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EDUCAÇÃO EMANCIPATÓRIA: UMA COMPARAÇÃO ENTRE AS

CONCEPÇÕES DE POLÍTICAS EDUCACIONAIS DE JOSÉ PEDRO VARELA E


PAULO REGLUS NEVES FREIRE

Galvão, Juscélio Ronaldo Rodrigues

Resumo

O presente artigo tem como pressuposto a observação das políticas educacionais


adotadas na América Latina a partir do século XIX, e na continuidade, discernir sobre
algumas ideias e conceitos de educação emancipatória comparando as ideias da educação
libertadora de Paulo Freire com as concepções educacionais de José Pedro Varela. Falar de
educação emancipatória é falar também sobre as práticas libertadoras para escapar das
diversas formas de dominação. Tanto as obras de José Pedro Varela quanto as de Paulo
Freire apresentam um diagnóstico preciso da educação em seus países, propondo reformas
radicais do sistema educacional. A partir do estudo realizado, identificamos que esses dois
notáveis educadores conferiram à educação o considerável papel de colaborar para
sobrepujar a ignorância e ao exercício da cidadania, como maneiras de assegurar a
sobrevivência da democracia através da construção de um cidadão emancipado.

Palavras Chaves: Concepção Educacional, Educação Emancipatória, Pedro Varela, Paulo


Freire, América Latina.

Abstract
The present article has as presupposition the observation of the educational policies
adopted in Latin America from the nineteenth century onwards, and in the continuity, to
discern some ideas and concepts of emancipatory education comparing the ideas of the
liberating education of Paulo Freire with the educational conceptions of José Pedro Varela.
To speak of emancipatory education is also to speak of liberating practices to escape the
various forms of domination. Both the works of José Pedro Varela and those of Paulo Freire
present a precise diagnosis of education in their countries, proposing radical reforms of the
educational system. From the study we have identified, these two outstanding educators have
given education the considerable role of collaborating to overcome ignorance and the
exercise of citizenship as ways of ensuring the survival of democracy through the building
of an emancipated citizen.

Key Words: Educational Conception, Emancipatory Education, Pedro Varela, Paulo Freire,
Latin America.
Introdução

O presente artigo procura dialogar com as correntes de pensamento pedagógico no


ambiente sócio educacional do Brasil contemporâneo. A conjuntura atual do ensino público
em nosso país, onde a opressão cada vez menos disfarçada, através de propostas de lei
impedindo que a escola realize o debate sobre conscientização política do cidadão, impondo
a subalternização das pessoas e, consequentemente do próprio país, aos interesses espúrios
de outras nações e grandes conglomerados empresariais.

Em 2006, o Ministério da Educação do Brasil, com o objetivo de fortalecer as bases


nacionais da educação, foi tomada uma iniciativa de elaborar uma lista contendo os nomes
dos mais notáveis pensadores da História da Educação mundial, criou um grupo de trabalho
formado por técnicos do MEC, da Unesco, das universidades e instituições educacionais. O
resultado foi uma lista contendo sessenta nomes de intelectuais, sendo 30 brasileiros e 30
estrangeiros. No Brasil, assim como em outros países da América Latina, desde o início da
colonização europeia até os dias atuais, o sistema educacional sempre foi direcionado para
manter a subalternização das classes sociais menos favorecidas em detrimento da
manutenção da política oligárquica. O presente artigo tem como objetivo geral: o estudo
sobre uma educação pública emancipatória. E como objetivos específicos: I) Procurar
metodicamente dados nas obras de José Pedro Varela e Paulo Reglus Neves Freire que
identifiquem como eles pensam a educação pública; e II) Compreender como suas ideias
sobre educação pública e de qualidade causaram grande impacto à educação e a todo um
sistema social ao apresentar propostas e soluções para os problemas educacionais de seus
países.

