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A Suméria e os testemunhos

extrabíblicos de Gênesis 1-11


Rodrigo P. Silva, Th.D.
Professor de Novo Testamento no Salt, Unasp-EC

Resumo: Durante séculos, a histori- in History), with Genesis 1 – 11, pre-


cidade dos capítulos 1-11 de Gênesis senting similarities that give evidence
permaneceu sem questionamentos. to the trustworthiness of the sacred
No entanto, a partir do século 19, no- text. The author holds that the content
vas correntes teológicas passaram a of Genesis is not plagiarism of tho-
oferecer outra interpretação para esse se ancient writings, arguing that such
texto, compreendendo-o como mera extra biblical writings are twisted ver-
fábula criada pelos judeus ou plagia- sions of the true biblical account, and
da de mitos mesopotâmicos. Tal leitu- not the opposite.
ra, porém, coloca em dúvida todas as
demais doutrinas bíblicas. Portanto, o Introdução
presente artigo compara narrativas de
civilizações primitivas, especialmente A realidade histórica dos capítu-
de Eridu (o mais antigo centro urbano los 1-11 de Gênesis é de fundamental
da história), com Gênesis 1-11, apre- importância para a Teologia Cristã.
sentando semelhanças que eviden- Sem ela todas as doutrinas presentes
ciam a fidedignidade do texto sagra- na Bíblia caem por terra. Se a história
do. O autor sustenta que o conteúdo do Éden não aconteceu de fato, então
de Gênesis não é um plágio daqueles a humanidade não caiu em pecado e
antigos escritos, sendo que eles é que não teria do que ser redimida. Logo,
trazem deturpações da história real. todo o sistema sacrifical dos hebreus
e a morte expiatória de Cristo na cruz
Abstract: For centuries, the histori- do Calvário perderiam completamen-
city of chapters 1 - 11 of Genesis re- te seu significado.
mained unchallenged. However, from Em virtude disso, desde os tem-
the 19th century on, new theological pos bíblicos até por volta do século
trends started to offer another inter- 18, era notório o entendimento histo-
pretation for this text, considering it a ricista dessa porção das Escrituras.1
mere tale created by the Jews or pla- Muitos autores do Antigo e do Novo
giarism of Mesopotamic myths. Such Testamento referem-se aos elementos
reading, however, casts doubt on all de Gênesis 1-11 como relato factual.2
other biblical doctrines. Therefore, Nenhum deles propõe a mais remota
this article compares narratives of pri- possibilidade de que se trate de uma
mitive civilizations, especially that of lenda ou alegoria. O próprio Jesus
Eridu (the most ancient urban center Cristo citou pelo menos 25 vezes por-
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ções de Gênesis 1-11 retratando-as supondo que seja verdadeira a versão


como material histórico.3 do Gênesis acerca da criação de Adão
Mesmo com a inauguração da es- e Eva e sua respectiva residência num
cola alegorista de Orígenes, a maioria jardim chamado Éden (com a conse-
dos expoentes da teologia cristã ain- guinte perda do paraíso e a destruição
da era unânime em aceitar os capítu- do mundo por meio de um dilúvio),
los iniciais do Gênesis como história é de se esperar que os primeiros des-
real.4 Dentre eles figuram-se nomes cendentes daqueles que sobreviveram
como Agostinho, Lutero e Calvino. à catástrofe ainda retivessem em sua
Contudo, com o advento do ilu- memória ou em sua tradição elemen-
minismo alemão e a conseguinte tos dessa história primordial. Sua
inauguração das correntes teoló- transmissão teria sido feita por ances-
gicas de Tübingen e Göttingen no trais que conheceram o mundo pré-
século 19, um novo entendimento catastrófico ou pré-diluviano.
