificação atual-
Foi especificado o número de casos conhecidos. m~nte usada pelo Instituto Francês de Estatística e Estudos Econô-
O último quadro, ainda em percentagens, compara o status micos ( I._N · S ·E. E. ) com as propostas por Adeline Daumard
social das testemunhas do casamento (coluna vertical) e o dos para os seculos XVIII e XIX. 24 Estas últimas são válidas princi-
noivos masculinos (horizontal). Também foi considerado, na parte pal~ente para as estruturas· sociais urbanas estudadas através de
superior do quadro, o número de contratos e o número total e arqmvos cartoriais e, mais do que tudo, para a região parisiense;
médio de testemunhas por matrimônio (o número médio de tes- por ou~ro lado, o quadro não compreende as subdivisões de cada
categoma.
temunhas aumenta com a elevação da categoria social do noivo);
na parte inferior são apresentados dados sobre a proporção de . A codificação: ou classificação, sócio-profissional é feita pàra
nobres na percentagem total e sobre a proporção de testemunhas situar em _c~t~~onas. P?uc_o, numerosas (embora seu· seio possa
com a mesma profissão do noivo. A escolha das testemunhas conter subd1vi~10es) os mdividuos sobre os .quais as fontes empre-
possibilita observar os vínculos sociais, o grau de coesão e de gadas_ proporc10nem dados. Em sua elaboração pode ser incluída,
permeabilidade das distintas categorias sócio-profissionais e, em ·ou nao, a população não ativa.
certos casos, pode ser um indício de ascensão social; em outros A elaboração de classificações sócio-profissionais não é muito
casos pode simplesmente expressar, por exemplo; o paternalismo difundida nos estudos históricos latino-americanos. A título de ilus-
e a tolerância de um superior com seu subordinado. tração reproduzimos a usada por Maria Luiza Marcílio em sua
tese, que adotou a distinção de Colin Clark em três setores de
atividade: primárias, secwidárias e terciárias. 25
3. A CLASSIFICAÇÂO SóC/0-PROFJSSIONAL

24 Cf. Jacques Dupâquíer. "Problêmes de la codifiêation socio-professio-


Como vimos, a elaboração de uma classificação sócio-profis- ~elle", ~m L'~istoire ~o.ciale, So~rces et méthodes, cit.,' pp. 157-167.
sional constituiu o passo prévio na pesquisa de Daumard e Furet, ? Mana Lu1za Marc1ho, La v1/le de . São Paulo: Peuplement et popula-
tion, 175CH850, Ruão, Universidade de Ruão, 1968, pp. 152-154.

368
369
"''' Serradores Mercadores
Alfaiates Negociantes
Tecelões
E. Transportes
III. Atividades terciárias
Carreteiros
A. Profissões liberais
Trop~iros, condutores
Advogados·
Cirurgiões e Médicos Outros Serviços:
Dizimeiros
Barbeiros
Músicos
Cabeleireiros
Tabeliães
Boticários Caixeiros
Jornaleiros
B. Igreja
[Sem profissão:]
Capelães
Vadios, mendigos
Clero regular
Aventureiros
Clero secular
Indeterminados
Coroinhas
Sacristães Fonte: Maria Luíza Marcílio, tese citada, pp. 152-154.
Recolhidas (ref.igiosas)
Tonsurados Vejamos agora, para terminar, os aspectos que devem ser
considerados, conforme Jacques Dupâquer, 211 ao elaborar-se uma
c. Administraçãó Civil codificação sócio-profissional: ,
- O setor de atividade (população ativa): agrícola, indus-
Escrivães
trial e de serviços; no interior de cada setor, subdivisões
Porteiros
adequadas às peculiaridades das estruturas sócio-econômi-
Alcaides cas em questão.
Carcereiros - As atividades individuais, isto é, as profissões, considera-
Meirinhos das a formação e a especialização individuais.
Professores de primeiras letras
Magistrados e funcionários - O status social, conforme as peculiaridades da sociedade
Tropa paga · estudada: terá de ser distinguido conforme diversos crité-
Capitães, sargentos, etc. rios (grau de autonomia ou dependência; utilização ou
Lentes não de empregados e a categoria .dos mesmos; eventu~l­
mente, vínculos com o aparelho estatal ou com a Igreja,
D. Comércio
etc.).
Taverneiros, vendeiros
Mascates 26 Jacques Dupâquier, artigo citado, pp.. 164-166.

372 373
T
- A claSsificação jurídica, naquelas sociedades que a admi-
sarnento racionalista dos séculos XVII.l e XIX foi sistematizado
tem: sociedades .escravistas; sp_ciedade~ "estamentais" de
o conhecimento de tal hierarquização social, mediante o conceito
ancien régime; as castas da ·Hispano-América, etc.
de classe social. O próprio Marx, ílO converter o conceito em
- O nível de rendas, conhecido em geral através das fontes·
peça fundamental ,~ seu sistema teórico, reconheceu que o tomara
·tributárias: o problema mais importante será, neste caso,
de duas vertentes, diversas: l) a o~ra de historiadores como
o critério que permitirá definir as categorias . (discreto ou
Thierry e Guizot; 2 j a economi.a potHica clássica, especialmen~e
contínuo; tomando a categoria mais baixa como· ponto de David Ricardo. :is · :: J,
referência; utilizando médias, etc.).
A concepção marxista das eLasses sociais parte, essencialmen'."
O nível de fortuna, estudado freqüentemente mediante os
testamentos ou os ·inventários . post mortem. te, ·da situação de grandes grapos de pessoas relativamente à
- A situação familiar: estado civil e número de filhos (to- propriedade ou não dos meios de produção. Mas tais relações
dos os filhos, ou só os que continuam dependentes dos sociais, chamadas por Marx de relações de produção, não são
pais). entendidas em um sentido meramente formal (o de propriedade
jurídica), porém surgem vinculadas a um certo tipo de divisão
- A idade, codificada em número de anos•. de preferên-
social do trabalho e a um certo estado de evolução das forças
cia ao uso do ano do nascimento.
produtivas. Quer dizer, o conceito de classe social só se entende
- A origem geográfica, o que permite avaliar a importância no contexfo de um modo de produção dado. 29 Por outro lado,
social das migrações internas. ao distinguir as classes sociais de uma determinada sociedade, pe-
Outros elementos de exploração possível, conforme a ri- los critérios já mencionados, somente se individualizam os grupos
queza das fontes e as finalidades da pesquisa: grau de fundamentais ou mais importantes para explicar o funcionamento
instrução, lealdades políticas, prática religiosa, etc. e o desenvolvimento da · referida sociedade. Toda uma série de
gru;.ios e categorias sociais podem escapar à classific~çã.o e~
classes, que só se interessa pela distinção dos grupos r~ais, isto e.,
agrupmnentos que por sua posição na· estrutura produtiva tenham
lima conduta social de algum modo comum e de certa forma
predizível. Como as classes só se· entendem no contexto de um
4. UM PROBLEMA TEóRICO: CLASSES, ESTAMENTOS OU
modo de produção, é mais próprio falar de estrutura de classes.
CASTAS?
As relações de classe serão, assim; relaçõ~s de dependência ou
de subordinação. As classei; proprietárias serão invariavelmente
classes dominantes e as não proprietárias serão as dominadas. Ou,.
tro problema- -importante. é o da consciência .de cl_asse'. isto é, a
Desde a antigüidade a menção à diferenctação. soc~al, isto é,
a uma ordenação hierárquica (de.. natur~za nao, bioló~1ca) entre percepção dos interesses de uma. classe no seio de uma d.ad~ es-
os distintos grupos que integram uma sociedade e manifesta. Te~­ estrutura social. Marx distinguiu o caso de uma classe sem cons-
tos como a Odisséia e o Antigo Testamento referem-se a feno- ciência de seus interesses. (classe em si) e o de uma· classe cons-
mcnos como '.'pobres e ricos", "gente que trabalha e gente que ciente (classe para si), afirmando que só ao encontrar-se uma
não _trabalha", "livres e escravos", etc. 21 Porém, apenas no pen-
28 Karl Marx, Carta a J. Weydemeyer, de 5 de março de 1852, em
. 27 Cf stanislaw Ossowski, Eatructura de clasea y conciencia. social, Marx-Engels, Obras Escogidas, Tomo II, .Moscou, Ed. Progresso, 1971,
p, 153.
trad de M. Bustamante. Ortiz, Barcelona, Edicioiíes "Penlnsula, 1~•. capl·
tulos 1, 2 e 3. 29 Para as definições dos conceitos de forças produtivas, modo de pro-
dução e relações de produção, cf. infra o capítulo IX. ·

1: 374
375
'
1

ti
r-:
i'I
i' r
1

classe consciente de seus interesses pode-se falar em classe plena- buição de funções nas sociedades. Surge, assim, freqüentemente
mente constituída; a referida consciência, ademais, só pode desen- - pelo menos no funcionalismo ortodoxo uma identificação
volver-se em função da luta de classes. Nas sociedades pré-capi- entre- o necessário e o existente: considerando, por um critério
talistas apenas a classe dominante aparece como ,classe para si, tautológico de validação, que todo o existente é necessário. 32 Vis-
o que explica o fato das revoluções terem sido, então, "revoluções tas como o resultado desta necessidade, as estratificações definir-
de minorias". :io se-ão como. a distrib~ição desigual de direitos e obrigações em
Outro modo de abordar o problema das hierarquias sociais urna determmada sociedade - e o prestígio diferencial das dis-
é a análise em termos de estratificação social. Para evitar confu- tintas posições constituirá a base da hierarquização. 33 Assim, pois,
sões deve-se observar que o vocábulo "estratificação" é usado, na corrente funcionalista, que domina a sociologia norte-america-
habitualmente, em dois sentidos: um para aludir a qualquer sis- na, o prestígio social atribuído às diferentes posições e papéis na
tema de hierarquias sociais (neste caso dir-se-á ''e.stratificações em estrutura social é o critério básico da estratificação social.
castas", "estratificações em estamentos", "estratificações em classes", Recentemente, o sociólogo mexicano Rodolfo Stavenhagen
etc.); outro é o que explicaremos a seguir. 'propôs outra focalização do problema da estratificação:
A primeira teoria sobre a estratificação é a dé Max We~er
"As estratificações representam, na maioria das vezes, o que
( 1864-1920). Este autor parte da distinção analítica de tres di-
poderíamos chamar de fixações ou projeções sociais, freqüen-
mensões da hierarquia social: o poder econômico (estratificação
temente até jurídicas e, em todo o caso, psicológicas, de certas
em "classes"); o poder político (estratificação em ''partidos") e
relações sociais dt; produção representadas pelas relações de
a honra social ou prestígio (estratificação em ··estamentos"). Em
classes. Nestas fixações sociais 'intervêm outros fatores secun-
uma sociedade dada, a estratificação pode ser o resultado das três
dários e acessórios ( p. ex.: religiosos, étnicos) que reforçam
dimensões indicadas, ou ter a predominância de uma delas. Real- a estratificação e têm, ao mesmo tempo, a função sociológica
mente, em sua análise do capitalismo Weber considerou que o de 'libertá~la' de seus vínculos com a base econômica; em
aspecto econômico tomava-se cada vez mais importante e que, outras palavras, de mantê-la em vigor embora mudem suas
conseqüentemente, a estratificação em "classes" tendia a deslocar
bases econômicas. Em conseqüência, as estratificações tam-
a estratificação em "estamentos". Esta idéia surgia vinculada a bém podem ser cqnsideradas como justificações ou raciona-
uma concepção de capitalismo herdada das teorias circulacionistas
lizações do sistema econômico estabelecido, isto é, como ideo-
da Escola Histórica Alemã, isto é, da identifiçação do capitalismo
logias. Comq todos os fenômenos da superestrutura social, a
com "economia de mercado". 3 1 · estratificação adquire urna inércia própria que a mantém, ape-
A sociologia funcionalista norte-americana considera as estra- sar das condições originadoras t~rem mudado." 8 1
tificações sociais como o resultado da necessidade de uma distri-
A estratificação social é concebida, então, como um elemento
fundamentalmente ideológico, corno um fenômeno de superestru-
30 Marx não escreveu nenhuma obra especifica desenvolvendo o conceito
de classe social, mas em quase .todos os seus estudos há referências n tura, que se origina nas relações de classe e também age sobre
ele. A principal obra de Lênin sobre o tema é "Una gran iniciativa", elas, porém conserva uma dinâmica própria. Isto faz com que
em Obràs Esoogidas", vol. III, Moscou, 1948, p. 612. Exposições sistemá·
ticas da teoria marxista das classes há na obra de Ossowski, já citada,
e em G. Gurvitch, El concepto de e/ase social de Marx a tiuestros dias, 32 Cf. Sérgio Bagú, Tiempo, realidad social y co11oc1m1e11to.. Propuesta
Buenos Aires, 1957. de interpretación, Buenos Aires, Siglo XXI, 1970, pp, 120.122.
31 Çf. Max Weber, Economia y Sociedad, México-Buenos Aires, Fondo 33 Davis-Moore, "Some Principies of Social Stratificatian", em American
de Cultura Económica, 1974, especialmente o tomo I, pp. 242-248; para Sociologicaf Review, fevereiro de 1945.
uma expos1çao sistemática, cf. Gurvitch, op. cit ., e Julien Freund, Socio- 34 Rod1,lfo · Stavenhagen, Las ela.ses sociales en las so.Qedades agrarias,
logia de Max Weber, Barcelona, Editorial Península, 1968. México, Siilo XXI, 1970, p. 39.

376 377
muitas vezes as estratificações mostrem-se cristalizadas, ou fossili- Por fim, cumpre observar que a unidade de análise das es-
zadas, sem correspondência com. as realidades classistas que as tratificações é o indivíduo e não o grupo social (como eia o
originaram. ar. '
caso com as classes sociais); melhor, os status (posições) dos
Tanto Weber quanto os sociólogos funcionalistas .no~e-ame?.:. indivíduos na estrutura social. .<Os sociólogos funcionalistas falam,
canos consideram as estratificações como uma alternativa a an~hse freqüentemente, do "complexo status-papel"). Isto implica que .se as
em ·termos de estrutura de classes, conforme o esquema marxista. classes destinavam-se a distinguir grupos reais, as estratificações
Se a análise· de Weber é muito mais rica e matizada do que a do eram manejadas, antes, como categorias estatísticas ou estratos,
funcionalismo, ambas as perspectivas têm, em suas conceituações, isto é, um sistema de hierarquias representado por um continuum
importante idéia em comum: a de que a estratificação social é o de status individuais.
resultado das gradações de um continuutn. Não se trata, como no
Embora a análise em termos de estratificação social com o
caso das classes sociais, de uma dicotomia marcante entre proprie-
prestígio como critério básico seja quase exclusiva da sociologia
tários e não-proprietários dos meios de produção básicos, mas de
funcionalista, devemos registrar recente •tentativa do historiador
gradações de uma só variável: os que têm muita ou pouca renda;
os que têm prestígio alto, prestígio médio ou baixo prestígio, etc. 36 francês Roland Mousnier para fazer uma apresentação histórica do
tema'. 38 O resultado não pode ser considerado brilhante, mas é
Outro problema vinculado às estratificações sociais é . o do preciso tê-lo em conta. Mousnier adota a perspectiva teórica do
tipo de critério tomado por base para determiná-las. No.temos, funcionalismo norte-americano e resolve fazer uma tipologia das
desde já, que os critérios dependerão das hipóteses do pesquisador, sociedades de "ordens" (ou estamentos) desde 1450 até nossos
assim como a categorização dentro de cada critério. Portanto, .se dias. Naturalmente, as sociedades de "ordens" são estratificações
estivermos classificando os indivíduos conforme a renda, os cortes baseadas no prestígio ou honra social. Mousnier chega aos· seguin-
na variáveL que determinarão o que se considerará co?10' uma tes tipos básicos de sociedadçs ·de "ordens": l) a militar, exem-
renda alta ou baixa, dependerão totalmente do pesquisador. Há plificada pela França dos séculos XVI e XVH; 2) a administrativa,
estratificações baseadas em critérios subjetivos, is!o: é, em avalia- tipificada pela China dos mandarins; 3) a teocrática de que a
ções do prestígio de uma posição dada, se&undo • a .· opiniãó. ·do Roma papal do século XVIII e a sociedade tibetana são amostras;
indivíduo que a ocupa, do pesq\}isador e/ori ,. de outros membros 4) a litúrgica, cujo modelo é ,o Estado moscovita dos séculos
da sociedade estudada; e há estratificações fundadas em critérios XVI e XVII; 5) a filosófica representada pela França revolu-
objetivos, isto é, em dados como a renda, a educação, o lugar e cionária de 1789, pela Itália fascista, pela . Alemanha nazista e
o tipo de residência, ou a etnia - que não dependem de opi- leia União Soviética; 6) a tecnocrática, cujo exemplo é o ca-
niões individuais. Freqüentemente são combinados critérios obje- pitalismo desenvolvido. Nas conclusões, o autor observa que a
tivos e subjetivos. a1 tendência mundial inclina-se para a ordem tecnocrática, o que le-
vanta uma série de incógnitas e incertezas quanto ao futuro da
35 Um exemplo ·disto são as conhecidas discussões entre Mousnier, So- democracia .
boul e Labrousse, no Colóquio da E cole Narmale Supérieure de Saint. Achamos útil associar às análises em termos de classes as re-
Cloud (maio de 1965), sobre a ação das classes e dos estamentos na
Revolução Francesa de 1789. :e. claro que nessa época a realidade jurídi- ferentes às estratificações, quando estas últimas são consideradas
ca dos estamentos foi completamente suplantada pelas relações de classe conforme o faz Stavenhagen . Este mesmo autor mostra as vanta-
(Cf. L'histoire saciale, Sources et méthodes, cit., pp. 26-33; outro coló- gens de explorar os dois níveis: embora as oposições de classe
quio reuniu-se em 1967 para debater o tema "Estamentos e classes").
36 Esta distribuição das teorias sobre classes e estratificações segundo sejam o fator explicativo e dinâmico principal, as estratificações
modelos dicotômicos e de gradação surge em Ossowski, ap cit., parte 1.
37 Sobre tudo isto, ver um útil resumo de problemas em Rodolfo
Stavenhagen, op. cit., pp. W.26. 38 Roland Mousnier, Las jerarquías sot:ia/es, trad. QJ;; Aida Grinspan,
Buenos Aires, Amorrortu Editores, 1972.
378
379
T
1

de diferentes tipos entreêruzam-se com as mencionadas classes, na nplas subdivisões) e esctaves, nas colônias escravístas trances as·
estrutura social, estabelecendo categorias intermediárias e atenuando as chamada~ "castas" da sociedade colonial hispàno-americana:
os conflitos: desempenham, pois, uma função de elemento con- etc. 41 t evidente, no entanto, que a consciência que tinham os
contemp?râneos da existência de tais categorias, ou o fato de as
servador da ordem social vigente. Para ilustrar as relações entre
terem tido como representação aceita da realidade social, não
a estrutura de classes e as estratificações sociais tomaremos um
permitem identificá-las sumariamente a esta última, ou pr~tender
exemplo histórico concreto: o da estratificação de base étnica,
que estas a esgotem. A ciência perderia a razão 'de ser se limitada
especialmente importante em tantos países do continente ameri-
à descrição, aos aspectos superficiais ou aparentes de seu objeto.
cano.·
Claro está ~ue, nascidas de relações de classe, as estratificações
A existência do referido tipo de estratificação conduz, fre- de base étmca revelam car~cterísticas importantes da realidade. so-
qüentemente, a posições simplistas: cial colonial e,_ ainda, da etapa independente; mas apenas é possí-
- Áé consideração das sociedades correspondentes como so- vel compreende-las adequadamente quando são consideradas as
ciedades de castas e não de classes, quanto ao período colonial realida?es. classistas que as originaram. Por outro lado, é certo
e a boa parte da etapa independente, pois a hierarquia dos es- que ha ~tfe.renças qual~tati~as entre as sociedades pré-capitalistas
tratos de base étnica apresenta as características do que é cha- e as cap1tahstas: no pnme1ro caso as categorias econômicas e as
mado "sistema de castas" pela sociologia anglo-saxã; categorias jurídicas aparecem entrelaçadas de. tal modo que não
' pode aparecer a consciência social do fundamento econômico das
- Du·r o nome de "classes sociais" aos estra.tos de base étnica.
.Outro ponto importante em que concordamos com Stavenha- relações sociais. O que equivale a dizer, com Lukács, que nas
gen é a aceitação plena de suas críticas à 'noção de casta, quando sociedades pré-capitalistas as classes sociais "não se podem iden-
·usada fora da região pan-indiana ( [ndia, Ceilão, Paquistão), o tificar a não ser por meio da int<Vpretação da história" imediata-
que só leva a esconder as realidades classistas e os fatores his- mente dada. 4 ~ Mas., caso o historiador não empreenda tal tarefa,
tóricos que atuaram no sentido do estabelecimento das estratifi- deixará que lhe fuja a parte mais importante da realidade social
cações em questão. ª9 Por outro lado, não nos parece certo con- que se propõe a analisar.
fundir os estratos de base étnica com "classes". 40 Nas colônias escravistas, por exemplo, o envileciment.o da
Posições simplistas, como as . citadas acima, podem ser apa- pessoa do escravo resulta da relação de classe entre senhor e es-
cravo, implícita na configuração específica das relações escravistas
rentemente justific~das pelo fato das fontes históricas disponíveis
de produção e, em especial, na identificação do escravo a um
usarem uma nomenclatura derivada das est~atificações de base ét-
mero instrumento de produçã o às ferramentas ou ao gado. A
nica, as quais, em certos casos, tiveram sanção legal: banes, gens
justificação subjetiva do sistema levou, entretanto, à percepção de
de cou/eur libres (categoria que, por sua vez, podia admitir múl-
uma diferença étnica e cultural entre senhores (quase sempre
brancos, sobretudo nos primeiros tempos) e escravos ( índiàs,
39 R. Stavenhagen, op. cit., pp. 20-26. negros e mestiços) : isto abriu caminho a uma extensão das quali-
40 Cf., por exemplo, o livro de Carlos Guzmán Bõckler e Jean-Loup dades negativas do escravo - produzidas .pelo próprio sistema
Herbert, Guatemala, U11a interpretación histórico-social, México, Sigla
XXI. 1970: identificação das categorias "ladino" e "indígena" a classes
sociais. Ver também Ricardo Pazas e Isabel H. de Pazas, Los índios en 41 Ver o livro de Magnus Mõrner, La mezcla de razas en la historia
las clases sociales de México, México, Sigla XXI, · 1970, livro qµe, apesar de América Latina, trad. de J. Piatigorski. Buenos Aires, Paidós, 1969.
de seu esquematismo e de posições muito simplistas, apresenta algumas 42 Grnrg Lukács, Hiscoria y consciencia de e/ase, trad. de Manue! Sacris-
idéias intere6santes. tán, México, Ed. GrijalbÔ, 1969, p. 63.

380 381
D. 111 ovimentos e lutas sociais
escravista - aos grupos étnicos em que os..escrav.o~ eram r~cru­
tados, cuja "inferioridade", socialmente adm1t1da, vma a sei:v1r de
argumento para justificar sua escravização e . manter os hbertos
em uma situação social de inferioridade, relat1vam~nt~ ao grupo
branco. Que a mestiçagem, ao desenvolver-se, const1tu1~se ~m d~­
safio a todo o sistema de representações resultante nao 1mpedm 1. AS FONTES
que este se mantivesse até nossos dias, muitas , d.écadas após a
abolição da escravatura colonial em toda a Am.enca. :arece-n~s
muito interessante a caracterização feita por Serg10 Bagu da etnia
como realidade relacional: 1 " Outro campo principal da história social é constituído pelo
estudo dos movimentos sociais. Defrontamo-nos, aqui, com uma
"A tese, divulgada entre os antropólogos segundo a qual o história de massas: camponeses, operários, escravos, índios, ban-
grupo étnico - e outros grupos culturais - é, u'.11 valor em dÓleiros sociais. etc. História que conhecemos através das explosões
si, opomos a hipótese histórica de que,,.o grupo etmco e alguns de violência. Se a falta de fontes torna, freqüentemente, impos-
grupos culturais não elaboram sua percepção do étnico nem sível a.. reconstituição de um movimento de massas dia-a-dia, e se
o caráter iletrado de seus membros nos condena a conhecê-los quase
do cultural diferencial até o momento em que se estabelece
só por intermédio de terceiros, há um fato essencial de que dispo-
. uma relação conflitiva com outros grupos, e que esta modali-
mos: seus atos. E eles são, no curso da história, uma série de
dade de localizar linhas notórias de contraste transforma-se
explosões de violência, expressão nevrálgica da luta cotidiana
rapidamente em mecanismo lógico de justificação do conflito contra a opressão e o domínio social. Apreciemos cuidadosamente
ou do privilégio." o problema das fontes. Até o desenvolvimento do movimento ope-
rário e do sindicalismo é quase total a inexistência de documentação
A grande influência de Florestan Fernandes levou muitos soció- de primeira mão. Já mencionamos o caráter iletrado das massas.
logos brasileiros a aceitarem sua caracterização da sociedade d~ Embora muitas vezes seus chefes les·sem e escrevessein, quase todas
Brasil ·como uma "sociedade estamental", ou de castas,· que evolm as fontes provêm, invariavelmente dos setores dominantes que co-
para uma sociedade (subdesenvolvida) de classes; o q~~ e~uivale mandaram a repressão, isto é, do bando c?ntrário.
a considerar a estratificação em estamentos e a estrat1f1caçao em
Vejamos, brevemente, os principais tipos de fontes para o
classes dois modelos redprocamente excludéntes. Menos compreen- estudo ·dos movimentos sociais e, especialmente, as insurreições
sível é que, mais recentemente, certos historiadores - como Car- populares. Primeiro temos, naturalmente, os documentos militares
los Guilherme Mota - tenham resolvido apoiar-se na autoridade e policiais, vinculados à repressão direta. Material muito mais rico
de· Florestan Fernandes sem prévia referência à notória e ampla encóntra-se, em gera~, nos arquivos judiciais: processos. sentenças,
discussão entre historiadores sobre a oposição sociedade estamen- confissões. . . Estes papéis são, talvez, a documentação mais abun-
tal / sociedade de classes em relação à sociedade francesa de ancien dante de que se pode dispôr. Em terceiro lugar encontramos a
Régime, embora as implicações teóricas do debate mencionado te- documentação de tipo político, decretos, leis-, debates parlamenta-
nham tanto a ver com as posições por eles adotadas. 44 res originados por uma sublevação social. Na maioria dos casos,
a documentação oficial sobre os. movimentos sociais pertence aos
43 Sergio Bagú, op. cit., p. 137. três tipos aludidos. Os testemunhos de contemporâneos: diários
44 Cf. Carlos Guilherme Mota, Norde$te 1817, São Paulo, Editora Pers' íntimos, observações de viagens, novelas, obr~s artlsticas, também,
pc:ctiva, 1972, pp. 2().21.
383
382
são fontes de indiscutível validade. Para os períodos mais recentes pode ser devido, simplesmente, aos acasos da conservação do-
cumpre acrescentar a documentação de tipo jornalístico: repor- cumentária. 4 fi
tagens., artigos, publicação de abaixo-assinados, etc. Outro tipo
de fonte, muito útH, é a proveniente da memória coletiva: .cancio-
neiro, lendas, tradições orais, etc. Com este tipo de documentação
é preciso prestar especial atenção ao problema das deformações,
não só devidas à passagem do tempo como, ainda, a sutis meca-
nismos de domínio social. Em ·alguns casos conservaram-se fontes 2. TIPOS DE MOVIMENTOS E LUTAS SOCIAIS
provenientes dos sublevados: panfletos, proclamações e memoriais
às autoridades. Mas, lamentavelmente, são muitas as revoltas que
não nos deixaram documentos desta natureza.
Abordemos, agora, o problema das lacunas., isto é, da falta Esboçar urna classificação dos diferentes movimentos sociais,
completa de documentação relativa a um dado período. Em artigo das perturbações populares que o historiador pode encontrar em
recente, François Furet observou que, aí, o problema do historia- suas pesquisas não é, certamente, tarefa simples. Sem . pretender
dor é "mais que o das lacunas absolutas, o das séries incomple- fazer uma classificação exaustiva e teoricamente completa, descre-
tas" que podem provocar urna ilusão cronológica sem fundamento. veremos a seguir os principais tipos de movimentos sociais que os
Furet exemplifica com a polêmica Porchnev-Mousnier sobre as estudos recentes permitem reconhecer. A distinção bem geral, pro-
revoltas camponesas francesas do século XVII. O estudo das inces- posta por George Rudé, há quase 1O anos, entre multidão indus-
santes sublevações, urbanas e rurais, da primeira metade do século trial e multidão pré-industrial parece manter ainda sua validez. 46
XVII francês levou à colocação de distintas interpretações da crise Este autor considera que na sociedade industrial os distúrbios, as
do antigo regime no momento da construção do Estado absolu- sublevações populares, têm natureza diferente da apresentada nas
tista. Entretanto, quer a interpretação de Mousnier quer a de ~or­ sociedades pré-industriais. A mulJ;idão industrial tende a ser com-
chncv - que/ partem de princípios teõricos completamente diver-
posta por operários industriais e assa_Iariados urbanos, suas formas
sos - dão por estabelecido, sem discuti-lo, gue na primeira me•
de luta passam pela greve e a-organização sindical e política. Seus
tade do século XVII tivesse havido urna particular exacerbação
objetivos são, em geral, claramente definidos. Na ótica de Rudé,
das lutas sociais. E, na verdade, isto teria de ser discutido, pois
apoiada por seus estudos sobre a Europa ocidental dos séculos
a concentração cronológica só poderia ser demonstrada no caso
XVIII e XIX, a multidão industrial substitúi, com o desenvolvi-
de dispormos de urna série documentária completa para período
mento do capitalismo, as antigas formas de luta e o divórcio
suficientemente · grande. O conhecimento profundo das revoltas da
decisivo dá-se nas proximidades do ano de. 1840. Ante os movi-
primeira metade do século XVII deve-se à conservação dos riquís,-
mentos sociais do industrialismo, centrados no movimento operário
simos arquivos do chanceler Séguier. Até que ponto o pormeno-
- o que é que se entende por multidão pré-industrial? A expres-
rizado conhecimento que temos de tais revoltas deve-se a uma
são é bastante vaga e envolve uma série de fenômenos ·de distintas
especial concentração cronológica de conflitos sociais ou à maior
naturezas. Nem poderia ser de outro modo, pois as referidas multi-
atenção do aparelho administrativo, da organização do Estado
absolutista? Uma revolta que escapa à repressão escapa à história.
O fato de termos mais abundante documentação sobre um período 45 François Furet, "L'h:~.toire quantitative et la construction du fait histo-
determinado pode revelar, mais do que a freqüência do fenômeno rique", em Annales E. S. C., janeiro-fevereiro de 1971, pp. 63-75.
46 Cf. George Rudé, La multitud en la historia, Estudio de los di-sturbios
estudado, a mudança institucional, seja de aumento do aparelho populares en Francia e Inglaterra, 1730-1848, trad. de Ofelia Castillo, Bue-
repressor seja de vigilância especial de um administrador; ou nos Aires, Siglo· XXI, 1971.

384 385
dões pré-industriais caracterizam tanto as jacqueries da Idade Média sempre., da conjuntura e éla incorporação de outros· setores sociais
quanto a rebelião de Tupac Amaru, ou as revoltas camponesas que à multidão originalmente rebelada. Por fim, coloca-se o problema
extinguiram, em 1644, a dinastia dos Ming. O que permite que se de estabelecer a cronologia precisa ·da explosão de violência popu-
fale de movimentos sociais pré-industriais é a presença, em todos 1.ar estudada; d~ avaliar. s~a significação histórica; de compará-la
eles, de uma série de caracteres comuns, o mais importante sendo com outros fenomenos s1m1lares, esboçando uma interpretação.
o serem movimentos pré-políticos, isto é, insurrecionais que, mesmo
chegando a graus inusitados de violência, são incapazes de arti-
cular um projeto político como alternativa às formas vigentes de
dominação social.
Sem dúvida, a explicação dos diferentes movimentos sociais
deve relacionar-se aos distintos tipos de estrutura econômica e
social em que se verificam. Assim, por exemplo, uma revolta cam-
3. UM EXEMPLO DO EMPREGO DA QUANTJFICAÇÂO
NO ESTUDO DAS LUTAS SOCIAIS
ponesa da Idade Média só pode ·ser explicada no contexto da
sociedade feudal (muitos autores da escola francesa prefeririam
dizer "regime senhorial") e, muito mais especificamente, no con-
texto de. uma determinada região com uma conjuntura econômica e
política pecul_iar e com um tipo de estruturas mentais também Em muitos casos, a documentação permite o uso de técnicas
especial. Assim, pois, o estudo dos diferentes tipos de movimentos quantitativas no processamento da informação disponível. Exposto
sociais em distintos contextos estruturais é um convite permanente sumariamente, o processo consiste em situar cronologicamente os
à história comparada. distúrbios ou os conflitos estudac:los - comparando-os à base de
Quais serão os principais temas da pesquisa, as perguntas mais uma série de critérios homogêneos. Se for analizado um período
importantes a ~alocar no estudo de um movimento social? mais ou meno~ longb, em que se apresentem graride quantidade
de sublevações ou conflitos, o p.rocessamento dos dados em com-
George Rudé proporciona um guia eficaz: em primeiro lugar
localizar a explosão de violência em seu adequado contexto histó- putador será desejável. B o caso das pesquis~s mencionadas de
rico; segundo, delimitar a composição e a dimensão da multidão Charles Tilly e de Tilly e Shorter. Tilly estuda, no período de
atuante: Que grupos a integram, qual é sua origem social e ocupa- 1830-1960, as revoluções e distúrbios populares da França. Para
cional? Como varia a composição da multidão no curso do movi- um grupo de movimentos sociais ( 1 . 200 ·ao todo) estuda 25
mento? Como cresce ou diminui quantitativamente? Em terceiro variáveis, entre as quais: localização geográfica, data, número de
lugar, deve-se estudar o tipo de atividade da multidão, quais as participantes, perdas humanas, objetivos e composição da multi-
vítimas e os alvos dos ataques. Logo se coloca, também, o pro- dão. Para um grupo menor ( 550 distúrbios) faz um estudo muito
blema dos objetivos, das idéias ou motivos que levaram à subleva- ~ais pormeno~izado da ~eqüência do conflito., das implicações polí-
ção. O problema das crenças coletivas está presente, aí, com toda ticas, etc. H T1lly e Shorter analisam as greves francesas do período
sua significação. Depois devemos estudar o grau de eficácia da 1830-1960 baseados nas informações governamentais. As variáveis
repressão. Isto tem a ver com a efetividade do domínio social e estudadas incluem: data, localização, grandeza, indústria afetada,·
com a capacidade de organização dos rebelados. Uma revolta cam-
ponesa pode ser o princípio de uma jacquerie, rapidamente repri-
mida, o'1 de uma guerra camponesa com duração secular. Nos 47 .Algun.s result.a.dos preliminares desta pesquisa encontram·Sc cm: "Col·
lect1ve V1olence m European Perspectivt:", em Hugh Davis Graham e Ted
movimentos pré-industriais, as perspectivas de converter um movi- Robert Gurr (sob •a direção de). Viv/e11ce in America Histórica/ ai1d
mento local em sublevação geral de longo alcance dependem, quase Comparative Perspectives, Nova Iorque, 1969, p. 4-45. ~

386 387
T
1

número de trabalhadores, número de estabelecimentos atingidos, 4. OS MOVIMENTOS SOCIAIS NA HISTORIA


etc. Com grande massa de informação (para 40. 000 movimentos DA AMÉRICA LATINA
deste tipo) Tilly e Shorter estudam as mudanças de conteúdo do
protesto trabalhador no curso do processo de industrialização da
França. 4 ~ Obviamente, 0 número de movimentos e de variáveis
19) Na sociedade colonial - Os conflitos entre índios e
focalizadas nos dois exemplos· impõe a utilização do computador espanhóis estão entre os mais característicos, desde o início da so-
para o processamento dos dados. ciedade colonial. No século XVI, durante a conquista, a primeira
Trabalhando-se com período relativamente breve e um número atitude dos índios freqüentemente foi a resistência armada. Orga-
limitado de distúrbios é possível apresentar quadros estatísticos nizado o império colonial, distribuída a mão-de-obra em distintos
que não requeiram grande trabalho de elaboração, embora muito sistemas de trabalho forçado, a resistência assumiu duc.s formas
úteis. Exemplo de tal tipo de análise há na recente obra de E. básicas: a defesa de seus direitos dentro do sistema legal, exigindo
Hobsbawn e G. Rudé, Captain Swing. "' Os distúrbios de certo o cumprimento das Leis de fndias, mediante pleitos judiciais que
período podem ser apresentados segundo a localização geográfica. seguidamente se tornavam volumosos e demorados; ou, devido à
(Ver QUADRO 19). Também é possível estudar a repressão atra- ineficácia da via legal, a insurreição. A revolta indígena melhor
vés das sentenças proporcionadas pelas fontes judiciais ou policiais, conhecida é a de Tupac Amaru, em 1780, que ameaçou grave-
mente o '.~r:e-reino do Peru e do Rio da Prata. Os estudos do Rowe
seja relativamente a· um dado movimento, seja durante um certo
e de Valcárcel mostram bem que a primeira etapa do movimento
período; é importante verificar, igualmente, qual a proporção das
foi reivindicatória: a explosão de violência sendo provocada pela
referidas. sentenças que foram cumpridas, os casos de perdão ou frustração decorrente da passividade das autoridades. 50 Porém, se
de anistia, etc. (Ver QUADRO 20). Afinal, é possível construir a revolta de Tupac Amam foi a mais estudada, por ter ocorrido
um quadro com a distribuição cronológica e geográfica dos distúr- perto da independência, muitas outras rebeliões escalonaram-se ao
bios (Ver QUADRO 21 ) . Quando não há movimentos sociais longo dos três séculos de domínio espanhol. B de registrar um traço
organizados, a exploração dos dados de arquivos judiciais ou poli- comum da historiografia relativa à conquista e às lutas entre índios
ciais - e também da imprensa, ou qualquer outro tipo de do- e europeus na América Espanhola e no Brasil: a maioria das obras
cumentação que proporcione dados homogêneos e contínuos ___: abordam tais temas do ponto de vista dos conq.uistadores, colonos,
sobre conflitos, trabalhistas ou de outro tipo, pode ser feita com ou das autoridades governamentais - muito raramente da perspecti-
os modelos recém indicados. Nestes casos será conveniente obser- va indígena. ~ 1 •

var se há, ou não, alguma concentração cronológica, buscando sua


possível explicação (por exemplo, estabelecendo correlações com
50 Cf. John Rowe, Movimiento nacional inca dei sigla XV II!, Cuzco,
as ·curvas relativas a salários, à conjuntura de certas produções., 1955; Daniel Valcárcel, La rebelión de Tupac Amaru, México, Fondo de
à evolução do custo de vida, etc.). Cultura Económica, l965; Boleslao Lewin, La rebelión de Tupac Amaru
y los orígenes de la independencia de Hispanoaméricn, Buenos Aires,
Sociedad Editora Latinoamericana, 1967 (3.• eq. ampliada).
51 Ver, por exemplo, Vicente Casarrubias, Rebeliones indígenas en la
48 Charles Tilly e Edward Shorter, "Les vagues de greves en france, Nueva Espafia, Guatemala, Editorial dei MinisteriQ de Educación Poíblica,
1890-1968", em Anna/es E S. C., julho agosto de 1973, pp. 857-887 (acom- 1951; J. Daniel Contreras R., Una rebelión indígena en e! Partido de
panhado d.: discussão, pp. 888-894 ); dos mesmos autores: "The Shape of Totonic;apán en 1820, Guatemala, Editorial Universitária, 1968 (2.• ed. );
St rikes in France, 1830-1960", em Comparative Studies in Society and His- Severo Martínez Peláez, "Los motines de índios en el período colonial
tory, janeiro de 1971. guatemalteco", em Estudios Socia/es Centroamericano.s (San José, Costa
49 Eric Hubsbawm e George Rudé, .Captain Swing, Penguin University Rica, Programa Centroamericano de Ciencias Sociales). ~ 5, maio-agosto
de 1973, '.Jp. ~Oi-'.128.
Books, 1973.