Realizamos um estudo bibliográfico das obras de José Pedro Varela e de Paulo Freire,
utilizando a técnica de Análise Temática de Laurence Bardin, por possibilitar destacar os
núcleos de significação que compõem os textos. Há inúmeros questionamentos que podem
ser feitos no que se refere à contribuição desses pensadores no contexto da educação
enquanto maneira de emancipar o cidadão. Ao analisar parte da obra dos dois autores
escolhidos, pode-se afirmar que dedicaram suas vidas para libertar seus países das amarras
colonialistas e eurocentristas, de forma que a educação possa contribuir para a libertação e
emancipação do cidadão.
A Reforma Vareliana: A Educação como forma de Salvar o País do Atraso

Segundo Rocchietti, no Uruguai de meados do século XIX, em um período de


grandes transformações sociais oriundas da longa crise causada pela instabilidade política
resultante do processo de consolidação da independência do país. Por conta disso tudo, o
país estava muito atrasado nos aspectos sociais e econômicos em comparação com outros
países vizinhos.

José Pedro Varela nasceu durante esse período conturbado na cidade de Montevidéu
em 19 de março de 1845 em uma família de comerciantes. Seus pais eram imigrantes
argentinos que se estabeleceram no Uruguai para fugir de perseguições políticas em sua terra
natal depois da ascensão ao poder de Juan Manuel de Rosas. O pai além de comerciante,
também era intelectual, tendo traduzido obras de cunho pedagógico para o espanhol. Pelo
lado materno, a família de Varela contava com a presença de jornalistas, poetas, escritores,
sacerdotes e políticos. Durante sua infância e juventude, o cotidiano a de Varela e sua família
foi marcado por fatos violentos devido à instabilidade política que dominava o Uruguai. Um
fato que seguramente marcou sua infância e consequentemente influenciou na sua escolha
de lutar pelos menos favorecidos ocorreu durante a década de 1850, quando Montevidéu foi
assolada por um surto de febre amarela, viu seu pai trabalhar como enfermeiro voluntário na
Comisión de Caridad. O orgulho e admiração que Varela tinha por seu pai fez com que ele,
mesmo sendo de uma classe social abastada, através de suas publicações, juntamente com
outros jovens escritores de sua geração, como Carlos Maria Ramirez, Augustin de Vedia e
Júlio Herrera Y Obes, intensificasse suas críticas sobre a situação econômica e social do
Uruguai. Foi através de sua participação em periódicos utilizando o pseudônimo de
“Cuasimodo”, que Varela explicitou sua tendência heterodoxa que rompia com o dogma
católico, no artigo intitulado “Francisco Bilbao”, publicado em 24 de março de 1866:

Difundir o verdadeiro espírito dos evangelhos e fazer desse espírito a lei


suprema das nações; traçar no vasto quadro do pensamento americano, a vala
imensa que separa o catolicismo do cristianismo e mostrar que um é a negação de
todos os direitos, a anulação do indivíduo, o rompimento de todos os verdadeiros
vínculos sociais, a exploração do débil pelo forte, do ignorante pelo erudito, do
pobre pelo rico, do crente pelo sacerdote, do laico pelo secular e que o outro é a
proclamação de toda a verdade, o reconhecimento de todo o direito, a reabilitação
de toda a justiça pisoteada, de toda virtude profanada, de toda verdade escarnecida;
predicar incessante a separação da Igreja e do Estado, como base de todo o
progresso e a unificação do cidadão e do crente, como elemento primordial de toda
democracia; deixar nos sulcos do povo a semente do futuro, e apresentar aos
homens como a carta constitucional de todas as consciências, os evangelhos: está
aí a missão de Bilbao (VARELA, 1866 apud CAMARA DE
REPRESENTANTES, 2000a, p. 205).

O texto acima evidencia que Varela defendia a laicização do Estado, pois para ele a
articulação existente entre religião e política era uma das principais causas da debilidade
econômica e social da América Latina.

Varela tinha uma visão iluminista sobre a educação, pois representava o caminho que
poderia levar à democracia e à consequente libertação de um povo. Em suas obras observa-
se uma forte influência do pensamento positivista e do racionalismo, bem como uma postura
anticlericalista. Ao evidenciar a situação precária da educação em seus artigos, ele procurava
mostrar com suas críticas detalhadas que a educação era fundamental para o fim da barbárie
e o progresso da sociedade, pois ao contribuir para a educação moral e política, estaria
também contribuindo para o desenvolvimento econômico do país.