mitológico do Gênesis começou a Tal tradição, a princípio oral, de-
tomar conta dos meios acadêmicos, veria inevitavelmente aparecer nos
sobretudo, europeus. Lideradas res- primeiros escritos da humanidade
pectivamente por Ferdinand C. Baur caso estivessem cronologicamente
(1792-1860) e Julius Wellhausen próximos àqueles eventos cuja gran-
(1844-1918), essas novas interpreta- deza e extensão seriam muito impor-
ções julgaram por um tempo que o tantes para serem olvidados. A expul-
Gênesis não passava de uma fábula são de um paraíso idílico, a destruição
criada por judeus. Depois ampliaram da raça por meio de um dilúvio uni-
sua teoria, supondo que todo o Pen- versal, a confusão idiomática trazida
tateuco era um conjunto editado de pela construção de uma torre eram
contos oriundos de outras mitologias acontecimentos traumáticos demais
encontradiças na Mesopotâmia.5 para serem ignorados, pelo menos nas
Neste artigo pretendemos sugerir primeiras gerações.
outra interpretação a partir das evidên- Portanto, se estamos realmente
cias textuais e arqueológicas recupera- falando de acontecimentos históri-
das no Antigo Oriente Médio. Nosso cos, aqueles episódios mencionados
foco será sobre as culturas que remon- no Gênesis devem obrigatoriamente
tam aos primórdios da civilização hu- compor o primeiro legado cultural
mana. Por isso, daremos uma ênfase da civilização humana. E após a in-
especial à descoberta de Eridu, o mais venção da escrita, eles seriam, sem
antigo centro urbano da história huma- dúvida, a principal temática sobre a
na, e às tradições literárias relaciona- qual escreveriam.
das a ele. Tais fontes coincidem com Seguindo alguns teóricos da etno-
as primeiras tradições literárias com- logia, podemos questionar o conceito
postas a partir da invenção da escrita. darwinista de “culturas pré-históricas”
A hipótese que queremos testar à como representando algo atrasado,
luz da cultura material é a seguinte: primitivo, típico de trogloditas habi-
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tando cavernas.6 Consideraremos a safra de soldados armados, seria na


“pré-história” não como uma fase pri- verdade uma pessoa real, posterior-
mitivista da história geral, mas apenas mente mitificada, que havia original-
como aquele período que antecede ao mente emigrado da Fenícia e fundado
surgimento da escrita. Partiremos do a cidade de Tebas. Foi ele quem levou
princípio de que a linguagem escrita aos gregos os conhecimentos rudi-
iniciou-se como um sistema de signos mentares do alfabeto transformando
que serviria de apoio às funções inte- para sempre sua sociedade.10 Logo,
lectuais, especialmente as de memória. não é inverossímil sugerir que mitos
Daí a ideia de que as primeiras epo- e personagens da literatura mesopo-
peias – usadas como recurso mnemô- tâmicos também contenham traços
nico - conteriam traços do que aconte- de historicidade, oriundos do período
ceu no prólogo da história humana. anterior à invenção da escrita.
É igualmente possível supor que
Hipótese de trabalho um mesmo acontecimento esteja no
nascedouro cultural de múltiplas tradi-
Tudo isso, até aqui, é ainda um es-
ções étnicas. Nosso pressuposto é que
quema hipotético que pode ser testa-
a semelhança entre alguns mitos da
do numa comparação entre o que diz
antiguidade pode ser explicada não ne-
o Gênesis e os primeiros testemunhos
cessariamente pela dependência literá-
escritos produzidos pela humanidade
ria ou pela coincidência, mas pelo fato
por volta do terceiro e segundo milê-
deles terem se originado de um mes-
nios a.C.7 Não se deve, porém, esperar
mo acontecimento histórico que agora
um decalque exato de um pelo outro.
passou a ser contado de maneira alegó-
As semelhanças, se houver, devem
rica, distorcida, mas ainda possuidora
ser quanto aos elementos centrais. Já
de alguma verdade moral ou filosófica
o arcabouço argumentativo certamen-
que deveria ser transmitida.11
te sofrerá descontinuidades próprias
Conforme já dizia Evêmero, es-
de cada segmento cultural.