388 389
T
1

Os motins de mestiços têm, em geral, uma base artesanal e


QUADRO 19: um caráter urbano. Tanto índios quanto mestiços parecem par-
ticularmente sensíveis ao aumento dos tributos indiretos - e se
Tipos de dislúrbios e distribuição geográfica. só à força os índios aceitaram os aumentos tributários no século
XVIII, os mestiços se rebelaram contra a pretensão de fazê-los
Província Tipos de distúrbios Total· de distúrbios
pagarem os mesmos. À preocupação anti-fiscal dos mestiços somam-
Município por província, etc. ~e. muitas vezes, alguns setores médios e a "plebe". Casos como
ou Cidade a b c· d ·........ ·..... n a sublevação dos "comuneros" de Socorro, em 1781 são exemplos
claros disto. 52
A . Nas economias de grande lavoura, com mão-de-obra escrava,
as revoltas e resistências à exploração dos senhores foram típicas.
B
Por um lado encontramos o "cimarronaje", * isto é, a fuga dos
c escravos para a selva para viverem isolados ou em agrupamentos
(Quantidade de distúrbios de ·de fugitivos; ;;a por outro lado, as revoltas corri massacre dos plan-
D tadores e sangrentas repressões finais ..;~ Em um só cas·o, .o do Haiti
cada tipo em cada província, - final do século XVIII e início 'do seguinte - a revolta dos
escravos transformou-se em revolta· política e o país se tornou inde-
etc.) pendente da França. ~.:; A tais forma de rebelião aberta cumpre
acrescentar a luta cotidiana~ sabotagens, roubos, doenças simula-

52 Cf. Pierre Vilar, "La participación de las clases populares en los


movimientos de independencia de América Latina", em: Vários Autores,
La lndependencia en e/ Perú, Lima, Instituto de Estudios Peruanos, 1972.
• N. do T.: ·De cimarrón, .. escravo ou animal doméstico que foge para
N o campo.

Fonte: E. J. Hobsbawn - George Rudé, Captain Swing, Penguin 53 Cf., por exemplo, Décio Freitas, Palmares, La Guerrilla negra, Mon-
tevideo, Editorial Nuestra América, 1971; Edison Carneiro, O quilombo
University Books, 1973, Apêndice 1 dos Palmares, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1958 (2.• ed. );
Yvan Debbasch, "Le marronnage. Essai sur la désertion de l'esclave antil-
QU~DRO 20: lai~". em Anné~ Sociologique, 1961 (pp. 1-112), 1962 (pp. 117-195); Gabriel
Debiç_n, "Le marronnage aux Antilles françaises au XVIIIe siecle", em
Caribbean Studies (iPorto Rico) vol. VI, n9 3, 1966; José Luciano Franco,
Tipos de· repressão e dislribuição geográfica. La presencia negra en el Nuevo MwÍdo, Havana, Casa de las Américas,
1968, pp. 91-135; Hubert Gerbeau, Les esclaves noirs. Pour une liistoire
Província Tipos de repressão du silence, Paris, André Balland, 1970, pp. 111-134. ·
Município 54 Mas, às vezes, os suicídios, envenenamentos, etc., atribuídos aos escra-
ou Cidade vos resultavam de uma "histeria coletiva dos senhores": cf. i\ntoine
Gisler, L'esclavage aux Anti/les françaíses (XVIJ; - X!Xe siecle), Con-
tribution au roblyme de l'esclavage, Friburgo (Suíça) , Editions Universi-
(Quantidade de casos em cada tipo taires, 1965, PP- 53.54_ •
de repressão por província, etc.) 55 · Cf. P. I, R. James, Les Jacob!ns noirs, Toussaint-Louverture et la
révolution de Saint-Donzingue, Paris, Gallimard, 1949;_Emilio Cordero
Fonte: Hobsbawm-Rudé, Op. Cit., Apêndice -II Michel La revolutión haíriana )' Santo Domi11go, São Domingos, Editora

390 191
T
1

das, etc., que constituiam formas mais sutis de reação à viol.ência


e opressão dos senhores brancos. M

29) - Nos séculos XIX e XX - Com a derrubada do regi-


me co!Onial e os processos de independência, a situação das massas
ui:_banas ·e· rurais modifica-se lentamente, assim como as formas de o"'
>
reação. Q) e::
No campo, a fazenda cada vez mais dedicada à exportação :.o ..-

ººº
!'I :":
·O
converte-se em instituição principal. Ela surgirá no século XVII, o
no momento da substituição gradual da "encomienda" e do "repar:.
timiento" pelo "peonaje" • 57 A expansão do sistema de fazen-
das, incentivado pelo auge ·d~ exportação, levou à expropriação
paulatina das comunidades indigenas, em muitos países. O conflito
entre latifundiários e trabalhadores rurais - sob esta ou aquela
modalidade - até hoje domina o campo latino-americano.
Até o início do século XX, os movimentos camponeses podem
ser qualificados de pré-políticos e, segundo Aníbal Quijano, agru-
pados em: movimentos messiânicos, bandoleirismo social, movi-
mentos racistas e movimentos agraristas tradicionais. :. 8 A expansão - ~

do capitalismo agrário e industrial, e o desenvolvimento urbano,


influirão decisivamente na politização dos movimentos camponeses

-s
\)
--
que, de um modo geral, se inserirão em um processo político de
-
l i)
e u
maior envergadura. O proletariado agrícola desenvolve-se parale- ~ co ô :ae::
lamente à expansão da grande lavoura, enquanto as atividades N
~ ,_ u
'ü·s. .
e:,_ <li)
o.
e
extrativas também originam um proletariado mineiro. o t: ;a..·-
tJ .-
o e:: .... l=L. l=L. l=L.
!"I M
l=L. <
~..., l=L.. . ::E=
li)
~ .:
Nas cidades, os movimentos artesanais expressaram-se em Q
atitudes francamente políticas, anarq4istas e socialistas. O desen- < .9 li
g ':::S...
..Q
~
Nacional, 1968; iosé L. Franco. Hi~toria de la Revolución de Haili, Hava-
...
.!:J ~

na, Instituto de Historia de la Academia de Ciencias de Cuba, 1966. "i::s ~


u
>-~>-"'
.. e::
'IU
't:l
=
S6 Cf., por exemplo, Hubert Gerbeau, op. cit.; Ciro F. S. Cardoso, \)
"i::s o
..J >- ~
1
tese citada.
57 Cf. Magnus Momer, op. cit., capitulo VII. ~
e~
.~ Cll
58 A. Quijano, MLos movimentos campesinos contemporâneos en Améri· ~ .o
-:a LatinaM, na Revista Mexicana de Suciulogla, n.• 3, 1966, pp-. 603·664. "'o
.o
• N. do T.: encomienda, repartimiento (e mita) sistemas de entrega
dos Indígenas à exploração de espanhóis, são termos já explicados cm =
nota anterior. Peonaje é uma palavra derivada de peón (jornaleiro dedi·
cado a tarefas que exigem pouca habilitação) que significa o regime. ....CllCll . ...t:
\)

xxx ·~
.... :1 ~

do trabalho "assalariado" rural, com as limitações conhecidas no Brasil.


o ~
392 393
1
• i

volvimento industrial mais recente gerou, em quase todos os países,


T Ao mesmo tempo, o referido interesse deixou de limitar-se , como
'

antes, às denominadas "expressões superiores do espírito humano"


um· proletariado industrial com grande peso. sindical e político.
(artes, •teologias, filosofias, etc.) para estender-se a aspectos coti-
Para concluir, mencionemos o problema da marginalidade
dianos e prosaicos da piedade popular, aos mecanismos da for-
social. Nas soci~dades .industriais o lumpen-proletariado compõe-se
mação educativa e da informação, à percepção diferencial dos valo-
de delinqüentes, prostitutas, etc., verdadeiros marginais da socie-
dade. :w Nas grandes aglomerações da América Latina o problema res pelos vários grupos sociais. Em suma, as mentalidades coleti-
vas, çom. todos os seus matizes e manifestações, ingressaram no
dos indivíduos que não· conseguem ocupação estável converte-se
campo de trabalho da pesquisa histórica. Em segundo lugar, já
em um problema estrutural vinculado às particularidades do cresci-
não se considera a psicologia humana um dado inyariável ou cons-
mento industrial e do atraso agrário. Seu estudo interessa, princi-
tante, reflexo do que às vezes é tido como uma abstrata e univer-
palmente, à sociologia e à história da atualidade. ·
sal "natureza. humana": os historiadores começaram a vê-la como
um aos aspectos de um cambiante contexto históric~-social glo-
b~. oo '
Entre os pioneiros da história das mentalidades estão Marc
Bloch com seus "reis taumaturgos" (1924), uma análise das crenças
populares que atribuíam poderes milagrosos e curativos aos sobe-
ranos "ungidos por Deus'', e Lucien Febvre, com sua biografia
de Lutero ( 1924), exemplo brilhante de combinação da análise
E. As mentalidades coletivas de uma personalidade com a das pressões, imposições e rejeições
de um meio afetivo e. sobretudo, com o problema da inl'reduli-
dade no secuto X V 1 ( 1942); e Georges Lefebvre, com seu estu-
do magistral da histeria que se manifestou na França em 1789
( J932) . 'h possível que um primeiro impulso a tal tipo de traba-
lhos tenha provindo de certo número de obras publicadas nos
1. GENERALIDADES
últimos anos do século passado e nos primeiros de nossa centúria,
relativas ao comportamento coletivo, às forças irracionais na his-
tória, à histeria coletiva {Gustave Le Bon Oraham Wallas WiÍlian
A história das mentalidades, ramo recente e de certo modo McDougall, etc.); desde 1900 Henri Berr afirmava a importi;ncia pri-
mal definido, ainda, dos estudos históricos origina-se de uma mu- mordial da r~icnlO)!ia <;Ocial para a síntese histórica. No caso de Lu-
dança dupla de perspectiva por parte dos historiadores. Em primeiro cien Febvre ___:_ que, dos precursores citados, foi quem abordou o tema
lugar, refletindo a tendência geral da disciplina no sentido da em sua dimensão propriamente metodológica - a influência dos
totalidade, do social global, o interesse que tinham pelos elementos psicólogos Charles Biandei e Henri Wallon foi decisiva. Posterior-
psicológicos de explicação - dantes limitado a visões impressio- mente, a história das mentalidades sofreu um tríplice impacto, cujo
nistas e quase sempre anacrônicas da "psicologia dos grandes
homens" passou a aplicar-se à problemática da psicologia coletiva. 60 Cf. Geoffrl·~· Barraclough, History, versão final (mimeografada) do
capítulo III da Sl·gunda Parte da obra da UNESCO em preparação:
Main Trends o{ Research in the Social and Human Sciences, pp. 100.111;
59 Ci. Eric Hobsbawm, Rebeldes pr111ut1vus, Barcelona, Ariel, 1968; Louis Georges Duby, "füstoire des mentalités", em L'histoire et ses méthodes
Cllt'valier, Classes laborieuses et classes dangereuses à Plaris pendant la (sob a direção de Charles Samaran), Ency'clopédie de la Pléiade Paris
premiere mOitié du XIXe siécle, Paris, 1958. Gallimard. 1961, pp. 93~-966. · ' '

394 395
peso foi determinante em seu advento como campo de estu?os e:n exemplo). O problema que pode ser colocado é o da documenta-
crescente expansão: 1) o das pesquisas empíricas da psicologia ção, pois as fontes não são igualmente fartas em relação a todos
social norte-americana; 2) o de vários aspectos da história con- estes níveis. Por outro lado, a análise deve estar atenta a fatores
temporânea, em cuja explicação a psicologia coletiva desempenha de diversos tipos: caráter mais ou -menos aberto do grupo cuja
obrigatoriamente um papel não desprezível: o fascismo, o anti- psicologia coletiva nos interessa; níveis diferenciais de desenvolvi-
semitismo, os problemas raciais norte-americanos, e tantos outros; mento econômico que podem coexistir até em um espaço reduzido
3) por último, o da computação, permitindo que fosse muito e influem muito nas mentalidades; a dinâmica das idéias, correntes
ampliado o emprego da quantificação sistemática, mediante - por de pensamento, estilos, modas, etc.: sua propagação horizontal,
exemplo - a aplicação das técnicas da lexicologia e da semântica geográfica e vertical, no referente às classes sociais, à espessura
quantitativas, e as desenvolvidas para a análise de séries iconográ- do corpo social. Cumpre não perder de vista o fenômeno que se
ficas. 61 denomina hegemonia, no contexto dos estudos marxistas, e que é
atualmente amplamente aceito também por especialistas não marxis-
Seria errôneo presumir que, como ocorreu com a economia ou tas: isto é, o fato da ideologia da classe dominante de dada socie-
a demografia, a psicologia tenha oferecido aos historiadores um dade constituir, ao mesmo tempo, a ideologia dominante desta
arsenal de técnicas, de instrumentos de trabalho: sua contribuição sociedade, em seu eonjunto; o que, no ·entanto, não tira a impor-
limitou-se à problemática, à colocação de questões de novo tipo. tância da análise das diferenças profundas de mentalidade, segun-
A análise histórica das mentalidades coletivas baseia-se, essencial- do as distintas classes e camadas sociais. J:: de especial interesse e
mente, em sua localização no ambiente, no contexto histórico-social bem esclarecedor o estudo dos mecanismos que asseguram e re-
que lhes corresponde; os princípios de tal análise e os resultados produzem a hegemonia ideológica. Finalmente, coloca-se a ques-
que permite obter são muito mais sociológicos do que psicológicos: tão das relações existentes entre as estruturas mentais e os demais
isto explica que especialistas atuais, como Robert Mandrou e Geor- níveis estruturais de uma formação social. Reagindo contra certas
ges Duby tenham tendido, decididamente, a incluir os estudos his- interpretações economicistas lineares e mecânicas, certos historiado-
tóricos da psicologia coletiva no seio do campo da história social. res - como o afirma Duby - "foram leva~os a se afastar do
Como Barraclough o demonstra, a incapacidade até agora revelada concreto, às vezes, a atribuir às estruturas ,.me;tais uma autonomia
pela psicologia em vincular o nível individual ao coletivo é uma demasiado ampla em relação às estruturas materiais que as deter-
das causas nucleares deste estado de cousas. 6 ~ minam, assim fazendo desviar-se, insensivelmente, a história das
Antes de vermos em que setores move-se, e_resentemente, a mentalidades para uma evolução semelhante à da Geistesgeschiéhte".
história das mentalidades, convém recordarmos uma série de noções Outra faceta da questão, é constituída pela defasagem existente no
básicas. Primeiro, a referida história deve, na medida do possível, seio da estrutura social global, e o fato de serem as estruturas
oscilar entre diversos níveis: o indivíduo, o grupo familiar, as mentais as que mais lentamente evoluem: Braudel as chamou, por
classes sociais, as categorias sócio-profissionais e outros tipos de isto, de "prisões de longa duração". "3
agrupamentos (os ambientes e públicos literários e artísticos, por

63 G. Duby, "Histo1rc dcs mcntalill!s", l'ii.: G. Duby, "Lcs sociétés


61 Barraclough, Ibidem; Duby, Ibidem; Lucien Febfre, "Psychologie et médiévales ... ", cit.; sobre o conceito de Hegemonia, cf. Antonio
histoire", em Combais pour l'histoire, Paris, Armand Colin, 1953; F. Fu· Gramsci Antología, seleção e notas de Manut.:l • Sacristàn, México, Siglo
ret, artigo citado. · XXI, 1970, passim (ver também R. Manqrou, La France. , p. 271, e
62 Barraclough, Ibidem; G. Duby, "Les sociétés médiévales. Une approche J1ttroducció11 . .. : difusão das concepções da nobreza sobre a sociedade e
d'ensemble'', cit. ; Robert Mandrou, Jntroducción a la Francict. moàerna, as hierarquia~ sociais nos meios populares); sobre a desafagem das
México, U. T. ·E. H. A., 1964; R. Mandrou, La France aux XVIIe et estrutura's mentais, !=f. Las estrncturas y los hombres._ Barcelona, Ariel,
XV III e :iiecles, cit., p. '270. 1969, pp. 115-124; Braudcl, "La larg<i duración", cit., p. 71.

396 397
2. O CAMPO DA HISTÓRIA DAS centar um outro ritmo, ~inda mais lento: 0 das modificações
MENTALIDADES COLETIVAS biológicas, condicionante fmal das estruturas mentais. 64
Falem?s inicialmente do instrumental mental, via que Lucien
Febvre abnu ~m 1935 e que se define como o conjunto de instru-
~entos mentais de que os homens dispõem em uma determinada
Robert Mandrou colocou a questão em termos de dupla pers- epoca,. e em uma dada sociedade. Impõe-se inicialmente, então a
pectiva: nece~s1dade de fazer um inventário completo, o mais compl~to
reconstrução do instrumenta~ • mental, ou sejam as estru- poss1vel, deste "instrumental". Em primeiro lugar temos a lingua-
turas mentais próprias das distintas classes, grupos sóciq-profissio- gem: as mutações lin~üísticas .ocorrem em relação com as mudanças
nais e outros, de determinada sociedade: hábitos de pensamento, das estruturas mentais. Freqüentemente, as palavras permanecem
idéias socialmente transmitidas e admitidas, concepções sobre espa-
e seu sentido se modifica. A lexicologia, através do estudo do voca-
ço, tempo, natureza, sociedade, sobre o "além", etc.;
bulário, de sua cronologia e inventário; e a semântica, analisando
- definição dos "climas de sensibilidade", o que equivale a~ palav_r~s no co.ntexto, os grupos de palavras, as palavras-chaves,
a dizer conjunturas mentais, mais mutantes. sao auxthares valtosas. O problema das fontes. torna-se mais grave
A esta divisão básica, Mandrou acrescenta outro objetivo: quan_do retrocedemos no tempo, havendo ainda o perigo do ana-
a reconstrução do que seriam os traços originais da psicologia cole- cromsm~. Integram o instrumental mental, também, as noções de
tiva de determinado conjunto histórico-social (nacional, regional, uma sociedade sobre as quantidades, os números e cifras; o tempo
etc.), o que pressupõe o estudo das influências, dos contactos e o espaço: as formas de percepção parecem ser influenciadas
da p·ropagação das idéias e correntes de pensamento. Quanto a' pela higiene, a alimentação, os modos de vida - e isto lança uma
Georges Duby, prefere colocar o tema em termos dos três níveis ponte para a história econômica. Além da visão do mundo tam-
de duraçào aludidos por F.ernand Brudel. A curta duração é o tempo bém os valores sociais admitidos por um grupo integram seu Ínstru-
breye dos tumultos, das agitações, do êxito de um dis.curso oµ uma ?1ental o~ estrut~r~ m_ent~I; seu estudo baseia-se nas fontes ligadas
proclamação revolucionária. As relações entre os indivíduos e os a repressao ( policta, 1ust1ça) e, eventualmente, na análise da im-
grupos estabelecem~se, delineiam-se ao nível deste curto prazo. prensa.·
Mais além, há mudanças para um ritmo muis lento, às vezes per-
O inventário dos instrumentos e mecanismos mentais não é o
ceptível de uma geração para outra, ou no curso de várias gerações.
.bastante: é preciso saber como se formam, difundem-se e se per-
MudanÇas nos gostos, na moda, nos hábitos alimentares, nos cos-
petuam. Em outras palavra.s, cumpre estudar a educação e a infar-
tumes; diferenças de educação, modificações da linguagem:
mação. As idéias sobre as criança~., a família e o sentido da edu-
tudo isto em um período intermediário, conforme .as épocas,
cação têm variaclo segundo os diferentes contextos sócio-históricos.
estendendo-se para além da vida de um indivíduo ou, então,
O termo "educação" deve ser entendido no sentido amplo dos
tornando-se perceptível no lapso de uma vida humana. Temos, por
ultimu, a longa duração, resistente ao tempo. Tudo o que configura intercâmbios entre o indivíduo e seu grupo: aprende-se, por exem-
plo, pela ·palavra, pelos encontros e contatos, assim como pela
um quadro mental cabe aí: heranças culturais, sistemas de cren,
educação institucionalizada. As formas de povoamento, o grau de
ças e concepções do mundo, alguns modelos de comportamento. A
reunião de tudo isto dá a tônica mental de uma fase ampla, sua abertura do grupo, a mobilidade maior ou menor dos indivíduos
infl~em poderosamente sobre o que nos .ocupa neste momento.
peculiaridade mais característica. Duby considera importante acres-
Obviamente, é muito fértil o estudo da organização, do conteúdo

• N. do T. : o autor emprega o galicismo utillaje não regi~ttrado no


DiC1"ia11ário de la Real A.61ademia. Parece-nos que é o caso de traduzir por 64 R. Mandrou, La France .. . , pp. 270-290; G. Duby, "J:listoire des men-
111~1rumental, para maior fidelidade ao sentido. talités", cit.

398 399
li"'!
!;!

e dos métodos de ensino, o do acesso d~ferencial, confonne os


Jiferentes grupos sociais, às instituições educativos; o da vida historiador, o folclor~ mostra-se freqüentemente algo intemporal,
universitária, o da influência de academias prestigiosas sobre uma "sem história". Melhor dito, é quas.e :-enipre extremamente - difícil
região, país ou grupo de países, o das "modas" científicas que se situar no tempo a origem e a difusão dos "fatos de tradição".
refletem na freqüência de certos temas escolhidos para as teses, -Como demonstrava Varagnac, as sociedades camponesas não muda-
etc. Mas é preciso, também, não perder de vista a análise da infor- ram, no essencial, seu gênero de vida desde a "revolução neolí-
mação - de tanta importância na formação da chamada "opinião tica" até as transformações resultanJes da revolução industrial: esta
"arq~~ocivilização" .tã_o persistente expl.icaria a ampla comunidade
pública". A informação deve ser considerada em seus múltiplos
e af1111dade das rad1çoes dos povos mais distintos embora existam
aspectos: estudo do movimento editorial, da publicação, conteúdo
traços cuja formação e difusão estejam docum~ntadas historica-
e difusão de livros, revistas, jornais e panfletos; anáJ.ise do acervo
mente. "'
das bibliotecas, estudo das correspondências. 65
Outro aspecto da história das mentalidades: as crenças, os Mencionemos,, ainda, urr. campo de pesquisas; a história da
mitos, as cosmologias, os rituais, os símbolos, mutantes conforme arte. Por um lado, o estudo dos públicos literários e artísticos -
as épocas e os meios sociais. Na verdade, as representações cole- seu conteúdo social, o mecenato, a variação dos gostos, estilos e
tivas, devido à falta de fontes de outros tipos., - só podem ser conhe- modas. As fontes são variadas: as peças críticas, os inventários
cidas, muitas vezes, através de seus símbolos e formas de expressão: post mortem (que permitem tomemos conhecimento das obras
ladainhas, peregrinações, rituais, receitas, contos, cerimônias ... literárias, quadros e outros objetos de arte que o morto possuía)
Mas, em certos casos, uma documentação mais farta - corres- a correspondência de escritores e artistas, etc. Por outro lado, o
pondência, exposições de motivos em testamentos e doações, etc. estudo .das próprias obras: como veremos, novas técnicas vieram
- permite-nos. alcançar o próprio conteúdo das crenças religiosas. renovar a análise dos textos, dos corpus de textos, das séries icono-
Neste setor, como em todos os outros, o centro de interesse des- gráficas. 68 _
locou-se do particular para o coletivo: antes os estudiosos concen- O estudo das mentalidades coletivas constitui, na América Lati-
travam-se na história das altas hierarquias eclesiásticas, das teolo- na, um campo de interesse praticamente virgem no atinente às
gias; presentemente o que procuram é a reconstituição do senti- pesquisas de tipo histórico. Para o período pré-colombiano dispo-
mento religioso do homem comum, da "religião vivida", das supersti- mos das interessantes análises de Laurette Séjoumé. Fàtos como
ções, dos aspectos mágicos da religião popular. . a conquista e o tráfico negreiro acrescentam dimensões específicas
A problemática que vimos de mencionar leva, muito natural- à temática latino-::uneric:ma: desestruturações, acultl,lrações, sincre-
mente, à colocação da quest~o das relações entre a história e o tismos, etc. Entre as fontes já usadas para o.período colonial temos
folclore. Do ponto de vista dos folcloristas tais relações conside- os documentos da Inquisição e os que resultaram das visitas episco-
ravam-se, no passado, muito íntimas e importantes: assim, no pais. G9
método cronográfico de P. Saintyves ~ nas estratigrafias culturais de
André Varagnac; especialistas como Arnold Van Gennep, preconi-
67 Gaby et Michel Vovelle, Vision de la mort et de l'au-delà en Plroven-
zam relações mais distantes - e a influência da antropologia -estru- ce d'apres les autels des âmes du purgatoire, XVe - XXe si ·eles, Cahiers
turalista talvez confirme tal orientação. 66 Do ponto de vista do eles Annales, n.º 29, Paris, Armand Colin, 1970, p. 60; N. Belmont, Ibi-
dem.
68 R: Mandrou, La France_ , cit.; G_ Duby, ".Histoire des mentalités'',
65 Sobre este último ponto cf. Daniel Roche, "Les primitifs du Rous- ci(.
seauisme. Une analyse sociologique et quantitative de la correspondance 69 Cf. Laurette Séjourné, América Latina, 1. Antiguas cultur~s prew-
de J -J. Rousseau", em Annales E. S. C., janeiro-fevereiro de 1971, lombinas, Historia Universal Siglo XXI, n.º 21, Madrid, Siglo XXI, 1971
PP 151-172 (sobre as conseqüências da conquista); Colin A. Palmer, Religion and
66 Cf. Nicole Belmont, Myth'ts et croyances dans l'ancfrnne France, col. Magic in Seventeenth Century Mexican _Slave Society, informe mimeogra-
Ouestions d'histoire, n.º 35, Paris, F1ammarion, 1973, PP- 117-122. fado, Rochester (N. Iorque). março de 1972; Juan José Hurtado, "Algu-

400 401
3. MBTODOS E TECNICAS: HISTORIA E LINGVISTICA, aproximação à lingüística, mas sem que, por isto, seja considerada
AS SERIES ICONOGRÁFICAS a problemática do discurso em si., consiste em usá-la de modo
i~strumen~al, em função ?e uma pesquisa cujas hipóteses explica-
tivas estepm em outro mvel. Temos, neste caso, as técnicas de
análise de conteúdo, que implicam maior rigor na seleção do con-
Quanto à documentação escrita, as formas de abordar os
junto de textos tomados como objeto de análise (corpus), como
textos selecionados como fontes para o estudo das mentalidades
em seu tratamento estatístico; permitem uma economia de tempo
coletivas variam segundo a atitude do historiador ante os textos
mediante processos de regularização e formalização dos textos
referidos. Na grande maioria dos ·casos só lhe interessará seu
usados e tornam possível, além disto, a comparação de diversos
conteúdo, explorado qualitativamente; mas na medida em que tiver
textos, graças ao estabelecimento de enunciados mínimos e classes
algum conhecimento teórico e técnico da lingüística surgirão novas
de equivalência.
possibilidades, desde uma análise temática mais rigorosa (técnicas
estatísticas de análise do conteúdo) até o estudo do próprio discurso, P. Guiraud foi um dos pioneiros do mencionado- tipo de
da estrutura propriamente lingüística dos textos., no sentido de técnicas de análises de conteúdo, que permitem uma abordagem
captar a função do discurso estudado em relação a determinadn Iexicométrica do texto, ou seja, o estudo das "relações numéricas
ideologia. Não discutiremos aqui as questões epistemológicas relacio- e probabilísticas mantidas pelos itens mínimos de um texto", tendo
nadas com as relações entre história e lingüística: em um livro recente, em vista uma "estatística dos empregos: a lexicometria". 12 Os
Régine Robin trata do assunto de forma que nos parece correta. processos da lexicomettia compreendem., primeiramente e pela
Também não tentaremos entrar nos pormenores das técnicas de ordem, a edição do corpus em cartões perfurados a partir de um
análises de conteúdo, lexicológicas, análises de enunciados, "análi- código, e seu tratamento em computador, conforme um programa
se sémica"' ou semiologia gráfica: isto exigiria amplas digressões de indexação, como etapas prévias de estudo: da freqüência das
que exptl'>e's,·m um hom número de noções teóricas e um voca- formas (gramaticais ou funcionais e léxicas) para estabelecer, em
bubri,1 l''l"·L·i;tl11alh.l. Limitar-nos-emos a uma apresentação su-
especial, quais são as palavras (cuja freqüência se afasta da nor-
maria uos problemas em suas linhas mestras, convidando o leitor
mal) que devem ser tidas. por palavras-chaves ou palavras-temas,
a valer-se de bibliografia mais específica, se lhe interessarem
encontradas em quase todas as frases e em torno das quais o pen-·
aspectos propriamente operacionais da metodologia men~ionada. 70
A atitude de um historiador ante sua documentação escrita sarnento se organiza; da distribuição das palavras no corpus; das
tem sido, tradicionalmente, a de usá-la no quadro de uma análise co-ocorrências ( est2tísticas sintagmáticas). ·Marc Bloch pode ser
temática de tipo qualitativo. Assim é, por exemplo - no campo considerado um precursor dos estudos de lexicometria no quadro
dos e.;tudos de mentalidade coletiva, de que ora nos ocupamos das análises de mentalídades coletivas, e mesmo no de um estudo
- nos trabalhos de J.-P. Gutton e de F. Lebrun. 71 Uma primeira lexicológico, com seu trabalho sobre a sociedade feudal. 73
Os trabalhos históricos apoiados na análise temática ou de
itkas sobre e! culto a los animales y el nahualismo en el siglo
11.1-; conteúdo têm, todos, um postulado implícito comum: o do caráter
XVIII".· em Cuadernos de Antropologia (Guatemala, Universidad de San unívoco e transparente dos textos, cujo sentido é considerado, então,
(Mi"' de Guatemala), n.º 7, janeiro-junho de 1966, pp. 5-12.
10 Cf. Régnie Robin, Histoire et linguístique, Paris, Armand Colin, 1973.
como algo imediatamente perceptível, sem •trabalho prévio sobre
71 J .·P Gutton, La société et les pauvres: !'exemple de la généralité de
/vem, 1534-1789, Paris, Ed. Les Belles Lettres, 1970; F. Lebrun, Les hom-
m<'s la 111ort en Anjou au.x XVIle et XVllle siecles, Paris, Mouton,
l!l 72 P. Giraud, Problemes et méthodes de la statistique lingüistique, Pa-
1971 Poderíamos acrescentar muitíssimas outras obras: Georges ·Duby, ris, Larousse, 1960; R. Robin. op. cit., p. 124.
CA11 Mil, col. Archives Julliard, Paris, Julliard, 1967; R. Mandrou, Ma- 73 R. Robin, Ibidem, pp. 124-138. Marc Bloch, La société féodale, Paris,
gntruts et sorciers en France au XVIle siecle, Paris, Plon, 1968, etc. A. Michel, 1968 (há tradução para o espanhol) .

402 403
sua es r
t utura léxica sintática e semântica; em outras palavras, o
' - ·
nível discursivo de. tais textos é visto como nao pertme? e. a
t · ' análise
.
r
1

eia de Freud e da psicoanálise (a linguagem cotpó expressão do


inconsciente, a noção de um inconsciente coletivo, etc.). 1a
Os estudos de tipo lexicológico - dos campos semantl~?s . - a
rt" do princípio da não transparência dos textos, ao fec~ar .º Não é preciso, aqui, dizer que os métodos inspirados pela
~=m:~ho à intuição e à análi~e temática e ~o postular: en~1m,o lingüística apenas começam a ser aplicados à história da América
caráter sistemático (rei acional) do léxico, exigem ?ºs h1~tor~ado~es Latina; e o são especialmente em estudos de ideologia política de
·jornais, grupos e movimentos, etc. 11
dispostos . a empreendê-los um conhecimento ~ais p~o. un o e
lingüística. Ainda estamos longe, no. e~t~nto., . do n:ax1m? grau · .. Se passarmos - pará uma observação final - do campo dos
Possível de integração entre as duas d1sc1plmas: a lex1colog1.a atua documentos escritos· para o da iconografia, estudada para fins histó-
no campo · do vocabulário e não, p~opnamen · t e, . n o do . discurso·
-~ ' ricos segundo uma abordagem quantitativa, constataremos que -
sua análise de tipo distributivo permite o conhec1m,e~to do vo~a: como Marichal já o mencionara em 1961 a propósito da crítica
bulário próprio de um autor, homem ou grup~ ?ºhhco, etc., ~as histórica aplicada a testemunhos escritos e ·não escritos - 11ão há
não se ocupa de outros níveis, como o da ~et.onca e da enuncia- diferenças de fundo nas metodologias aplicadas nos dois casos. Elas
H Os métodos mais complexos e especializados que u~trapas­ estão, no entanto, no que se refere às fontes iconográficas, em um
~~º· enuncza~o~
:-
tais limitações da lexicologia, os da análise dos e estágio mais incipiente de elaboração e de experimentação. Tam-
~:m análise sêmica exigem séria informação .ling~ísticae semant1ca bém neste campo Michel Vovelle foi pioneiro com sua análise até
_ 0 que até agora limitou seu uso pelos h1stonadores das menta- certo ponto quantificada dos altares das ·almas do purgatório err:
lidades coletivas. 75 Provença (Séculos XV a XX) tomados como fontes para o estudo
Vimos, então, que todas as gradações ~ão ?°ssív:is . na~, f?r- das visões da morte e do além. Nestes últimos anos, os processos.
da semiologia gráfica, com suas matrizes computáveis e seus fichá-
mas e na pro f un dl'dade da aproximação do h1stonador a lmgmstica
''d ·
técn!ca e teórica. Citamos Gutton e Lebrun coin:o exemplos. _ e .e:im:- rios-imagens, sofisticaram-se consideravelmente. 1s
rioridades neste sentido; Michel Vovelle ocuparia. uma _pos1çao inter-
mediária com seus estudos sobre as formas de considerar a morte
em Provença (séculos XVII e XVIII) a partir de um corpus bem 76 M. Vovelle, citado por R. Robin, Idem, pp. 93-94; pp. 68-75 sobre
Alphonse Dupront; Alphonsc Dupront, "L'histoire apres Freud", na Revue
delimitado (os testamentos) analizado, tendo em cont.a a es~rut~ra de l'enseigneme11t supérieur, n.º 44-45, 1969; A. Dupront, "Sémantique his-
·
proonamen te l"mgüística
. dos textos ' .embora
_ sem s1stemattzaçao;
R R b" toriquc et histoire", em Cahiers de Lexicologie, .1969.
or · último, Dupront representa a pos1çao .. extrema q~e . o m 77 Ver, pôr exemplo: e. G. Mota, N. 1 deste 1817, cit.; Daniel Teysseire,
~ualifica de "euforia panlingüística'', com seu projeto de uma La lexicologie en histoire de l'idéologie: L'inventaire "texicométrique des
semântica histórica. "Pasquins sediciosos" d'aoíit 1789 à Bahia, comunicação mimeografada,
Paris, outubro de 1971; Milton José de Almeida e Arnaldo D. Contier,
Esta disciplina, diretamente inspira~a. n~~, ~rinc1p1os da fono- "O campo conceptual da lexia "partido" at'ravés dos artigos publicados
em um jornal paulistano: "O Observador Constitucional';; em Anais de
logia estrutural, mostrar-se-ia vinculada a lmgu1st1ca d~ modo ~spe~
História (Assis, Estado de São Paulo, Faculdade ele Filosofia, Ciências
1.:ial (e com outras disci?linas, co~o. ~ ~?trop~l~g1a, . ~a1:11be~) ~ e Lclrns), 1972, pp. 53-73.
caracterizá-k-iam um espín!o "quant1tahv1sta dec1d1do, e a mfluen 78 Gaby e Michel Vovelle, op. cit.; V. -L. Tapié e ou; ;os, Retables barro-
ques de Bretagne, Paris Pressl!s UniVl!rsitaires dé France, 1972; exemplos
de estudos de outros tipos são M. Agulhon-, "Esquisse pour unl! archéo-
Jogie de la République - L'allégorie civique f éminine", em An11ales E. S.
74 R. Robin, op. cit., pp. 139-158. C., janeiro-fevereiro de 1973, pp. 5-34; Alexandre Papadopoulo, "Esthéti-
75 1dcm, pp. 159-209. que de J'art musulman. La pl!inturl!", l!ID An11ales E. ~ C, maio-junho
de 1973, P- 681-710.