“Assim como a luz do sol”, deveria chegar a todos sem distinção de raça,
sexo ou classe social, “iluminando la conciencia del Pueblo y preparando al niño
para ser hombre y al homem para ser ciudadano” (VARELA apud DEMARCHI
& RODRIGUEZ, 1993: 812). Em tom de preocupação, lamentava a situação
educacional uruguaia. Para ele, as escolas travavam solitariamente verdadeiras
batalhas para “salvarse del inmenso naufragio que las amenaza, con mantenerse
de pie en medio a las ruinas que las rodean” (VARELA, 1964a: 12).

Nas propostas educacionais de Varela, existe uma intenção política mais ampla, com
a finalidade de consolidar o exercício republicano e a práxis democrática no país. Em suas
participações em periódicos como o jornal El Siglo e La Revista Literária, ele com apenas
vinte anos de idade conciliava as atividades de escritor e comerciante defendendo suas ideias
sobre educação popular e republicanismo. Sua atividade literária começou a ficar mais
incisiva e evidente quando ao voltar de uma viagem que ele realizou entre os anos de 1867
e 1868, percorrendo alguns países da América Latina, Europa e Estados Unidos. Esse tipo
de viagem era considerado tradicional para os membros da burguesia de Montevidéu, pois
era comum aos jovens de sua idade viajar para ampliar o seu horizonte intelectual e conhecer
outras culturas. Porém Varela demonstrou além desses, outros objetivos, ao conhecer
pessoalmente o escritor argentino Domingos Faustino Sarmiento, tornou-se seu amigo e
passou a se interessar mais ainda sobre temas educacionais. Também conheceu figuras
importantes do meio literário da época como Horace Mann e do escritor francês Victor Hugo.
Ao conhecer a realidade de outros países, e vendo que o mundo achava que seu país era uma
terra bastante atrasada, ficou revoltado. Essa revolta fica clara nas seguintes frases:
O que terão pensado os três milhões de visitantes vindos de todas as partes
do mundo ao ver que os objetos mais dignos de expor que encontraram em seu
seio a República são os trajes e os utensílios dos cossacos americanos? Não
mandaram nada em boa hora. A maior parte dos visitantes ignorou que há uma
pequena nação que se chama República Oriental. Mas agora, de ter mostrado aos
estrangeiros, como o melhor que há no país, o mais inculto, o mais selvagem que
se exibiu no palácio, agora os ingleses e os franceses e os russos e os austríacos e
todos, enfim, puderam dizer a si mesmos ao ler o nome de República Oriental
sobre um mostruário que guardava um poncho, um chiripá e algumas amostras
infinitesimais de lã, poderão ter dito: “Bem pobre e bem selvagem deve ser a nação
que expõe tais objetos como os mais dignos” (VARELA, 1867 apud CAMARA
DE REPRESENTANTES, 2000a, p. 279.

Durante sua viagem pelos Estados Unidos ficou impressionado pelo número de
escolas existentes naquele país e fez uma comparação com a Espanha, que no lugar de
escolas tinha muitas igrejas e conventos. Outro fato que o surpreendeu naquele país foi
constatar que a mulher tinha participação efetiva na vida civil, ocupando cargos públicos
importantes. Em suas cartas atribuiu o sucesso econômico obtido pelos Estados Unidos ao
investimento realizado em prol da educação pública. Varela também destacava que o povo
uruguaio era generoso e solidário, porém não dava a devida importância para a causa
educacional. Em suas críticas dizia que as escolas travavam uma luta solidária para salvar o
país do atraso.