critor grego do século 4 a.C., os mitos
Embora as publicações atuais,
com exceção de Joseph Campbell8, não passavam de “relatos fantásticos
tendam a ser um tanto céticas em re- nascidos de fatos históricos”. Segun-
lação aos resultados da “mitologia do ele, os deuses gregos tiveram sua
comparada”, ainda é válido trabalhar origem em seres humanos notáveis,
com a possibilidade de que alguns divinizados pelo medo ou pela admi-
mitos sejam oriundos de fatos e per- ração dos povos.12
sonagens históricos que foram poste- Reconhecemos, no entanto, a
riormente mitificados.9 impropriedade dessa hipótese para
A maioria dos especialistas em explicar inequivocamente todas as
literatura grega, por exemplo, suge- semelhanças culturais e religiosas
re que o personagem Kadmos, que existentes nas sociedades humanas.
segundo a lenda, semeou a terra com Contudo, a suposição de que mitolo-
dentes de dragão e colheu dela uma gias diferentes possam ter uma fonte
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histórica comum não é um conceito Metodologia da pesquisa


totalmente ultrapassado.
Um dos grandes problemas quan-
Fatos e documentos levantados
do estudamos as origens da raça e da
pelas Ciências Sociais (especialmente
civilização humana é a distância en-
a antropologia cultural e a etnografia)
tre o pesquisador e o sujeito/objeto a
têm demonstrado que fortes aconteci-
ser estudado. Como dizia Trigger, “a
mentos (como supostamente é o caso
arqueologia é a única disciplina que
dos eventos descritos no Gênesis),
busca estudar o comportamento e o
uma vez testemunhados por diferen-
pensamento humano sem ter contato
tes povos, tendem a se transformar
direto com qualquer um deles”.15
em mitos e adquirirem uma determi-
Ademais existe o fato de que par-
nada carga simbólica para cada cul-
te da observação será sobre restos
tura à medida que passam de geração
materiais incompletos, deixados por
em geração.13 Isso não equivale dizer,
grupos étnicos que não mais existem.
conforme a proposta histórico-cultu-
Aí entra o desafio de fazer “pedras e
ralista, que toda cultura só é obtida
cerâmicas falarem”, sem cair em exa-
por difusão e migração.14 Não obstan-
gerados subjetivismos.
te, é notória a existência de algumas
O desconhecimento científico de
tradições culturais comuns a vários
uma porção da história primeva que
povos que podem ser traçadas com
não pode ser “repetida” gera, obvia-
relativa segurança até a um elemento
mente, limitação de resultados. Nesse
central que seria a fonte comum para
ponto é preciso ressaltar que, embora a
vários segmentos sociais independen-
Arqueologia e a História compartilhem
tes. Noutras palavras, se a história de
o mesmo objetivo no que diz respeito a
Adão a Babel ocorreu, as primeiras
conhecer o passado, elas são distintas
civilizações deverão fazer menção a
quanto ao seu objeto de estudo.
ela. A Bíblia não será a única a apre-
Ao passo que a documentação tex-
sentar tais acontecimentos.
tual é a fonte por excelência da histo-
Resta, contudo, definir que ele-
riografia, a cultura material existente
mentos tornariam o relato do Gêne-
num sítio (isto é, os restos materiais
sis distinto em relação aos demais
deixados por povos antigos) será o ob-
mitos mesopotâmicos ao ponto de jeto-central de estudo do arqueólogo.
podermos considerá-lo um relato de Não poucas vezes, é claro, ambas
natureza única e não um plágio da as fontes (documental e material) não
literatura que o antecedeu. Isso será serão condizentes. Um navio naufra-
feito no final do artigo aonde argu- gado pode ter em seu diário de bordo
mentaremos textualmente porque o a explicação de que se tratava de uma
Gênesis – apesar de ser mais recente fragata da marinha mercante. Mas o
que a maioria dos mitos apresenta- que os arqueólogos encontram em
dos – não constitui uma adaptação seu porão são contrabandos e corpos
de contos anteriores ou uma versão de escravos que o comandante queria
comum entre as demais. a todo custo ocultar das autoridades.