404
405
r
1

F. Conclusão

A história social, em seu sentido mais restrito - o de um


campo de estudos históricos comparável aos outros (história econô-
mica, demográfica, política, etc.) - apresenta contornos menos
precisos, quanto a seus objetivos, conceitos e metodologia., do que
a história econômica ou a demográfica. O que se explica por sua
constituição relativamente recente como ramo de pesquisa aberto
aos métodos quantitativos e à renovação conceituai; talvez, tam-
bém, porque a sociologia tenha menos a oferecer à história do que
a economia, no campo metodológico (falamos da sociologia •lUe
PARTE III
predomina nos ambientes acadêmicos).
Seja como for, o dinamismo da história social é indiscutível
e alguns dos resultados conseguidos (a pa~tir de 1960, principal-
mente) são de alto gabarito e grande interesse.
Quanto ao estudo das mentalidades coletivas, em seu aspecto
atualmente predominante, pode ser considerado como intímamente
vinculado à história social e, mesmo, como parte integrante de seú
campo (Duby, Mandrou). Entreta•nto, é muito provável que ao
estreitarem-se seus vínculos co'11 a lingüística., tome novos rumos
no futuro.

406
CAPITULO VIII

O MÉTODO COMPARATIVO NA HISTÓRIA

A. Definição, importância e vantagens

Conforme Marc Bloch, "aplicar o método comparativo no


quadro das ciências humanas consiste ( ... ) em buscar, para
explicá-las. as s~melhançus e . as diferenças· que apresentam duas
séries de natureza análoga, tomadas de meros sociais distintos''. 1
Mencionemos, também, a definição do programa de história com-

1, ·.Marc .Bloch, "Coo1paraison", na Rev11e de Syntliese HiHoriaiie. t. LXIX:,


1930, boletim anexo, p. 31-39.

409.
parada da Universidade de Brandeis, citada por Barraclough, se-
gundo u qual trata-se da "concei.; ação e estudo t!o passado segun-
r
'
cientes da importância e do caráter insubstituível do método com-
parativo, única forma - embora imperfeita - de encontrar uma
do paradigmas e categorias políticas, econômicas, culturais e psico- alternativa, no contexto da pesquisa, à impossibilidade de aplicar o
lógicas, mais do que de acordo com divisões nacionais ou períodos método experimental. 4
artificiais." 2 No primeiro caso, a definição refere-se ao próprio Vários fatores explicam o impulso hoje animando o método
conteúdo do método comparativo; no segundo 1 ata-se, antes, das de que nos ocupamos. O próprio contato. da história com as ciên-
vam gens do referido método. cias soeiais obriga a aplicá-lo: Postan demonstra que não se pode
A polêmica C(ntre os defensores e os detratores da comparação alcançar uma generalização sociológica a partir de um único fato
.na história pode ser tida como a manifestação, no campo da, dis- ou processo. A possibilidade de generalizar implica, pois, a com-
ciplina, da oposição entre duas atitudes científicas, ambas possi- paração. Além disto, o notável desenvolvimento - depois da
velmente necessárias: por um lado a busca da precisão, do exato, II Guerra - da história asiática, africana e latino-americana prO-
do certo, o que leva a destacar o caráter individual e único de cada porciona uma base bem mais ampla à verificação, em âmbito real:-
objeto observado; por outro lado, a "corrida criadora para as ver- mente mundial, de hipóteses explicativas· aceitas. Também, influi-
dadeiras descobertas", que exige o apelo à comparação e à abstra- ram no sentido da popularização do método comparativo os êxitos
ção. De qualquer modo, como Witold Kula o demonstra, nenhum alcançados por pesquisas concretas baseadas em seu emprego, espe-
trabalho científico, por mais limitado e monográfico que seja, pode cialmente as . referentes às sociedades escravistas da América do
dispensar totalmente o método comparativo, pois é impossível a Norte, das Antilhas e da América do Sul. 11
introdução de novos elementos em um terreno qualquer do conhe- E: certo, no entanto, q~e;·ou,tros fatores atuaram em sentido
cimento sem compará-los com os ·já conhecidos; esta comparação, ·pposto. Entri:t eles, ;teve e1<P!c4tL' .importância o impacto do uso
embora às vezes não explícita, é absolutamente necessári~ pois de inadequado da ~omparação histórica por autores como Spengler,
outro modo não se poderia dar um nome aos mencionados fenô- Toy!llbee ou Rostow, que não vacilaram em apelar para terríveis
menos novos. s anacronismos e perderam, de um todo, o respeito devido à especi-
Para Henri Sée e Henri Pirenne, já há meio século, o método . ficidade estrutural e histórica das sociedades inçluídas em suas
comparativo seria o instrumento capaz de transformar a história comparações. a Assim, nos últimos tempos, o apelo ao método com-
em uma ciência, ao permitir a passagem da descrição para a .expli- parativo é feito com a máixima. cautela, para preservar as aludidas
cação dos processos históricos. Em 1970, falando sobre os fatores especificidades: como .afirma Marc Bloch, na definição que repro-
que levaram a algumas das ciências do homem do estágio pré- duzimos na abertura do capítulo, é preciso considerar, através de
científico ao de ciências "nomotéticas" - isto é, que procuram .tal método, tanto as semelhanças quanto as. diferenças entre os
estabelecer leis - Je~n Piaget colocava, primeiramente, entre os .elementos com~arados .
• •)< • ; - •

aludidos fatores a "tendência comparativa". Esta é uma tendência


que, de fato, constitui um processo essencial no caminho para a 4 Henri Sée,< Science et philosophie de l'histoire, Paris, Alcan, 1933; Henri
sistematização dos conhecimentos, entre outras causas porque pos- Pirenne; Cempte rendu du Ve Congres international des sciences historiques
sibilita ao observador afastar-se de seu próprio ponto de observação, {Bruxelas, 1923), l?· 28; Je.an· Piagçt, Epistémologie des sciences de l'hom-
de sua sociedade particular: sem o que não há objetividade possível me, Paris, Gàllimard, 1972; pp. 29-33; Maurice Bouvier-Ajam, Essai de
méthodologie historique, Paris, Le Pavillon, 1970, p, 87.
nas ciências sociais. Muitos dos historiadores de hoje. estão cons- 5 Cf. Barraclough, op: cit., p.' 270; Slavery in tl}e New World. A Reader
in Comparative Histpry, sob· a direção de Laura Foner e Eugene Geno-
vese, Englewood Cliffs· (New Jersey) Prentice-Hall, · 1969.
2 Geoffrey Barraclough, op. cit., p. 267. 6 Quanto à crítica a tal forma de aplicação do -método comparativo
3 Witold Kula, Problemas y métodos de la historia económica, tradução ver, por exemplo, ·Lucien Febvre, "Dos filosofias oportunistas de la histo-
direta do polonês por Melitón Bustamante, Barcelona, Ediciones Penín· ria. De Spengler a Toynbee", em Combates por la Hb.toria, Barcelona,
sula, 1973, p. 571. Ariel, 1970, p. 183-217. .

410 411
r
1

Vejamos, agora, a~ vantagens que podem ser esperadas da Finalmente, a atitude comparativa pode aplicar-se com muito
aplicação do método comparativo às pesquisas históricas. proveito, também, a pesqtiisas de. tipo monográfico. Um estudo
A mais importante é, sem dúvida, a possibilidade de um de caso adquire densidade quando situado em uma tipologia, tra-
controle efetivo - muito mais efetivo e digno de confiança ·do tando-se de demonstrar, ao mesmo tempo, quais são suas singula-
que as duvidosas técnicas da counter-factual hypothesis da f'New ridades irredutíveis. Heinrich Mitteis pretende, até, qu·e só por meio
Economic History" - sobre as hipóteses e generalizações expli- da comparação pqssam chegar a ser percebidos os traços pe5:ulia-
cativas. Em outras palavras, a determinação de leis históricas e a res e essenciais de uma dada sociedade, pois a análise comparativa
construção de modelos históricos não podem ser feitas sem recor- permite distinguir os referidos traços dos que são comu:1s a outros
1 er-s_e ~o método comparativo .. A verificação das generalizações
casos observados, ou dos meramente incidentais. 0
exp1Icat1vas parte do princípio de que se temos duas séries de fenô-
menos, onde achamos que existam fatores causais de dependência,
a crença nos referidos fatores será diminuída ou eliminada se com-
provarmos., em algumas das sociedades comparadas, a presença de
uma das sêries e a ausência da outra. Este controle permite não
só eliminar certas hipóteses explicativas como, também, às vezes,.
enriquecer ou matizar as generalizações admitidas, ou mesmo esbo-
çar novas explicações e problemáticas dantes insuspeitadas. 1
Uma grande utilidade adicional do método comparativo está
em que leva à ruptura com uma pesada herança da historiografia B. Armadilhas e perigos na aplicação do método
ào século XIX: o quadro das fronteiras políticas como definição comparativo: precauções necessârias
de unidades "naturais" de ·análise; a atitude comparativa abre
vias à construção de universos de análise definidos segundo crité-
rios conceituais bem mais coerentes. Para exemplificar: o estudo
dos impérios coloniais europeus, nos Tempos Modernos, cada qual
em si mesmo - como era feito há não muito tempo - ignora
O primeiro perigo que ameaça o pesquisador que &plica o mé-
que o Brasil açucareirp, as Guianas e as Antilhas (colônias escra-
todo comparativo é o de cometer anacronismos, ao confundir ana-
vistas de plantação) eram semelhantes do ponto de vista. estru-'
logias superficiais com similitudes profundas, sobretudo em se
tural, embora submetidos à jurisdição de diferentes metrópoles: ao
tratando de sociedades estruturalmente bem diversas, ou mu~to
contrário, a Nova Inglaterra e a Jamaica eram zonas coloniais bem
afastadas no tempo. A extensão presente dos estudos comparativos
diversas, apesar de integradas no mesmo império colonial britâ-
de sociedades escravistas da América esclarece melhor as armadi-
nico. 8
lhas que a comparação histórica pode esconder, e o modo de evitá-
las. Assim, por exemplo, os defeitos da comparação de Cuba com
7 Cf Barrington Moore, Jr., Social Origins of Dictatorslúp and Derno· Virgínia - empreendida por Herbert Klein, demonstram que a
aacy, Lord and Peasant in lhe Making of the Modem World, Boston, contemporaI1eidade (Klein limitou-se ào 5'.éculo XVIII) não é
Bc·acon Prcss, 1967, pp. XIII,XIV; Witold Kula, op. cit., p. 604; faigene
D Genovese, "The. Comparative Focus in Latin American History", garantia suficiente de que as socied:ides em estudo sejam, de fato,
em / 11 Red ~nd_ Black, Nova_ Iorque, Pantheon Books, 1971, pp. 375-38,~.
8 Cf. ~e~1n P1rc1:me, op. czt.; Marc Bloch, ''Pour une histoirc éomparée
des societes europeennes", na Revue de Synthése Historique, 1928, p. 15 e, 9 Cf. · Barraclough, op. cit., 279; também E. Genov§e, "The Compa-
seguintes. rative Focus .. .'', cit., Moore, op. cit., p. XIII.

412 41:.>
Precaução básica é a de conhecer bem o que se· pretende com-
comparáveis além de uma simples constatação das diferenças. Euge-
parar: antes de buscar o que determinada formação social tem em
ne Genovese recomenda que sejam tomadas as sociedades a com- comum com outras, ou de diferente defas, é preciso prestar atenção
parar, em épocas diferentes se necéssário, mas em etapas compa- a sua individualidade, a suas características específicas. 12
ráveis - ao mesmo tempo conjuntural e estruturalmente - de
Por último, é freqüente confundir comparação com justaposi-
·seu desenvolvimento, apesar da grande dificuldade decorrente de
ção. Ao acumular, umas após outras, descrições de casos indivi-
considerá-Ias em c9ntextos históricos globais diversos.
duais não estaremos - só por isto - procedendo a uma compa-
Acreditamos haver· outra solução possível: a abordagem de ração real, pois esta fica implícita e, pois, a cargo do leitor. Este
prazo muito grande, plurisecular. Também, temos a impressão de defeito é vizível em vários trabalhos recentes que se declaram
que os equívocos de Klein e de outros autores (desde TannenbaurrÍ comparativos. 13
e Gilberto Freyre até pesquisadores mais recentes, como Stanley
Elkins) resultaram, em grande parte, do privilégio por eles con-
cedido a certos setores - e não os mais explicativos - das reali-
dades sociais focalizadas, sem terem considerado, suficientemente,
o contexto social global. J;; claro, também, que o método compa-
rativo exige uma rigorosa definição de termos e conceitos, o que
permite evitar plêmicas inúteis ou mal colocadas: é o que E. Geno-
vese o demonstra, em brilhante artigo, a propósito do "trat!lmento C. As formas e os resultados da aplicação do
dos escravos". Tudo o que foi dito até aqui pode ser resumido método _comparativo
na regra seguinte: só é prôveitoso comparar o realmente compa-
rável.10
Outro possívél .· perigo consiste no exagero das virtudes do
método compárativo, cujas,.:finalidades não incluem a ilusão meta-
histórica de uma "receita'º, ou de um pequeno número de el_e- ·
mentos ou fatores que ·permitam "decifrar" o conjunto do devir Podemos distinguir duas formas de aplicação do método com-
humano. 11 parativo às pesquisas históricas: 1) a que limita a comparação
a sociedades aproximadamente · contemporâl)eas e que partilham
grande número de traços estruturais análogos, assim permitindo um
10 Herbert S. Klein, Slavery in the Americas, A Comparative Stuqy of manejo mais fácil e seguro do métopo em questão; 2) a que estende
Cuba and Virgínia; Chicago, University of Chicago Press, 1967; Sidney
W. Mintz, "Slavery and Emergent Capitalism", em Slavery in the New a comparação a sociedades francamente heterogêneas, ou muito
World, eit., pp. 27-37; Engene D. Genovese, "The Comparative Focus .. ;", afastadas no tempo: as dificuldades serão enormes, pois o anacro-
cit. ; Eugene G. Genovese, "Materialism .and Ide.alism in ~he History of nismo tocaiará a cada passo e será fácil cair em suas armadilhas
Negro Slavery in · the Americas", em ln Rea anã Black, cit., pp. 113-62;);
Eugene D. Genovese "The Tt.eatment of Slaves in Different Countries, (como nas obr2s de Spengler e Toynbee). Não se pode, no entanto,
Problems in the Applications of the Comparative Method", em ln Red· proscrever pura e simplesmente a segunda forma de empregar o
and Black, pp. 158-172; Ciro F .. S. Cardoso, "El modo de producción
esclavista colonial en América", em Cuadernos 'de Pasado y Presente
método, para recomendar só a primeira: isto- é, aconselhar apertas
(Córdoba, Argentina), n.º 40, maio de 1973, pp. 193-242; Social Science sua aplicação às que Marc Bloch denominou de "sociedades sincrô-
Research. of Latin America, sob a c1ireção de Charles Wagley, Nova York
e Londre.s, 1964, p. 100 (notas de S. Stein). ·
l l Eugene D. Genovese, "The Compara tive Focus ... " cit.; Barracloúgh, 12 Barraclough, [ bidem, p. 272.
op. cit ., p. 271. 13 Ibidem, p. 277.

414 415
T

"O problema metodológico consiste em determinar 0 nível


nicas". E não o podemos fazer porque a expenencia mostra a a estruturação do objeto, que permita agrupar exclusivament~
fecundidade de tal forcalização, quando aplicada corretamente, ou fatos de parentesco suficiente para iluminarem-se reciproca-
seja, quando consideradas as estruturas sociais globais. e os contex-
m~nte e, ao mes1?o tempo, com diversidade bastante para dar
tos históricos diferenciais. Assim, por exemplo, o conhecimento das
sociedades pré-históricas desaparecidas pode e deve a·proveitar os ongem a . u~~. lei estrutural que passe da mera descrição de
conhecimentos resultantes do estudo etnológico dos "primitivos". um .fato md1v1dual. Trata-se de encontrar o nível estratégico
a1.ais, embora este tipo de comparação requeira, certamente;. grande preciso e único, que não é um nível intenpediário qualquer
dose de cautela e precauções infinitas. u O que podemos afirmar é en~re a extrema generalidade e o individual, mas o nível que
que, na maiori<1 dos casos, a primeira forma de aplicar o método dá evpa, de uma vez por todas, a abstração do tipo da lei dos
melhores resultados e permite chegar a conclusões menos objetáveis tres estados de Augusto Comte e a descrição monográfica de
e mais dignas de confiança ao esclarecer, por cima dos Cd56~ um caso individual."
individuais, os processos-chave de uma época. De qualquer modo,
é importante não esquecer dois aspectos do método comparativo Ao es!udar .determinado processo histórico, no espaço e no
- como o define Marc Bloch: cumpre, ao mesmo tempo, localizar tempo, sera preciso descobrir os elementos: 1) comuns a todos
as diferenças e buscar os fatores que as determinam, e fixar as o~ ca~os; 2) tí?icos para as diferentes subclasses de casos; 3) indi-
regularidades manifestadas entre dois ou mais processos obser- v1dua1s, ou se1a - que não possam repetir-se. 11 Silvio Zavala
vados. 15 fqrmula alguns conceitos práticos que podem nos ajudar a fazê-lo:
a) "estabelecer quadros comparativos que incluam os temas ou
Antes de examinarmos algumas regras práticas de utilidade,
assuntos paralelos'', b) "pàrtir da base da existência de diver~icl;ides
em tal sentido, vamos reproduzir as observações muito oportunas
a .com~ar- a"; c) '\leve haver elementos gerais ou de possível apro-
de Lucien Golmann - a respeito do "nível estratégico" que importa
x1piaçao, para que o para!elo produza um resultado apreciável". "
desco:t.ir para nele colocar comparações efetivas e férteis: 16

"Não é · verdade que as pesquisas histórico-sociológicas se Para terminar, vejamos quais - segundo Marc Bloch, _
possam situar em um lugar qualquer de uma linha contínua, os resultados que podemos esperar da aplicação do método com-
que fosse da generalidade sociológica extrema até a individua- parativo; suas colocações, a propósito, sintetizam boa ºparte dá
lização histórica extrema. Nesta linha há um nível preciso problemática até aqui discutida: 10 ·

que permite à pesquisa explicitar uma tipologia, estudando - Sugestões de nons observações e pesquisas: certos fenô-
um certo número de escândalos ou de regimes ditatoriais menos ou processos, mais documentados ou mais visíveis em certa
diferentes [o autor refere-se aqui a exemplos mencionados sociedade~ também podem ter sido igualmente· importantes _ embo-
anteriormente] porém dotados de estruturas aparentadas e ra menos visíveis ou menos documentados - em outra ·sociedade
cujo estudo comum permite entendê-los melhor do que se ..
vizmha, ou não, da primeira no tempo e no espaço; ·
'
tivesse sido estudado um caso único, enquanto todo o estudo
- Ex~licação dos fenômenos de sobrevivência (quer dizer,
que passasse disto, englobando fatos heterogêneos, não poderia
ir além de contribuir para a confusão da pesquisa. que se explicam por um estágio anterior de evolução da sociedade

14 Marc Bloch, "Comparaison" e "Pour une 'histoire comparée des so- 17 W. Kula, op. cit., pp. 592-59,3.
ciétés europeénnes", artigos já citados. 1~ . Si!vio Zavala, Hispanoamérica Septentrional y media; Período colonial,
15 Cf. Barraclough, op. cit., p. 277. citado por Carlos M. Rama, Teoria de la historia Madrid, E:i. Tecnos
16 Luclen, Goldman; "Estructura social y consciencia. colectiva de Ias 1968 (2.• cd.), pp. 88-89.
estructuras", em Las estructuras y los hombres, cit., pp. 104-113. 19 Marc Bloch, "Comparaison", cit.

416 417

,,1
em questão). "Interpolação das curvas" de desenvolvimento de ção teórica como método racional. Pouco avanço houve neste sen-
distintas sociedades. Mas, adverte Bloch, a comparação tomada tido, de fato, desde os estudos iniciais de Fustel de Coulanges,
neste último sentido ··mais sugere do que explica cabalmente". Henri Berr, Henri Sée, Henri Pirenne e, em especial, de Marc
Pesquisa das influências ou da filiação entre sociedades, Bloch. A própria importância do aludido método impõe 0 esforço
com as precauções impostas pela possibilidade de uma evolução de aperfeiçoá-lo, teórica e operacionalmente. Seja como for, cremos
par:ilela devida, não ao contacto, mas à analogia ou similitude de - com Sée e Pirenne - que uma das condições essenciais do
circunstâncias. aperfeiçoamento científico de nossa disciplina consiste nos historia-
Estudo das semelhanças e diferenças existentes na evolu- dores deixarem de ver no método comparativo um processo entre
ção das sociedades consideradas. outros., que possa ser usado ou não segundo seu arbítrio dando-se
conta~ da necessidade de empregá-lo sempre e sistematic;mente.

D. Conclusão

Barraclough resume bem o estado presente das preocupações


a propósito da história comparada, ao dizer. que ela tem por implíci-
to postulado a crença no caráter prematuro das grandes sínteses
meta-históricas sobre os grandes problemas, instituições, etc., que
o historiador estuda. Prefere-se, portanto, a colocação em profun-
didade - em termos de comparação - de um certo número de
questões precisas, bem delimitadas. O referido autor não parece
exagerar quando afirma que a história comparada, definida desle
modo, atenta para as peculiaridades estruturais, representa o mais
clcvaJo nível, quiçá, a que é possível presentemente fazer a síntese
h/Yf, >rica sem sacrificar as exigências acadêmicas sobre o proce'> l'1
de pesquisa e sem cair na superficialidade ou na sistematização
ab~trata. ~ 0

Cumpre reconhecer, entretanto, que o método comparativo


tem no contexto dos estudos históricos, uma insuficiente elabora-

~O Barraclough, op. cit ., pp. 268-269, 279-281.

418
419
CAP1TULO IX

~i: O PROBLEMA DA SíNTESE NA HISTÓRIA


1·:1

A. Colocação da questão

Quando falamos em "síntese histórica" devemos começar pre-


cisando bem do que se trata, pois a expressão pode referir-se a
problemáticas bem distintas umas das outras:
- Em primeiro lugar a dimensão do universo da análise, o
nível em que o pesquisador deve situar-se: uma região? um Estado?
um grupo de Estados? todo o mundo? Como tais níveis se relacio-
nam?
- Em segundo lugar a colocação (implícita ou explícita) da
questão de como funcionam e mudam as sociedades humanas e,

421
que o marco nacional ocultava, freqüentemente, arritmias e con-
portanto, a tentativa de descobrir de que modo e econom1co, o trastes marcantes entre áreas de um mesmo país _ e também
os que ultr~?~ssani _o. "nacional" n? sentido das grand;s "zonas':
social, o político, o ideológico atuam e interagem na estrutura
social global. ( Su~este asiatico,. Afnca negra, paises islâmicos, etc.) definidas,
- Em terceiro lugar a questão da integração do conheci- se~mdai:nente, :nms em função de interesses políticos bem visíveis
mento, devido à forte tendência para a especialização e à conse- e. 1med1atos ~.~s vezes locais,_ ~ ,s~bret~do, os das grandes potên-
qüente multiplicação de disciplinas históricias que evoluem, fre- cias n~oc,ol.onrn1s) .do que de cntenos c1enhficos, ou no sentido de
qüentemente, de modo paralelo e serri' manter bastante contato um~ .historia propnamente mundial. A ênfase na história econômica
entre elas. E, devido à expansão espacial e ao caráter maciço da ~enfJcad~ ~urante a~ últimas .décadas, deve ter contribuído par~
produção de obras históricas que dificultam o manter-se informado tal ampliaçao de horizontes pois, como afirma Tawney: 1
do que está sendo feito (inclusive em campos bem delimitados)
e, de algum modo, integrar tais conhecimentos. "O historiador economista deve encerrar-se menos do que
- Finalmente, ··smtese" é palavra com amplas conotações ló~i­ quak!ue.r m~tro em um marco nacional, pois a civilização
cas, que transcendem o domínio dos estudos histórico<> e têm e.conom1ca e. uma criação internacional. Em lugar de histó-
a ver com a epistemologia em geral: seja no sentido de uma das n~s ec~nôm1cas nacionais, com referência à história econô-
etapas lógicas de -qualquer processo de pesquisa (à "análise" suce- mica universal precisamos de um estudo comparativo dos movi-
de-se a "síntese") seja como resultado da resolução de uma con- mentos e problemas comuns a vários países."
tradição dialética (tese/antítese/síntese).
Porém, como tratar a história além do marco tradicional do
Este último aspecto da questão será tratado adiante, neste
Estado-nação? Adiante nos ocuparemos da resposta marxista a tal
capítulo, e por isto o deixaremos de lado por ora. Quanto ao dile-
pergunta e, também, da tendência "regionalista" da escola francesa
ma especialização/ complementaridade, no referente aos distintos ra-
contemporânea. O que nos interessa, agora, é a questão da "história
mos -da investigação histórica, cremos já ter tratado suficien~emente
u?~versal" o_u "mu~dial". Quanto a sua possibilidade ou impossi-
do te:na em alguns dos capítulos anteriores.
b1hdade, hoJe coexistem as mais diversas posições: o evolucionis-
A dimensão do universo da análise evoluiu em função do mo organicista herdado do século XIX, ou o evolucionismo multi-
contexto histórico dos séculos XIX e XX C-- e da concepção do- line~r dos disdpulos de Julian Steward; o ceticismo total de Popper;
minante a respeito do objeto da história. A crença no marco na- a atitude "comparativista"; o "relativismo cultural" dos estrutura-
cional como limite "natural" do objeto de estudo do historiador listas, etc.; 2 Podemos perceber, de um moclo ou de outro duas
vinculou-se ao nacionalismo do século passado e à focalização pre- tendências. predominantes na atualidade, a propósito: 1) a ~rença
dominantemente político-institucional então prevalente, a partir de- na necessidade de uma visão universal da história que transcenda
la a história surgindo realmente, como a história dos Estados e de as fronteiras nacionais e continentais e abranja o mundo todo no
suas relações. Por outro lado, o eurocentrismo relacionou-se com a campo de estudos; 2) o repúdio às interpretações globais "meta-
expansão colonial e com o predomínio europeu no mundo. A des- históricas", de base filosófica _(mesmo quando fundamentadas em
colonização, o desenvolvimento dos estudos históricos fora da u?1~ ~plicação - não científica, além de tudo - da comparação
Europa, a perda de terreno no cenário mundial por esta última, h1stonca, como no caso de Spengler ou de Toynbee). "
o caráter cada veL mu1s integrado e universal da vida contemporânea
e. finalmente, a expansão do campo de interesses dos historiadores
para além do político-institucional são fatores que colocam - em 1 R. H. Tawncy, "Thc Study of Economic History" em Economica, 1933,
pp. 1-21.
no~sos dias - a necessidade_ de superar um quadro estritamente 2 Cf. G. Barraclough, op _ cit , PP- 241-258: "Thc Prospects of World
nacional e um horizonte quase só europeu dos estudos histÓricos. History" _
Multiplicam-se os estudos regionais - pois a experiência mostrou 3 lbidem.

423
422
~··
1

das Civilizações" (dirigida por Maurice Crouzet), à pesar de apre-


Devemos evitar, entretanto~ a confusão entre duas coisas: por
sentar uma coriccpção de conjunto mais coerente, não esta
um lado, a ruptura do eurocentrismo · e a ampliação dos horizon-
tes e o conseqüente interesse pelas culturas dantes menosprezadas; de todo imune aos defeitos assinalados; além disto, há grandes
por outro lado, a afirmação dogmática da unilinearidade da his• diferenças de nível entre seus vários tomos. A aludida colecão
tória humana. A gestação da história do mundo como uma história introduz, aqui., a noção de civilização, por intermédio da qual fa,re-
globalizante ou integrada é algo que começou com a progressiva mos a transição à problemática da síntese, ho segundo sentido
formação de um mercado mundial dominado pela Europa, a partir citado no início (isto é, a questão de como explicar a organiza-
do século XV; mas ainda em nossos dias, apesar de ter avançado ção dos diferentes níveis de estrutura social).
mais do que nunca (e a ritmo cada vez mais acelerado) nos últi- Que é uma civilização?
mos duzentos anos este processo não pode ser considerado com- Nào faremos a história do termo mas, mesmo hoje, suas
pleto. Antes da entrada das zonas não européias na esfera da aplic2ções variam. Cremos que existem dois modos principais de
chamada "civilização ocidental" não teria sentido escrever uma definir civilização. Primeiro, o que vem da antropologia, desde
"história comum" ou unilinear do mundo: a única forma de fazê-lo Morgan, e da arqueologia: civilização define-se., neste caso, por
seria postulando, a priori, uma filosofia da história o que, como oposição a outras etapas, consideradas logicamente anteriores, da
é óbvio, foge ao terreno da pesquisa científica. A hipótese "difu- evolução humana (hoje é evitado, por boas razões, o emprego
sionista" é só uma variante a mais das explicações idealistas e dos termos "selvageria" e "barbárie", que V. Gordon Childe ainda
filosóficas e está muito desacreditada, atualmente. As afirmativas usava para designar tais etapas anteriores). A linha divisória sepa-
precedentes não significam, é claro, que seja esforço inútil buscar ra, então, as sociedades de coletores, caçadores e agricultores inci-
compreender os vínculos, contatos e influências entre diferentes pientes das sociedades "civilizadas" caracterizadas pela urbaniza-
socied_ades, ou aplicar o método comparativo para evidenciar o ção, por um Estado organizado, por uma cultura material e não
que futuve de comum ou de dissemelhante, por exemplo, entre material 6ofisticada, .pelo conhecimento · da escrita., etc. Assim
os vários focos do conjunto de transformações que denominamos considerada, a noção tem limitadas virtudes heurísticas, pois além
de '"revolução neolítica". Ao contrário, tais procedimentos consti- de diferenciá-las de formas menos complicadas de organização so-
tuem, de fato, alguns dos aspectos essenciais da presente preocupa- cial não progredimos muito no campo da explicação histórica quan-
ção com uma síntese histórica global. 4 do classificamos em uma categoria única sociedades tão distintas
Examinadas em função do exposto, as numerosas "grandes como, por exemplo, o Egito faraônico, a Europa ocidental medie-
coleções" de história mundial elaboradas em nosso século - val e, digamos, os Estados Unidos do presente. Mas há outro meio
"L'évolution de l'humanité"; "Peuples et civilizations"; "Clio"; "Nou- de definir e de usar o conceito civilizaç.ão. ·
velle Clio"; "História Universal Siglo XXI"; diversas coleções his- Segundo Antoine Pelletier, a idéia mais corrente, a propósito,
tóricas de Cambridge, e tantas outras - invariavelmente revelam-se entre os historiadores contém os elementos essenciais seguintes:
deficientes, apesar de sua utilidade (muito variável, note-se): às 1) trüta-se de um conjunto de idéias, instituições, técnicas, formas
vezes por sua dose elevada de eurocentrismo ou de "ocidentalis- da vida material e das relações sociais, etc., em suma, do conjunto
mo", em todos os casos por serem justaposições de textos hetero- da cultura (material e não material) no sentido antropológico do
gêneos de diversos autores cujos pontos de vista interpretativos termo, em uma configuração específica; 2) expressa a noção de
podem chegar a ser bem afastados ou antagônicos, e de justaposi- patrimônio cultural coletivo dos memhros da civilização conside-
ções de histórias nacionais ou de grandes zonas, sem uma real rada; 3') supõe a permanência, a longa ou'ra~áo, as continuidades
atitude comparativa ou visão global. A própria "Historia General estruturais; e 4) inscreve-se no espaço, em uma área característica
que, em geral, abrange várias formações sociais. É comum, al~m
disto, a visão de cada "civilização" assim definida como uma
4 Cf. infra a parte C deste Capítulo; Barraclough, Ibidem. enteléquia, uma entidade metafísica personalizada que atravessa,

424 425
impüviJa, os séculos, sem perder suas características fundamentais. com a de Dilihey e Croce - 2mpliou-se a partir do decênio de
E embora muitos historiadores neguem haver setores mais impor- 1920. Sua forma mais prestigiosa foi o denominado "historicismo
tantes do que outros no edifício da "civilização" (como na estru- alemão" ( Simmel, Dilthey, depois Troeltsch, Mcineck, etc.) B pro-
tura social) - o que a transforma em pura justaposição de elemen- vável que o único aspecto útil do historicismo tenha· sido o de
tos - na prática predomina uma concepção basicamente idealista: chamar a atenção para as falácias do positivismo, ocultas sob es-
a civilização define-se, em última instância, por~ uma "psicologia pessa capa de otimismo beato e de suficiência; entretanto, em
coktiva", ou "mentalidade", ou "estado de espírito'', etc. A conti- conjunto o resultado foi uma influência negativa e esterilizadora
nuicbde das peculiaridades históricas dos "fatos de civilização" e cada vez mais forte na medida em que a I Guerra, as dificul-
cclcca um problema real e de grande importância; mas a própria dades do pós-guerra e suas seqüelas (como a proliferação de dita-
noçüo de civilização, em si, como é definida e manejada correnk- duras fascistas, e de outros tipos, e o crescente declínio da Europa
mcnte. não permite mais do que uma descrição empírica da histó- no cenário mundial), mais a depressão consecutiva da 1929 iam
ria. Nüo obstante, este modo de focalizar a questão, embora possa destruindo pouco a pouco as certezas, . os princípios e a visão do
rnntinuar predominante. não é absoluto, como no p1ssado: sob a mundo vindas do século passado. Sua característica principal era
influ~111.:ia do marxismo e da voga crescente da história econômica, o subjetivismo relativista: como crer na possibilidade de uma his-
yários dos melhores historiadores ocidentais concordarão com tória objetiva e científica se o historiador é incapaz de desvincular-se
George Duby sobre à existência de setores do corpo sociql que são de seus valores, de sua afetividade, ou seja, de sua· subjetividade?
mais determinantes do que outros. 5 · Enquanto as ciências naturais constituem o domínio das coisas
A recusa da possibilidade de ir além de uma descrição, de seguras, recorrentes, a história mqve-se no nível do que é único,
uma justaposição de setores, ou de fatores, é uma pesada herança mutante, fugidio. Como a natureza cpõe-se ao "espírito" também
da história tradicional, que a evolução recente dos estudos histó- o "mundo da natureza" e o "mundo da história" são opostos; em
ricos vai, pouco a pouco, eliminando. conseqüência, as abstrações e classificações a que se dedicam as
Antes da 11 Guerra, o mundo da historiografia apresentava-se ciências naturais - seu ccráter "nomotético" - são de aplicação
chiminado por certo número de princípios de aceitação quase .uni- impossível aos estudos históricos, cujo caráter é "idiográfico" (quer
\'crsal e consagrados por muitos manuais: assim fixados, os aludi- dizer., baseado no particular)'. O historiador só pode aspirar a uma
dos princípios passavam, praticamente inalterados, de geração a "compreensão intuitiva" dos homens do passado.
t:c:a1,·üo d..: historiadores. Tais fundamentos tão amplamente admi- :t um tanto difícil de explicar como pôde dar-se o compro-
tiu(1s sustentavam-se., no entanto, sobre base bem frágil: a síntese misso, a síntese, entre duas tendências tão excludentes quanto o
contra natura de duas correntes herdadas do século XIX, o pc•si- positivismo e o idealismo. Por um lado, tai' síntese era mais uma
.ti, ismo e o idealismo. No primeiro capítulo deste manual ocupamo- justaposição e seu resultado extremamente incoerente do ponto
de vista episti:mológico: a _separação da pesquisa em duas fases;
no-. ua história positivista, de modo que ficamos dispensados de
admitindo-se as regras positivistas quando se tratava de recolher e
n:tomar o tema.
de criticar o material documentário; e a ''intuição" e o quadro
Como o positivismo, a concepção idealista da história, com individual de valores do historiador mànifestando-se na fase da
sua uistinção estrita entre "história" e "ciência" e com sua insistên- interpretação (elaboração da síntese, apresentação da pesquisa por
cia na '·intuição" como forma privilegiada de entendimento do escrito). Por outr'.) lado, nmb:1s as correntes coincidiam em muitos
Pª''ado, é uma hernnça do século XIX ..Porém, sua influência - aspectos, no· referente a seus resultados práíicos, concretos: preo-
cupação exag..:rada com a problemática da causalidade e da objetivi-
dade; culto do pormenor e do individual: enfim. crença nu caráter
5 Antuine Pelleti.:r, "La nution de civilisation" em A. Pelktier e J.-J.
Guulut, Matérialisme historique et histoire des civiilsations, Paris, Editions gratuito dos estudos históricos (o "passado pelo passado", como fina-
Su,·1.iks, 1969, pp. 9-56. lidade única destes e~tudos). Podemos observar, tambem, diferentes

426 427
''doses" na mistura, conforme os países - predomínio absoluto do subordinação acrítica e servil da história às c1encias sociais e,
historicismo na Alemanha., maior peso do positivismo na França, conseqüentemente, a fragmentação do campo da ciência histórica
etc. Seja como for, as regras meto~ológicas do positivismo - em "especialidades" totalmente autônomas. A tentação do empi-
cristalizadas no manual de Langlois e Seignobos (1898) - e o rismo, em sua nova versão "quantitativista", e a do positivismo
relativismo histórico sempre estiveram presentes; o último contou lógico fazem-se sentir até no âmago da escola francesa que nos
com nomes de prestígio: Collingwood, Henri-Iréné Marrou, Ray- dera Labrousse com seu repúdio radical aos cortes arbitrários entre
moncl Aron; e serviu de base a Ortega y Gasset e a Maraval!., che- os setores da pesquisa histórica. Quando um dos discípulos de
gando por seu intermédio aos ambientes universitários latino-ameri- Labrousse - François Furet - levanta dúvidas quan\o à possi-
canos. n bilidade de uma síntese histórica global na atualidade e relega a refe-
O positivismo repelia, em nome da flbjetiviclade, a hierarqui- rida síntese para um longínquo "horizonte", aacamente 'como os
nção dos fatos históricos: o caráter exautivo seria a condição do co- positivistas o tinham feito em outro contexto, no princípio do século,
nhecimento objetivo; a explicação, neste caso, mais do que uma sín- vemos claramente que a batalha pela síntese histórica ainda não
tese verdadeira tornava-se um catálogo, uma descrição empírica. Ade- está ganha. 8
mais, a preocupação obsessiva com os aspectos político-institucio-
nais e com o mundo das idéias, característica dos historiadores
tradicionais, impediam uma visão realmente global do funciona-
mento das sociedades e de sua evolução. A posição idealista elo
historicismo, sua negação da possibilidade de estabelecer leis, seu
relativismo cujo n.:sultado é rejeitar a intersubjetividade sem a qual
nüo há ciência possível, são fatores que se contrapunham a qual-
quer tentativa de síntese explicativa com pretensões científicas. Afi- B. Alguns problemas de método e de epistemologia 9
nal, positivismo e idealismo historicista coincidiam, como vimos,
nn culto do pormenor e dà monografia: a síntese era adiada inde-
finidamente; considerava-se que viria no futuro, automaticamente,
pela própria acumulação de conhecimentos particulares e precisos.
Vimos já (Capítulo I) que é possível tomar a ·ctata da funda-
ção elos Annales (1929) como símbolo do começo da evolução A pesquisa cientifica é, antes de mais. nada, uma busca de
recente que, muito acdaada desde a II Guerra, destroçou progressi- respostas a certos problemas. Obviamente, ressalvada a redundân-
vamente as posições da história tradicional, por sua vez marcada cia, ·a pesquisa científica só pode resolver problemas científicos,
pelo positivismo e pelo idealismo. A aludida evolução e a resul- isto é, questões colocadas com base teórica que possam ser submeti-
tante ampliação do horizonte abriram caminho à possibilidade de das a algum tipo de prova· ou verificação. Os problemas científicos
'cn!cideiras sínteses explicativas: numerosas teses e livros recentes o podem ser de dois tipos básicos: 1) problemas substantivos, ou
,krnontram. 7 Porém, mesmo na atualidade, a síntese históri.ca vista questões relativas a fenômenos reais; e 2) problemas de estratégia
como explicação global do social está ameaçada; desta vez pela
influência ela escola norte-americana contemporânea, na qual mais
do que uma utilização do instrumental das ciências sociais no 8 François Furd, "L'histoirc quantitativc et la construction du fait histo-
trabalho histórico (em marcos já definidos por este) dá-se uma rique", em Amwles E. S. C., jan~irc-fe\ereiro de 1971, pp. 63-75 (espe-
Lialmente )). 72). ·
9 Para a reJ;;ção deste parágrafo usamos amplamente a obra de Mário
11Cf Barraclough, op ct, pp. 1-25. Bunge, La investigación científica, Su estrategia y sua .j.ilosofia, trad. de-
7 Cf infru a parte D Jcste Capítulo. M Sacrist:rn, Ba!-cclon::i, Arid, 1969.