Ao retornar a Montevidéu em 1868, passou a dedicar-se mais ainda à atividade


jornalística e política, juntamente com Elbio Fernandez, Carlos Maia Ramírez e outros
jovens de sua geração, fundou a Sociedad de Amigos de la Educación Popular, e também
passou a dirigir o jornal La Paz. Varela se tornou um defensor do modelo de educação dos
Estados Unidos e entrou em contato com os autores que o ajudaram a construir. Isso fica
evidente no seguinte discurso:

Durante minha permanência nos Estados Unidos, na consciência, por assim


dizer, do povo norte-americano, que não concebe a república sem a educação; nos
escritos de Horace Mann, de Wickersham, de Andrew, de tantos outros e,
sobretudo, nas obras e palavras de Don Domingo Sarmiento, argentino por
nascimento e por língua, norte-americano pelas ideias e pela educação, adquiri
meu entusiasmo pela causa da educação popular e o fundo geral das ideias que me
proponho desenvolver (VARELA, 1868 apud CAMARA DE
REPRESENTANTES, 1990a, p. 373)
Ao publicar seu primeiro editorial como redator principal do jornal El Siglo em 28
de outubro de 1869, Varela mesmo sendo integrante do partido Colorado, o mesmo do
presidente, chamou os governantes da época de “miseráveis”, sendo preso por isso. Solto
poucos dias depois, retornou a sua atividade de escritor e opositor, sendo preso novamente
em fevereiro de 1870, sendo desta vez mandado para o exílio em Buenos Aires.

Ao retornar do exílio em 1871, Varela se envolveu diretamente na “Revolución de


Las Lanzas” servindo no no 4º Batalhão de Infantaria. Após o fim do conflito armado ele
retomou suas atividades jornalísticas e também políticas. Ao se decepcionar com a política
afastou-se dela e em 1873, iniciou através do jornal El Siglo, uma campanha a favor da
educação pública onde pregava a laicização do ensino. Com isso atraiu a ira da Igreja
Católica, o que lhe causou diversos problemas, pois a educação popular era monopólio da
Igreja Católica, com isso chegou a enfrentar dificuldades financeiras. Mesmo assim,
publicou em 1874, uma de suas maiores obras, o livro “La Educación del Pueblo”. Ainda no
ano de 1874, Varela novamente adentrou no campo da política, sendo candidato a prefeito
ordinário. Mesmo sendo o vencedor do pleito, devido as fraudes e violência do processo ele
não tomou posse e foi novamente exilado na Argentina, de onde retornaria no ano seguinte.

No ano de 1876, José Pedro Varela publicou aquela que seria sua obra de maior
repercussão, La Legislación Escolar, obra de dezoito capítulos, sendo que um deles era
dedicado a um projeto de lei específico à educação, mas também tratava da situação
econômica, social e política do Uruguai. Nesse mesmo ano Varela foi nomeado Diretor da
Instrução Pública de Montevidéu e logo depois foi designado para o cargo de Inspetor
Nacional da Educação Pública (cargo equivalente ao de ministro da educação). Pouco tempo
depois de assumir o cargo, em 1877, conseguiu aprovar o Decreto-Ley de Educación
Comum, que com algumas modificações, utilizou os princípios contidos no seu livro,
realizou um diagnóstico da situação política e educacional na época e convocou todos os
setores da sociedade, promovendo uma verdadeira reforma no sistema educacional uruguaio.
Para Varela, primeiramente era necessário que garantido o direito a educação para todos,
criando meios para que a população tivesse uma instrução mínima, o que possibilitaria
chegar ao ensino superior de qualidade, defendia também a criação de escolas normais com
ensino profissionalizante, principalmente às mulheres, às quais deveriam ser abertas as
portas da docência, das funções públicas e também das atividades comerciais. Assim estas
seriam mais úteis à sociedade e enriqueceriam o espírito pela dedicação a questões mais
elevadas que as habilidades de corte e costura. Pensando nisso afirmou que:

Necessário é, sem dúvida, que haja engenheiros, agrônomos, químicos,


etc.mas estes não poderão chegar a ser tais sem ter passado antes pela escola
primária. Fundemos, pois, a base: quando esta estiver solidamente construída,
levantaremos sobre ela o majestoso edifício com suas colunas, com seus graciosos
pináculos e com suas elevadas cúpulas (EL SIGLO, 1868 apud CAMARA DE
REPRESENTANTES, 1990a, p. 401).
Varela afirmava que o objetivo da escola não poderia favorecer nenhum tipo de
pensamento político, filosófico ou religioso, mas sim sempre reforçar que a intenção de se
defender a reforma educacional consiste na instrução e educação do povo com o esforço de
todos os setores da sociedade. Na ótica de Varela, a educação pública seria o instrumento
capaz de fazer com que a nação alcançasse o sucesso e se libertasse do passado marcado por
violência e atraso.