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Assim a arqueologia permite contar tuais contemporâneas. Uma lançará


uma história que nem sempre estará luz sobre a outra.
nos relatos oficiais. Felizmente no caso da Mesopo-
Em virtude disso, alguns enten- tâmia temos tanto a documentação
dem que a cultura material deveria ser material como a textual. Ambas po-
considerada superior à fonte textual, derão ser comparadas procurando
porque os documentos escritos po- captar o sentido do mito para cada
dem ser contaminados por linguagem grupo, isto é, elo de ligação entre
política, propagandística ou de pseu- suas ideias e monumentos e a antiga
dolegalidade que resultará numa im- história à qual acenavam: a história
pressão distorcida dos fatos. O antigo dos primórdios da humanidade.
historiador Heródoto16, por exemplo, As principais fontes da literatu-
afirmava que as muralhas de Babi- ra mesopotâmica são os documentos
lônia tinham perto de 100 metros de sumerianos e acadianos descobertos
altura, 25 metros de largura e 95 km nas escavações de muitos sítios loca-
de comprimento, o que, a arqueologia lizados ao longo do Crescente Fértil
demonstrou ser um terrível exagero. que estende desde os montes Zagros
E é óbvio que seria. no Irã, até aos desertos da Arábia co-
Para outros, no entanto, a cultura brindo grande parte do atual Iraque.17
material é demasiadamente fragmen- São milhares de tabletes de argila,
tária para se retirar dali uma história selos cilíndricos, estelas, monumen-
conclusiva. É necessário que se en- tos arquitetônicos e artefatos gerais
contre um texto antigo, preferencial- contendo escrita cuneiforme. Muitos
mente contemporâneo aos eventos, deles são textos econômicos, admi-
e que explique o que aquilo signifi- nistrativos, legais ou escolares. Ou-
cava. Escavar, por exemplo, um des- tros são arquivos religiosos, cartas,
conhecido assentamento debaixo da hinos, épicos, provérbios, crônicas,
areia do deserto, só nos permite di- coleções de encantamentos, cálculos
zer que ali havia uma cidade, porém, matemáticos, prescrições médicas e
sem uma inscrição, um mapa antigo até referências astronômicas.
ou um texto contemporâneo seria Em meio ao vasto acervo encon-
quase impossível dizer que cidade tram-se referências a divindades, mi-
seria aquela ou que pessoas moraram tologias, sagas, heróis e, para interesse
dentro de seus muros. particular desta pesquisa, cosmogo-
As evidências arqueológicas, nias evidenciando sua versão para a
portanto, não são tão detalhadas e origem do mundo e da humanidade.
objetivas como gostaríamos que fos- Nossa seleção de textos dentro
sem, mas não conduzem ao agnosti- do corpus literário segue o esquema
cismo. Apesar de nem sempre serem de Falkenstein18 que distingue entre
conclusivas, elas podem oferecer dois maiores períodos de criativida-
pistas preciosas, principalmente se de, descritos por Hallo19 como “ne-
vierem acompanhadas de fontes tex- ossumeriano” (2115-1815 a.C.) e o
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“pós-sumeriano” (1500–1100 a.C.). mos, na verdade, é uma reconstrução


Contemplaremos também uma longa hipotética que, em última instância,
tradição literária anterior, que reme- demanda fé de ambos os grupos (dos
te ao período do “Antigo Sumeriano” que aceitam e dos que negam a vera-
(2900-2400 a.C.), embora pouquíssi- cidade histórica da Bíblia).
mas cópias existam que sejam datá- A fé, portanto, não é um assenti-
veis dessa época. mento exclusivo dos religiosos. Aca-
Apresentaremos, portanto, uma dêmicos que acreditam em algo que
síntese conjunta (mas não exaustiva) não viram com os próprios olhos es-
das várias tradições, priorizando as tão de certa forma exercitando sua fé
continuidades com a história do Gê- naquela hipótese de trabalho que con-
nesis e as versões mais antigas, des- sideram mais adequada para explicar
tituídas ao máximo daquelas adições as fontes textuais e a formação do re-
gistro arqueológico.
posteriores feitas nas culturas neoas-
síria e neobabilônica.