428 429
ou processo, que se refiram a nossos modos de conhecimento .e c1encia. Nos primeiros estágios - e a maioria das c1encias sociais
pesquisa. Naturalmente, tal distinção dos problemas científicos é constituem bom exemplo disto - muitas hipóteses são generali-
apenas analítica. Em uma pesquisa concreta colocar-se-ão os dois zações, confirmadas pôr uma série de fatos particulares mas não
tipos. correspondentes, ainda, ao requisito da dedutibilidade.
A análise é um dos requisitos básicos da colocação de proble- É preciso distinguir entre teoria e modelo. Entende-se por
mas na pesquisa científica. Com a mesma palavra designam-se, modelo uma "representação idealizada de uma classe dp objetos
çomumente, várias operações lógicas: reais". 11 Embora muitas vezes identifiquem-se teoria e modelo, con-
vém .esclarecer que as teorias não são modelos, apenas incluem
a identifiooção dos diferentes elementos ou componentes medeios. A teoria não é a representação esquemática da realidade,
de um ta do (às vezes chamada de análise molecular ou no srntido do modelo. E, mais até, um modelo pode ser explicado
microanálise); por teorias diferentes. O modelo do mercado de concorrência per-
a identificação das relações entre diferentes elementos ou feita define-se pelas seguintes características:
componentes (por vezes chamada de análise funcional ou
relacional) ;
as empresas prÓduzem um l:Íem homogêneo, não havendo
a formulação de uma explicação (por vezes denominada
vantagens ou desvantagens vi11culadas ao fato de vender
de análise global) que implica também uma síntese, isto
a um consumidor em particular;
é, tomar a situar o objeto analisado no conjunto maior
que permite explicá-lo. há um número suficiente grande de vendedores e de con-
sumidores, de modo que as transações individuais são pe-
A análise requererá, portanto, a referência a uma teoria e, quenas em comparação com o total das transações;
por isto, muitas vezes falaremos em análise teórica. empresas e consumidores têm informação perfeita sobre
A colocação de problemas compreende, em geral, três momen- o preço dominante e tiram proveito de cada oportunidade
tos principais: 1) a descrição; 2) a análise (no sentido de análise para aumentar, respectivamente, os lucros e a utilidade;
molecular e funcional); 3) a interpretação (no sentido de análise a entrada e saída do mercado é livre para ambos. 12
global), que procura formular alguma hispótese explicativa do
fenômeno estudado. A formação dos preços, neste modelo de mercado, pode ser
Como o essencial na colocação de um problema científico é explicada em termos da teoria da utilidade marginal ou da teoria do
a referência a uma teoria, convirá definir o referido conceito. En- valor trabalho. Convém observar que mllitas vezes fala-se em
tende-se por teoria "um conjunto de hipóteses estruturado pela modelo teórico. Neste caso pode-se querer dizer: modelo que inclui
relação de 'inferência ou de dedutibilidade". 10 As hipóteses de uma uma explicação referida a uma teoria, ou modelo que é uma repre-
teoria científica devem possuir dois requisitos básicos: 1) têm de sentação esquemática de fenômenos ou processos reais. No se-
ser confirmadas ou verificadas; 2) têm de ser dedutíveis, isto é, gundo caso trata-se de uma redundância semântica que deveria ser
integrar um sistema dedutivo. Por isto afirma-se, correntemente, abandonada.
que o método da ciência é hipotético-dedutivo. Uma teoria científica é, por definição, incompleta, aproximada
Cumpre observarmos que a existência de teorias depende da e relativa. Estas características podem ser resumidas, de modo mais
acumulação de conhecimentos, do grau de desenvolvimento de uma simples, dizendo-se que a ciência não busca: nem pode proporcio-

lú Julian Galtung, Theory and Metlwds of Social Research, Londres, Allen 11 M. Bunge, op. cit., p. 420.
"' ll11win, 1967, p 451. (Há tradução para o espanhol: Buenos Aires, 12 J. M. Henderson e R. E. Quandt, Teoría microeconómica, trad. de
Ll DLIJA) J. R. Lasucí1, Barcelona, Aricl, 1962, 'p. 100.

430 431
nar, conhecimentos absolutos e definitivos. Por outro lado, a ceses pode integrar-se em um modelo mais geral: atendência dos
epistemologia é de pouca utilidade na construção de teorias, em preço~ europeus, et~. Cumpre sublinhar, então, que qualquer hipó-
se tratando de uma reflexão post facto. Por isto, "não há técnicas tese e uma abstraçao, uma construção mental, que se verifica ou
pré-estabelecidas e prontas para a construção de teorias: o teórico não, com dados ou evidência empírica, porém gue de modo al~um
pode usar quaisquer meios conceituais, sempre que os claramente pode ser identificada com eles ..
errôneos não se apresentem no produto final ou, ao menos, pos- Se nma hipótese, além dos requisitos enunciados constitui
sam ser eliminados dele". 13 parte ~e uma, t~oria éient~fica já submetida a algum gra~ de com-
A formalização, isto é, a reconstrução lógica de uma teoria, P'.º~açao em~m~a {ou fo1 deduzida de uma) poder-se-á falar em
usando uma linguagem não verbal e explicitando os pressupostos, h~pot,e~e explicativa ou em lei científica. O que permite à pesquisa
axiomas, fórmulas primitivas e regras, pode chegar a ser feita ou c1en~1fJca transcender a mera descrição dos objetos estudados e
não, mas a história da ciência mostra que ela ocupa um lugar explicar seu comportamento é, justamente, o relacionar os referi-
bem· reduzido na prática científica e que pouco interessa aos cientis- dos comp?rtamentos a um conjunto de condições antecedentes e
tas. Entretanto, convém observar que entre a formulação verbal e a um con1unto de leis gerais. rn
a formulação matemática há toda uma gama de situações inter- , .? .debate. s.obre a possibilidade de aplicar o conceito de lei
mediárias. Sendo raro que as teorias científicas logrem uma for- as c1encias sociais tem dois aspectos básicos:
malização matemática completa, quase todas incluem certo grau de - implica decidir se os comportamentos humanos são suscetí-
formalização. veis ~; ~studo cie~tífico.' · com o emprego da lógica da. explicação
Nas ciências sociais, a construção de teorias esbarra em difi- das c1encias naturais, pois negada a possibilidade de estabelecerem-
culdades de índoles diversas. Uma das principais é que objetos se !~is gerais estará rejeitada, automaticamente, a possibilidade de
de estudo como a estrutura social são, na verdade, sistemas inde- explicação científica;
finidos - no sentido de seus componentes nem sempre poderem - pode-se admitir a existência de leis em algumas ciências
ser identificados e delimitados de modo preciso e cabal (o número humanas, como a sociologia ou a economia, mas negá-lo no caso da
de componentes é, assim, indefinido). 14 história.
Voltando à definição de teoria, será necessário esclarecer o O primeiro aspecto deu margem a posições como a de que
conceito de hipótese. Entende-se por hipótese um enunciado ou as ciências sociais são "ciências do espírito", qualitativamente dife-
proposição que reuna os seguintes requisitos: 1) é corroborável r~ntes das ciências_ naturais - portanto, usando metodologia espe-
ou verificável, empiricamente; 2) é geral, ao aplicar-se a um con- cial: a compreensao ( Verstehen) e não a explicação. Tal posição
junto de observações. A hipótese não se confunde com um enun- epistemológica, em voga no início do sécúlo. hoit" e~tá superada.
A compreensão não constitui método algum e os argumentos
ciado de conteúdo empírico pois, além ·de verificável, deve ser
sobre a impossibilidade de aplicar o método científico a fatos
geral. Por exemplo, uma hipótese científica é a seguinte: a ten-
sacias são insustentáveis. 10
dência dos preços, na França do século XVIII, é de alta secular.
Para nós, tem mais interesse o segundo aspecto. A unicidade
Este enunciado geral só pode ser verificado mediante uma série de
e a irrepetibilidade dos acontecimentos históricos é, sem dúvida in-
enunciados particulares de conteúdo empírico: o preço do trigo em
tal ou qual cidade, o preço da carne nesta ou naquela região,
etc. Por sua vez, a hipótese sobre o movimento dos preços fran- 15 C. Hempel e P. Dppenheim, "The Logic. of Ex,planation", em Philoso~
phy of Science, 15, 1948, pp, 135-175. · •
16, Cf. T. Abel, "The Operation Called "Verstehen", em The American
Jo.urn~l of Sociology, LIV, 3, 1946; Reproduzido em I. L. Horowitz (ed. >.
13 Bunge, op. cit., p. 486.
14 Cf. Raymond Boudon, A quoi sert la notion de "structure"? - Paris. fl_zstona y elementos de la sociología dei conocimiento, tomo 1, Buenos
Aires, EUDEBA, 1964; Hempel e Oppenheim, artigo cit. ;_M, Bunge, Causa-
Gallimard, 1968, p. 99.
l1dad, Buenos Aires, EUDEBA, 1961, pp. 267-278.

432
433
Outro problema de muita importancia é a exi.gência de com-
questionável - corno falar, então, de leis elo. que não se repete, provação das teorias e hipóteses. A verificação científica não só
do que supostamente não apresenta qualquer regularidade? Se a deverá ter bases empíricas mas, ainda, ser intersubjetiva. Isto é,
história for concebida como uma sucessão de acontecimentos, es- a verificação deve poder' ser feita por quaÍquer outro pesquisador
pecialmente políticos e militares, será clara a impossibilidade de que, naturalmente, reproduza a experiência ou prova realizada. No
formular leis; mas, concebida como uma história das estruturas., caso ela história isto torna desejável a publicação integral das fon-
das "sociedades em movimento", poderão ser estabelecidas leis tes usadas.
desde que. como restrição única, sua validade fique limitada a um
universo especial e temporal definido. As leis científicas referein- Nas ciências sociais fala-se, freqi.ientemente, de replicarão. Com
se a propriedades ou características de fenômenos ou processos, e isto alude-se a um procedimento destinado a possibilitar a verifi-
de modo algum aos fenômenos e processos em si. Os processos cação dos enunciados gerais: corroborado um enunciado para um
fisiológicos de um organismo humano dado, por exemplo, são conjunto de unidades de análise se tratará de repetir a prova em
estritamente tão irrepetíveis quanto qualquer acontecimento histó- um conjunto diferente; ou, com as mesmas unidades de análise,
rico. Cada crise de ancien régime, para tornarmos à história, é se tratará de repetir a verificação do enunciado usando indicado-
irrepetível e única, porém manifesta uma série de aspectos comuns res diferentes. Os dois casos são comuns na história econômica.
a todas as crises de ancien régime. O que permite o estabelecimento Se estudamos o movimento de preços em um período e região
de proposições legais acerca das mesmas é, justamente, a existên- determinados, será indispensável compará-lo - tanto no espaço
cia desta série de características, ou traços, comuns. A lei científica, quanto no tempo. Por outro lado, se usarmos os preços como indi-
conseqi.ientemente, aplica-se a propriedades ou a caracterí~Ücas de cadores da conjuntura econômica geral, será necessário considerar
um conjunto ele fenômenos e não aos próprios fenômenos. preços de diferentes produtos, ou seja, usar diferentes indicadores.
Nas ci0ncias sociais - e especialmente na história - a lei Evidentemente a réplica só é possível, na história, mediante o em-
será uma proposição de tipo estatístico, isto é, um enunciado geral prego do método comparativo. Como foi explicado nos Capítulos
aplicável a un1 grande conjunto, mas não com caráter de necessi- li e Vlll, só a comparação permite a aproximação ao modelo
dade, apenas no sentido de uma "probabilidade majoritária". 11 lógico da experiência, recurso típico de verificação nas ciências na-
Por 011tro lado, há na história enunciados legais de níveis turais. Em conseqi.iência, a única possibilidade de verificação das
hipóteses explicativas mais gerais na história é através do método
distintos de generalidade, conforme a extensão da classe de objetos
comparativo. ·
a que se apliquem - e existem, também, postulados ou axiomas,
quer dizer, fórmulas não demonstradas que servem para a dedu- O problema básico da verificação em história é, sem dúvida,
ção de outros enunciados que, estes sim, são convalidados d.e a existência ou não de uma documentação suficiente. O caráter
algum modo pela experiência. Tais postulados ou axiomas . s~o, dos testemunhos conservados decide, em todos os casos, o tipo de
portanto, pressupostos, não demonstrados mas justificados em fun- verificação possível. Existindo lacunas, o perigo imediato é a ten-
ção da importância dos enunciados deduzidos a partir deles. Exem,- tação da extrapolação, isto é., da gerieralização a partir de um
plo clássico de axioma assim é o princípio marxista· da determi- número reduzido de documentos, ou de uma documentação inade-
nação. "'em última instância'', da base econômica sobre a super- (jUada ao que se pretende provar. Exemplos. clássicos disto são as
estrutura. estimativas da esperança de vida no mundo romano antigo, extra-
poladas a partir das inscrições funerárias. Para provar a validez
17 E. Labrousse, Las eslrncturas y los Jwmbres, cit., p. 102; cf. tam- do método, Louis Henry o aplicou a ·um cemitério de Lyon, na
bém Oskar Lange, Economía Po/ícica, t. 1, México, Fondo de Cultura JJrim:.:ira metade do século XIX, controlando os-resultados .pela
Económica, 1966, capitulo Ill.

434 435
estatística demográfica comum (não disponível, evidentemente, no 1ibraria e ficaria carente de sentido. 21 A concepção de Max Weber
caso da antigüidade romana). A conclusão demonstrou o quanto sobre o conhecimento em história e sociologia tem seu lugar aí.
era arbitrário o processo: no caso lionês os resultados apresenta- A categoria fundamental é a de tipo ideal: uma construção con-
ram total contradição com os da estatística demográfica. 18
ceituai que destaca um ou vários aspectos de um conjunto de fe-
Outro problema importante, a propósito da verificação, é que nômenos, combinando os referidos traços de maneira a terem
em muitos casos inexiste um delimitação precisa do objeto de es- sentido. O tipo ideal implica, pois, uma ·simplificação e exag~ro
tudo. Já fizemos referência a isto, quando falamos dos sistemas fictícios de certos traços dos fenômenos em causa. Pois bem, o
indefinidos - e é claro que só uma certa especialização permite tipo ideal é a construção de um curso hipotético de acontecimentos
delimitar nitidamente os problemas e os instrumentos metodológi,.. (que pode ser geral e aplicar-se, então, a situações históricas muito
cos adequados a estudá-los. 19
variadas, ou pode ser restringido a uma situação histórica singular)
Cumpre-nos colocar, agora, a questão da causalidade. Desde que tem por finalidade a comparação com o curso efetivo dos
o racionalismo do século XVII a ciência é definida como o conhe- acontecimentos e possibilita, segundo Weber, chegar-se a conclusões
cimento preciso dos efeitos por suas causas: e a paixão dos histo- causais. Na medida em que haja diferenças entre curso ideal e
riadores positivistas era, após estabelecidos rigorosamente os "fa- curso efetivo, são atribuídas aos fatores abstraídos ou ausentes. ""
tos", conhecer suas causas. Percebe-se, facilmente, a semelhança entre a solução de Weber e
Porém, dada a complexidade da realidade social, insistia-se a proposta da New Economic History - de usar hipóteses alter-
logo na necessidade de considerar "todas as ordens de fatos susce- nativas (as Counter-factual hypothesis). Os problemas impl.ícitos
tíveis de terem influído uns sobre os outros". 2 º Este princípio meto- nesta proposição foram amplamente debatidos nos capítulos II e
dológico é, certamente, uma tautologia: em última instância, tudo VIII.
influi sobre tudo; e nada permitirá explicar nada se não se contar A reflexão epistemológica recente sobre o princípio da causa-
com uma teor.ia. Esta concepção da causalidade esconde a idéia lidade em ciência encaminha-se para a distinção entre causalidade
da história como resultado de uma multiplicidade de ações indivi- e determinação, enquadrando o princípio causal clássico como um
duais, entre as quais sobressaiam as das grandes personagens. Sua tipo a mais entre muitas determinações possíveis.2a O marxismo,
insuficiência conduziu, juntamente com a crítica do historicismo por sua vez, sustentou desde o século XIX uma determinação de
alemão, à eliminação da idéia da causalidade histórica, dissolvida tipo dialético nos aspectos básicos da vid.a social e econômica:
na completa negação de sua possibilidade levou, também, ao
recurso a explicações com fundamento nas filosofias da história:
o "Espírito", a "intuição", um modelo organicista, etc. Em certo:; 21 Cf. J. Huizinga, El concepto de historia y oiros ensayos, México, F.
C. E., 1940.
casos houve uma solução de compromisso: a causalidade na histó-
ria apresentando-se como a harmonia de um ramo de flores, tiran- 22 · Cf. Max Weber, Essais sur la théorie de la science, trad. de J. Freund,
Paris, Plon, 1965. A concepção sobre o tipo ideal está resumida em Max
do-se um fato ou acrescentando-se outro o conjunto se desequi- Weber, Economia y sociedari, tomo 1, México, F. e. E., 1964 (2a. ed.),
PP. 16-18, embora o texto não seja, às vezes, muito claro. Duas excelen-
tes exposições sistemáticas há em J. Freund, La sociología de Max Weber
18 Cf. p. Guillaume e J -P. Poussou, Démographie historique, Paris; Madrid, Ed. Península, 1968 (2.ª cd.), capítulo U; T. Parsons, La estruc~
Armand Colin, 1970, pp. 39-40 e 56-57. tura de la acción social, Madrid, Ed. Guaclarrama, 1968, pp. 739-753.
19 J. Piaget, Epistémologie des sciences de l'homme, Paris, Gallimard, . 23 M. Bunge apresenta uma lista, que afirma incompleta, das categorias.
1970, pp. 38-41. d,e determinação que surgem na ciência moderna: 1) autodeterminação
quantitativa: determinação do conseqüente pelo antecedente (trata-se de
20 H. I. Marrou, em L'histoire et ses méthodes, Paris, Gallimard, \961.
p. i530. um contínuo desenvolvimento de estados que só se distinguem entre si
cm seus aspectos quantitativos); 2) determinaçiío causal ou causação:
436
437
i
!

a busca de articulações entre us diferentes níveis do mundo


a relação base-s11perestrut1'ra e a relação forças produtiva!>'jrelações sóeio-cul tural;
de produção. Recentemente, de certo modo sob a influência do a-p1·oct1Gl dá ,e;xata. delimitaçâo de cada nível;
marxismo, surgiram colocáções destacando a necessidade de adotar'."
se, na história e nas ·ciências sociais em geral, o princípio que
a~ ~-e~es~idá~e ,~e. fm:i:n.ul-ar, leis com uma definição espa-
poderíamos denominar de causalidade estrutural. A idéia básica éon- c1af-te1,nl?W&L e*1t~; , ·
siste cm que haveria, na realidade social, níveis ou estruturas irre-
_a necessidade de construir ·a teoria como resultado de um
dutíveis que, além disto, ordenar-se-iam em certa hierarquia. A
determinação não é postulada, então, entre fatores isolados, mas
processo de pesquisa, o que implica .rejeitar posições como
a da New Economic His1ory t)tJca do marxismo stalinista
entre estruturas. ~ 4 Porém, mesmo dentro da idéia da causalid_ade (d. os capítulos II ~- 110, o).i - teorias gerais do compor-
estrutural há uma variedade de focalizações dive.rsas: as mais ou tamento humano1 ,c9mp ~' teoti& geral da ação de T. Par-
menos vinculadas ao estruturalismo (Lévi-StrâUSS, Godelier, Althus- s?11~, ou a praxe9logia ;de Ludwig von Mises.
ser, Goldmann, etc.); as que como George Duby, vêm de uní.a
profunda experiência de historiador; e a reunião de diferentes . • :1'.,íidô .i~~.o }1ostra,, c]arnm~nte, que no estado presente das
influências (marxismo, ··~scola dos A nnales", etc.). !!:; ~1encias so.cia1~a construção de. teorias está muito longe de chegar
Concluindo, e tornando ao problema da construção de teorias, a co.mplex1dad~ al~ançada nas ciências naturais. Nos pontos acima
poderíamos resumir o tema com os pontos seguintes: aludidos em :rmll1;e1ro e segundo lugares há uma série de hipóteses,
mas nada que se pareça a uma teoria; e os dois últimos são centros
de viva p~lêm~ca. !ais incapacidades influem no sentido da predição.
e da explicaçao nao serem, em ciências humanas sinônimos como
são nas c~ên~ias naturais. Destacando um exemplo' clássico, freqüen-
Lll"lcrmiuai;ãu do efeito pela causa dicient<.! (externa}, por ex.: dis!J;iran-
du-se um tiro contra um}l vidraça o vidro se quebrará; 3) i11teração:
causa~·;iu recíproca ou interdependência funcional; 4) tletenninação mecú- !emente_ e d1t? .que Marx se enganou em suas predições sobre a
11i,·a: do conséqüente pelo antecetknte, somando causas eficientes e revol_uçao socrnlista na -Inglaterra e nos. países industrializados. Se
açõt•s mútuas; S) determinação estatística: do resultado final pela açãc> cons1c~er~rmos os problemas ,mencionados, Quanto a articulaÇões e
co11ju111a d<:' entidades indep<:'ndentcs ou semi-independentes; 6). determi-
11a~·àu estrwurul ou wzalista: das partes pelo todo: 7) determi1zaçüo" te- a~ dehm1~ações. de níveis, &té certo pontó é noçmal o equívoco:
lt:ulôgica: dos meios pelos fins ou objetivos; 8) determinação dialética: a~nd~ nao e:1ste nen.h·uma teoria sobre as articulações entre os
da totalidade do processo pelo conflito interno e a eventual síntese se- m_ve1s, ?1ªs t.ao ,\.s.on:ient.e al_gumas indicações gerais - e predizer
guinte, de seus componentes esiencials contlraditórlos (Cf. M. Bunge; ac?ntec1mentos 1mpli~ana dispor de um~ teoria. Entre.tanto, 0 pró-
Cuusu/idad, EI principio de la ca11salidad en la cie11cia moderna, Buenos
prio Marx teve mais sucesso no predizer tendências do sistema
Aires, EUDEBA, 1965, 2.ª edição, pp. 29-31).
eco?ômico capitalista (quase inteiramente explicáveis neste nível):
24 Cf M. Godeliet, Raciu11alitlail e irracionalitlatl e11 la economia,- trad.
de N. Blanc, México, Siglo XXI, 1967, pp. 90-100.
a concentração dos meios de produção, a baixa da taxa de lucro
25 Lucien Goldmann considera que: a "cornpre<:'nsão" e a "explicação'" no c~pit_ª.~.sm~ de f!~~~e . conco~rência, etc. Outro fracasso exemplar
L·o11,1ilut•tn um mesmo proct!s~o de pesquisa, mas aplicado a planos da p~ed1çao e.º. Gt-.·.!bre bai;ometro de Harvard para a predição
dikr '-'lllcs do ubjetu: a compreensüo consisti! em apreender a estrutura do ciclo econom1co, que em 1929 possibilitava os cálculos mais
ima11c·111c do objeto, enquanto para explicá-lo cumpre inseri-lo na estrutu- otimistas sobre ·C?• futuro. jn;iediato do capitalismo norte-americano.
1;1 imcdialamcnte englobante; podem ser estabelecidas, portanto, seqüên-
Hoje a· predição formulada nas ciências sociais é, comumente, me-
cias suc<:'s~ivas de compret:nsão-cxplicação a níveis cad~1 vez mais amplos
(d. L. Goldmann, 1'.forxis111e et scie11ces J111111ai11es, Paris, Gallimard, 1970, nos ambiciosa, e111bora, também., menos significativa; mas, mesmo
Pª'-'i111). Quanto às \'inculações estabelecidas por Duby entre civilizaçã<> assim é mais coliseütânea com o estado do desenvolvimento das
mal' rial, poder e mentalidades coletivas, cf. a parte A do Capítulo VII teorias.
Lkslc" lll'í,llUal.
439
438
í
!

"Mesmo depois de descoberto o método, e segundo ele, a


C. A resposta marxista: o materialismo histórico crítica da Economia política poderia ser encetada de dois
modos: o histórico e o lógico. Como na história, assim como
em seu reflexo literário., as coisas desenvolvem-se, também
em grandes traços, do mais simples para· o mais cnmpiexo,
9 desenvolvimeuto histórico da literatura sobre Economia
l. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES política tornece um fio natural Lk orientação à crítica, pois
em termos gerais, as categorias econômicas surgiriam aqui na
mesma ordem que em seu desenvolvimento lógico. Esta forma
apresenta, aparentemente, a vantagem de uma clareza maior,
Antes de expormos sumariamente os princípios e idéias nuclea- pois nela é seguido o desenvolvimento real das coisas, m:is
res dos fundadores do marxismo sobre a história é conveniente na prática apenas se conseguiria, no melhor dos casos, popu-
examinarmos, no contexto, as circunstâncias de sua elaboração. larizá-la. A história desenvolve-se freqüentemente aos saltos
Conforme Marx o proclamou tantas vezes, e como o con- e em ziguezagues e assim deveria ser acompanhada em toda
junto de sua obra confirma, o objeto central dos estudos que em- a sua trajetória, com o que não apenas seriam recolhidos
preendeu sempre foi constituído pelo modo capitalista de produção, muitos materiais de pouca importância como se teria de rom-
a sociedade burguesa contemporânea, suas leis de evo:ução e su- per, muitas vezes, a ilação lógica. Ademais, a história da
peração. Este fato básico deve ser examinado pelo menos de dois Economia política não poderia ser escrita sem a da sociedade
pontos de vista: burguesa, com o que a tarefa seria interminável pois faltam
l) em primeiro lugar, considerando que no conjunto da obra todos os trabalhos preliminares. Portanto, o único método
de Marx e Engels (principalmente na do primeiro) as sociedades indicado era o lógico. Mas este não é, na realidade, outra
pré-capitalistas são algo secundário: surgem freqüentemente em coisa senão o método histórico, apenas despojado de sua
função do capitalismo (ou, melhor, em oposição a ele), oferecen- forma histórica e das contingências perturbadoras. ( ... )
do contrastes e il.ustrações que permitem compreender mais facil- "Vemos, pois, como com este método o desenvolvimento
mente a originalidade e o funcionamento do modo de produção lógico não se vê forçado, de modo algum, a mover-se no reino
capitalista; além disto, o interesse de Marx pelos modos de pro- do puramente abstrato. Ao contrário, precisa ser ilustrado
dução pré-capitalistas era seletivo, sua preocupação fundamental com exemplos históricos, manter-se em contato comt:rnte com
em a de esclarecer a gênese e a evolução de certos elementos e ca- a realidade, Por isto, estes exem'plos sãó apresentados em gran-
tegorias necessários ao eixo de sua atividade científica que era, de varied,;ide· .. "
como vimos, a elaboração da teoria do capitalismo;
2) em segundo lugar, cumpre considerar uma série de proble- Como nos mostra o trecho, a escolha do "modo lógico" de-
veu-se, entre outras razões, a que na época de Marx e Engels não
mas metodológicos de grande importância.
existiam elementos suficientes -para construir uma teoria completa
Concentremo-nos no segundo aspecto, o mais essencial. Em
artigo escrito de 1859 Engels versou a questão do método seguido dos modos de produçã-o pré-capitalistas (necessária caso se pre-
por Marx na Contribuição à crítica da economia política. Mostrou tendesse tratar historicamente a sociedade burguesa em sua gênese
o caráter primordial. da concepção materialista e dialética da histó- e evolução) : em um trabalho posterior Engels o afirma, ainda,
ria e da economia política e acrescentou: 2a expressamente. 2 i E isto não é tudo; o trechÓ reproduzido e muitas

26 Frede1-ico Engels, "La 'Contribución a la crítica de la economia polí.- 27 F. Engels, E/ Anti-Diilzrine. trnd. de J. V. Montenegro y Montcro,
tica. ele Carlos Marx", em Marx e Engels. Escritos económicos varios, Buenos Aires, Ed. Claridacl, 1970 (3.• ccl .. ) , p. 161: "A_çconomia nolítica
trnd. ele W. Roces, México, Ed. Grijalbo, 1966, pp. 188, 190. çoncebicla como ciência das condições e das formas em que as diversas

440 441
Podemos afirmar, então, que d economia política, tomada no
outras passagens de Marx e Engels colocam, também, uma série sentido de "ciência das condições e das formas em que as diversas
!
de tomadas de posição teórico-metodológicas muito importantes: sociedades humanas produziram, trocaram e repartiram os produtos
'
1 ) o anti-historicismo e o primado do raciocínio de tipo estrutu- de um modo correspondente" ( cf. o trecho reproduzido na nota
ral; 2) a condenação irremissível de qualquer "filosofia" e, espe- n<;J 27), tem precedência ou prioridade lógica sobre a história., já
cialmente, da "filosofia da história" em suas múltiplas variantes; que proporciona as próprias bases para que esta última possa exis-
3) um método que emprega a abstração como instrumento cien-tí-
tir como ciência. Pois bem, se para Engels a economia política,
fico, mediante a elaboração de "abstratos reais", constantemente assim entendida (isto é, incluindo a teoria dos modos de produ-
submetidos à prova dos fatos concretos. Examinemos cada um ção pré-capitalistas e a do capitalismo) estava cm sua é;:ioca -
destes pontos. como continua, de um modo ger. ·.;, na nossa - "ainda por ser fei-
Apesar da perturbação provocada nos ambientes marxistas ta", salvo no concernente à gênese e ev.o 1ção da "forma de pro-
convencionais pela afirmação de Maurice Godelier quanto à prio- dução capitalista", como pode servir de base ao estudo da histó-
ridade, em O Capital, do estudo das estruturas sobre o de sua ria? Isto é possível porque, na visão de Marx, a sociedade bur-
gênese e evqlução, 28 cremos tratar-se de uma constatação correta. guesa, como "a mais complexa e desenvolvida organização histó-
Evidentemente, um raciocínio anti-historicista não significa, absolu- rica da produção"., dá-nos a chave da explicação das formas de
tamente, um raciocínio anti-histórico: para o marxismo a estru- organização anteriores: o complexo e diversificado permite com-
tura, qualquer estrutura (vista como totalidade contraditória e, preender o simples, por ser a síntese dos elementos mais simples.
portanto, essencialmente dinâmica) é inseparável de sua gênese, Entretanto, de modo algum isto significa que as leis ,econômicas
evolução e superação. Porém, a "história" considerada de um capitalistas tenham valor universal e eterno: 30
ponto de vista ·empirista como mera sucessão linear de aconteci-
mentos, separada da teoria, ou a partir de uma concepção idealista "A sociedade burguesa é a mais complexa e desenvolvida orga-
nização histórica da produção. As categorias que expressam
ou filosófica., é insuficiente para permitir a percepção da estru-
tura: ~ 11 suas condições e a compreensão de sua organização permitem,
ao mesmo tempo, compreender a organização e as relações de
produção de todas as formas de sociedade passadas, sobre
··De fato, como a fórmula lógica do movimento, da sucessão, cujas ruínas e elementos ela foi edificada e cujos vestígios,
do tempo, poderia nos explicar, por si só, o organismo social ainda não superados, continua arrastando, enquanto meros
no qual todas as relações existem simultaneamente e se susteu~ indícios anteriores desenvolveram neh1 sua plena significa-
tam mutuamente?" ção, etc. A anatomia do homem é uma chave para a anatomia
do macaco. Ao contrário, os indícios das formas superiores
das espécies animais inferiores só podem ser compreendidos
sociedades produziram, trocaram e repartiram os produtos de um Ínodo
coITespondente, quer dizer, em toda sua extensão, ainda esti por. ser quando se conhece a forma superior. A economia burguesa
kit a. O que temos até o presente de ciência econômic;a se reduz, q~ase fornece, assim, a chave da economia antiga, etc. Porém, não
c-..clusivamente, à gênese e evolução da forma de produção capitalistª,,; certamente ao modo dos economistas, que eliminam todas as
28 CI M. Godelier, "Systeme, structure et contradiction dans 'Le Capi- diferenças históricas e vêem a forma burguesa em todas as
tal"' e "Logique dialetique et analyse des estructures. Réponse à Lucien
Se,,, .. , cm M Gotlelier, Horizon, trajets marxistes e11 anthrapalagie, Paris, formas de sociedade."
F l\laspero, 1973, pp. 187-255 (artigos publicados ·pela primeira vez, res-
P''cti,·amente, em 1966 e 1970).
29 K.irl Marx. M iseria de la filosofía, Buenos Aires, Ed. Signos, 1970, 30 Karl Marx. Elcmc11tos fw1da111e11ta/es para la crítica de la ecanomía
Jl 92; cf. também Carlos Marx, E/ Capital, trad. de W. Roces, México, política (Borrador) 1857-1858, rnl. I, trad. de J. Aricó, M . .Murmis e P.
FC E • 1966 (4.• •·d ), tomo III, pp. 304, 757. Scarón, México, Siglo XXI, 1971, p. 26.