A reforma educacional implantada por Varela promoveu a obrigatoriedade da


educação pública e do ensino laico. Ele argumentava que várias nações consideradas
“civilizadas” como Suécia, Dinamarca, Noruega, Suíça, Alemanha, Estados Unidos e
Inglaterra já haviam promovido a obrigatoriedade da educação pública. A questão da mulher
também foi abordada no projeto de Varela, pois ele afirmava que a educação feminina
limitava sua ação na sociedade, uma vez que era restrita apenas ao ensino da escrita, da
leitura e de contas, ele propunha que a mulher fosse educada da mesma maneira que os
homens. No primeiro ano de implantação da reforma, apesar das dificuldades, houve um
aumento do número de escolas e também de crianças matriculadas, principalmente no
interior do país.

Acometido por uma grave infecção pulmonar, Varela faleceu em 24 de outubro de


1879. Seu irmão Jacobo Ádrian Varela assumiu seu cargo e continuou a reforma do sistema
educacional uruguaio, que além de sua contribuição pedagógica, também contribuiu para
que o Uruguai se tornasse uma das nações mais estáveis politicamente na América do Sul
do início do século XX.

Paulo Freire: Uma Educação Conscientizadora e Libertadora

O pernambucano Paulo Reglus Neves Feire (1921-1997), se formou em Direito pela


UFPE, mas não exerceu a profissão de advogado. Foi como educador, pedagogo e filósofo
que se realizou profissionalmente. Sua família era de classe média, mas durante a crise
econômica de 1929 passou por dificuldades financeiras, o que influenciou na sua decisão de
preocupar-se com os mais pobres. Destacou-se internacionalmente no campo da pedagogia,
sendo considerado um dos pensadores mais renomados da história da pedagogia mundial. É
o brasileiro mais homenageado da história: recebeu 29 títulos de Doutor Honoris Causa de
universidades renomadas da América e Europa. Em 2008, teve seu nome incluído no
International Adult and Continuing Education Hall of Fame. Com sem método de
alfabetização de adultos, tornou-se inspiração para professores e pedagogos em diversas
partes do mundo, principalmente em países da América Latina, África e Ásia, que devido ao
atraso econômico, possuíam altíssimas taxas de analfabetismo. Em abril de 2012, através
da sanção da Lei Nº 12.612, foi declarado Patrono da Educação Brasileira.

Em nossos cursos de licenciatura e também de pós-graduação, quando o tema é teoria


pedagógica, há o costume de se estudar quase que exclusivamente sobre as obras de autores
europeus ou dos Estados Unidos. Os autores da América Latina são quase desconhecidos, o
que é uma injustiça que estamos tentando reparar ao aprofundar os estudos sobre teóricos de
nossa terra. Estamos atravessando um período conturbado em nossa história, tempos de
“escola sem partido”, onde alguns setores da classe dominante, com pouquíssima ou
nenhuma memória pedagógica, buscam selecionar o conteúdo curricular e como deve ser
ensinado em nossas escolas e universidades, tentando com isso acabar com a educação
crítica e contestadora e fazendo com que ela volte a ser aquela educação bancária, onde o
educando simplesmente decorava os conteúdos repassados.