A redescoberta da Mesopotâmia
Nossa proposta metodológica ain-
da segue no exercício de cruzar os Quais foram os primeiros assen-
dados oriundos dessas fontes mate- tamentos humanos que poderíamos
riais e escritas e correlacioná-los com corretamente classificar de “cida-
a história do Gênesis. Analisaremos de” ou “civilização”? Durante muito
em conjunto as evidências materiais tempo os gregos foram vistos como
encontradas em solo e os mais anti- os fundadores da civilização, pois os
gos textos da humanidade para com historiadores europeus (desconhecen-
elas responder à pergunta: O que os do a riqueza cultural das Américas e
habitantes das primeiras civilizações do Oriente Médio), entendiam a polis
diziam quanto ao começo da raça hu- grega como o elemento decisivo de
mana? Afinal, eles estavam bem mais transição entre barbarismo e a vida ra-
perto das origens do que nós. Vive- cional civilizada (se bem que os pró-
ram no terceiro milênio antes de Cris- prios gregos admitiam com relutância
to e estão quase 5 mil anos no pas- uma grande admiração pela sociedade
sado. Vale à pena ouvir suas versões, egípcia). Mas hoje esse é um concei-
examinando as evidências que eles to ultrapassado. Povos anteriores aos
deixaram e comparando-as posterior- gregos podem legitimamente ser con-
mente com versão bíblica. siderados grandes civilizações.
É claro que não temos uma pedra Muitos pensaram na China, no Egi-
original do jardim do Éden, ou uma to, em Jericó para explicar os começos
amostra orgânica do corpo de Adão da organização social que chamamos
para provar sua existência – como, de “cidade”. Mas, a maioria dos aca-
aliás, também não temos nada de dêmicos de hoje – ainda que falem de
concreto que indique que a história se “reinvenções” da cidade – continuam
desenrolou exatamente como suge- apontando para a Mesopotâmia como
re a teoria evolucionista.20 O que te- sendo o berço da civilização humana.21
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Foi lá que tudo começou, ou “recome- museus sem muita preocupação com
çou” se entendermos que os que ali o local aonde foram encontrados. A
fundaram as primeiras cidades chega- descoberta da pedra Roseta pelos sol-
ram à região como imigrantes vindos dados de Napoleão e os monumentos
de outra localidade. que os franceses e ingleses levaram do
A Mesopotâmia contém uma geo- Egito para a Europa no final do século
grafia arqueológica de interesse mun- 18 caracterizam bem esse tempo.
dial. Seu nome deriva de duas pala- Foi nesta mesma circunstância de
vras gregas meso que quer “meio” e efervescência exploratória que Clau-
potamos que quer dizer “rio”. Logo, dius James Rich, um representante da
Mesopotâmia seria “terra entre rios”, companhia das índias orientais, se in-
exatamente por causa dos dois rios, teressou pelas antiguidades locais da
Tigre e Eufrates, que compõem o ce- região do Crescente Fértil.
nário da região. A princípio, o ambiente não era ar-
A área em redor também é chama- queologicamente promissor. As cidades
da de Crescente Fértil exatamente por que ali existiram estavam completa-
ter uma terra arável, em meio a um mente soterradas pela areia do deserto
deserto, disposta no formato de uma e a paisagem não tinha aquelas monu-
lua crescente delimitada entre os va- mentais ruínas como as encontradas
les dos dois rios que desembocam no no Egito. Por isso, o local permaneceu
Golfo Pérsico. abandonado por milênios e muitos du-
Havia ainda duas regiões geográ- vidaram da possibilidade de se encon-
ficas bem distintas: a parte norte, na trar naquele deserto algum indício dos
Alta Mesopotâmia, era mais monta- áureos tempos em que ali se estabelece-
nhosa, desértica e menos fértil. Já o ram as primeiras civilizações.