442 443
T
i

Em suma, a explicação do passado depende da clara v1sao A tomada de posição contra as "filosofias da história" estava
da estruturação presente, a mais complexa de todas; esta última implícita, no texto mencionado inicialmente, em afirmativa de
tem, sem dúvida, pressupostos históricos, sua formação tem uma que -"o desenvolvimento lógico" não se move no "reino do pura-
história mas, tratando-se justamente de um todo orgânico integra- "mente abstrato"~ mas - ao contrário - deve amparar-se em
do, seus diversos elementos são interdependentes e co-presentes - "exemplos históricos" concretos e abundantes. Diferentemente das
por isto a análise da estrutura capitalista não pressupõe a exposi- "filosofias da história", que tentam encontrar fora (ou acima)
ção exaustiva da formação histórica de cada um de seus elementos, do próprio processo histórico as leis universais que o regem, o
embora pressuponha a consciência do caráter histórico (e portanto
materialismo histórico só reconhece as leis específicas de modos de
transitório) do modo de produção capitalista. 31·
p1odução historicamente dados, e critica nos economistas clássicos
Apesar de tudo, não devemos esquecer que Marx e Engels a tendência oposta. 88 Os textos mais claros, no concernente à
trataram de usar toda a documentação histórica de que puderam
superação da filosofia da história pelo marxismo são, talvez, um
dispor. E isto nos leva ao segundo ponto que indicamos acima.
trecho da Ideologia alemã (1845-1846) e a denominada "carta
A superação progressiva da filosofia pelo avanço da ciência atin-
ge, com o materialismo histórico, "o último -reduto" do idealismo a Mikailovsky" ( 1"877) H
isto é, a própria. história. A velha filosofia deve desaparecer com' Os fatos concretos constituem, em suma, a prova da validade
o desenvolvimento científico, ou melhor, deve limitar-se a sistema- das abstrações teóricas que, por sua vez, são apenas abstratos
tizar a lógica e a epistemologia, como Engels o afirma claramente: 32 reais, ou seja, uma formalização abstrata das relações reais consi-

"Em um ou outro caso [quer dizer, tanto no caso das ciências 33 Marx, Elementos esenciales .. . , pp. 5, 7; ver, também; Marx, El Capi-
naturais como no da história] tal materialismo, essencialmente tal, I, pp. XXII-XXIII.
dialético, não implica nenhuma filosofia sobreposta às demais 34 C. Marx e F. Engels, "Feuerbach. Oposición ·entre las concepciones
ciências. _Desde o momento em que se pede a cada ciência materialista e idealistan (I capítulo de la Ideologia a/emana), em C. Marx
que dê conta de sua posição no conjunto total das. coisas e F. Engels, Obras Escogidas en tres tomos (doravante OE III) t. l, p. 22
(Moscou, Editorial Progreso, 1973): "A filosofia independente perde, com
e do conhecimento das coisas, torna-se supérflua uma ciência a exposição da realidade, o meio em que pode existir. Em lugar dela
especial do conjunto; o que subsiste de toda a velha filosofia pode surgir, no máximo, um compêndio dos resultados mais gerais,
e conserva uma existência própria é a teoria do pensamento e abstraídos da consideração do desenvolvimento histórico dos homens.
suas leis - a lógica formal e a dialética - . Tudo o mais Tais abstrações em si, separadas da história real; carecem de todo valor.
Só podem servir para facilitar a ordenação do material histórico, para
resolve-se na ciência positiva da natureza e da história." indicar a sucessão de seus vários estratos. Mas não proporcionam, de·
modo algum, como a filosofia, receita ou padrão de acordo com que
possam ser organizadas as épocas históricas".
31. ldém, P; . 422: "Para analisar as leis da economia burguesa não é, Carta de Marx ao diretor do Otycestvenniye Zapiski, em C. Marx e F.
pois, necessano escrever a história real das relações de produção. Porém,
Engels, Epistolaria, México, Grijalbo, 1971, p. 57: "Isto é tudo. Mas não
a. cor~eta concepção e dedução das mesmas, como relações originadas
h1stoncamente, levam sempre a primeiras equações - como os números o é para meu crítico. Sente-se obrigado a metamorfosear meu esboço
empír~cos, pQr ~xemplo, nas ciências naturais - que indicam um passado
histórico da gênese do capitalismo no ocidente europeu em uma teoria
que fica por tras deste sistema. Tais indícios, juntamente com a acertada histórico.filosófica da marcha geral que o destino impõe a todo povo,
c~ncepção do presente, também proporcionam a chave para a compreen·
quaisquer que sejam as circunstâncias históricas em que esteja, para
sa~ . do passado; outro trabalho, que esperamos um dia realizar. Esta
que possa terminar chegando à forma de economia que lhe assegure, junto
anal~e correta leva, igualmente, a pontos nos quais, pré-figurando o com a maior expansão das potências produtivas do trabalho social. o
movu_nento nascente do futuro, insinua-se a abolição da forma atual das desenvolvimento mais completo do homem. Porém, peço a meu crítico
relaçoes de produção." que me dispense. (Honra-me e me envergonha, ao mesmo tempo, dema-
32 Engels, El Anti-Dühring, p. 33 (cf. também, p. 34). siadamente. )n

444 445
r
1

condições mediante as quais atuava sobre a natureza (objetos e


deradas mais importantes. 35 O método de trabalho de Marx con- ins:rumcntns de produção): ~'i
siste em uma espécie de oscilação permanente entre dois níveis:
a exposição teórica e abstrata só pode receber sua confirmação, "O que precisa de explicação, ou é resultado de um processo
seus argumentos, seus exemplos através da referência constante histórico, não é a unidade do homem vivente e atuante, por
a sociedades concretas, historicamente situadas no tempo e no um lado, com as condições inorgãnicas, naturais, de seu meta-
espaço. Além disto, há uma diferença de forma entre o método bolismo com a natureza pelo outro e, portanto, sua apropria-
de pesquisa - que deve consistir na apropriação, pelo pesquisa'." ção da natureza, mas a separaçiio entre estas conç!ições inor-
dor, da matéria de estudo em seus pormenores, suas formas de gânicas da existência humana e esta existência ativa, uma
desenvolvimento, suas vinculações - e o método de exposição separação que pela primeira vez é colocada plenamente na
que, ao fratar de apresentar o movimento real em seu conjunto, relação entre o trabalhador assalariado e o capital."
deve basear-se na procura das articulações e precedências lógicas
entre os elementos da estrutura. 86 Portanto, somente sob o capitalismo completa-se o processo
Outro aspecto que convém iiidicar aqui é a diferença estabe- histórico - iniciado, segundo Marx, com a aparição do pastoreio
lecida por Marx entre o "natural" e o "histórico" -·- e, de um associado à agricultura esporádica, enquanto os povos exclusiva-
modo mais geral, entre os modos de produção pré-capitalistas mente càçadores ficariam f ;ira do referido "processo de desenvol-
(desenvolvimentos locais e- limitados) e o capitalismo (vinculado vimento","' que promove a mencionada se'paraçào e, conseqüente-
à lenta constituição de uma história que se faz mundial; universal). mente, Ó advento do homem como indivíduo. Em outro trecho,
O texto que ilustra cabalmente esta oposição é o capítulo "Formas Marx afirma que o surgimento do novo estado de coisas., preparado
que preceden a la producción capitalista". 87 desde o século XVI, amadureceu a partir do século XVIII: 4~
Para Marx, "o desenvolvimento da formação econômica da
sociedade pode ser assemelhado à marcha da natureza e à sua "Nesta sociedade de livre cmn;Jetição cada indivíduo. surge
história".:::; Ademais, vários de seus textos, e dos de Engels, suge- como que desligado dos laços naturais, etc., que nas épocas
rem a existência simultânea de urna continuidade e de uma gra- históricas precedentes faziam dele uma parte integrante de
dual ruptura entre a história natural e a história humana. 89 O pro- um conglomerado 11umano dado e circunscrito."
cesso propriamente histórico seria o que "produz" historicamente
o indivíduo, ao separar pouco a pouco o homem de um conjunto Embora reconhecenao a existên.cia de diversos modos de pro-
de circunstâncias consideradas como "naturais": a integração em dução pré-capitalistas, .Marx vê neles uma sé·rie de traços comuns,
grupos mais amplos (família, tribo, comunidade) e a união às ao compará-los com o capitalismo. Por um lado, como se deduz
da última citação, a natureza "circunscrita" das comunidades huma-
nas pré-capitalis tas, o caráter local de seu desenvolvimento: a
1

35 Marx não confunde a abstração conceituai, necessária como instru-


mento de exploração, "com a finalidade real da pesquisa que é a explica-
"história universal" apenas começa a existir a partir da formação
ção do dc,•ir histórico" (Jean Bouvier, "L'apareil conceptuel dans l'histoi- de um mercado mundial, processo iniciado no século XVI, e que so-
rc économique contemporaine", na Revue Economique, janeiro ce 1965. mente se completou com o advento do capitalismo como modo de
p. 1, citando Pierre Vilar).
36 Cf., Marx, Elementos fundamentales .. . , pp. 20-30; El Capital, I, p.
XXIII. 40 Marx, Elementos fzmdame11Ja/cs .. . , p. 449.
37 Em Elementos fundamenta.les . ., pp·. 433-477. 41 Idem, p. 28 .. Naturalm:~nlc, é preciso ter em conta o estado dos
38 Marx, E/ Capital, 1, p. XV. Tornaremos ao sentido desta expressão. conhecimentos sobre as sociedacks sem classes à época em que Marx
39 Cf. Maurice Godclier, "Préface", cm Sur les sociétés .pré-capitali.stes escreveu (cf. Goddier, "Préf;;ice", cif.) . .
{textos sdecionados de Marx,· Engels e Lênin), Paris, Editions Sociales, 42 Marx, Idem, pp. 3; também pp. 4, 457.
1970, pp. 52-35. .

446 447
.....

pessoais, en1 uma espécie de comunidade", enquanto sob o capita-


produção mundialmente dominante, pois o capitalismo é o primeiro lismo o referido domínio ''deve ter adquirido uma forma material,
modo de produção que se faz universal, mediante a dissolução dos deve encarnar-se em um terceiro elemento, o dinheiro" . .'. '" Isto
modos de produção diferentes que entram em sua órbita e devido explica que, antes do capitalismo, as formas de alienação não fos-
às características de suas forças produtivas. 4ª Antes do século XVI sem as mesmas que soh ele: as relações de produção não assumiam
- em certos casos, até mesmo do século XIX - o que temos a forma de relações entre coisas, como no caso do capitalismo,
são, portanto, desenvolvimento históricos múltiplos e paralelos; isto mas a alienação assumia uma forma religiosa. 4 ª As lutas de classe,
demonstra o absurdo de uma concepção unilinear da evolução hu- enfim, surgiam sob uma forma bem diferente da que apresentam
mana que pretenda ser marxista. Ao contrário, Marx sempre cha- no capitalismo, pois só as classes dominantes chegavam a alcançar
mou a atenção para a grande diversidade das formas de desen- coesão, a solidariedade de interesses e o grau de consciência que
volvimento no contexto das sociedades pré-capitalistas: o baixo faziam delas classes plenamente constituídas; enquanto as classes do-
nível de desenvolvimento das forças produtivas fazia com que tais
minadas não tinham condições objetivas para desenvolver conve-
sociedades fossem extremamente dependentes de múltiplas condi-
nientemente tais características, o que explica sua incapacidade -
ções locais. 44 Por outro lado, nas condições das sociedades pré-
embora chegassem a vencer uma luta social - para esboçar uma
capitalistas de classes, tomadas em seu conjunto, "o domínio dos solução alternativa à ordem vigente; o que se pode compreender
proprietários sobre os não possuidores pode basear-se em relações ao considerar o nível insuficiente das forças- produtivas e da divisão
do trabalho, o caráter maciçamente agrário da economia. É isto o
43 Marx, El Capital, II, p. 37: "Por outro lado, as próprias circunstân- que demonstra a interessante passagem de Engels sobre a "legitimi-
cias que determinam a condição fundamental da produção capitalista - dade hitórica" da sociedade. classista. Nessas condições, as revolu-
a existência de uma classe trabalhadora assalariada - exigem que toda ções sociais consistiam, principalmente, na substituição de mino-
a produção de mercadorias assuma forma capitalista. À medida em que rias dominantes, umas pelas outras: embora a maioria, (isto é,
esta se desenvolve, decompõe e dissolve todas as formas anteriores de
produção que, preferencialmente voltadas para o consumo dir~to do produ- as classes exploradas) participasse das referidas revoluções, fazia-o
tor só transformam em mercadorias o excedente do produzido. A produ- em proveito da minoria que passava a dominar e que se apresentava,
çã~ capitalista de mercadorias faz da venda do produto o interesse pri- pelo menos por certo período, como representante de "todo• o
mordial sem que, a princípio, isto afete, aparentemente, o próprio modo povo". Marx e Engels pensavam que no capitalismo as formas me-
de produção que é, por exemplo, o primeiro efeito do comércio capita-
lista mundial a exercer-se cm povos como China, índia, Arábia, etc. diatizadas e "impuras" da luta de classe ligadas a tais caracterís-
Mas onde deita raízes destrói todas as formas de produção de merca- ticas da fase pré-capitalista desapareciam porque tanto a classe
dori~s baseadas no trabalho do próprio produtor, ou concebidas simples- dominante quanto a explorada tinham condições que lhes permitiam
mente à base de vender os produtos excedentes como mercadorias.
Começa generalizando a produção de mercadorias e logo .vai convertendo,
_apresentarem-se como classes plenamente constituídas, coerentes,
pouco a pouco, toda a produção de mercadorias em produção capita- conscientes e se defrontarem de modo claro e organizado. 4 1
lista." Alguns dos problemas que deveriam ser tratados aqui foram
Marx e Engels, OE I/l, I, pp. 26-37 (Ideologia alemana); Marx, Elementos mencionados no Capítulo III de modo que não tornaremos a
fundamentales .. ., p. 31: "A história universal nãp existiu sempre; a his-
tória como história universal é um resultado." eles. Especfâlmente a questão do caráter "inacabado" e "abr.rto"
44 Marx, EI Capital, III, p. 172: "... a própria base econômica - ela do marxismo e a noção de "via típica" de evolução aplicada à
mesma, quanto a suas condições fundamentais - possa mostrar em seu zona mediterrâneo-européia, tomada em seu conjunto.
modo de manifestar-se infinitas variações e gradações devidas a distintas
e incontáveis circunstâncias empíricas, condições naturais, fatores étni-
cos, influêncas históricas que atuam a partir do exterior, etc., variações
e gradações que só podem ser compreendidas mediante a análise destas 45 Marx e Engels, OE III, !, p. 49.
circunstâncias empiricamente dadasH. Ver também Gianni Sofri, ll modo 46 Marx, El Capital, I, p. 44 (entre muitos outros trechos).
di produzione asiatico, Storia di una controversia marxista. Turim, Binau• 47 Engels, El Anti-Dühring, pp. 294-295: "A divisão dà sociedade em uma
di, 1969, pp. 47-54 (há tradução para o espanhol). classe exploradora e uma classe ex~lorada, em uma classe dominante e

448 449
2. A PRODUÇÃO E REPRQDUÇÃO DA VIDA REAL: A das forças produtivas, as relações de parentesco são submetidas
BASE FX'ONôMICA "às relações de propriedade". Assim, nas sociedades de classes o
fator determinante em última instância, da estrutura global é -
de modo mais claro que nas sociedades sem classes - "o modo
de produção da vida material'', a economia. 40
A economia consiste na articulação de diversos "momentos"
Engels dizia cm 1884: H
ou elementos em uma totalidade integrada: a produção, a distri-
buição, o intercâmbio, e o consumo; precisamente por se tratar
··segundo a teoria marxista, o fator decisivo na história é, de um sistema estruturado, seus elementos atuam uns sobre os
aíinal de contas, a produção e a reprodução da vida imediata. outros, mas é a produção o elemento determinante e estrntura-
Mas esta produção e reprodução é de dois tipos: por um dor: ;;o
lado, a produção de meios de existência, de produtos alimen-
tares, de roupa, de habitação e dos instrumentos necessários "Uma produção determinada, portanto, determina um consu-
para produzir tudo isto; por outro lado, a produção do pró- mo, uma distribuição, um intercâmbio determinados e relações
prio homem, a continuação da espécie. A ordem social em recíprocas determinadas destes diferentes momentos. Na ver-
que vivem os homens., em dada época ou país, é condicionada dade, também a produção, sob sua forma unilateral, por sua
por estes dois tipos de produção: pelo grau de desenvolvi- vez é determinada pelos outros momentos ( ... ) Entre os
mento do trabalho, por um lado, e da família, pelo outro. diferentes momentos dá-se uma ação recíproca. Isto ocorre
Quanto menos desenvolvido for o trabalho, mas restrita será sempre em todos os conjuntos orgânicos."
a quantid:J.de de seus produtos e, conseqüentemente, a rique-
za da sociedade - e tanto maior a força com que se mani- Já vimos qu_e, para o marxismo, as leis econômicas somente
festa a influência dominante dos Jaçqs de parentesco sobre :.º são válidas em um contexto histórico-cultural dado, para cada
regime ~ocial". modo de produção específico. Por isto, não é possível construir
urna verdadeira teoria do que seria "a prodQção em geral". Porém,
A continuação do trecho mostra que, com o desenvolvimento
como "todos os estágios da produção têm carac~eres comuns que
da sociedade de classes e do Estado, em funç.ão do crescimento
o pensamento fixa como determinações gerais'', é útil - de qual-
quer modo - tratar de perceber as aludida~ determinações gerais
uma da~se opriiilida, foi a conscquencia n~ccssana do escasso d~senvol­ de toda a produção, ou as comuns a alguns de seus estágios ( co-
vimrnto da produção no passado. Enquanto o trabalho total qa socie-
Jadc não dá senão um produto que excede em pouco o estritamente mo, por exemplo, a moeda) : serão abstraçõe~, "m?~e~tos 2 bstra-
indt,PL'ns.i\·cl à ·vida etc todos, enquanto o trabalho exige quase todo o tos que nãp permitem compreender qualquer mvel h1stonco concreto
· kl11pu da gra11de maioria dos membros da sociedade, esta necessaria- da produção'', cujo sentido é exclusivamente o de evidenciar o
lll<'lllL' dt\'id.:·sc cm clasi;'es ... Mas, se a divisão cm classes tem, como
rnm.:4uém:ia, alguma legitimidade histórica, não tem tal legitimidade, comum e de evitar as . repetições. 51 Antes de falarmos nos con-
t•nttL'tanto. a não ser por um tempo dado, para condições sociais deter- ceitos-chaves de modo de produção e de formação econômico-social
111111aJa.;: pois. fundada na insuficiência da produção, será •!liminada pela
npam.:io plena das forças pro"utivas modernas ... " Ver: Sur le féodalís-
"'"· Paris. F.dilions Socialcs, 1971. pn. 158, 261-262. Sobre as "revoluções . 49 C. Marx, "Prólogo de la Contribución a la ·crítica de la economiu
de minorias", d a lntroducão de F. Engels à edicão de 1895 de Las política•, em OE III; p. 518 (tomo 1).
/11clia.\ de e/ases en Francia de 1848 a 1850, em OE III, 1, pp. 194-196. 50 Marx, Elementos fundamentales .. . , p. 20.
48 F Engeb, "El urigl'n Ul' la familia, la propriedad privada y •.!l Esta- 51 Ibidem, pp. 5, 8. Marx, El Capital, II, p. 200: "Não i;e ·trata qas
do". em C Marx e F. Engels, 'Obras Escogidas en dus tumos (doravante definições sob as quais possam, ser agrupadas coisas. Trata · --se de deter-
OE li), t li, Moscou, Editorial Prugrcso, 1971, pp. 168-169. minadas funções, expressas em determinadas categorias."

450 451
concentremo-nos, por um momento, em al.gumas dessas determi- alteração de forma." Os meios e objetos de trabalhos constituem,
nações mais gerais. em conjunto, os meios de produção. A configuração da propriedade
Em primeiro lugar, falemos de processo de trabalho, tomado em sobre estes últimos é o elemento estruturador das relações de
seus elementos abstratos. Trata-se da: 112 produção.
As determinações mencionadas até agora são gerais, aplican-
" . . . atividade racional orientada para a produção de valores do-se a qualquer forma ou modo de produção. Também há fatores
de uso, a incorporação das matérias naturais .ªº seArvi"? das que, sem o mesmo grau de generalidade, são comuns a diversos
necessidades humanas, a condição geral do mtercambio de modos de produção: o intercâmbio de mercadorias e a moeda, por
matérias entre a natureza e o homem, a condição eterna da exemplo. O seguinte trecho de Engels resume tudo o que acaba de
vida humana e, portanto, independente das formas. ~ T?oda- ser dito: 63
lidades desta vida e comum a todas as formas sociais igual-
mente."
"A economia política, fundamentalmente, é uma c1encia histó-
O referido processo abrange três fatores simples: 1) o pró- rica; sua matéria é histórica, isto é, perpetuamente submetida
prio trabalho: 2) o objeto de trabalho,· 3) o meio de _tr~~alho . . O à mutação e estuda, por sua vez, as leis particulares de cada
trabalho define-se como "a atividade adequada a um fim . Aquilo fase da evolução da produção e da troca e só ao fim de sua
sobre o que versa tal atividade é o objeto de trabalho. A natureza indagação poderá formular um reduzido número de leis intei-
(terra, águas, madeiras, animais, etc.) constitue o "objeto gera1" ramente gerais, verdadeiras para a produção e a troca como
de trabalho. Mas, também há objetos de trabalho já transform2dos tais. Fica dito, por outra parte, que as leis válidas para for-
por um trabalho anterior: são as matérias-primas. Estas p~dem mas de produção e de troca determinadas valem, também,
"formar a substância principal de um produto'', ou funcionar para todos os períodos históricos que tenham em comum
como matérias auxiliares para sua produção: assim, por exemplo e tais formas de produção e de troca. Por exemplo, a introdu-
respectivamente, o fio de 2lgodão na indústria têxtil e o co1:11bus- ção da moeda metálica põe em jogo uma série de leis igual-
tível consumido pela máquina dedicada à produção. O me10 de mente verdadeiras para todos os países e épocas em que a
trabalho constitui "aquele objeto ou conjunto de objetos que o moeda metálica serve de meio de troca."
trabalhador [o operário] interpõe entre si e o objeto que trabalha
e que lhe serve para dirigir sua atividade sobre tal o~jeto". A na- Passemos, agora, a definir os dois conc.eitos fundamentais do
tureza é o meio geral de trabalho, um arsenal de meios de traba-
materialismo histórico: modo de produção e formação econômico-
lho, em si mesma; porém, desde muito cedo surgem instrum~n~os
social (sendo mais importante o primeiro deles). Tratam-se, ao
de trabalho fabricados pelo homem: em verdade, o traço d1stm-
mesmo tempo, de noções altamente polêmicas no seio dos estudos
tivo do homem, de seu processo de trabalho, é "o uso e a. f.a~ri­
marxistas contemporâneos. Isto devido à ausênoia de textos nor-
cação de meios de trabalho". No sentido amplo, todas as condlçoes
materiais que contribuem para que se verifique ó processo de tra- mativos ou metodológicos dos fundadores do marxismo, o que
balho são meios de trabalho: assim, por exemplo, o local em que obriga a extrair os conceitos teóricos do próprio corpo de sua obra.,
ele se efetiva as estradas, os canais, etc. O resultado do processo com o que são alentadas interpretações diferentes; na medida em
de trabalho é o produto, isto é o valor de uso, "matéria disposta que houve mudanças e evoluções no pensamen.to de Marx e Engels,
pela natureza e adaptada às necessidades humanas mediante uma a referida obra permite que se encontrem apoios para concepções
às vezes bem divergentes.

52 Marx, El Capital, I, p. 136: para tudo o referente ao processo Je


trabalho, PP. 130.136. 53 Engels, El Anti-Diihring, pp. 158-159.

452
453
~:
!I

junto das relações de produção constitui a estrutura econômica da


Modo de produçüo é uma articulação, específica e historica- sociedade. 08
mente dada, entre wn nível e um tipo de organização definidos Se o conceito de mod,o de produção indica um tipo de socie-
das forças produtivas e as relações· de produção correspondentes.
dade, uma forma de estruturação social historicamente dada a
Trata-se de um conceito abstrato, ou melhor, de um "abstrato noção de f ormaçüo econômico-socil?>[ convém "à análise de re,ali-
real" no sentido de ser construído mediante a percepção dos ele- ?ades ~istóricas concre!as, singulares, apreendidas no tempo real,
ment~s comuns e essenciais comi?artilhados por várias sociedades 1rrevers1vel, de um penado determinado da história" 5n o conceito
concretas consideradas, de um só tipo. Como, na prática, cada de formação ec~nômico-s~cial está ainda mal elaboradQ; no marxis-
formação econômico-social apresenta mais de um modo de pro- mo contemporaneo coexistem pelo h1enos três formas principai-s
dução (ou elementos de modos de produção), empiricamente de considerá-lo: Go
inexiste o modo de produção em estado puro, embora haja casos
que mais se aproximem disto e outros menos. 54 Forças produtivas como noção em:;:iírica equivalente à idéia corrente de "so-
são "o conjunto dos fatores de produção., recursos, ferramentas, ciedade";
homens, que caracterizam uma soc!edade determinada em Ulll1a de- como conceito referido a uma sociedade concreta, porém
terminada época e que é necessário combinar de modo específico com um conteúdo histórico: trata-se de definir e explicar
para produzir os bens materiais de que a referida sociedade pre- a articulação de diversos modos de produção no seio da
cisa. ür. As relações de produção são "determinadas relações neces- base econômica d~ aludida sociedade;
sárias e independentes de sua vontade" que os homens estabelecem como o modo de produção junto com a superestrutura
entre si "na produção social de sua vida", e que "correspondem a correspondente.
uma certa fase de desen.volvimento de suas forças produtivas". 50
O desenvolvimento das forças produtivas determina, em última A segunda e terceira acepções combinam-se, às vezes. Assim,
instância, toda a história humana, da qual são a ba,se. 5 1 O con- por exemplo, M. Godelier considera que a definição de uma for-
mação econômico-social consiste na identificação dos modos de
produção e dos elementos superestruturais correspondentes, na
54 Podemos diztT, por exemplo, que o grande peso das estruturas cam-
ponesas na França fazia desta, no século XIX, um país capitalista descoberta da "forma e do conteúdo exatos da articulação"· dos
menos típico do que a Inglaterra, pois na última o modo de produção referidos modos de produção e sua hierarquia, e as funções pró-
capitalista predominava de maneira muito mais total quanto ao conjunto. prias dos elementos superestruturais combinados, especificamente,
das estruturas ·xonômicas e sociais.
55 M. Godelicr, Horizon, trajets .. ., p. 188. segundo a articulação dos modos de produção. Isto permitiria
56 Marx, "Prólogo de la Contribución ... " em OE III, I, p. 517. chegar a uma "definição sintética da natureza exata da diversidade
57 Marx, carta a Pavel Vasilievich Annenkov (Bruxelas, 28 de dezembra e da unidade especifícas das relações econômicas e sociais que
de 1846). em OE III, I, p. 532; também Engels, carta a H. Starkenburg caracterizam uma sociedade em· dada época". 61
(Londres, 25 de janeiro de 1894) em OE II, II, 507: "Por relações econô-
micas, nus quais nós vemos a base determinante da história da socie·
dade, entcndem·os o modo como os homens de uma determinada sociedade 58 Marx, "Prólogo de la Co11tribució11 ... ", em OE III, .P. 517.
produzem o sustento de sua vida, e trocam os produtos entre des (na 59 M. Godelier, Horizon, trajets .. ., p. 83.
medida cm que rege a divisão do trabalho). Portanto. toda a técnica da
produção ·e do transporte está incluída aí. Esta técnica também deter- 60 Cf. Ibidem, pp. 83-84; E/ concepêo de forrnación económico-social.
mina, no nosso modo de ver, o regime de câmbio, bem como a distri· Cuadernos de Pasado y Presente (Córdoba, Argentina), n.º 39, abril de
buicão dos produtos e, portanto, depois da dissolução da sociedade gen- 1973; O. Lange, op. cit., p. 32; Etienne Balibar, "Sur les concepts fonda-
tilícia a divisão em classes, também, e conseqüentemente, as relações rnentaux du rnatérialisrne historique", em L. Althusser e E. Balibar, Lire
de d~rnínio e de subjugação e, com. isto, o Estado, a Política, o Direi- le Capital, II, Paris, François Maspero, 1968, pp. 87-88 (nota).
to, etc." 61 Godelicr, Ibidem, pp. 83-84.

454 455
e a reprodução da vida real. Nem Marx nem eu afirmamos,
A hierarquia e articulação dos diferentes modos de produção nunca, mais do que isto. Se alguém tergiversá-lo, dizendo que
no seio de uma formação econômico-social de!.)endem de qual deles o fator econômico é o zínicó determinante, converterá aquela
é o dominante: 62 tese em uma frase vazia, abstrata, absurda."
"Em todas as formas de socieda.de há uma determinada pro-
Em ca,rtas escritas nos últimos ancs de sua vida, Engels reco-
dução que determina a todas as demais seu nível e influência
nheceu que, devido ao contexto de sua elaboração - a luta contra
correspondentes e, portanto, determina o nível e a influência
as concepções idealistas - muitos dos textos anteriores, de Marx
de todas as outras. E uma claridade geral em que mergulham
e seus, tinham destacado de modo demasiadamente exclusivo, unila-
todas as cores e que modifica as particularidades destas. :S
teral, a determinação dos elementos superestruturais 1;:iela b'.l.Se
como um éter particular que determina o peso específico de
econômica. Nestas cartas, escritas entre 1890 e 1894, tratou de
todas as formas de existência que alí se desta<::am".
corrigir o "economicismo" resultante, aferrando-se principalmente
2 três aspectos: 1) a distinção entre forma e conteúdo eh supe-
restrutura; 2) o caráter dialético da relação base-superestrutura,
que implica a noção de autonomia relativa das superestruturas; 3) a
natureza da determinação em última instância pelo econômico.
3. BASE E SUPERESTRUTURA: O PROBLEMA DA Quanto ao prime:ro ponto, o conteúdo dos diversos níveis
DETERMINAÇÂO EM ÚLTIMA INSTÂNCIA superestruturais deriva da base econCimica, mas não sua forma,
pois .esta depende de um longo processo de gênese e evolução
iniciado na própria pré-história; ou seja, a base econômica, ao
mudar, reorganiza, o material superestrutura! preexistente em fun-
Partiremos de um trecho do Prefácio de Marx ( 1859) à sua çiio de suas próprias necessidades: 64
Contribuição à crítica da economia política, e de outro da carta
de Engels a J. Bloch (21/22 de setembro de 1890): 63 "Para mim, a supremacia final elo desenvolvimen_to econômi-
co, inclusive sobre tais campos, é inquestionável, mas dá-se
"O conjunto destas relações de produção forlllil a estrutura dentro das condições impostas pelo campo concreto: na filo-
econômica da sociedade, a base real sobre que se ergue a . sofia, por exemplo, pela ação de influê.ncias econômicas (que,
superestrutura jurídica e política e a que correspondem deter- por sua vez, na maioria dos casos só operain sob seu disfarce
minadas formas de consciência social. O modo de produção político., etc.) sobre o material filosófico existente, proporcio-
da vida material condiciona o processo da vida social, polí- nado pelos predecessores. Aqui, a economia não cria nada
tica e espiritual, em geral. Não é a consciência do homem a novo, porém, determina o modo de modificar-se e desenvol-
que determina seu ser, mas, ao contrário, o ser social é que ver-se o material de idéias preexistentes, e, mesmo isto, quase
determina sua consciência." sempre de um modo indireto, pois são os reflexos políticos,
". . . Segundo a concepção materialista da história, o fator jurídicos, morais os que, em grau maior, exercem influência
que em última instância determina a história é a produção direta sobre a filosofia."

62 Marx, Elementos fimdamentales .. . , pp. 27-28. 64 Engels, Carta a K. Schmidt <Londres, 27 de oútubro de 1890), em
63 Marx, "Prólogo a la Contribución ... ", em OE Ill. I, pp. 517-518; Engels, OE II, II, p. 498. Ver também, no último tomo, a carta a Mchring" (p.
Carta a J. Bioch (Londres, 21-22 de setembro de 1890) em OE 11, II, 500), de 14 de julho de 1893 (Londres). Parn um cxc1Rplo concreto: M.
p. 490. Godc!icr, Ilurizun, trajets. pp. 83-92, 343-355.

456 457
li ·

1 11,.

1 ii\
r
Quanto ao caráter dialético das relaç~,es entre base e super- ma de dogmas - exercem, também, sua i:ifluência no curso
estru:ura, Engels foi muito claro: G5 das lutas históricas e determinam., em muitos ca~os predomi-
nantemente, sua forma. É um jogo mútuo de ações e reações
··o des.envolvimento pol'Ítko, jurídico, filosófico, religioso, entre todos estes fatores, no qual através de toda a multidão
literário, artístieo, etc., apoia-se no desenvolvimento econô- inf.ii1ita de casualidades (isto é, de coisas e acontecimentos
mico. Mas todos eles, também, rn?ercutem uns sobre os ou- cujas conexões internas são tão remotas ou difíceis de provar
tros e sobre sua base econômica. Não é que a situação econô- que podemos dá-Ias como inexistentes, desprezá-las) acaba
mica seja a causa, o único ativo, e tudo o mais efeitos pura- sempre impondo-se o movimento econômico, como necessi-
mente passivos. Há um jogo de ações e reações., com base na dade."
nt>cessidade econômi.ca, que se impõe sempre em última ins-
11i11cia." "Outro tanto ocorre com as demais casualidades e apafé'ntes
casualidades da história. E quanto mais distanciado estiver
evidente que o reconhecimento do caráter dialético das rela-
L do económico o camp0 concreto que pesquisamos, e mais
çôe~ ba~e-superestrutura significa que esta goza de uma autonomia se aproximar do ideológico puramente abstrato, mais casuali-
relativi~. ou - em outras palavras - que não possa 1ser deduzida dades perceberemos em seu desenvolvimento, mais ziguezagues
simplesmente eia base econômica, ou reduzir-se a esta: tem sÚa apresentarci sua curva. Porém, se você traçar o eixo médio
própria evolução baseada em leis e'i;Jecíficas e que se realiza a um da curva verá que, quanto ·mais longo for o período em ques-
ritmo próprio. 611 tão e mais amplo o campo estudado., mais paralelamente cor~
Por fim, devemos ver em que consiste a determinação em rerá tal e:.xo ao do desenvolvimento econômico."
útima instância pelo econômico. As idéias claramente expostas por
Engels, a propósito, não apoiam a inten'.)retação proposta pela es- Esta última passagem também nos mostra algo que Jª surgia
cola althusseriana para a questão, e sobre a qual falaremos adiante. no texto correspondente à nota n9 64: a determinação dos distin-
A nin..:cpçüo de Engels a respeito pode ser chamada de macro- tos níveis superestruturais pela base é tanto mais indireta, aleatória
hi1;,írirn, no sentido de que a percepção da determinação em últi- e menos visível, quanto mais nos afastamos da dita base no sentido
ma instúncia dá-se na longa duração: '" das "esferas ideológicas que flutuam ainda mais alto no ar: a reli-
gião, a filosofia, etc._ .. "tis
"A situação econômica é a base. mas os diversos fatores da
~u.;ierestrutura que se ergue sobre ela - as formas políticas A noção de superestrutura, a determinação dos elementos e
da luta de classes e seus resultados, as Constituições que, níveis que a compõem, a definição de suas relações com a base,
depois de ganhar uma batalha., são escritas pela classe vito- são as,)ectos altamente polêmicos do marxismo. Mencionemos ape-
riosa, etc., as formas jurídicas e, inclusive, os reflexos de to- nas alguns dos problemas principais: 1) a existência de elementos
das estas lutas reais no cérebro dos participantes, as teorias plur.ifunciolltais; 2) o fato de saber se a noção de modo de pro-
políticas, jurídicas, filosóficas, as idéias religiosas e o desen- dução inclui ou não a superestrutura; 3) a intenpretação que a
volvimento ulterior destas, até converterem-se em um siste- escola althusseriana dá à "determinação em última instância".
Há elementos da estrutura social glol)al que funcionam ao
mesmo tempo como infra e superestruturais. Como exemplo de
ó'i OF II, 11, pp 507-508 (carta citada a Starkenburg). Ver no mesmo tal 1pluri ou multifuncion.al1dade temos as relações de parentesco
l<ll1J11 a carta ;i Schmidt, p. 498.
M CI "Ludwig Ft>uerbach y cl fin de Ia filos~fia clásica alcma-
En!.!t'I'
111··. OE li, II, pp. 393-399.
1·m

67 UI" li, li, p 490 (cana a Bloch); e p. 509 (carta a Starkenburg). 68 OE II, II, p. 497 (carta a Schmidt).

4.'i8 459
nas sociedades chamadas "tribais" e a ciência no contexto do capi- colonizadores na África, etc.). Em suma, é a .nível do conceito
t<ilismo desenvolvido. 69 de formação econômico-social que convém colocar a questão da
!1i:1.i" Conforme a interpretação de Althusser e de sua escola, a articulação concreta entre a base e os diferentes níveis superestru-
li turais. 70 ' ·
I.•!·'·!
noção de modo de produção abrange a estrutura social global, ou
" seja, simultaneamente a base e a superestrutura; falam; então, de Finalmente, partindo da mencionada conc.ej)çào de modo de
uma "estrutura global" do modo de produção, constituída por três 1"rodução como estrutura: global com três níveis, ou "regiões", os
·'estruturas regionais" (a econômica, a juridico-política e a ideoló- althusserianos chegam a uma. interpretação sui generis da deter-
gic;1). Cremos que os textos de Mar:!C e de Engels não abonam tal minação em última instância: a estrutura econômica é delerminante
po~i1,·,·w. O fato de, ao lançar mão de vários textos para apoiá-la, em última instância porque determina qual das três ''estruturas
uis autores terem afirmado a necessidade de certos elementos regionais" - a ·econômica, a jurídico-política ou a ideológica -
'-Wll'l'l'Slruturais, para permitir o foncionamento e a reprodução será dominante em cada modo de produção .. , 71 Eis aí algo bem
dti-; mcius de produção, demonstra apenas que, para Marx e Engels, diferente do conceito de determinação em última instância que está
:1; ~n-·ieJadcs humanas constituem totalidades estruturadas cujos contido, tão claramente, nos textos de Engels que reproduzimos!
11ivl't~ s:io solith1rios e interatuantes. Mas, nos textos dos fundado- O trecho principal que invocam em apoio a tão estranha con-
res do marxismo, a noção de modo de produção é sempre e cepção é uma nota do tomo 1 de O Capital: 72
n,;Ju~i,·amente infra-estrutural - e nada permite afirmar, em nome
do ··~cntido implícito" que teria a noção em O Capital, que também ". . . Este jornal dizia que minha tese, segundo a qual o
deva incluir os diversos níveis da superestrutura. Por certo, cada regime di;; produção vigente em uma época dada e as relações
modo de produção determina o conte1ído dos elementos superes- de produção .próprias deste regime, em uma palavra, 'a estru-
trut ura!s compatíveis com ele e lhes fixa limites; porém, como tura econômica da sooiedade, é .a base real sobre a qual se
vimos, a forma das superestruturas não pode ser deduzida da base ergue a superestrutura jurídica e política, e a que correspondem
e sua evolução obedece a ritmo e leis próprios. Conforme as. for- dett::rminadas formas de consciência social' e que 'o regime
mações cconôn1ico-sociais, a um mesmo modo de produção podem de producão da vida material condiciona todo o processo da
corresponder superestruturas bem distintas. Por exemplo, o modo vida social, política e espiritual' era, indubitavelmente, exata
ele ·produção asiático, no seio da formação econômico-social inca quantü ao mundo moderno, em que predominam os interesses
utilizou. em proveito próprio, mudando seus conteúdos, elementos materiais, mas não podia ser aplicada à Idade Média, em que
superestruturais ligados ao passado comunitário das sociedades andi-
1
reinava o catoHcismo, nem a Atenas e Roma, on<le imperava
nas (o princípio da reciprocidade, da ajuda mútua, com suas es,pe- a política. Em ptiimeiro lugar, é estranhó que ainda haja quem
cíficas formas andinas} mas não é necessário que seja assim em pense que todos estes tó;Jicos vulgaríssimos que correm por
todas as formações econômico-sociais em que o dito modo de aí sobre a Idade Média e o Mundo Antigo sejam ignorados
proJuçào chegue a ser dominante. O modo de produção capitalista por alguém. É indiscutível que nem a Idade Média pôde viver
ex;ge. sem dúvida, que a propriedade privada seja um princípio dó catolicismo, nem o mundo antigo da política. Longe disto,
juridicamente estabelecido, mas isto pode ser conseguido - aqui
recorrendo ao velho direito romano, ali ·~reinterpretando" insti-
70 Por ~xemplo: M. Harneckcr, filem, pp. 136-142; Nicos Po,itantzas,.
t uiçôes locais (como o fizeram os britânicos na lndia, todos os Poder políticu y clascs sociales e11 el Estado caiJitalista, trad. dé F. M.
Torner, México, Siglo XXI, 1971 (3." ed.).
71 L. Althusser, "L'immense révolution 111..:,,1 ;,1u, de Marx"; E_ Balibar,
(ili Cf Guddia, Hori::.011, trajeis ... , p. 89, 93-131; L. Althusser, "E/ objeto "Sur les concepts .. .'', em L~re le Capital, II, pp. 5S e segs. 100-111: Cf.
de Fl Capital", em Para leer "El Capital", México, Sigto XXI, p. 145, cit. também a crítica a· Engels em: L. Althusser, /,a revolución teórica de·
por Marta Harn~cker, Los conceptos e/eme11tales dei materialismo lzistó- Marx, trad. de M. Harnecker, México, Siglo XXI, 1961, pp. 96-106.
rico. México, Siglo XXI, 1971, (6a. ed.), p, 89. 72 Marx, El Ctivital, I, p. 46, nota 36.