Em uma democracia contemporânea as discussões sobre o currículo escolar devem


ampliadas e aprofundadas, garantindo a todos os integrantes da sociedade maior participação
sobre o que será ensinado na sala de aula. É nessa direção que a proposta educacional de
Paulo Freire foi fundamentada, onde os conteúdos e ações são articulados para proporcionar
a humanização e libertação dos indivíduos, possibilitando também a emancipação humana e
transformação da sociedade, sempre procurando mostrar que a seleção do conhecimento
escolar favorece a dominação e opressão.

No Brasil, somente com a Constituição Federal de 1988 que a educação pública e


gratuita figurou pela primeira vez como um direito de todos. Diferente do que pensam os
neoliberalistas, o conhecimento não é uma mercadoria que possa ser comprado. A escola
não pode ser vista apenas como uma empresa criada para atender os anseios do mercado.

Paulo Freire iniciou no ano de 1946 sua jornada para diminuir o analfabetismo no
Brasil, quando ao assumir o cargo de diretor do Departamento de Educação e Cultura do
Serviço Social de Pernambuco iniciou o trabalho com analfabetos pobres. Em 1961 tornou-
se diretor do Departamento de Extensões Culturais da Universidade do Recife, onde
começou a desenvolver experiências que o levaram a criar o método de alfabetização popular
que ficou conhecido como “Método Paulo Freire”. Devido aos excelentes resultados obtidos
com esse método, no ano de 1963 o governo do presidente João Goulart criou o Plano
Nacional de Alfabetização, que previa a implantação de 20 mil núcleos de alfabetização pelo
país. Porém, poucos meses depois da implantação do Plano, o Golpe Militar de 1964
interrompeu esse trabalho e Paulo Freire foi preso e condenado ao exílio no exterior. Nos
diversos países em que residiu, atuando como escritor, professor e consultor, sempre
trabalhou em defesa de uma educação conscientizadora e libertadora. Como escritor, em sua
fase de exílio no Chile, escreveu seu primeiro livro, “Educação como Prática da
Liberdade”, obra que o credenciou a ser convidado para ser professor visitante da
Universidade de Harvard. Em sua obra mais famosa, Pedagogia do Oprimido (1968),
também escrito durante seu exílio no Chile e que foi traduzido para diversas línguas, mas
que por se tratar de um escritor exilado, só foi publicado no Brasil após o início do processo
de abertura política do governo Geisel em 1974. Nesse livro Freire defende que a educação
possibilite ao oprimido possa recuperar seu senso de humanidade para que assim supere essa
condição e se torne um ser crítico e pensante, capaz de lutar por seus direitos em uma
sociedade mais justa. Freire Afirmava que o educando através de uma prática dialética
poderia dialogar com sua realidade, sendo capaz de criar sua própria educação e construir
seu caminho de aprendizado. Em seu trabalho na área de educação popular sempre combateu
o que ele chamava de educação bancária, tecnicista e alienante, defendendo um modelo de
escolarização voltada para a formação de uma consciência política. Ele se diferenciou dos
demais pedagogos ao defender o diálogo com as pessoas simples como método de ensino
verdadeiramente democrático.

Outra característica presente no pensamento freireano diz respeito ao modo como


acontecia a “transmissão do conhecimento”, que ele chamava de “educação bancária”. Freire
alertava que esse modelo onde o professor ocupava uma posição de superioridade em relação
ao aluno, estava a serviço da alienação do educando, pois não era concedida a ele o direito
de pensar e produzir conhecimento, tornando-o um ser facilmente domesticado. Em
contraposição a esse modelo, defendia que o conhecimento deveria ser produzido através de
uma interação entre professor e aluno. Assim despertaria a criticidade dos sujeitos, gerando
o inconformismo e dando-lhes forças para buscar mudanças sociais (FREIRE,2013).

"Aqueles que autenticamente se comprometem com o povo devem


reexaminar-se constantemente" (Freire, 1970, p. 60).
Como forma de se contrapor ao sistema tradicional de alfabetização predominante,
ele criticava o uso de cartilhas como método principal para o ensino da escrita e da leitura.
Afirmava que elas ensinavam pela repetição de palavras soltas e sem sentido para o
educando, o que dificultava sua compreensão pelo mesmo. Em substituição a cartilha, ainda
durante o período em que era diretor do Departamento de Extensões Culturais da
Universidade do Recife, juntamente com um grupo de alunos e pesquisadores, criou um
método de alfabetização baseado no que ele chamou de “palavras geradoras”, no qual o
educador observa os vocábulos mais usados pelos alunos e a comunidade e, assim, seleciona
as palavras que servirão de base para as lições. Seu método consiste em três etapas
interligadas: a primeira é a etapa de investigação temática, onde juntamente com o aluno o
professor procura no vocabulário cotidiano do educando e da região onde vive as palavras e
temas centrais, se inteirando do que o aluno conhece para trazer a cultura do aluno para a
sala de aula. A segunda etapa é a tematização, onde novamente juntos, aluno e professor
codificam e descodificam esses temas, na busca de uma visão crítica do seu significado
social. É nessa fase que as fichas para decomposição das famílias fonéticas são elaboradas.
Na terceira etapa é a problematização, onde procuram sugerir ações para superar os impasses
de todo o processo, substituindo assim a visão mágica por uma visão crítica e servindo ao
objetivo final do ensino, que é a conscientização do aluno e transformando-o em sujeito da
própria história.
O método Paulo Freire Chamou a educação de educadores e políticos de várias partes
do mundo. Foi usado pela primeira vez no Centro de Cultura Dona Olegarinha na cidade do
Recife. Foi aplicado inicialmente a apenas cinco alunos, dos quais três aprenderam a ler e
escrever em apenas 30 horas de aula e os outros dois desistiram antes de concluir. Foi na
cidade de Angicos no Rio Grande do Norte em 1963, que o método teve sua eficácia
comprovada, quando foram alfabetizados 300 cortadores de cana-de açúcar com apenas
quarenta horas de aula em um prazo de 45 dias, isso sem usar a tradicional cartilha. Devido
o seu trabalho como escritor e principalmente devido sua dedicação em ensinar os mais
pobres, sempre estimulando sua capacidade criativa, Paulo Freire inspirou teóricos e
professores em diversas partes do mundo. Mas foi nos países pobres da América Latina,
África e Ásia onde o seu método de alfabetização de adultos ganhou reconhecimento. Na
década de 1970 Freire trabalhou como consultor educacional do Conselho Mundial de
Igrejas e ajudou na reforma educacional na Guiné-Bissau e em Moçambique. Na África do
Sul, suas idéias e métodos foram fundamentais para a criação do Movimento da Consciência
Negra.
No Brasil, somente com a anistia política de 1979 que as idéias de Paulo Freire
puderam ser debatidas nas universidades e implantadas em algumas cidades, o que é muito
pouco para demonstrar a grandiosidade de sua obra para a educação. No período de 1989 a
1991, quando era secretário de Educação da cidade de São Paulo, Freire teve a oportunidade
de implementar seu método de alfabetização, quando criou o Movimento de Alfabetizaçãode
Jovens e Adultos (MOVA), que foi um modelo de programa de apoio a salas comunitárias
de educação de jovens e adultos que foi adotado em numerosas cidades brasileiras. O fato é
que mesmo tendo o reconhecimento internacional, o método de alfabetização criado por
Paulo Freire não teve a aplicação em larga escala em nosso país, apenas pequenos projetos
isolados.
Apesar de em seu próprio país alguns afirmarem que devemos expurgar Paulo Freire
dos debates acadêmicos, existem dados que mostram sua importância para toda a
humanidade, como a pesquisa realizada em 2016 pelo Open Syllabus, que é um projeto da
Columbia University, que pesquisou em mais de um milhão de programas de estudos dos
Estados Unidos, Reino Unido, Autrália e descobriu que Pedagogia do Oprimido é o 99º
livro mais citado, fazendo de Paulo Freire o único brasileiro entre os 100 mais citados e o
segundo melhor colocado no campo da educação. Outra pesquisa da London School of
Economics descobriu que Pedagogia do Oprimido é o terceiro livro mais citado no planete
na área das Ciências Sociais, segundo dados do Google Acadêmico.
Uma situação de aplicabilidade incontestável do método de alfabetização criado por
Paulo Freire aconteceu em Cingapura. Nesse pequeno país asiático, logo após sua
independência da Inglaterra em 1965, seu governo deparou-se com uma situação de atraso
econômico e altíssimas taxas de analfabetismo, com a adoção do método freireano e
valorizando a profissão do educador, em poucos anos o país a situação mudou: segundo a
Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), atualmente
Cingapura aparece no topo do ranking PISA, que mostra os resultados em 75 países sobre o
desempenho de jovens de 15 anos de idade nas disciplinas de matemática, ciências e leitura.