460 461
o que explica porque em uma en~ fundamental a política, e
na outra o catolicismo é, justamente, o modo como uma e as rela~õe~ ~e. pto~uçâo existentes ou, o que não passa da
outra ganhavam a vida. Ademais., não é preciso ser muito expressao Jundtca disto, com as relações de propriedade den-
versado em história da república romana para saber que sua tro das quais se desenvolveram até então. De formas de de-
história secreta a forma, a história da ,propriedade territo- senvolvimento das forças produtivas; estas relações conver-
rial. Já Dom Quixote pagou caro o erro de crer que a cava- tem-se em suas travas. E abre-se, assim, uma época de revo-
laria andante era uma instituição compatível com todas as lução social. Ao mudar a base econômica re"Ç<ôlucio-
formas econômicas da sociedade." nai-se, mri.s . ou menos rapidamente, toda a ime~sà superes-
trutura erigida sobre ela ( ... ) Nenhuma fontlação social
desaparece antes de se desenvolverem todas as forças produ-
Pni~ bem, acreditamos que este trecho não ampara, abs0Ju-
tivas que cabem nela, e jamais aparecem rtovas e mais altas
1~111H:111e,a tese dos althusserianos. É evidente que, no contexto da
relações de produção antes das condições materiais de su::i
rn Li. a exp:e:..súo "em uma era fundamental a política, e na o.utra
existência terem amadurecido no seio da própria sociedade
o catolicismo" refere-se - e não poderia deixar de ser assim -
antiga.
à con1cién:·i.. social dos homens da Antigüidade e da Idade Média.
Por isto, a humanidade se propõe, sempre, unicamente os
Em se.u conjunt?, o texto é apenas uma reafirmação de pontos
objetivos que pode alcançar pois, bem consideradas as coisas,
centrais do marxismo: l) o de que a ciência não se pode contentar
vemos sempre que estes objetivos só brotam quando já se
com . as_ .aparências, devendo procur'-!r as estruturas· subjacentes,
verificam; ou ao menos já se estão gerando. as condições ma-
a ''h1~tona ~ecreta"; 2) e o de que .a realidade social, em dada
teriais para sua realização." '1'4
época, não coincide com a consciência que esta tem de si mesma
( refle~.º '.'invertido'.' ou deformado da mesmà realidade); pois esta ". . . as contradições de classe e a luta de classes. . . cons-
consc1enc1a tem de ser explicada "pelas contradições da vida ma- tituem o conteúdo de toda a história esctita até nossos dias."•~
terial, pelo conflito existente entre as forças produtivas sociais e
as relaçôe; de produção." 13
"Os homens fazem sua história, quaisquer que sejam m
rumos· desta, ao perseguir cada qual seus fins próprios pro-
postos conscientemente; e a resultante destas numerosas von-
tades., projetadas em diferentes direções, e de sua múltipla in-
fluência sobre o mundo exterior, é. precisamente a histó-
ria ( ... ) . . . por um lado, já vimos que as muitas vonta::Ies
4. A EXPLICAÇÃO DA DINÂMICA DA HISTÓRIA individuais que atuam na história produzem, quase sempre,
resultados muito distintos dos propostos - às vezes, mesmo,
contrários - e, portanto., seus móveis também têm uma im-
portância puramente secundária quanto ao resultado total ( ... )
''Ao chegar a uma certa fase de deserivolvirnento, as forças
produtivas materiais da sociedade entram em contradição cor.1
74 Marx, Ibidem, .!>. · 518.
75 Engels, "EJ orígen de Ia familia " (Prefácíet à primeira edição, 1884)
7l Marx "Prólogo de la. Cun1ribuciún ... " cm OE ll l, I, p. 518. Cf. ainda em OE II, II, p. 169; também: Marx e Engels, "Manifesto do Partido
liH 11, li. pp. 393-394: "Ludwig Feuerbach ... ") um texto de Engels sobre Comunista", cm Bi-Ografía dei manifesto comunista, .México, Cía. General
u lcstado na epoca moderna e cm "todas as épocas anteriores" dificil- de Ediciones, 1969 (S.• ed.). p 72: "Toda a história da sociedade buma·
mente conciliáv:.1 com a concepção althusseriana da "dctermin;ção cm nn, até o presente, é uma história de lutas de classes". (Em 1890 Engels
ull 1rna · nstanua . acrescentou uma nota, particularizando: "Quer dizer, falando em termos
precisos, toda a história escrita. J

-+62 463
r
: '
r
I,
"Portanto, querendo-se pesquisar as forças matrizes que Apesar do que podemos chamar, sempre segundo• Lange, "o caráter
consciente ou inconscientemente, ·e com muita freqüência conservador das relações sociais", o dinamismo das forças produ-
inconscientemente - estão por trás destes móveis pelos quais tivas termina obrigando sua mudança no sentido do restabelecimento
atuam os homens na história, e que coastituem ·as verdadeiras da harmonia nas relações entre os dois élementos do modo de
molas mestras da história, não nos deveríamos fixar tanto nos produção: esta "lei da correspondência necessária entre as rela-
móveis de homens isolados, por muito importantes que fossem, ções de produção é o caráter das forças produtivas" é, por isto,
quanto naqueles que mobilizam grandes massas, povos em bloco em última análise, o elemento central das transformações sociais,
e, dentro de cada povo, classes inteiras; e não momentanea- da sucessiva estruturação e desestruturação dos modos de pro-
mente, em explosões passrgeiras como fugazes fogos de palha,
dução. 70
mas em ações continu~das que se traduzem em grandes trans-
lurmai.;ôes históricas." 76 • Já tratamos da questão das classes e da luta de classes nos
capítulos IH e VII. O que nos interessa lembrar, aqui, é que no
Os textos aí reproduzidos permitem-nos colocar um certo nú- marxismo o conceito de classe social estabelece uma espécie de
mero de questões nucleares: 1) ·a causalidade última do movimento "ponte" entre o campo da análise "econômica" e o da análise "so-
histórico, representada pela relação dialétic:i entre as forças produ- ciológica", assim como hoje costuma ser entendida es.ta divisão de
tivas e as relações de produção; 2) a concepção famosa da luta atividades.
de e! asses como "motor" da história (no contexto das sociedades Schumipeter foi um dos poucos a ver claramente o significado
de classes); 3) o pàpel do indivíduo na dinâmica histórica. desta integração teórica. so Não se dá uma "redução" ou "subsun-
A ci~ncia seria supérflua se a aparência e a essência das coisas ção" do nível social ao econômico, mas uma interdependência (im-
coincidissem: seu papel consiste, justamente, em "reduzir os movi- plícita ou explícita) já presente nas hipóteses mais gerais da teoria.
mentos visí,·e:s e meramente aparentes aos movimentos reais e in- Isto tem a ver, diretamenté, com a concepção da economia como
teriores." 77 À primeira vista, a história pode parecer resultar das
ciência social, presente na economia ·política clássica e q11e Marx
ai.Jlt'S ou decisões de indivíduos os "grandes homens" - ou
ser o efeito de elementos extra ou supra-históricos; o marxismo leva às últimas conseqüências. No seio do pensamento não marxista,
afirma que, embora a sociedade em que vivem seja "produto da tal integração 9u interdependência entre os níveis de análise foi
a<;<lo recíproca dos home:is", estes não são livres para escolher romipida com o estabelecimento de sucessivos cortes acadêmicos
a forma social que lhes agrade, pois "não são árbitros livres de estritos, entre economia, sociologia, antropologia, demografia, etc.
suas forçai· proillltims - base de toda a sua história - uma vez Especialmente importantes, neste sentido, resultaram o advento da
que toda força produtiva é uma força adquirida, produto de uma economia marginalista e o da sociologia voltada para a inter-
atividade anterior." 78 A relação entré as forças produtivas e as pretação da "ação social":. no~ dois casos, em última análise, a
relaçôes de produção corres.pondentes é de tipo dialético: embora,
em última instância, sejam determinadas -pelo que Lange denomi-
79 O. Lange, op. cit., pp. 23-48.
nou de "lei do desenvolvimento progressivo das forças produti-
80 Joseph A. Schumpeter, Capitalisme, socialisme et démocratie, Paris,
vas", também as relações de produção - cuja configuração de- Payot, 1969, p. 40: "Marx define o capitalismo sociologicamente, isto é,
pende da forma que apresente a propriedade sobre os meios de a partir da instituição de um controle privado sobre os meios de produ-
produção - influem poderosamente sobre as forças produtivas. ção, mas o mecanismo da sociedade capitalista <>ai da sua teoria econô-
mica." Há um texto de Engels que apresenta a estrutura social, expressa-
mente, como parte integrante da base: trata-se de seu Prefácio da
edição alemã de 1883 do Manifesto (OE Ili, I, p. 102): " ... a produção
76 Engels, "Ludwig Feuerbach ... ", em OE II, II, :PP. 390-391. econômica e a estrutura social que dela deriva, necessariamente, em
77 Cf Man, E/ Capital, III, pp.' 304, 757. cada época histórica constituem a base sobre a qual i:gpousa a histórit
78 Marx, carta a Annenkov, em OE Ill, I, pp. 532-533. política e intelectual desta época; ... "

464 465
, A história mostra-se como "um processo natilral'', compará-
tônica é posta na conduta individual, na sociedade como "agre- vel a "marcha da natureza e à sua história" ( cf. a passagem corres-
gado de indivíduos". 81 . pondente à nota n9 38), justamente porque os homens não a fa-
O materialismo histórico não nega o papel do indivíduo na ~em "com uma vo~t~de coletiva e conforme um plano coletivo".
marcha da história. Mas, assim como o papel "motor" da luta Os choques entre mumeras vontades e atos individuais criam no
de classes só tem sentido quando examinado em função do desen- campo da história, um estado de coisas análogo ao que imper~ na
volvimento das forças produitivas, da divisão social do trabalho natureza inconsciente." 84
resultante, da configuração da propriedade sobre os meios de pro- Os chamados "grandes homens" da história agem, portanto,
dução essenciais, das relações de produção em todos os seus aspectos, em um contexto demarcado, ao mesmo tempo, pelas determinações
a ação individual só pode ser entendida no contato de determi• profundas da base econômica, pela luta de classes e pela "casuali-
nações mais amplas: a famfüa, a tribo ou a comunidade nas so- dade"_ ou_ o "acaso" (isto é, como vimos, aqueles elementos "cuja
ciedades primitivas, as classes sociais e a lll'ta de classes nas socie.,. ~on~xao mter~a é tão difícil de provar que podemos tê-la como
dades classistas. 82 O indivíduo é a criatura das relações de classe, mex1stente, nao a levar em consideração"): 85
embora não tenha, necessariamente, consciência disto. Suas condi-
ções de vida, sua ideologia, são profwidamente influenciadas e, até "E é aqui onde devemos fafar dos denominados grandes ho-
certo ponto, determinadas pelos interesses e relações de classe. Por mens. O fato de surgir um destes, precisamente este e em um
outro lado, se os indivíduos isolados formam uma classe na medi- mome?to e em um país determinados é, naturalmente, pura
da em que têm de defender seus interesses comuns contra ~utra casuahdade. Mas, se o suprimimos, patentear-se-á a necessi-
classe, isto não quer dizer que a outro nível não posseni existir dade de substitui-lo e aparecerá um substituto: mais ou menos
conflitos entre os integrantes de uma mesma classe: urudos ·na luta bom, mas de qualquer modo aparecerá."
de classes "de outro modo eles mesmos enfrentam•se UJllS aos outros,
hosti.Imeote, no plano da competição". O· que, justament(\ masca- Marx e Engels consideravam o estudo da dinâmica da história
rando a real~de da situação de classe, é um dos fatores que lhes algo muito mais difícil no quadro dos modos de produção pré-
permite considerarem-se, subjetivamente, muito . acima das relações capitalistas do que no capitalismo:
sociais. Ps . - porque a pesquisa das "causas propulsoras da história" é
no pré-capitalismo, "pouco menos que impossível. - dada a com~
ple~idade e obscuddade das conexões daquelas causas com seus
81 Cf. Max Weber, Economia y Sociedad, I, pp. 5-46; Joseph Schumpe-
ter, History of Economic Analysis, Londres, Allen & Unwvin. 1967;· PP efeitos; ..• " No capitalismo as referidas con.exões estão muito sim-
534-535; T. Parsons, "An Outline of the Social System", em Theories of plüicadas: como já dissemos, o capitalismo torna mais simples a
Society, 1, The Free Press of Glencoe, 1961. estrutura e a luta de classes; 86 ·
82 C. MarxJ "Prólogo dei autor a la segunda edición de 1869" (do Diecio- - porque, antes do advento de uma "hiSJtória mundial" no
cho Brumario de Luis Bonaparte), em OE III, I, p. 405: "Eu ... derrums·
tro como a luta de classes criou na França as circunstâncias e as condi·
exato sentido da expressão, o qué temos é uma infinidade de d~sen­
ções que permitiram a um personagem medíocre e grotesco representar _volvimentos . locais, caracterizadoS: por uma progressão ext~ema­
o papel de herói." mente lenta: 1 ) devi.do à insuficiente circulação cultural, não era
83 Marx e Engels, Ideología alemana, em OE· III, I, pp. 62-68; Marx. incomum que todo um pàtrimônio local de forças produtivas se
Miseria de la filosofía, p. 106: "Por outro lado, se ·todos os membros perdesse, destruído pela guerra ou outro c~taclisma, atrasando-se
da burguesia moderna têm um mesmo interesse porque formam uma
classe só ante a outra classe, têm interesses opostos e antagônicos por-
que as contrapõem uns aos outros." Marx, El Capital I, p. XV: "Quem 84 Engels, "Ludwig Feuerbach ... ", em OE II, II, p .. 389.
como eu concebe o desenvolvimento da formação econômica da sociedade
85 OEJI, p. 490., 508 (cartas a Bloch e Starkenburg).
como um processo l1istórico-natural não pode fazer o indivíduo resnon·
sável pela existência de relações de que ele é socialmente criatura, 8~ Engel~, '_'Ludwig Feuerbach ... ". em OE II, II, p. 391; cf. supra e tam-
embora subjetivamente se considere muito acima delas." · bém o capítulo VII. -

466 467
T

0 "desenvolvimen1o ulterior"; 2) devido ao caráter inacabado, limi-


tado, das transições para novos estados de coisas através de ."revo- e ponto de partida para decifrar, adiante, a i·n.finita variedade
luções de minorias" (cf. supra): "as diferentes fases e os ~1versos d~ hist?ria concreta. ~ ao nível desta última que os esquemas
interesses nunca se superam de um todo, mas apenas subordmam-se hipotéticos provam sua validade. Assim, deve-se por fim à
ao interesse vitorioso e se vão arrastando, século após século, ao perpétua tentação de transformar a hipótese em dogma; uma
lado deste.'' 87 verdade qu~ está. ~or ser provada em urna evidência que é
desnecessário verificar e que pode reinar soberbamente a
Recordemos, para finalizar, ·algo já abordado no Capí~ul_o III: priori, sobre os fatos." '
a questão da dinâmica da história coloca-s·e ~e mod~ ~1stmto. a
nível do modo de produção e de uma formaçao ~onom1co-socrnl
Portanto, segundo Godelier, só temos "real.idades reduzidas a
cóncreta. No primeiro caso, como afirma Godelier: s7-A
~ua.s estruturas essenciais" e "a razão de ser de sua evolução"
hm:ta-se, então, às "possibiJ.idades e impotências internas" de evo-
"~ uma representação simplificada, ideal, dos mecanismos
luçao ~e sua~ estruturas. Pois bem, no caso de uma formação
de funcionamento das sociedades, construída para tomar in-
econôl1_11co-soc1.al concreta, embora em princípio seja quase sempre
teligíveis suas evoluções possíveis. Uma rep~esentaçã~ deste
o movimento mterno das estruturas o elemento essencial das mu-
tipo constitui um "modelo'', isto é, um con1unto articulado
. de 'hipóteses sobre a natureza dos elementos comp~nentes da danças, é preciso considerar uma multidão de fatores que compli-.
sociedade suas relações e seus modos- de evoluçao. ( ... ) cam o problema: 1) a co-presença de mais de um modo de
Porém, u~ inodelo só parcialmente corresponde à realidade. produção em sua base econômica, com os efeitos daí resultantes
O Capital não é a história real, concreta, desta ou daquela sobre a configuração da estrutura de classes e da superestrutura;'
nação capitalista, mas o estudo da estrutur~ 9u~ as c~racte­ 2) os contatos com outras formações econômico-sociais (intercâm-
riza como 'capitalistas', abstração feita da mfm1ta variedade bios comerciai~ e culturais, importação de modelos de organização,
das realidades nacionais. ( ... ) t necessário, portanto, pa_:a guerras, conquistas, etc.). O -segundo ponto pode alterar totalmente
não haver equívoco grosseiro sobre os esquemas _de evo!uçao os dados da questão. Assim, por exemplo, quaisquer que sejam as
construídos por Marx e Engels, reconhecer pre~ia~ente .q~e conclusões a que cheguemos, a partir do exame da formação eco-
tais esquemas n.ão pretendem nem podem constituir a histo- n.ô1?!co-social inca, do início do século XVI, quanto a suas pos-
ria real· das sociedades, mas só ·uma história abstrata· de rea- sibilidades de evolução, o fato é que a conquista espanhola im-
lidades reduzidas a suas estruturas essenciais, uma visão re- plantou, a partir de 1532, um novo ponto de partida, uma série
de processos desestruturadores e estruturadores de que resultará
trospectiva da razão de ser de sua evolução, tomada como
uma formação econômico-social radicalmente diversa da anterior
desenvolvimento das possibilidades e impotências internas d.e
cujo desenvolvimento próprio, inter.no, foi brutalmente interrom~
tais estruturas. Estes esquemas são, pois, edifícios de hipóteses
pido. Portanto, no .plano das formações econômico-sociais concre-
de trabalho ligadas a um estado do conhecimento e da ,r7a-
lidade, simultaneamente ponto de chegada da reflexão teonca tas, é preciso estar sempre atento à relação dialética entre os
fatores "internos" e os "externos". ss

87 Marx e Engels, "Ideologia alemana", em OE III, I, pp. ?º· 68, 53:54;


88 Goblot, Ibidem, pp. 120-126; W. Kula, Théorie éco11omiq11e d11 sv.~te­
Jean-Jacques Goblot, L'histoire des 'civilizations et. la concept10n marx1~te
de l'évolution sociale", em A. Pelletier e Jean-Jacques Goblot, op. cit ·, me féodal, Paris-La Haye, Mouton, 1970, pp. 143-f46; Charles Parain, ·"La
pp. 101-112. . . . ' l
prato-historia mediterránea y e! modo de producción asiático", em Roger
lfl·A M. Godelier, La notion de 'mode de prodution asiat1que et e~ Bartra, El modo de producci6n asiático, México, Ed. Era, 1969, pp. 2()4:.
schémas marxistes d'évolution des sociétés, Paris, C.E.R.M., 1964 <i:n1- 225. Marx e Engels, "Ideología alemana", em OE III, I, p. 62: "Todos os
meografado; trad. espanhola em Gode!ier-Marx, El modo de pmduc16n c~oques da história nascem, pois, segundo nossa concepção, da contradi•
o.sidtico, clt.) PP. 3-4. Çao entre as forças produtivas e a forma de relação. -Ademais, não é
Preciso que esta contradição, para provocar choques cm um país, se
468
469
5. CONCLUSÃO toriadores para a renovação do conceito de história, a abertura
de novos horizontes, o chamamento à colaboração entre as dife-
rentes ciências do homem. Agora, cumpre colocar alguns proble-
mas sobre a concepção da história dos fundadores de Annales e
As pag1·nas anteriores não constituem, de modo algum, uma de seus principais seguidores.
ex.posição exaustiva da concepção marxista da história. Somente
Bloch e Febvre lutaram incansavelmente por uma história
selecionamos os princípios e temas que ~os parecem de maior im- total, quer dizer, por uma história centrada na atividade humana
portância, sem considerar grande número de questões. Por exem- na vida dos grupos e das sociedades. Esboçaram, essencialmente'
plo, a sucessão de modos de produção poderia ser muito mais uma história-problema, SI! uma história que não caísse no refú!:Ü~
profundamente discutida do que o fizemos do Capítulo III e, positivista da monografia exclusiva ou na absurda pretensão ~da
em geral, os temas da transição de um. modo de produção para
outro. Também, a problemática da nação, muito pouco desen- filosofia da história - a de uma sk1tese a todo transe: ºº
volvida no marxismo, e a da formação e fases de evolução das
classes sociais, foram postas de lado aqui, bem como muitíssimos "Aqui falo como prático da história. Especialista ou sinteti-
outros aspectos, pois nossa intenção foi simplesmente a de a.pre- zador? Ambos ao mesmo tempo, porque é preciso ser as duas
sentar os delineamentos mais gerais do materialismo histórico, coisas. Generalizar no concreto, sem se preocupar com abs-
trações feitas em série, este é o máximo pico a ser atingido
sempre que possível amparados em textos de Marx e Engels -
pelo historiador, o mais alto e o mais difícil."
com escassas referências às polêmicas atuais.

:E: importante ressaltar como um dos méritos de Bloch e de


Febvre sua visão ampla, sua incansável curiosidade sua abertura
às demais ciências do homem. Os Annales transformaram-se, desde
o início, em um centro de diálogo; e as ambições dos fundadores
D. A "escola francesa" ou "escola dos Annales" deram resultados enormemente positivos. Ao exiplicar porque ti-
nham escolhido uma palavra tão vaga como "social" para o título
dos "Annales", em sua primeira etapa, Lucien Febvre disse que
fora justamente para não "cercar-se de m~ralhas". Dl
Na verdade, as idéias de Bloch e Febvre não eram novas.
1. GENERALIDADES Desde o início do século, Henri Berr esboçara a crítica à história
positivista. O grande mérito de Bloch e Febvre não é só o de
terem retomado tal crítica, levando-a às últimas conseqüências
Nos capítulos j.niciais reforimo-nos amplamente à signüicação ~as, principalmente., o de terem desenvolvido um novo tipo de
da obra de Marc Bloch e Lucien Febvre em tomo da revista h1stóna; mostrado ser possível. uma alternativa prática à história
A nna/es, fundada em 1929. Insistimos na importância destes his-. positivista. Como a tônica foi posta nos problemas metodológicos,

aprofunde exatamente neste mesmo país. A competição com países indus-


89 Lucien Fcbvrc, Combates por la historia, Barcelona, Ariel, 1970 (são
1rialmente mais desenvolvidos, provocada por um maior intercâmbio in- reproduzidos somente 15 ensaios do original francês). Ver espec':tlmcri•.c
1ernacional, basta para engendrar também uma contradição semelhante pp. 37 e 59.
cm países de indústria menos desenvolvida (assim, por exemplo, o pro-
90 Idem, p. 214.
lelariado latente da Alemanha foi e\;idenciado pela concorrência da indús-
91. Idem, p. 39.
tria inglesa) .. "

470 471
a obrn de B!och e Febvre foi continuada por seus discípulos em estudo mais . pro~und? das crises de subsistência, que o advento
um variado painel de direções. Como Barraclough observa: 9 !! da demograf~a h1stónca confirmou plenamente, assim completando
0 ~ue podenamos chamar de um modelo de economia de ancien

"O ponto essencial sobre a nova história, a característica que régzme, comumente oposto ao da economia industrial capitalista.
a fez tão amplamente aceitável, foi o não ter procurado im- Desde a década de 1?.20, obras como as de Gaston Roupnel,
plantar um novo dogma ou filosofia, mas ter suscitado uma sobre a zona rural de D11on, ou a admirável. síntese de Marc
nova atitude e novos métodos; não amarrou o historiador a Bloch, na dedicaram muita atenção à evolução a longo prazo das
um rígido leito teórico, mas abriu novos horizontes." e~truturas rurais, condições técnicas, sistemas agrários, e das rela-
çoes entre o homem e o meio natural. Na década de 40, a obra
Bloch e Febvre acreditavam muito mais na prática do que de Fe~an.d Braudel ·º 7 voltou-se para um horizonte ainda mais
no discurso teórico como elemento renovador da história. Assim, amplo, integrando os aspectos demográficos e a permanente inte-
por exemplo, -não se deve buscar nestes autores uma teoria ela- ração entre o grupo social e o meio natural ao maior legado de
borada sobre a sociedade. ºª Por isto, até certo ponto é incorreto Labrousse: o e.studo das conseqüências sociais da conjuntura ~o­
falar cm "escola dos Analles", no sentido de uma escola que nom1ca · O .meio •natural, a geografia, um aborrecimento constante
ofereça respostas a uma série de questões substantivas. A atitude dos estudos históricos, converteu-se - desde · então - em . um
de Bloch e Febvre foi essencialmente metodológica, voltada para ponto de reflexão, quando novos estudos mostraram suas varia-
a prática da história. ções n~ longo prazo. A mútua inter-relação entre as estruturas
geográficas, econômicas, sociais e políticas, colocadas em suas di-
It_lensões temporais, passou a ser o centro da atenção dos histo-
nadores.
2. ORIENTAÇôES BÁSICAS
Muito marcado foi, também, o interesse pelos estudos regio-
nais. A limitação do quadro de análise à região justifica-se por
vários motivos:
Na nova história houve três campos de interesse delimitados:
1) os estudos de estrutura; 2) os estudos de conjuntura; 3) os
estudos regionais. tr~ta-se, de uma unidade de análise apropriada enquanto.
As grnndes obras de Ernest Labrousse 114 trouxeram à lu;i:, nos ate o seculo XVIII, a vida cotidiana dos homens foi muito
anos da década de 1930, a estrutura e conjuntura da economia de mai_s assinalada p.elo peso da região do que pelo da
ancien régime, integrando à análise das crises os aspectos demo- naçao, ou de marcos ai·nda mais amplos;
gráficos e sociais. Jean Meuvret, em 1946, 95 analisou explicita- o estudo regional possibilita um trabalho artesanal de his-
mente o papel dos fatores demográficos, abrindo cami·nho para um toriador, que se vale de, praticamente, toda a documen-
tação disponível;
92 Barraclough, op. cít., p. 65.
93 Marccllo Carmagnani considera insuficiente a construção teórica no
quadro da "escola dos Annales": cf. La historia económica en Améric.:z f~). Paris, Armand Colin, 1971, pp. 271-278 (publi~ado originalmente: cm
Latina, I. México, Sep /Setentas, 1972, pp. 254-255.
94 Ernest Labrousse, Esquisse du motivi;ment des prix et des revenus 96 M. Bloch, Les caracteres originaux de l'histoir·e rnrale françaiP Paris
1956 (2.• ed.). -~. .'
en France au XVIIIe Siecle, Paris, 1933; La crise de l'économie française
à la fin de l'Ancien Régime et au début de la Révolution, Paris, 1944 ~7 Fe~and Braudel, 1E/ mediterrtieo ·''. ~l mundo meditr:rrti1:?0 e 11 /a época
95 Jean Meuvret, "Les crises de subsistence et la démographie de la 1 ;59~elipe li, trad. e.e W. Roces, Mcx1co, Fondo de Cultura Económica,
France d'Ancicn Régimc", em Jean Mcuvret, Etud?s d'histoire éconami-

472 473
o; estudo regional permite seguir a evolução de um grupo teórico do "capitalismo comercial'', idéia bem conhecida na F ran-
social a longo prazo, analisando distintos níveis estruturais: ça através das obras de Henri Pirenne ede Henri Sée. 10 1
geográfico, demográfico, econômico, social e, mais recer:- A mais recente novidade foram, sem dúvida, os estudos regio-
temente, também o ideológico e o mental. Em muitos nais que analisam a conjuntura de um período comparando, siste-
casos, o estudo de uma família de negociantes, ou de um maticamente, a evolução a longo prazo de diferentes variáveis:
estrato ou classe social, é concebido como complemento população, produção, preços e salários, a partir daí construindo
do estudo regional. os um modelo dinâmico. f: o caso das grandes teses de Baehrel, Vilar
e Le Roy Landurie. 102
Não podemos deixar de mencionar, também, os campos de
interesse dos últimos anos: as mentalidades coletivas. o estudo das
estruturas sociais com métodos qua.:ititativos ( cf. Capítulo VII).
finalmente a história climática, nos limites da preocu;:iação do his-
3. A HISTÓRIA SERIAL E SUAS VÁRIAS D!MENS()ES toriador. 1os
Bloch e Febvre foram precursores em quase todos os aspectos
e campos de pesquisa que vimos de mencionar.
A partir da II Guerra Mundial, a escolà francesa moveu-se,
sem abandonar as três direções básicas mencio:rndas, cm campos
de interesse cada vez mais amplos.
A primeira abertura constitui na continuação da obra de La-
brousse sobre o ancien régime francês. A tese de Pierre Goubert, 4. A CONSTRUÇÂO DE MODELOS
publicada em 1956, 00 confirmou amplamente os aspectos demo-
gráficos das crises de subsistência e revelou a riqueza dos arquivos
paroquiais. Pela mesma época, os estudos de demografia histórica
de Louis Henri e seus discípulos acrescentam novos instrumentos Sob a manifesta influência da economia, alguns historiadores
metodológicos à bagagem já considerável do historiador. preocuparam-se com a construção de modelos históricos. f: im-
Os estuc;los de história serial avolumaram-se consideravelmente portante mencionar aqui, por suas íntimas vinculações com a "es-
e Jogo superaram a mera história dos preços. Passou-se a estudar. cola dos Annales", a obra de Witold Kula, recentemente traduzida
também, o movimento dos portos, as rotas e, em geral, o tráfico para o francês e que em breve o será para o espanhol, na qual
comercial. Devem ser destacadas as obras de Pierre Chaunu, de
Frédéric Mauro; de Pierre Jeannin, entre outros. 100 Cumpre notar PEN, 1960. P. Jeannin, "Les comptes du Sund commc sourcc pour la
que esta história de portos, rotas e tráficos, que em certos casos construction d'indices généraux de l'activité économiquc cn Europe", na
inclui também a história de empresas, emprega, em geral, o marco Revue Historique, 1964; Frédéric Mauro, Le Por/ligai et l'Atlmztique 'ª'
XVIIe siecle (1570-1670), Paris, SEVPEN, 1960.
101 Frédéric Mauro, "Teoria econômica e história econômica" cm Nova
98 Cf. Pierre Goubert, "Local History", em Daedalus. inverno ele 1971.
história e novo mundo, São Paulo, Ed. Perspectiva, 1969.
vol. 100, n.• 1, pp. 113-127, 102 R. Baehrel, Une croissance: la Basse.J>rove~1ce (fin XV!c. siecle -
1789), Paris, SEVPEN, 1961: P. Vilar, La Catalog11e dans L'Esµagne mo-
99 Pierre ·Goubert, Beauvais et le Bea11vaisis au XV II e siecle, Paris.
SEVPEN, 1960. derne, 3 vol , Paris; SEVPEN, 1962; E. Le Roy Laduric, Les paysa11s de
100 Pierre e Huguette Chaunu, Sévílle et l'Atlantique de 1504 a 1650, Paris Languedoc, Paris, SEVPEN, 1966.
103 E. Le Roy Ladurie, L'histoire dit climat depouis l'a11 mil, Paris,
SEVPEN, 1955-1959 (11 volumes); Pierre Chaunu. Les Philippines et le Paci-
Flarnarion, 1966; do mesmo autor: Le territoire de l'histoire11, P::irís, Galli-
fique des fies ibériques (XVe - XV!Ie - XVIJ!e sieclcs), P::iris, SE\'.
mard, 1973, quarta parte.

474 475

!!
"
'i

tenta construir um modelo econômico global. para explicar o nm- Em primeiro lugar, a história política ficou, ante a história
cionamento da economia polonesa nos séculos XV~ a XVIII. 1 ~ 4 econômica e social, relegada a um plano por demais secundário.
Kula considera a construção de modelos de sistemas econo- Hoje, parece indispensável empreender uma renovação da concep-
m icos corno devendo realizar-se segundo os critérios seguintes: ção e do modo de fazer a história política; ·não há dúvida que
a focalização continuará sendo essencialmente estrutural e coloca-
as leis que regem o volume do excedente econômico e rá, então, a história política em termos de uma história das es-
sua apropriação; truturas de poder. ion
as leis que regem a distribuição das forças e meios de Por outro lado, a ênfase nos estudos de estrutura acostumou
produção e, antes de mais nada, a distribuição do exce- os historiadores a moverem-se num certo marco de referência que
dente econômico; tomava difícil refletir sobre a transição de uma estrutura a outra.
as leis que regem a adaptação da economia aos câmbios
Como observou Le Roy Ladurie., isto conduz a recorrer-se, de um
das condições sociais - a dinâmica de curto prazo, se
modo i·nesperado, ao acontecimento como fator explicativo que
preferirmos;
elucide o problema da mudança de estrutura. 10 ü Evidentemente.
as leis da dinâmica de longo prazo e, especialmente, as
isto ocorre .devido à falta de uma teoria adequada. Entretanto,
fontes internas da desagregação de um sistema dado e da. não sej_arnos injustos com Bloah e Febvre: em seus trabalhos subs-
evolução que o fará transformar-se em outro sistema; tantivos eles resol.veram. satisfatoriamente a questão. mas não dei-
o lugar ocupado pelos fenômenos do mercado (interno e xaram qualquer receita de como fazê-lo. Isto teria ido contra seus
internacional) no funcionamento do sistema, e seu papel mais caros princípios.
no conjunto da vida econômica, cuja aná!.ise deverá se
Finalmente, é preciso notar que, para Bloch e Febvre, o ofí-
integrar à dos elementos anteriormente citados.
cio de historiador implicava uma responsabilidade social, muito
Sem chegarem a tornar e)(plícito seu modelo, como Kula o típica de quem viveu as crises profundas das duas guerras mun-
fez, as recentes teses de história regional francesa mostram-nos, diais, mas que nem sempre os discípulos assimilaram. Para Bloch
muitas vezes, o que poderiam ser chamados de modelos implícitos, e Febvte, a história devia colocar problemas., respondendo às in-
que nos dão o funcionamento das sociedades estudadas em todos quietações do presente. Em 1946, no manifesto dos novos Annales,
os seus níveis., ou pelo menos em grande parte deles: tal é o Lucien Febvre mostrava que uma história problemática é uma for-
caso das obras mencionadas de Goubert, Vil·ar e Le Roy Ladurie. ma de consciência que "per'initirá a seus contemporâneos ros do
historiador] melhor compreenderem os dramas de que vão ser, de
que já são, todos juntos, atores e espectadores". 107
A história mostra-se, pais, como a iluminação do presente.
e "deixa de parecer uma metrópole adormecida por onde só an-
dam sombras de51Pojaidas de substância." 108
5. CONCLUSÃO

105 · Cf .. Blandine Barret-Krit:gel, "Histoire et politique, ou l'histoire scien·


Já destacamos a riqueza e a variedade da contribuição da ce des effets", em Annales E.S.C., novembro-dezembro de 1973, pp. 1437-
1462 (artigo que contém aspectos altamente discutíveis)-; Jacques L~ Goff,
"escola dos Annales". Agora, convém refletir sobre· certos aspec- "Is Politics still the Backbone of History?", em Daedalus n.• rncnc10nado,
tos, possivelmente menos positivos. pp. 1·19.
106 Le Roy Laduríe alude ao problema em Le territoire, pp. 169-186.
107 Febvre, op. cit., p. 71.
104 W. Kub, op. cit. 108 Idem, p. 57.

476 477
de evolução dos distintos níveis das estruturas histórico-sociais
E. Conclusão globais; e na crença de que as leis econômicas somente são váli-
das no contexto da época ou sistema para que foram formula-
das. 112
Talvez, a coincidência mais significativa seja a idéia de uma
Apesar de importantes diferenças, podemos apontar certos necessária hist6ria total que explique as articulações entre níveis,
pontos comuns de grande transcendência entre as distintas corren- que fazem da sociedade humana uma totalidade estruturada, em-
tes que estimulam os estudos históricos presentes e, de um modo bora respeitando as mencionadas especificidades de cada nível. 113 \
mais geral, as ciências humanas. Por fim, convém mencionar a confluência das duas correntes
Em primeiro lugar, mencionemos com palavras de Labrousse, no tocante a certas opiniões ou atitudes centrais. Assim, quanto
"uma noção interdisciplinária de estruturas", que "é para nós, e ao compromisso do historiador com seu tempo, em contradição
desde o começo, urna vantagem considerável, uma possibilidade com a visão do pesquisador que procura o passado pelo passado
magnífica. de diálogo, de cornunicação."' 109 Tal estrutura apoia-se em si. Tanto Marx quanto Febvre e Bloch acreditavam que não
na idéia - comum ao marxismo e a todos os ·'estruturalismos'1 se pode compreender o passado fechando-se a seu próprio tempo.
- de que o essencial não é aparente e só a análise científica Tanto o marxismo quanto a "escola dos Annales" são partidários
pode revelar as relações significativas subjacentes, que nem são da íntima colaboração da história com as ciências humanas (em-
conscientes para os homens de uma sociedade dada. no bora, certamente, o materialismo histórico seja muito mais radical
Por outro lado, se confrontarmos as duas vertentes da histo- quanto à unidade destas). 114
riografia contemoprânea que escolhemos para tratar neste capítulo
- o marxismo 111 e a "escola francesa" - encontraremos, tam-
bém, diversos pontos de contato, todos de grande importância;
alguns são comuns à total.idade dos membros da última, enquanto
em outros a concordância é menos ampla. No entanto, é um
consen$0 .que caracteriza seus maiores e:xipoentes: Labrousse, Man-
drou, Duby, etc.
A importância fundamental e, para· alguns deles, até deter-
minante, do econômico, é algo amplamente aceito pelos historiado~
res franceses contemporâneos. Estes coincidem, também, com o
marxismo na afirmação da especificidade e da diferença rítmica

109 Labrousse e outros, Las estnicturas y los homlnes, p. 94.


110 Para o marxismo, cf. as notas n.º 29 e n.º 73 deste capítulo. Quanto 112 G. Duby (cf. o capítulo VII deste manual); ver também o prólogo
ao estruturalismo, cf. o primeiro princípio fundamental ele Troubctzkoy, de E. Labrousse a - E. Labrousse e F. Braudel (sob a direção de),
comentado por Mariano Pcííalvcr Simó, La lingiiística estrnctnral y las Histoire économique et sociale de la France, t. II, Paris, Presses Uniwr-
ciencias del' hombre, Buenos Aires, Ed. Nueva Visión, 1972. pp. 12-14. sitaires de France, 1970.
lli' BárraclO'Ugh, op. cit., p. 26, ao tratar da evolução da concepção 113 Cf. F. Braudel, "La larga duración" em La· historia 'li las ciencias
da história desde o fim do século :~IX à II Guerra Mundial afirma: sociales Madrid, Alianza Editorial. 1968, pp. 60-106. P. Vilar, "Histoire
"A principal razão da crescente· influência do marxismo foi a convicção marxist~, histoire em construction", em Annales E.S.C., janeiro-fevereiro
de que oferecia a única base realmente satisfatória para um ordena- de 1973, pp. 165-19$ (principalmente pp. 179-191).
mento racional dos complexos fatos da história humana." A evolução 114 Febvre, op. cit ., especialm.ente os artigos: "Vivir la historia" e "De
mais recente, como afirma o mesmo autor em uutros trechos ele seu cara ai v!ento, Manifesto de los nuevos Annales".
trabalho, somente confirma tal assertiva.
479
478
ANEXOS
COMO ORGANIZAR E REALIZAR
UMA PESQUISA HISTÓRICA

1. ESCOLHA DO TEMA E SUA JUSTIFICAÇÂO

Os critérios que podem presidir a seleção de um tema de


pes9uisa histórica são de vários tipos: ·

a) o interesse pessoal pelo tema;


b) a importância do mesmo: os cntenos relativos a isto
variam com a própria evolução da ·ciência histórica;
e) a originalidade: devem ser evitados temas já trabalhados
por outros pesquisadores; salvo se o fizêrmos com mé-
todos renovados,
.. ou para
.
rebater opiniões -dantes ·admi-
tidas;

483
rr--
1

,,
1

1
d) a documentação: presença e disponibilidade das fontes tóricos apresenta peculiaridades técnico-metodológicas - e das h;-
11
;,1 necessárias para trabalhar o tema escolhido; póteses de trabalho levantadas. Também., depende do estado da
e) recursos disponíveis: a equipe humana e sua formação, documentação acessível (por exemplo, da possibilidade ou não de
·.1:
"
:]·:·1·.ll
[ 11: o tempo, os recursos materiais, etc. Este é um' cri.tério c~nstruir séries_ numéricas suficientemente completas, homogêneas e
h

!
1
de seleção e, simultaneamente, de limitação do projeto dignas de_ confiança, com os dados apresentados pela referida do-
de pesquisa. cument~çao) e das . disponibilidades . humanas (número e tipo de
formaçao dos pesqu_1sadores), de recursos, de tempo, de equipa-
"'.ento, etc. Um perigo, ou tentação, a evitar é a escolha de téc-
mc~s. "e~ ·moda~· (o uso da computação, por exemplo) por pura
sof1st1caçao, e nao por se adaptarem realmente ao tema escolhido .

.., COLOCAÇÃO DAS HJPóTESES DE TRABALHO,'


ESCOLHA DA METODOLOGIA E DAS TECNICAS

3. A FASE DE DOCUMENTAÇÃO: COLETA DE DADOS


Não há pesquisa sem hipótese de trabalho, mas estas podem
ser implícitas ou explícitas: é óbvio que convém formulá-las cla-
ramente. No caso de uma pesquisa quantificada, as hipóteses de
trabalho têm de ser explícitas, pois é de todo inútil con~truir . Para começar, cumpre empregar todos os instr~mentos de tra-
curvas, gráficos, séries, etc., a não ser para responder a questões . ba1ho disponíveis: listas bibliográficas, fichários de bibliotecas e
bem i:-recisas. Marc Bloch dizia que o documento é como uma arqui~os, bibliografias de obras anterior~s sobre assuntos vincula-
testemunha: fala quando lhe fazemos. perguntas. Por isto, a. im- dos a pesquisa, catálogos de documentos elaborados por arquivis'."
portância do trabalho do historiador está em relação direta com tas, etc.

t-
a qualidade das perguntas que formula. Normalmente, em uma pesquisa histórica há dois tipos de
A hipótese de trabalho é uma p~oposição que dá uma res- fontes que proporcionam os dados necessários:
posta condicional a um problema, na etapa da montagem da pesquisa.
Beveridge .•afirma que a hipótese constitui a mais importante das a) fo~te~
. documentos manuséritos de arquivo~;
técnicas mentais na pesquisa - destinada a sugerir novas obser- pnmanas - fon~es impress~s (redigidas no próprio
vações e/ou experiências. Na verdade, orienta todo o processo de penado pesqmsado, embora publicadas
pesquisa. Seu emprego submete-se a· certas, precauções fundamen- muito depois, às vezes}.
tais:
b) Fontes secundárias - documentação bibliográfica: livros
a) hnão aferrar~se a idéias comprovadamente inúteis"; ou artigos sobre o tema estudado,
b) "a disciplina intelectuar de subordinar as idéias aos fatos"; ou sobre assuntos de algum modo
c) '"examin.ar criticamente as idéias"; relacionados· com ele.
d) "eliminar os conceitos errôneos".
Tanto no caso de documentos m?nuscritos como no de diversos
A escol•ha da metodologia e das técnicas a empregar na pes- tipos de documentos publicados, convém elaborar dois tipos de
4ui~a depende muito do tema escolhido - cada ramo de estudos bis- fichas: .

484 485
hipóteses de trabalho, deve ser encerrada a fase de· documentação
a) Fichas bibliográficas ou docu~entais de identificação, em para haver concentração no processamento dos dados e na redação
folhas de cartolina: no caso dos documentos impressos, contêm os (embora,· é claro, tais fases - logicamente posteriores à primeira
diversos dado$ básicos do livro ou artigo (nome do autor, título - já possam ter sido iniciadas paralelamente ao trabalho de do-
sublinhado, I.ugar em que foi editado, editora, ano da publicação; cumentação).
no caso dos artigos: nome do autor, título do artigo entre aspas,,
título da revista ou jornal sublinhado, ano, tomo, número, data e
páginas); no caso dos manus~ritos, os dados que p~nnitam identi·
ficar e encontrar o documento no arquivo (nome do arquivo, série,
número de classificação, fólio ou fólios, etc.). Este tipo de fichas
permite elaborar facilmente as listas de fontes e a bibliografi_a gerat 4. O PROCESSAMENTO DOS DADOS E A REDAÇÂO
do trabalho.

b) Fichas analiticas ou de conteúdo, em folhas de pasta,


móveis, -:-- isto permite a fácil manipulação do material, mudando A história demogr;ífica, econom1ca e social, exígem a elabora-
sua disposição, se for preciso, etc.) - resumo do livro, artigo. ou ção - a partir dos dados brutos - de séries, curvas, quadros, grá-
manuscrito, parcial ou totalmente. ficos., etc. O processamento de dados com esta finalidade requer a
Entre os grandes perigos que ameaçam o pesquisador avultam aplicação de método~ estatísticos gerais, além de técnicas especi-
a dispersão - ou perda de tempo - e a má organização do trabalho ficas a cada setor da pesquisa histórica.
de coleta de dados, que o levam a sentir-se "afogado" pela massa Ao chegar a etapa em que devemos apresentar por escrito os.
de fichas e papéis. Eis alguns conselhos práticos sobre como evitá- resultados da ,pesquisa, o primeiro problema é a necessidade da
los: elaboração de um plano. Este poderá ser. histórico-.cronológico (o
,,/
que permitirá percebermos a simultaneidade dos fenômenos e sua
a) fazer uma coisa de cada vez; sucessão) ou lógico-sistemático (o que permitirá .percebermos os
b) saber resumir: só copiar textualmente quando isto se jus- grandes temas, entrosamentos e problemas); também é possívei
tificar;
conseguir uma combinação dos dois tipos de plano. De qualquer
c) usar, na medida do possível, os mais modernos recursos modo, o trabalho deverá compreender as ~eguintes partes prin-
de reproqução: fotocópia, microfilme, etc.;
cipais:
d) ter um plano - embora tosco - já na fase de docu~en­
~ação, para clas~ificar o material; dentro de cada divisão
a) introdução: colocação do tema e seus limites, hipóteses,
temática deste plano é útil classificar cronologicamente.
metodologia empregada e justificação desta;
Assim, um mesmo livro, artigo ou ma.nuscrito poderá,
eventualmente, ser classificado e resumido (obviamente, b) corpo do texto, dividido em partes e caipítulos;
•partes distintas dele) em diferentes divisões temáticas do c) conclusão: síntese final, avaliação do grau a que as hipó-
plano. teses foram comprovadas: ·

Além do texto, pro,priamente dito, um trabalho científico com-


Outra questão é saber quando convém concluir a fase de coleta
porta . sempre . um aparato de erudição: o autor deve comproyar
de dados. Sempre é possível conseguir material. adicional porém,
suas afirmativas a cada passo, acrescentando as provas que as
se os dados que temos já permitem responder suficientemente às
487
486
apoiem, mediante a citação de manuscritos, fontes impressas e
bibliografia. O dito aparato compreende:

a) as notas de pé-de-.página (de referência; de complemen-


tação do texto e notas que remetam a outras partes do texto) ela-
boradas segundo algum dos sistemas internacionalmente admitidos.
b) A lista ·das fontes empregadas e a bibliografia geral: VOCABULÁRIOESTATÍSTICO BÁSICO
quanto a esta, convém combinar a classificação lógica com a
alfabética; em certos casos é. necessário elaborar bibliografias co-
mentadas. A indicação das fontes e da bibliografia pode ser feita
no início, na continuação da introdução, ou no final do texto.
. _e~ .Ane.xos e ·peças justificativas: permitem - evitar longas Estatfstica - ''Por estatística entendemos os métodos científicos
c1taçoes msendas no texto, ou nas notas· ademais em trabalhos mediante os quais podemos coletar, organizar, resumir, apresentar e
de história senal é muito aconse1hável ~ publica~ão em anexo analisar dados numéricos relativos a um conjunto de indivíduos e
~a totalidade dos dados brutos (o que possibilita a o~tros especia: observações e que nos permitem tirar conclusões válidas e tomar deci-
hstas a apreciação dos .procedimentos de processamento de dados sões lógicas basead~s nas referidas análises".*
adotados pelo autor). · Popu/açllo ou Universo - Cónjunto de elementos submetidos aó
Em _m~itos casos o texto é acompanhado por ilustraçfles, estudo estatístico.
cufvas, gráf1cos, mapas, etc . Poderão ser inseridos no corpo do Série estatística - Conjunto de números que expressam, quanti-
t~abalho ou acrescentados no fim. Tais elementos devem ser justi- tativamente, uma variável ou característica determinada da população
ficados por necessidades lógicas do trabalho - não comparecendo em estudo: salários, idades, preços, etc.
como simples- "adornos". Série contfnua -_Série estatística que não apresenta lacunas oca-
Finalmente," um trabalho bem construído terá diversos índices· sionadas por falta de informação.
um índice geral de partes e capítulos, índices de nomes, de autore~, .Série descontinua - Série estatística com facunas ocasionadas por
falta de informação. · -
de lugares e de temas mencionados no texto, etc. Sem bons índices
anaHticos, uma obra pode chegar a ser de utiljzação difícil. Amostra - Porção da população (ou universo) em estudo.
Amostra ao acaso - Amostra selecionada probabilisticamente, de
modo que todós os elementos do universo tenham a mesma probali-
dade de participar dela: com isto garante-se a representatividade da
amóstra relativam_ente ao universo, e pode ser generalizado para este o
BIBLIOGRAFIA estudo feito a partir da amostra.
Estatfstica descritiva - Parte da estatística que se ocupa com a
descrição e a análise dos dados de um conjunto qualquer de elementos.
1) - W. 1. B. Beveridge, The Art of Scientific lnvestigation, Nova Chama-se também estatística dedutiva. ·
York, Norton, 1957. Inferêntia estatística ou estatística indutiva - Parte da estatística
que se ocupa com a amostragem e a estimativa,. a partir da amostra,
2) - Jor~e M~rio .García L. e Jorge Luján M., Guía de técnicas
de mvestigación, Guatemala, Servimprensa Centroamericana das característicf).s do universo (em geral denominadas parOmetros).
1972.· •
3) - Armando F. Zubizarreta G., La aventura dei trabajo inte- * NU1'ia C. de KOHAN e José M. CARO, Êstadlstica aplicad"!. Bueno_sAires, EUDEBA,
lectual, Panamá, Fondo Educativo Interamericano, 1969. - (19Q~~r.2). ---

488 489
Variável - Característica ou propriedade de cada componente do mente, nunca .se apli~ às séries cronológicas. O agrupamento exige a
universo que pode assumir qualquer valor dentro de um conjunto prévia categorização do atributo ou variável que se estiver .medindo.
.determinado de tais valores (o domínio da variável). Por exemplo:
tratando-se dos operários de uma fábrica, a idade, o peso, a altura, Exemplo 3: Atributo Exemplo 4: Variável discreta
o salário, etc.
Variável contínua --,- Variável que teoricamente pode assumir N'!! de N!!de
qualquer valor, entre dois valores dados. Por exemplo,. a idade de uma Sexo operários N!! de filhos famílias
pessoa pode ser expressa em anos, meses, dias, horas~ etc., subdivi- (atributo) (Freqüências) (variável) (Freqüências)
dindo-se o tempo quanto seja necessário. . o 15
Homens 50
·. Variável descontínua ou discreta - Variável que, ent~e dois valores Mulheres 60
1 25
dados, nãopode assumir valores intermediários. Por exemplo: número 2 30
de· filhos de uma mesma família (entre dois e três filhos não é possível 3 15
Total 110
o valor "dois filhos e meio"), número de acidentes ocorridos durante Total 85
um dado mês, etc. · ·
Atributo - Propriedade ou característica qualitativa de cada
componente do universo. Por exemplo, no caso dos Qperários de uma Exemplo 5: Variável contínua (dados do exemplo 1)
fábrica, o sexo, a nacionalidade, o estado civil, etc.
Dados nlio agrupados - Apresentação de cada uma das medições Escala de extensã<,> N!! de explorações
obtidas, sem qualquer ordenamento; ou, se for o caso, na ordem <Hectares) (freqüências)
cronológica. 5 -'9 4
10 ~ 14 6
15 ....:.... 19 9
Exemplo 1: Extensão em hectares de 25 explorações agrícolas: 20- 24 5
25 - 29 _J_
20 19 16 24 10 15 13 5 17 29 1f 8 23 Total 25
12 18 13 14 19 9· 17- 9 22 21 13 16
Uma vez decid.ida a categorização, os éasos encontrados são con-
Exemplo 2: Batízados anuais: tados em cada categoria, isto _é, computam-se as freqüências. Os dados
se mostrarão, então, o.rdertados r:iuina tabela ou distribuição de fre-
qüências. Se a variável é continua, a categorização se faz construindo
1810 .......... 25
1811 ......... : 30 intervalos de classe. Para tanto, são observados os valores máximo e
1812 ....... : .. 40 mínimo que atinge a 'variável, e são escolhidos o número e a extensão
1813 .......... 35 desejàdos para cada intervalo (superior e inferior) devem ser fixados
·com clareza. Em casos como o do exemplo 5, .sói acontecer que se
COllSidere que, por exemplo, o segundo intervalo (de 10 a 14) inclua na
. Dados agrupados - Apresentação das ·medições obtidas, orga- realidade de 9,5 hectares até 14,5 hectares. Isto é assim, claro, só nos
nizando-as numa tabela de freqüências. Tal procedimento permite des- casos em.que, nos intervalos, não estejam indicadas frações decimais,
crever ·e analisar comodamente gqmdes conjuntos de d'ados; ·obvia- o que pode ser feito e. é sem dúvida mais claro. Ao tr.abalhar-se com

490 491
Exemplo 5
idades de pessoas, um intervalo, por exempló, de 20 a 25 anos incluirá
somente as pessoas que têm tais idades completas, ou seja, abarcará
casos desde 20 até 25,99. Escala de po11.tos
Medidas de tendência central - também chamada parâmetros ou extensão freqüências médios de
características de posição, são medids que dão conta do mais típico ou Xi Íi Xi xifi
representativo de um conjunto de dados. Num conjunto de dados 5 - 9 4 7 28
ordenados segundo sua magnitude, situam-se em geral no centro dos 10 - 14 6 12 72
mesmos, pelo qual são chamadas medidas de tendência central. Ve- 15 - 19 9 17 153
jamos as mais usuais. 20 - 24 5 22 110
a) Modo ou moda: Define-se como o valor ou categoria da variá- 25 - 29 _1 27 27
vel que apresenta as maiores freqüências. Assim, no exemplo 3 o modo Total'(N) 25 390
corresponde às mulheres (60); no exemplo 4, a 2 filhos (30); no exem-
plo 5 a 17 hectares (ponto médio do intervalo de maior freqüência).
b) Média aritmética: É a divisão da soma dos termos de uma série - l: Xjfj
X=--
pelo número dos termos de tal série. Se os dados não estão agrupados N
(como no exemplo 2), somam-se os termos, no caso quatro (total: 130)
e se divide o resultado pelo número de termos, no exemplo quatro - 390
X = - . = 15.6
(média: 32,5). Se os dados estão agrupados, proceda-se como no exem- .25.
plo seguinte, aplicando a fórmula indicada.
A exploração agrícola média tem 15,6 hectares de extensão.
Exemplo 4

Note-~e ~ue a mé~ia é simbolizada com o signo X. No exemplo 5,


N2 de filhos freqüências para multiphcar a variável Xi pelas freqüências fi, foram tomados os
Xi Íi XiÍf pontos médios dos intervalos de classe. O ponto médio de um intervalo
o 15 o é igual ao limite inferior mais o limite superior, dividindo~se o total
1 25 25 5+9
2 30 60 por d
01s' ( .
assim, por exemplo, - -- = 7, etc.).
2
3 _!L_ _iL
Total (N) 85 130
c) Mediana: é uma medida que nos indica o centro da distribui-
?ão:. em outras palavras, que corta a série de dados em duas partes
l: XiÍi
X= iguais. Para dados não agrupados (os quais deverão ser ordenados do
N 130 menor ou maior), a fórmula de cálculo éN + 1 (sendo No número de
X=- 1,5
85 2
elementos da série). Para dados agrupados, procede-se como nos
exemplos seguintes, aplicando-se a fórmula indicada.
As famílias têm, em média, 1,5 filhos.

493
492
Exemplo 4 Exemplo 5 acumule tal quantidade. Assim, no exemplo 5 o intervalo 10-14 acu-
mula 10 casos, o seguinte 19: a mediana estará, portanto, no interior
deste ultimo. Aplica-se, então, a fórmula indicada.
x·l Íi fa x·1 Jj fa Medidas de dispersfio ou variabilidade - As medidas de dispersão
permitem-nos avaliar precisamente a homogeneidade ou o grau de
o 15 15 5 - 9 4 4 variabilidade da distribuição. Podem ser calculadas para qualquer va-
1 25 40 JO - 14 6 10 lor da distribuição, sendo porém mais usual fazê-lo em relação à média
2 30 70 15 - 19 9 19 aritmética.
3 20 ___; 24 5 24 a) Desvio padrfio: é a raiz quadrada da média dos quadrados dos
.li 85
N= 85 25 - 29 1 25 · desvios em relação à média aritmética. Indica-se com um sigma grego
N 25 'ou com um S.
Tratando~se de dados não agrupados, use-se a fórmula:

Md (mediana) ·= L +
(N-fa)
2 f
s- -V .·rx2; -N- -.(··.l:xi)2'
-N
Aplicando-a ao exemplo 2 teremos:
L = limite inferior dointervalo no qual estiver compreendida a
4350
mediana. s
N total de casos. 4
amplitude do intervalo em que se achar a mediana. s 5,59
f = freqüências do intervalo em que estiver a mediana.
fa = freqüências acumuladas do intervalo imediatamente inferior Para dados agrupados:
àquele em que se achar a mediana.

Exemplo 4 Exemplo 5
s = \J l:~/f; - ( l:;;/; r,
MD = 2 +(42,5 - 40).l Md = 15 +(12,59- 10) 5 Aplicando-a aos exemplos 4 e 5 teremos:
. 30

Md = 2,08 Md = 16,39
Exemplo 4: s = \}280. -(130
85 85
)2' s = 0,97

25 .~. (~
s = \) 68.10 s
2
Exemplo 5: ) .\ =.5,39
A metade das famílias tem me- A metade das explorações agrí- 25
nos de 2,08 filhos e a outra me- colas tem menos de 16, 39 hecta-
tade mais. res e a outra metade mais.
N
O valor cie 2 indica-nos que a mediana estará no intervalo que O desvio padrão expressa a variabilidade da distribuição ao redor
da média aritmética (5,39 hectares no exemplo 5).

494 495
. b) Variântia: Desvio padrão elevado ao quadrado (S 2).
c)CJ.oeficiente de variaçiJo: Para tornar possível a comparação da Nestas duas últimas obras poder-se-á, além do mais, aprofun-
variã6llldade de séries expressas .em diferentes unidades de medida e dar tudo o que diz respeito aos números índices e à análise das
número distinto de casos, usa-se o coeficiente de variação, definido série temporais.
pela fórmula: ·

e. V. = S._!00
X

Ou seja, multiplica-se o desvio padrão por cem e divide-se_ o re-


A CONTABILIDADE DAS EMPRESAS
sultado pela média aritmética da distribuição. O quociente é, pois,
uma percentagem.
As fórmulas indicadas para o cálculo do desvio padrão aplicam-se
à população ou universo. Aquelas que são adequadas no.caso de uma
amostra deverão ser procuradas num mànual de estatística.
A contabilidade é uma té.cnica empregada pelas empresas
Os simbofüs habituais das medidas de que tratamos - X, Md, S,
etc. ....,,. são escritos com letras maiúsculas quando se referem à popu- para manter· um controle sobre os lucros e perdas em um período
l~ção, e minú.scula ao se tratar da amostra.
determinado. Os comerciantes e banqUeiros da baixa Idade Média
a conheceram bem, embora de modo algo rudimentar, relativa-
. mente aos cânones modernos. 1 Os negociantes italianos implanta-
ram, no século XV, a contabilidade por partidas dobradas e Max
Weber viu nisto "a premissa mais geral para a existência do capi-
talismo moderno". :!'
Apresentaremos, a seguir, os rudimentos da contabilidade de
uma empresa: o balanço e a conta de lucros e perdas. Logicamente,
trata-se de uma exposição sumária, mas de qualquer modo penni-
tirá ao historiador dos séculos XIX e XX trabalhar comodamente.
Para o es~udo das empresas dos séculos anteriores será indispensá-
vel consultar manuais e livros antigos de contabilidade, assim como
a metodologia usada pelos historiadores econômicos dedicados ao
estudo de empresas. 3

BIBLIOGRAFIA l Jacques LE GOFF, Marchands et Banquiers du Moyen Age, Coleção.


"Que sais-je", Presses Universitaires de France, Paris, 1969, p. 33 e se-
1) BARBANCHO, Alfonso G., Estatfstica e/ementai moderna, Ariel, Barcelona, 1973. guintes.
2) CROXTON e COWDEN, Estadíst1'ca general aplicadà, Fondo de Cultura Económica,
. México, 1957. · , · 2 Max Weber, Historia económica general, tradução de Manuel Sânchez
3) SILLS, David (ed.), Enciclopedia internacional de las ciencias sociales, AgU1lar, .Ma- Sarto, Fondo de Cultura Económica, México, 1956, p. 237.
dri, 1976, pp. 563-596. • . .·. l Consultar, a propósito, os m4itos estudos publicados na coleção "Affai-
4) THURSTONE, L.L., Noções Básicos de &tatlstica, Livraria Marfuts Editora, São res et Gens d'affaires" pela Ecole Pratique des Hautes Etudes, VI seção,
Paulo, 1963 (3• ed.).
SEVPEN, Pai-is.

496 497
Balanço anual 1 - f: uma espécie de fotografia da situação da As apfü:açôes classificam-se pelo grau de liquidez:
empresa em um dado momento; em geral, é feito uma vez
por ano, a 31 de dezembro. O balanço apresenta as contas
da empresa divididas· entre ativo e passivo. O passivo indica
Ativos (aplicações) Passivo (recursos)
os recursos que, no curso do ano, foram postos em operação
pela empresa. O ativo indica as aplicações dos referidos re-
cursos
1O. ) Disponibilidade em cai- 1O. ) Recursos próprios:
Exemplo:- Balanço com superavit .xa: dinheiro líquido
capital (ações)
Ativo Passivo 20. J Em uma empresa indus- reservas ( 1ucros não
Aplicações 220 Recursos 200 trial: distribuídos)
Lucros 20
- equipamento, terre- 20. ) recursos de empréstimos:
Os recursos (200) postos eiu operação corresponderam a 220 no, edifício
de aplicações, isto é, proporcionaram um lucro de 20. Os lucros estoque de matérias~ a) Em uma sociedade
são sempre anotados no passivo, pois são recursos a empregar. primas e mercado- industrial:
rias não vendidas; empréstimo ao pú-
Exem!o: Balanço deficitário Valores, ações em blico (obrigações);
outras firmas; adiantamentos d o s
Ativo Passivo créditos abertos aos bancos (contas cor-
Aplicações 180 Recursos . compradores rentes de crédito);
Perdas 20 adiantamentos de
200 30.) ·Em um banco: abastecedores ( q u e
200 abrem crédito à fir-
- créditos de descontos ma).
Os recursos (200) não deram os resultados esperados, pois ou carteira comercial b) Em um banco:
as aplicações totalizaram 180, resultando um prejuízo de 20. Os - empréstimos sobre :...._ depósitos à vista
prejuízos são anotados no ativo, pois constituem uma aplicação títulos e adiantamen- e a prazo fixo;
negativa. tos sobre finanças contas correntes
A disposição do ativo à esquerda e do passivo à direita é (garantias) de crédito (pro-
uma convenção comum da contabilidade moderna. contas correntes de- venientes de in-
Recursos e aplicações não correspondem, linha por linha. Em vedoras (abertas a dustriais e nego-
geral, os recursos são classificados segundo o grau maior ou menor in~ustriais e nego- ciantes)
da exigibilidade (.por exemplo, recursos à vista, recursos a prazo ciantes)
fi x0. etc. ) . - carteira de valores Total de recursos: 200
ou "porta-fólio-títu-
4 Daqui por diante resumimos a apresentação do tema em Jean BOUVIBR, los" Lucro: 20
lnU.:iq.tion awc vocabulaire et awc m.écanismes économiques contempor(&in$
f XIXe-XXe siecles) SEDES, Paris, 1969, 267-274. ·.
Total do ativo: 220 fatal do passivo: 220 1

498
499
o lucro líquido, que o balanço revela, correntemente é dividi- A conta de lucros e perdas., assim como o balanço, são um
do em duas partes: resumo da situação da empresa num momento dado. O historia-
dor economista dedicado à história de empresas os usará como
reservas, isto é, o lucro acumulado (anotado no passivo) ponto de partida - mas dificilmente se contentará com isto. Sendo
dividendos, distribuídos aos acionistas. possível conseguir a documentação que constitui a base da elabo-
ração do balanço e da conta de lucros e perdas, poder-se-á reali-
zar um estudo mais pormenorizado e significativo.
Coma de lucros e perdas
Por uma série de fatores, o lucro costuma aparecer - no
Apresenta a seguinte estruturn
balanço ou na conta de lucros e perdas - muito reduzido:
PERDAS LUCROS
1 ) Muitas "reservas" do passivo sãó escondidas em outras
(saídas de dinheiro no (entradas de dinheiro no rubricas.
exercício) exercício) 2) Pode haver uma subestimação sistemática de muitos valores
do ativo (imóveis, estoques, etc.), o que leva à baixa do
1 ) Em um banco 1 ) Em um banco saldo de lucro, por diminuição do ativo.
3) A amortização do. equ:pamento costuma aparecer em muito
- juros pagos - juros e comissões per- menos anos do que os da real utilização das máquinas.
- despesas operacionais cebidas sobre todas as Com isto se reduz consideravelmente o lucro declarado.
- devedores duvidosos operações de crédito e 4) A prática do autofinanciamento, isto é, do pagamento ime-
serviços; diato do equipamento novo, também reduz consideravel-
2) Na indústria - entradas sobre deve- mente o lucro declarado.
dores duvidosos.
- despesas operacionais Assim, para reconstituir o lucro real de uma empresa é preci-
- juros pagos a credores 2) Na indústria so lançar mão de uma documentação mais ampla do que a do
- amortização dos crédi- balanço e da i:onta de lucros e perdas.
tos duvidosos cifra de negócios (total
- amortização do equi- de vendas)
pamento - lucros não industriais
(ex.: dividendos, etc.)
TOTAL: 100 - entradas sobre devedo-
LUCRO: 30 res duvidosos

130 TOTAL: 13Ô

O lucro é lançado como perda, pois vai ser usado ou como


reserva ou como dividendo. Se tivesse havido um prejuízo, lançar-
se-ia na coluna dos lucros, simplesmente com o fim de equilibrar
o balanço.

500
501
O USO DA COMPUTAÇAO EM HISTÓRIA

O historiador da economia, da demografia ou da sociedade,


trabalhando basicamente com informação quantitativa, ou suscetí-
vel de quantificação, tem nos métodos eletrônicos de processa-
mento de daçlos um auxiliar inapreciável: que poupa tempo e
aumenta a precisão, tornando possível o processamento de enorme
volume de informações. ·
O computador é, pois, tanto para o historiador quanto para
qualquer cientista social, um auxiliar - assim como a máquina
de calcular ou a tábua de logaritmos. De início, cumpre afastar
a idéia de que o computador pense - por vezes difundida por
jornalistas ignorantes ou diletantes. O computador só opera segundo
as instruções do pesquisador, classificando e ordenando os dados
de acordo com elas.
Nas observações seguintes somente pretendemos dar u_ma
idéia das possibilidades de emprego da computação em história,
sem a menor intenção de ensinar a fazê-lo. Para isto, o historiador
interessado deverá valer-se da bibliografia citada no fim. Mas, con-
vém esclarecer que, de modo algum, o historiador deve aprender a
manejar o computador ou mesmo a programar o processamento
da informação: para tais tarefas há pessoal especi-aiizado, muito

503
mais capacitado do que qu.tlquer cientista social para programar Caso tratemos com vanavcis contínuas, são categorizados os
e manejar o computàdor. O que o historiador deve conhecer é o valores que a variável pode assumir, segundo critérios definidos
modo de apresentar os dados para poder processá-los el.etronica- pelo . pesquisador de acordo com as necessidades de seu trabalho.
mehte, qual o tipo de cuidados que devem ser tomados para asse-
gurar a confiabilidade da informação e qual o. tipo de classifica'-
ção ou ordenamento desejado para seus dados, - o que depende, Exemplo: Código
obviamente, de suas hipóteses. O historiador deve, pois, apresentar
seus dados ao programador de modo conveniente - e este tratará Variável: capital nominal da _empresa 5
de elaborar instruções em uma linguagem que a máquina entenda, Valores: de 10. 000 a 50. 000 cruzeiros ]
assim possibilitando seu processamento. de 5 O. 00 l a 100. OUO cruzeiros 3
de 100. 001 a 200. 000 cruzeiros 3
mais de 200. 001 cruzeiros 4
Não há informação· o
. a) COD!FICAÇÂO DOS DADOS Toda a informação que o historiador queira processar deverá
ser ccdificada assim.
Deve-se observar que a codificação é feita considerando-se o
O primeiro passo no tratamento da informação, para possibi- meio a usar para fornecer .a informação ao computador. Se usamo$
litar seu processamento, consiste na "codificação". Trata-se de atri- .. um cartão perfurado, caso mais comum, será necessário atribuir
buir um símbolo numérico a cada valor de cada variável de nossos à variável um número (se seus valores não passam de· 10), dois
dados. Normalmente, são usados um ou mais números para iden- números (se não passam de 20) etc.
tificar a variável, e um ou mais números para os valores das
mesmas. Vejamos, a,gora, o modo dos dados entrarem no computador. ·

Por exemplo:
Código

Variável: · sexo 1 b) A _ENTRADA DOS DADOS

Vàlores: Masculino 1
Feminino 2 O computador admite diversas fonnas de entrada da infor-
Não responde ou não ., mação. A mais ·comum é o cartão perfurado: -
há iilfonnação o• O cartão tem 80 colunas e 10 fileiras (de O a 9) que são
·Assim: 1 . 1 indica sexo masculino ampliadas para 12, dada a possibilid-ade de fazer mais duas per-
1 . O indica sexo desconhecido por falta de informação furações acima do zero .
1 . 2 indica sexo feminino

• Em todos oi casos, deveré ser previsto um número para Indicar a


falia de Informação.

.504 SOS
Observemos, no exemplo seguinte (trata-se de uin padrão, para
estudo demográfico), os passos a dar desde a folha original em
111111111111111O1O11111D11111111111Dl.D1111111DDDD1D11D11 DODDDDDDDDDDDDDD1 DDDDDDD
' 1 1 1 1 . 11 llll\d<l .. dll'1MllSllDDlll••n•••t1•••••»•••t1Gati1••t1•••11w~w••1111••••11u . . . . ll • • llll!11)H1tM1!1I"•
que foram recolhidos os dados até o cartüo perfurado.
11111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111

1!!!li!21 !?l ! ! ! ! ! ! 22 22 211!222!!!!!12122212 2 2 2111212 ! 2121li12 2211111112 2 2 2 2 2 2 2 2 21


11111 l l l l l l l ll l l llll l IU313 l l i l l lll l l li l l l l i l l l3 l l l3 l l l l l l 3 31lllll3111llllll3 Ili

' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' 44' ,, ' ..... ' 4-44' ' ' ' ' ' ' ' ' ,, ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' 44'' ,., ,,,, ' ' ' ' ' ' ' ' ' ,. ' , , , '
>I 1>11111111111155li55555111111ii51SSiSS15115i551551s1s11151sii5i5i115 5 5 5 i Si IS 5 5
FOLHA DE DADOS
i 1 i i li li li li li 1 li & S li li 1 i 111111111 1 li l" • ~ li 1 li li 1 1 l li li 1 S li li 11 li li li li li li 1 li li li li li &.li li 1 li li li 1 li li li i 1 1 1 6 li li 6 11
1 / J ' J 1 J J 1 1 11 J J 1J11111111111JJ11111111111111111111 J 11111 J 1 J 1 J 1 J 1J1111JJlJlJ1111 J J
l l l l l l l l l i l l l i l l i l l i l 1111111111111111111111111111111111181111111111B111111111111
1 1 1 • 11 11 l ll"IJll'"•ll'!'llldJl.l1DDM11ial'la1t•J1J1lllllJIJIJl»••t1GQ .. 4l .. <lt1•1llllJl.,llol11111J!ll11Ml1'1WM~MtJll•llnlJllM/11111llll•
Código
111.19 19 U 9111!111!9SI1191199 9191ISI11119 9 9 99 99 919 9 9 9 9 9 9 9 9 9 9 9-91IU9 9919 9 999 9 9 9 9 9 S9 Vari:ivci~ Valores
( col un.is do (Fileiras
cartüo l -íl\J í 0-9-)

Número dr 1 a 4 . 0\30
ordem: 130
Cidade: Cedros 5-6-7 010
Neste cartão podemos, mediante perfurações, representar nú- Padrão: 1860 k 2
meros (caso mais comum) ou letras; e., portanto, nomes e alguns Nome: Pedro Chávez
caracteres especiais. No seguinte cartão estão reproduzidas as per- Idade; 32 anos lJ-1 o 32
furações padronizadas: Estado civil: casado j1 2
Sexo: masculino 12 1
Etnia: mestiço 13 2
Profissão: ·ravrador 14-1.'\-lo-i7 012

2~4.ot-7B'IO ~:~~.~~~~ J~ LMNOPQRrnll/l.JXY;'.