Considerações Finais

Quase um século separam a Reforma Vareliana e a Pedagogia Freireana. Uma breve


análise da realidade do Uruguai da época de José Pedro Varela e do Brasil de Paulo Freire
mostrará que temos muitos pontos em comum: em ambos os países existem heranças
coloniais marcantes que ainda conseguem influenciar na existência de altas taxas de
analfabetismo, desigualdade social e atraso econômico. Os dois pensadores defendiam que
a educação seria o único caminho possível para que o povo pudesse romper as amarras do
atraso econômico e social e, consequentemente, conquistar sua emancipação de forma
definitiva. Eles também enfatizaram que aeducação é um direito de todos, e que por isso
deveria ser pública, laica e gratuita, onde o Estado teria que garantir esse direito a todos os
cidadãos, independente se fossem do meio rural ou urbano, rico ou pobre.
José Pedro Varela, talvez pelo fato de ter origem em uma família aristocrática,
conseguiu ainda em sua breve vida, através de sua obra literária com idéias positivistas e
anticlericalistas, denunciar a situação precária do sistema educacional de seu país. Chegou a
ocupar o cargo mais importante da educação em seu país na época, como Inspetor da
Instrução Pública do Uruguai (equivalente a ministro da Educação), conseguiu implantar em
seu país uma reforma do sistema educacional baseada em sua obra literária e forma de
pensar. Mesmo que essa reforma não tenha sido implantada em sua totalidade, serviu como
ponto de partida para a pacificação do Uruguai no final do século XIX, contribuindo para a
melhoria da qualidade de vida de sua população.
O brasileiro e pernambucano Paulo Freire foi um teórico humanista. Em toda sua
obra literária e nos projetos que desenvolveu defendia que a educação deveria ser de
fromação crítica e conscientizadora, abrangendo a todos e principalmente aos menos
favorecidos. Assim a educação seria a ferramente necessária para acabar com a opressão
social. Ele defendia que o processo de ensino deveria ocorrer através da troca de
conhecimento entre aluno e professor, tornando o educando em sujeito de sua própria
aprendizagem.
Vemos com preocupação o cenário político atual em nosso país, uma vez que parte
da classe política e alguns setores da sociedade declaram abertamente a intenção de censurar
o trabalho do professor, proibindo a discussão sobre temas que abordam assuntos sobre
política e direitos humanos sob a alegação de que possuem viés de esquerda. Para isso
pretendem proibir que escolas e universidades debatam ou mesmo ponham em prática idéias
defendidas por autores como Pedro Varela e Paulo Freire. Com essa censura o que se
pretende na verdade é evitar que a educação conscientize. Sabemos que a escola não é lugar
de partidiarização política de nenhum viés, mas antes de tudo é sim um lugar de debate
político, conscientização e defesa dos direitos humanos, pois escola não é apenas um lugar
onde vamos aprender a ler e escrever para conseguir um bom emprego. É na escola que o
homem aprende como participar da transformação do mundo em que vive.
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pedagógica. Recife: Massangana, 2006. p. 73-84.

https://novaescola.org.br/conteudo/4939/paulo-freire-ontem-hoje-e-amanha?utma_source=
facebook# - Acesso em 11/11/2018 às 05h e 20min.

http://www.institutoayrtonsenna.org.br/pt-br/radar/o-que-cingapura-pode-nos-ensinar.html

Acesso em 23/11/2018 às 21h e 30 min.

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