111111111
111OOO11OIDD1111Ot-11D11DD811DB111111110 DI• DOD1DO1DlDD1D1 DODBOli Ol BBBD DBD DDBOBBBB
,-., Si-;-'~ ~

1 1 1
: : ":

1
1~ "~i,

1 1
;•·.• I

1 1 . ' 1 ' ' ' " ' ' " " .,, .. 111111a1•DJ:1Joaa111tn•lllll1:M:nlllllllf•t1QUtoU•U .. •l:.e~l\l\l~MM1•11••••Ull .. llMl1Mlllll!1Jlllll1"lllJlll'I•
11 1 1 11 1 1 1 1 1 111 11 1 1 1 1 111 1 1 1 11111 1 11111 1 11 1 11111·1,111 11 1 1 1 1 11 1 1 111 1111111 111111 111
1
l Grau de
instrução: a.nalfabeto 18

(Observe-se que, na perfuração do código n umáico. o cartão


só admite um furo em cada colllna. No caso d() alfabeto e dos
caracteres especiais, sim, podem ser feitos mais Je um furo).
l

zlz z z z 111z221122 z 211121112 2 2121112 2 212 2112 21112112 212 2 2 212 2 2 2112 2 2 2212 211212 2112
111111111111111111111111111111 Jll l l lll llllll l l l l l l l l l l l l l l l llll l l l l l l l l l l l l l l l l I

•• •I• .................. •I• •• ' 11 •I• ..... ''' ...... ''.' .... ' .. ''' •lllllHI"' .. ' ' "
111~l1i111i15151151111551l1Slli11l5 i 5 i 11S1S11li1115 511515 l 5 i i 15 5 15111115111S5511·
1111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111n11111
1 1 1 1 1 1 111 1 1 11 1 1 1 1 1111 1 111 1 11 1 1 1 1 1 1 111 1 1 1 1 11 1 1 111 11111111 1 1 11 1 1 1 1 11 1 11 1 1 1 1 1 1 1 1 11 1
'1111111111111111111111111111111111111111111111·111111111111111111111111111111111
' ' ' 11'11 <I 1l·l>tllll•l1111•11•D11a•11•11•11•»111••ll•a .. 111fUMll .. '161•lllllWUlllllllllllllUllNUllllllllllllltllllll!1"JtlJllHll
11lt1111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111

507
No exemplo, indicamos o nome da pessoa, para mostrar co-
FOLHA DE CODIFlCAÇÃO
mo apareceria no cartão perfurado, embora na maioria dos casos
o historiador use muito mais os furos indicadores de números do
que os correspondentes ao alfabeto.
(O número do canto superior esquerdo indica o número da Cada cartão perfurado (a rigor podem ser um ou mais)
variável. O valor !! inscrito nas quadrículas). representa uma unidade de análise (pessoas, empresas; famílias,
instituições etc.) e ·nele perfuramos a informação de que dispomos.
As primeiras colunas (no nosso exemplo 1 a 4) são sempre re-
servadas para o número de ordem e, eventualmente, para a iden-
tificação da pesquisa.

l 6 ll 16
o l 2 1
2 7 12 17 e) O PROCESSAMENTO DOS DADOS
l o 1 2

3 a 1' 18
Perfurados todos os cartões, passa-se a processar a informação
3 2 3 1
no computador. Para tanto, será preciso fazer um programa, isto
4 9 14 19 é, um conju'nto de indicações que o computador receberá para
o 3 o efetuar a classificação dos dados.
' 5 10 15 20 Como não será o historiador quem elaborará o programa,
o 2 o indicaremos a seguir o que o historiador deverá dizer ao progra-
mador para que ele possa desempenhar sua tarefa.
Será preciso fazer dois tipos de operações. Primeiro será uma
de "limpeza" ou "controle" dos dados. Para isto, projetar-se-á
algum tipo de verificação da coerência dos dados. No exemplo
dado, seria preciso controlar a idade com o estado civil e a pro-
21 00121 PEDR CHi<VEZ
li Ili 1
fissão, pois haverá grupos etários excluídos de qualquer profissão,
1 li e de qualquer estado civil que não o solteiro; também, pode-se
. l11 ll1 l111111ll11111lili11°11111111111111liU1111O1111Oo11111 li OIO l i o l i l i Ol i 81111 controlar o sexo e a profissão. Este tipo de prova tem por meta
, 1 ,,,, t11•••uu~••n•••naa•a•n•a•aaa•••P•••~QQ•••~•••nauM••P•••nU~M••~•••~nqMnNnNna
11111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111 reduzir ao mínimo os erros possíveis, que se tenham insinuado
11111111111111111111!11111111122 2 2 212111 !11111,.,11 !121 l l li lll1!11111121111111121 na codificação e na perfuração. O computador afastará, no exem-
11111111111111111111111111111, 11111111111111111111111111111111111111111111111111
plo citado, os cartões incoerentes que serão, então, revisados e
1 ..................... 1............................................... , .... ,, .. .
corrigidos .
11111"111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111
111111111111111111111111)1111111111111111111111111111111111111111111111111111111 Assim controlados os dados, far-se-á um plano de distribui-
1 ! ! ! ! ! ! ! ! 1111111111•1111111111111111J11J11111J111111111J111111111111J11111111111 ções e de cruzamentos das variáveis. No exemplo dado, será
l l l l l l l l l l l l l l l 11111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111 l l I
'11111111•u•1U•lflf''•••"•••••n•aa11•a-.aa11aa•t•••-•••1•••11M11t11aa11a1ta11•u•••11••"'t11111t1111111111•
interessante solicitar as distribuições, em termos absolutos e per-
11111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111 centuais, das variáveis sexo, estado civil, etnia, profissão e grau

508 509
de instrução. Um certo número de tabulações cruzadas também
será indispensável:

Idade/sexo Idade/profissão
Idade/ etnia Estado civil/ etnia
Idade/ estado civil Etnia/profissão
Idade/grau de instrução Etnia/ grau de instrução
etc.

Conforme o tipo de dados disponíveis poder-se-ão fazer di-


f crentes tipos de tabulações e calcular medidas de tendência cen-
tral, de dispersão, de correlação, etc.
Quase todos os computadores apresentam os resultados im-
pressos em grandes folhas de .papel, cuja leitura tem de ser feita OS MODELOS ECONOMÉTRICOS E SEU EMPREGO
com a ajuda do código.
O historiador interessado no uso do computador deverá es- NA HISTÓRIA
tudar os procedimentos - aqui sumariamente enunciados - com
muito mais profundidade. Para isto poderá consultar a obra de
Robert R. Amolds, Harond C. HiU e Aylmer V. Nichols, "Siste-
ma Moderno de Procesamiento de Datos'', Ed. Limusa-Willey S.A.,
México, 1971. Obra de leitura obrigatória, de . autoria de um his-
toriador e recomendável até para quem não trabalha com este INTRODVÇÂO
tipo de processamento de dados, é a de Edward Shorter, The
Historian and the Computer - A pratical guide, Prentice Hall,
Nova Jersey, 1971.
Dentro das ciências humanas - e a história, certamel}te, não
é uma exceção - a construção de modelos tem por objetivo
principal a consecução de uma representação . simplificada, mas
completa, de um comportamento típico. Completa no sentido de
incluir todos os aspectos importantes e, portanto, pelo menos em
termos ideais, capaz· de possibilitar uma previsão; e típico signifi-
cando que só tem sentido elaborar. modelos de comportamento que
apresentem certa repetitividade ou recorrência. Que relação há
entre estrutura e modelo? 1

1 Observe-se que não há univocidade de critérios para definir e distinguir


entre estrutura, modelo e sistema. Convém, pois, prestar atenção ao que
cada autor entende por estes conceitos. -

510 511
Tenhamos em conta, antes de mais nada, que não há con- Tratando-se da história é normal que nos modelos por ela
cordância· geral a respeito da utilização de tais conceitos; entre- usados o tempo compareça como uma dimensão essencial . Ó que
tanto, sem entrar em qualquer discussão teórica, achamos útil es- impõe um limite sério e preciso à aplicabilidade e à generalização
tabelecer a distinção seguinte: dos modelos históricos. Novamente, o problema da comparação
e de seu alcançe está no ~entro da discussão. Em uma feliz metá-
"A estrutura está nos próprios fat.os. Não é, ela só, toda a fora, Braudel colocou a questão dizendo que os modelos são como
realidade observável, mas está incluída em tal realidade. No "barcos que têm de ser lançados na água para fazê-los acompa-
caso das ciências do homem, a estrutura não é todo o com- nhar ou subir a corrente do tempo, se possível. Até onde vão
portamento, assim corno este pode ser registrado, mas está rio-acima ou até onde rio-abaixo?" 5
incluícla no comportamento. ·
Este problema da validade temporal de um modelo histórico
''O modelo é outra coisa. Modelo é, no sentido em que o
entendo, o que o pesquisador elabora para dar a entender
é concomitante ao que poderia ser chamado de "validade espacial".
aos demais o que é a estrutura. Pode, pois, haver tantos A que sociedade, salvo a que lhe deu origem, é possível apli-
modelos quantos pesquisa.dores.":: car um modelo determinado? Pensemos, por exemplo, na velha
teoria quantitativa da moeda., construída por Jean Bodin no sé-
Em outras palavras, a estrutura - como conjunto de rela- culo XVI para explicar a vertiginosa alta dos preços que veio
ções sígnificativas - pertence à realidade, enquanto o modelo é após a descoberta e as conquistas oceânicas. Quantos, depois de
uma abstração formulada para interpretar a referida realidade "es- Bodin, inclusive Earl Hamilton e a sabedoria econômica de Key-
truturada". a Mais do que "tantos modelos quantos pesquisadores". nes, pretenderam explicar, com este "modelo" tão simples da teo-
conviria dizer tantos modelos quantas forem as teorias que existam ria quantitativa, fenômenos como o da acumulação de capital in-
para interpretar algo. Conforme observa Fernand Braudel: · dustrial, ou a causa das oscilações econômicas. Algo semelhante
acontece, por exemplo, com a teoria de Marx sobre os modos de
"Os model9s não passam de hipóteses, sistemas de explica- produção e a evolução das sociedades: quantos ''feudalismos", ou
ção fümemente vinculados segundo a forma da equação ou "escravismos" foram descobertos, aqui e ali, à custa de forçar a
da função; isto iguala-se àquilo ou determina outra coisa. O tipologia original, esvaziando-a completameRte de significado? Ci-
modelo estabelecido com sumo cuidado permitirá, pois, pôr tamos tais exemplos não para sustentar que a especificidade dos
em causa além do meio social observado - a partir do fatos históricos toma impossível a comparação, ou exige a cons-
qual foi criado, afinal - outros meios sociais da mesma na- trução de um modelo para cada· realidade .social; usamo-los para
tureza, através do tempo e do espaço. Nisto está seu valor destacar a necessidade de agir prudentemente, esclarecendo (sem-
recorrente." • pre que se faz uma operação deste tipo) todos os pressupostos,
estudando todas as dimensões importantes e formulando com me-
ridiana clareza todas as hipóteses em jogo.
2 André Martinet, informe sobre "Las ciencias dei lenguaje y las c.iencias
htUnanas·'.. em E. Labrousse, R. Zazzo e outros, Las estructUras o los Convém insistir,· agora, no outro aspecto dos modelos .histó-
hom.bres. Tradução de M. Sacristán, Edlciones Ariel Barcelona 1969 ricos. O leitor poderá pensar que, no caso dos modos de pro-
p. 12. . . • . •
dução, mais do que em modelo conviria falar em tipologia. Real-
l N~ste sentido cumpre distinguir ~uas posiçpes diferentes: uma que mente, da maneira ampla como definimos e conceito de modelo,
-considera, que a estrutura está na própria realidade (Seria o caso de
Marx ou de Malirice Godelier); outra que sustenta que a estrutura é não há dificuldade em proceder assim. O problema é antes de
puramente uma construção do pesquisador (seria o caso de Lévi-Straussh hábito, pois estamos acostumados a falar em l:nodelo só quando
4. Fernand Braudel, La historia y las ciencias sociales, tradução de Jose·
fma" Gómez Mendoza, Alianza Editorial, Madrid, 2.• ed., 1970, p. 85. Tra·
duçao levemente modificada, segundo o original francês. 5 ibidem, p. 93.

512 513
a) pesquisa e previsão do ciclo econômico;
se trata de um já formalizado. O estado presente de evolução das
b} pesquisa de mercado;
ciências humanas, o problema da linguagem adequada à forma- c} programação econômica.
lização, fazem com que a maior parte dos modelos importante&
para as ciências sociais, especialmente para a história, na verdade
O primeiro campo foi o que se desenvolveu muito na década
ainda estejam por ser formalizados, ou com um grau muito rudi-
de 30, graças aos estudos pioneiros de Tinbergen e Frisch, entre
mentar de formalização. Esta vontade de formalizar, que tem
outros, que conduziram - após a Segunda Guerra - a uma série
na econometria sua presente expressão mais completa vem, de
de conceitos que estabeleceram as bases das políticas anticíclicas
fato, dos economistas cuja notável influência sobre a história, a
e de estabilização nas economias capitalistas desenvolvidas. 9 O
:mtropologia e a sociologia, nos últimos quarenta anos, transferiu
segundO'.i yincula-se aos problemas clássicos da elasticidade da ofer-
para tais campos esta preocupação. Por ora, os modelos formali- ta e da procura e ao estudo do mercado deste ou daquele produto.
zados ou formalizáveis colocam a quantificação de suas vanaveis Os trabalhos de Schurtz e Wold 1º são os exemplos obrigatórios
no centro das preocupações, embora também haja, às vezes, ad- a citar, a propósito. Por fim, o problema da programação, incluído
missão indireta dos conceitos qualitativos. 6 entre os recém-chegados à econometria, refere-se ao planejamento
da conduta econômica de uma empresa, com base em uma série
de dados conhecidos e visando a garantir a maximização dos lu-
cros. Vejamos, antes de analisarmos um exemplo de modelo eco-
nométrico usado na história, os requisitos metodológicos dos mo-
delos construídos pela econometria. São eles, obviamente, comuns
a todo modelo econométrico .
OS MODELOS ECONOMÉTRICOS

1. Escolho das variáveis

O primeiro passo da construção de um modelo é a escolha


Àntes de mais anda, algumas palavras para que este ramo da eco- das variáveis. Naturalmente, isto depende élo que se pretenda ex-
nomia. Os estudos econométricos, que buscam "a observação es- plicar e do alcance almejado para o modelo. Seja como for, a
tatística de conceitos baseados na teoria econômica", 7 a verifica- escolha das variáveis deve responder à seguinte questão: Que fe-
ção estatística de urna série de conceitos e de hipóteses formulados nômenos influem sobre o que temos de explicar? 11 Do trabalho
em termos quantificáveis, dedicam-se, em geral, a três campos de Cairncross sob.re as flutuações da indústria de construção em
diferentes. ' Glasgow entre 1856 e 1914 podemos tirar um exemplo ilustrativo.

9 Cf. Jan Tinbergen, Política Económica. Versão espanhola, Fondo de


6 Christian Morrison, "Note sur l'apptication de quelques concepts economiques Cultura. Económica, México, 1961.
en Historie", na Revue Economique, janeiro de 1965, pp. 128-129. 10 Cf. H. Wold, Demand Analysis. A St.udy in Econometrics. Upsala,
7 J an Tinbergen, L 'econometrie, Tradução de M. Verhulst, Paris, 1954, p. 8. 1952. H. Schultz, T11e Theory and Measurement of Demand. Chicago,
8 Oskar Lange, Introduction a la econometria. Tradução de F. Rostro, Fondo de 1938.
Cultura Economica, Mexico, 1965, pp. 15-17. 1.1 Jan Tinb.:r11en, L'êi.·u11u111i!lrie, p. 14.

514 515
Nosso autor considerou a demanda de construções como depen-
dente das seguintes variáveis: a) as mudanças na população; 2. A FORMULAÇÃO DAS RELAÇOES ENTRE AS
b) as variações das rendas; e) os hábitos (exigências de con- VARIAVEIS
forto, ecc.). A oferta de con:,truções, por outro lado, dependia
basicamente de:
aJ relação entre a ~ntabilidade dos imóveis novos alugados
o passo seguinte consiste em vincular as diferentes variáveis
o que itt?p.lica d_ar forma matemática às relações. :Em outros ter:
e a taxa de juros a longo ~prazo; e ~os, dec1d1r o tipo de função (linear, exponencial, etc.) matemá-
b) do número de habiações vazias em cada momento. i i tica que se supõe adequado para "representar" o comportamento
Por outro lado, podemos distinguir dois tipos diversos de ª. que se refere a relaçã? em questão. Este é um problema espe-
variáveis: cialmente complexo e diremos apenas que, na maioria das vezes,
a) endógenas, quando seu valor é dado pelo próprio chega-se a determinar a função depois de um cuidadoso estudo
modelo. Por exemplo: em um modelo bem simples, supondo-se estatístico. ia Também, recorre-se seguidamente a um teorema ma-
que as quantidades demandadas e oferecidas de um único bem temático que ~ostra que, em um pequeno intervalo de variação,
dependam de seu preço, teremos duas equações· q.ualq.u~r funç~o pode assemelhar-se a uma função linear, o que
s1mplif1ca consideravelmente a tarefa de procurar o tipo de função
q, - f ( p) (oferta) adequada ao que descreve a relação.
q~ f (p) (demanda)

No ponto de equilíbrio:
q, = q~ 3. Determinação dâs variáveis

A quantidade e o preço de equilíbrio são determinados, con-


seqüentemente, só pela forma das funções de oferta e de demanda Formuladas as relações, será necessarto determinar as variá-
(que segundo o modelo seguido podem ser uma função linear, veis, ou - em outros termos ·- construir um sistema de equa-
parabólica, etc.). As duas variáveis (preço e quantidade no ponto ções em que figurem as vinculações entre as distintas relações.
de equilíbrio) dependem unicamente da forma da função, isto é, Os. modélos econométricos incluem, geralmente, equações dos se-
são definidas pelo próprio modelo. Em outros termos, são variá- gutntes tipos: u
veis endógenas. Se ampliarmos o modelo, acrescentando a renda
( r), esta nova variáv.el será exógena, pois sua definição não de- a) Equações de comportam~nto: isto é, relações que des-
penderá do próprio modelo; crevem e e.xplicam a conduta dos agentes; por exemplo,
b) exógenas, quando o valor é determinado fora do modelo. as decisões de investimento, ou de gasto de renda do
E o caso das cinco variáveis usadas por Cairncross. consumidor entre consumo e poupança, etc.
Que as variáveis escolhidas sejam quantificáveis, pelo menos
a maioria delas, é um requisito indispensável à formalização, em b) Equações técnicas: relações que descrevam o estado da
primeiro termo, e à verificação estatística, em segundo lugar. Não tecnologia, como as clássicas funções de produção.
se afasta, evidentemente, a possibilidade de também usar algumas
variáveis qualitativas, bem como coeficientes de probabilidade. 12 Citado por C. Morrison, "Note sur ... ", p. 128.
13 Ct. Jan Tinbergen, L'économétrie, pp. 74 e seguintes, para exeriplos.
!4 Pierre Mail!et, L'économétrie. Coleção "Que sais-je?'.'.. Presses Universi·
12 Citado por C Morrison, "Note sur ... -. p. 128. tairs de France, Paris, 1971, p. 17.

516 517
não serão rigorosamente idênncos ao valor observado de Y1. e de
c) Equações institucionais: que revelam aspectos da estru- y. Podemos escrever, conse.qüentcmente:
tura institucional em que o modelo se desenvolve, como
a política fiscal ou de créditos. yi - y*i = E
d) Equações contábeis: que proporcionam a definição d~
uma variável em função de outras, ou expressam igual- Este termo E é denominado erro ou resíduo; em conseqüên-
dades a verificar ex post, como a célebre equação da cia a. relação deverá ser escrita assim:
teoria quantitativa da moeda: p x q =M X V (em
que "p" é o nível de preços; "q" é a quantidade de
bens; "M" a massa monetária e "V" a velocidade de
circulação). Se E não puder ser completamente eliminado, porque sua
origem vem do fato de certas variáveis exercerem um efeito sem
Construído o sistema de , equações, as variáveis ficam deter-
estarem contidas no modelo e por ser possível que a forma -
minadas endogenamente se o número de equações for igual ao
linear no caso - não seja mais do que aproximada, o modelo
número de variáveis (ou incógnitas), requisito de qualquer sistema
de equações a ·ser resolvido. (Neste caso, afirma-se que o ~istema apenas terá utilidade se este resíduo puder ser reduzido a um
é completo. Se o número de incógnitas for maior do qúe o de mínimo. A estatística matemática oferece uma série de métodos
equações é possível resolver o sistema estabelecendo hipóteses al- que permitem vencer tais dificuldades. E podem ser estudados
ternativas sobre o valor das "incógnitas excedentes".) nas ·obras especializadas em. econometria.

4. A verificação estatística
C'LASSIFICAÇÂO DOS MODELOS ECONOMÉTRICOS
Construído o modelo, será · necessário verificá-lo estatistica-
mente. Assim, tratar-se-á de ver se as relações presumidas entre
as diferentes variáveis estudadas concordam com os fatos, ou se Conforme critérios diferentes, é comum classificar os modelos
___: ao contrário - será preciso modificá-las. Por outro lado, mes- econométricos cm tipos. Agora veremos as classificações mais
mo no caso de não se confirmar a relação, a prova estatística --correntes:
dará informaçõf''i adicionais sobre ela - muito m·ais concretas e
eJtatas. a) Do ponto de vista das equações
O problema central da verificação est~tística do modelo está
n,o fato de que, tratando-se de uma representação simplificada i) Uniequaciona/, caso contenha só uma equação, co-
da realidade, as previsões feitas a partir dele não coincidem com mo na função de produção de Cobb-Douglas.
os valores observados . Mais precisamente, em se tratando de ve- ii) Pluriequacional, caso contenha mais de uma e9ua-
rificar uma equação da forma: ção.
y = ax + b
b) Do ponto de vista temporal
sendo y*1i, valor observado de y; xi valor observado de x:
i) Estáticos, se as variáveis não se ref~em a mudança,
y*i = axi + b no iempo, dos elementos, como por exemplo na ci-

518 519
tada função de produção de Cobb-Douglas, ou na tória. Trata-se . de uma contribuição recente de Van der Wee e
lei de Engel de utilização da renda do consumidor. Peeters, denominada "Um modelo do crescimemo intersecular do
ii) o·mám'zcos, se o tempo afetar as variáveis importan- comércio mundial, séculos XII a XVIII 11 •
tes como no modelo do ciclo econômico de Tin- Estes autores começam constando que entre eis séculos XII e
bergen. u XVIII houve um crescimento intersecular da economia mundial,
entretanto não produzido de modo linear. Enquanto os séculos
e) Do ponto de vista dos objetivos XII, XIII e XVI apresentam forte expansão econômica, os séculos
XIV, XV e XVII são de ''trágica" contração. 1·' Logo depºâis en-
.D escritivos, se somente observam variações entre
i) contram uma correlação evidente entre as etapas ,de expansão eco-
distintas variáveis vinculadas. . · nômica e o desenvolvimento comercial. Para os autores, o,. comér-
i1') E xp licativos, se incluem a explicação de umas variá- . cio surge,· pois, como uma espécie de "motor" do desenvolvimento
veis em função de outras . econômico da Europa ocidental, entre os séculos mencionados,
iii) De p~e~isão, se fazem a predição dos valores que obviamente ao· lado de outros fatores; como os demográficos _,....
assum1rao certas variáveis ao variarem outras. que, para os efeitos da pesquisa, são postos de lado. 111 \

iv) IJ_e_ decisão, s~. o modelo for usado para tomar de- Antes de apresentado o modelo sob a forma de equações, é
c1soes de pol1tica eco.nômica (a nível de empresa feita sua exposição literária. Van der Wee e Peeters destacam os
ou de.governo). . seguintes aspectos:

d) Do ponto de vista do campo de aplicação a) O nível de renda depende de três fatores de produção
essencra1s: os recursos naturais, o trabalho e o capitál.
A distribuição desigual destes fatores faz ·com que o co-
i) Par~ia.is, quando se referem a fenômenos econômicos mércio se ·transforme em um fator de otimização da
p11rc1a1s, como a produção ou o consumo de certos renda, pois a especialização regional permite, através do
bens, ou como o equilíbrio parcial em um mercado, intercâmbio, o aumento da renda global.
ou ent~e fluxos de bens e serviços. As funções de b) A economia européia entre estes séculos caracterizava-se
produçao, a econometria da demanda, a análise in- pela presença de dois setores. bem diferenciados. De· um
put-output incluem-se neste tipo. lado o setor agrícola tradicional, de baixa produtividade,
ii) Gerais, quando se referem ao funcionamento do sis- estático, quase auto-suficiente; por· outro, um setor domi-
te~a econômico em sua totalidade, às vezes deno- nado "estrategicamente" pelo comércio e pela indústria,
mmados modelos macroeconômicos. Um C}Cemplo é dinâmico, baseado nas possibilidades de intercâmbio.
o modelo .Klein-Goldberger; elaborado em 1955 para e) O setor tradicional está superpo\'oado, garantindo assim
a economia norte-americana. 10 uma oferta de mão-de-obra excedente aa setQr moderno.
d) A produtividade marginal do trabalho do setor tradicio-
Após esta sucinta introdução, necessariamente inçompleta, va- nal oscila em torno de zero, nada podendo acrescentar
mos passar à análise de um modelo econométrico aplicado à bis- ao produto total, que dependendo do clima e de uma téc-
nica de baixíssimo nível de produtividade para o emprego
IS Cf. Tinbergen, obras citadas nas notas 7 e 9.
16 Klein-Goldberger, An Econometric Mode/ of thº 17 Em A1111ule$ E.S.C., janeiro-fevereiro, 1970.
1952, Amsterdam, 19 ss. ~ United States, 1929-
18 lbid1m1, p, 101.
19 Ibidem, p. - 104.
520
521
A variação de A Y poderá expressar um aumento ( /::;,. Y > O),
um trabalhador a mais; por isto, é suficiente que a pro-
du tividade .marginal do trabalhador empi;egado no setor
uma estagnação ( /j. y = o). ou uma contração ( y < o). a
moderno seja apenas superior a zero para que aumente
o produto ·global. Logo, podemos estabelecer as equações de mudança da renda
nos setores 1 e 2:
e) Se a transferência de mão-de-obra do setor atrasado para
o moderno tornar escassa a mão-de-obra no primeiro,
de tal modo que a produtividade marginal do trabalhador
à Y1 = Y1 (ti) Y, (tu) (4)
AY~ = Y~ (ti) Y~ (to) (5)
rural aumente, a situação pode inverter-se e a mão-de-
obra excedente abandonar o setor moderno para voltar Também, podemos representar as. mudanças da população
ao campo. ativa. Como n1 e n!! expressam percentagens, a soma das mudan-
ças será igual a zero:
Limitamo-nos, apenas, a expor os conceitos. fundamentais da
análise de Van der Wee e Peeters que interessam à compreensão 6. n1 + A n~ = O (6)
do modelo proposto. Omitimos as referências históricas, muito in- A n2 = - A n1 (7)
teressantes, constituindo, de fato, a parte mais destacada do artigo,
como adiante veremos. Em outros termos, o aumento da população ativa no setor
Agora apresentaremos o medeio que emprega, basicamente, 2 produz uma redução da população ativa do setor 1, isto é:
equações de identidade.
As variáveis são as seguintes:
A n1 < O ou - A n1 > O
Portanto, o modelo de Van der Wee e Peeters pressupõe uma
Y = renda total população estacionária.
n = população ativa Agora, podemos refazer a equação ( 1) em função das mu-
subíndice 1: setor tradicional danças de renda:
subíndice 1: setor· moderno.

A renda total da economia será igual à renda dos setores·


tradicional e moderno: Também podemos expressar a equação ( 8) relacionando as
mudanças. de renda à renda total:
(1)

Fazendo igual a 100 o total da população ativa, n1 e n:.i ex- =. (9)


y y y
pressarão, percentualmente, a quàntidade de pessoas ocupadas · nos
setores 1 e 2. ou seja:
Se uma parte da população ativa passar do setor· 1 para o setor
2 a influência do aumento da percentagem da população ativa
100 = n1 + n:i (2)
no setor 2 sobre a mudança da renda tofal estará representada
pela relação A Y
A mudança da renda total· será determinada pela diferença
entre a renda; total no momento t 1 e no mi:>mento to, ou seja:

~ Y = Y(t1) - Y(to) (3)

522 523
Substituindo os termos em C8) teremos: l:J..Y
a renda total deixa de crescer:
y
=o
óY ll.Y1 + AY:i AY1 .J ,ÃY:i

An2
+ ,An:.i Finalmente, é possível verificar-se a situação seguinte:
Ân:i An:!

que, por meio da equação ( 7 ), pode transformar-se em


(15)

+ An:!
( 10.)
em cujo caso a.umentará o desemprego no setor 2 e a mão-de-obra
começa.rá a migrar ·para o setor 1 • Tal situação deu-se na econo-
Da equação ( 10) deduzimos que a relação entre uma mu-
mia continental da Europa nos séculos XIV-XV e XVII
dança de Y e uma mudança de n2 deve ser igual à relação entre
uma mudança de Y1 e urna mudança de n1 (quer dizer, a pro- Sendo o objetivo principal a apresentação do modelo Van
dutividade marginal do trabalho no setor 1) mais a relação da der Wee e Peeters, não o submeteremos a uma crítica profunda. ~io
mudança de Y';!. relativamente à mudança de n:i (quer dizer, a Suas limitações são bastante evidentes e nos limitaremos ·a indicar
os aspectos fundamentais:
produtividade marginal do trabalho no setor 2}.
a) A ausência do aspecto demográfico é sumamente limita-
for positivo, nulo ou negativo, tiva. Não permite explicar, por exemplo, as "catástrofes"
Como anteriormente, se demográficas dos séculos XIV e XVII, em seus efeitos
tu:.1 econômicos•
haverá uma exp~nsão, uma estagnação !9U uma contração da renda
b) não fica esclarecido o papel. do comércio, apresentado
ÂY como causa do desenvolvimento. Pode-se bem sustentar
total. Se: - - > O
o contrário, que o desenvolvimento da produção é que
An2 levou ao crescimento do comércio•
substituindo o primeiro membro de ( 10) resulta:
c) a idéia de que um aumento da r~nda total é semelhante
ÂY1 /:lY:? a um incremento da prosperidade per capita não consi-
--+ >0 ou (13) dera a distr~buição dos lucros do comércio, que estava
longe de ser favorável a toda a população;
Ân1 An:i
d) é duvidoso que se deva. considerar o ·aumento da renda
Assim, pois, sempre que a produtividade marginal do trabalho global como critério único de otimização.
no setor 2 for superior ·à produtividade marginal do trabalho ·no e) Finalmente, embora o modelo· tenha a virtude de apre-
setor l, poder-se-á falar de um crescimento de renda real total, sentar de modo bem mais preciso as idéias expostas,
ou - em outros termos - de um crescimento da prosperidade melhor, de modo literário, não se Jorna evidente qualquer
per capita. Quando igualadas as produtividades marginais: utilidade na referida formalização. Nenhuma hipótese

20 l:U uma crftlca ex.tensa no curso de M. Pierre Vilar: "Agriculture,


= ( 14) Industrie, Commerce Exterleur comme facteurs de demurage économlque
Ân 1 Ân:i Sorbóne, U.V.A. K 240. 1969-1970.

524 525
nova extraiu-se dela, nem mesmo foi enriquecida a de-
A V ALI DA DE HISTÓRICA DOS MODELOS
monstração lógica. A limitação deste modelo, para o
ECONOMETR/COS
que pretende explicar, é, pois, bem óbvia.
Se o problema das fontes realmente, senão em princípio, im-
põe restrições ao uso dos modelos econométricos em história, outra
PROBLEMAS DA VERIFICAÇÃO HISTÓRICA DOS limitação mais grave ainda existe - relativa ao fato de tais mo-
MODELOS ECONOMETRICOS delos terem sido concebidos, em geral, como válidos a prazos
curto e médio, de certo modo deixando de lado a mais típica
Ao submeter-se um modelo econométrico do tipo apresentado duração histórica, que seria o longo prazo. Por exemplo, variáveis
à verificação histórica evidenciam-se uma porção de problemas como a tecnologia, os padrões de consumo ou a política tributária
cuja consideração se impõe. Primeiro, - como quantificar as va- variam muito pouco a curto prazo, sendo considerados constantes
riáveis em questão se, por exemplo, não se dispõe de fontes com ou variáveis explicativas na maior parte dos modelos econométri-
o grau de homogeneidade, validade e continuidade desejados? cos·, mas a longo prazo .é preciso explicar, também, as mudanças
Não falemos do caso em que inexistam quaisquer tipos de que afetam táis variáveis. Assim, na explicação de longo prazo
dados para o que se deseja verificar. A prudência será, aqui, es- ·será preciso empregar uma quantidade muito grande de variáveis
sencial, e deverá afastar, antes de mais nada a tentação de extra- com risco . da explicação não ser satisfatória. Por outro lado, se
polar; isto é,, conhecendo somente alguns pontos de uma série no curto prazo é possível considerar os aspectos social e político
deles deduzir os .restantes. A única maneira de legitimar a extra- como constantes, isto de modo algum vale no longo prazo. Do
polação está em dispor de meios de controle, de variáveis rela- ponto de vista da história seria completamente absurdo considerar
cionadas às estudadas e com e1evado grau de correlação quan.to as guerras, por exemplo, ou os múltiplos fatores capazes de afetar
à curva em causa, que permitam justificá-la. De outro modo, os um modelo ideal de crescimento econômico, como sendo aleató-
riscos de inexatidão são demasiadamente grandes. rios ou exógenos. Sua explicação deve integrar-se ao modelo
Outro problema importante é o da amrutragem. 21 Quando se global. !! 2 ·

trata de medir ~ uma variável macroeconômica, por exemplo - Tudo isto levou muitos historiadores a ·colocarem a necessi-
é difícil encontrar dados representativos do conjunto de uma eco- dade de· construir modelos históricos em que, junto com as va-
nomia nacicnal anteriores à era da estatística. Certamente, encon- riáveis econômicas quántificáveis, integrem-se outras de tipo qua-
tramos dados parciais que, digamos, correspondam a 30% das litativo que se ocupem não só dos fenômenos puramente econô-
empresas agrícolas a estudar. Podemos considerá-los como amos- micos, mas dos aspectos institucionais e de suas modificações.
tra válida e representativa do todo? Evidentemente não, pois os
referidos dados não se conservaram devido a uma seleção fortuita
do conjunto global. ·Assim, pois, o respeito às regras da amos-
tragem probabilística impedem qualquer extrapolação. Em todó
este problema da verificação histórica dos modelos há, entretanto,
um aspecto positivo essencial: mesmo quando as dificuldades de
verificação forem muito grandes, o referido processo conduz sem-
pre a"''foterrogar as fontes de um ponto de vista novo.

21 CI . C. Morrison, Art. dr., pp. t.»-131. 22 Cf. capítulos 1 e 2 deste manual.

526 527
SOMATÓRIO DE QUADRADOS As tabelas de somatórios de quadrados serão usadas da se-
guinte forma:
3 N 4

N N rX"
1 -
1) Usar-se-ão as colunas 1 e 2 em · se tratando de uma
série ímpar de cifras: as colunas 3 e 4 em se tratando
de uma série par.
2) Extmp!o: . Se tivermos uma série de 21 valores, nossa
variável de cálculo "x" irá de O a + 1O e de O a - 1O.
A tabela n_os dá o somatórfo de quadrados para N. - · 1O;
bastará· multiplicar por dois esta cifra para obter o so-
matório dos x:i, isto é, o denominador da fórmula de
l 1 0,5 0,25 cálculo da inclinação da reta de mínimos quadrados.
2 5 1,5 2,50 Com as colunas 3 e 4 procede-se da mesma forma.
3 14 2,5 8,75
4· 30 3,5 21,00
.5 55 4,5 41,25

6 91 5,5 71,50
7 140 6,5 113,75
8 204 7,5 170,00
9 285 8,5 242,25
10 385 9,5 332,50

li 506 10,5 442,75


12 650 11.5 575,00
13 819 12,5 731.25
14 1015 13,5 913,50
1.5 1240 14,5 1123,75

16 1496 15,5 1364,00


17 1785 16,5 1636,25
18 ~ 2109 17.~ 1942,50
19 2470 18.5 2284,75
20 2870 19,5 2665,00

21 3311 20,S 3085,25


22 3795 21,S 3547,50
23 4324 22,5 4053,75.
24 4900 23.5 4606,00
25 5525 24,5 5206,25

26 6201 25,5 5SS6;5o


27 6930 265 6558,75
28 7714 27,5 7315,00
29 . 8555 28,5 8127,25
lO 9455 29.S 8997.50
30,.5 9927,75

~28
TABELA DE NÚMEROS FORTUITOS

00 49487 52802 28667 62058 87822 14704 18519 17889 45869 14454 -i
01 29480 91539 46517 84803 86056 62812 33584 70391 77749 64906
02 25252 97738 23901 11106 86864 55808 22557 23214 15021 54268
03 02431 42193 96960 19620 29188 05863 92900 06836 13433 21709
04 6904 89353 70724 67893 23218 72452 03095 68333 13751 37260

05 77285 35179 92042 67581 67673 6837t 71115 .98166 43352 06414
06 52852 11444 71868 34534 69124 02760 06406 95234 87995 78560
07 98740 98054 30195 09891 18453 79464 01156 95522 06884 55073
08 85022 58736 12138 35148 62085 36170 25433 80787 96496 40579
09 17778 03840 21636 56269 08149 190Ql 67367 13138 02400 89515

10 81833 93449 67781 94621 90998 375"61 59688 93299 27726 82167
11 63789 54958 33167 10909 40343 81023 61590 44474 39810 10305
12 61840 81740 60986 12498 71546 42249 13812 59902 2786-l 21809
13 42243 10153 20891 90883 15782 98167 86837 99166 92143 82441
14 4$238 09129 53031 12260 01278 14404 40969 33419 14188 6llf>f>7

15 40338 42477 78804 36272 72053 079f>8 671$8 60979 79891 92409
16 54040 71253 88789 98203 $4999 96564 00789 68879 47134 83941
17 49lf>8 20908 44859 29089 76130 f>l442 34453 98590 373f>3 61137
18 809$8 03808 8365f> 1805 96563 43582 82207 $3322 30419 64435
19 07636 04876 61063 57571 69-434 14965. 20911 73162 33576 52839

f!O 37227 80750 08261 97"48 60438 7f>053 05939 34414 16685 32103
21 99460 459lf> 4$637 41353 35335 69087 57$36 º68418 10247 93253
2~ 60248 75845 37296 33783 42393 28185 31880 00241 31642 37526
23 95076 79089 87380 28982 97750 82221 35584 27444 85793 6975f>
24 20944 97852 26586 32796 51513 4747:1 48621 20067 88975 39506
25 3'0458 49207 62358 4lf>32 30057 53Ql7 10375 97204 986'75 77634
26 3890:1 91282 79309 49022 17405 18830 09186 07629 01785 78317
27 96$45 lf>638 90114 93730 13741 70177 49175 42113 21600 69625
28 21944 28328 00692 89164 96025 01383 50252 67044 70596 f>8266
2, 36910 71928 63327 00980 32lf>4 46006 62289 28079 03076 lf>619

30 48745 47626 28856 28382 60639 51370 70091 $8261 70135 88259
31 32519 !U993 59374 83994 59873 51217 62806 20028 26545 16820
32 75757 12965 29285 11481 31744 41754 24428 81819 02354 37895
33 07911 97756 89561 27464 25133 50026 16436 75846 83718 08533
34 89887 03328 76911 93168 56236 39056 67905 94933 05456 52347
35 30543° 99488 75363 94187 32885 23887 10872 22793 26232 87356
36 68442 55201 33946 42495 28384 89889 50278 91985 58185 19124
37 22403 56698 88524 13692 55012 25343 76391 48029 72278 58586
38 70701 36907 51242 52083 .. ::126 90379 60380 98513 85596 16528
39 69804 96122 42342 28467 79037 13218 63'510 09071 52438 25840
40 65806 22398 19470 63653 27055 02606 43347 65384 02613 81668
41 43902 53070 54319 19347 ~9506 75440 90826 536!>2 92382 67623
o 49145 71587 14273 62440 15770 03281 58124 09533 43722 03856
43 47363 36295 62126 42358 20322 82000 52830 93540 13284 96496
44 26244 87033 90247 79131 38773 67687 45541 54976 17508 18367
4li 72875 39496 06385 .484!'i8 30545 74383 22814 36752 10707. 48774
48 09065 16283 61398 082118 00708 21816 39615 ·03102 02834 04116
47 68256 51225 92645 77747 33104 81206 00112 53445 0-1°212 58476
48 38744 81018 41909 70458 724f>9 66138 97:.!66 26490 10877 45022
49 4437li 19619 35750 59924 82429 90288 61064 26489 87001 84273

Você também pode gostar