centro e o sul do vale, onde se encon- Desafiando o ceticismo de seus co-
travam a Média e a Baixa Mesopotâ- legas, Rich explorou várias ruínas e fez
mia, eram constituídos de planícies algo hoje inaceitável, mas totalmente
muito férteis em função do curso dos comum na ocasião: recolheu para sua
rios que nascem nas montanhas da própria coleção uma enorme quantida-
atual Armênia e deságuam separada- de de objetos com inscrições antigas,
mente no Golfo Pérsico. Ainda em como tijolos, tabletes de argila, cilin-
termos geográficos é importante dizer dros com desenhos em baixo relevo,
que o nome Suméria aplica-se à Bai- estátuas e cerâmicas. Quando ele mor-
xa e Média Mesopotâmia, enquanto a reu vitimado por cólera em 1821, sua
Acádia aplica-se à parte Alta que seria coleção foi adquirida pelo Museu Bri-
o sul da moderna cidade de Bagdá. tânico, onde permanece até hoje.
As escavações na Mesopotâmia Na época em que milhares de ca-
começaram numa época, em que a Ar- cos de argila contendo antigas inscri-
queologia era marcada pelo colecio- ções cuneiformes começaram a che-
nismo e pelo antiquarismo, ou seja, os gar em Londres, por volta de 1818,
artefatos eram achados e levados para ninguém tinha ainda condições de ler
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ou decifrar o que eles continham. Não Henry Rawlinson, que os interpretou


obstante, esta leva de artefatos aca- graças à comparação com outras ins-
bou se transformando num grande in- crições encontradas em Persépolis.
centivo para a arqueologia na região,
pois despertou o interesse de outros A origem dos assentamentos
exploradores que queriam conhecer
Os textos decifrados e o registro
melhor as terras que foram palco de
arqueológico escavado revelavam im-
importantes eventos mencionados na
portantes detalhes, mas também sus-
Bíblia e ligados com as origens da ci-
citavam intrigantes perguntas: quem
vilização humana.
seriam afinal aqueles povos? Quando
Foram muitas as escavações locais,
e por que migraram para a região?
usando os próprios nativos como ope-
Qual era sua cosmovisão? Que versão
rários, tradutores e guias. Acostuma- cosmogônica eles apresentavam para
dos ao rigor do deserto e possuidores sua origem e para o surgimento da hu-
de uma valiosa tradição oral, aqueles manidade (i.e. seus ancestrais)?
beduínos foram de grande ajuda para Segundo os textos descobertos,
os pesquisadores europeus. Em pouco os sumérios afirmavam ser descen-
tempo, ruínas de antigos palácios co- dentes daqueles que vieram da região
meçaram a aparecer em meio à terra sagrada de Dilmun e sobreviveram ao
e aos cacos de argila contendo mais e “grande dilúvio”. A localidade dessa
mais inscrições. região ainda é ponto controverso en-
O local da antiga Babilônia aca- tre os arqueólogos e assiriologistas.
bou sendo um dos primeiros a serem Alguns pensam que seria a parte sul
reconhecidos por causa da tradição do Irã, outros apontam o vale do Indo,
dos beduínos que por séculos chama- a vila de Shat al-Arab (entre a moder-
vam aquele lugar de Ill Babil ou Tell na Qurnah e Basra) ou ainda a ilha de
Babil, isso é montanha de escombros Bahrain no Golfo Pérsico.22
da Babilônia. Depois vieram outros Esta última identificação parece
exploradores como Paul Émile Bot- hoje ter mais adeptos que as anteriores.
ta, Henry Austen Layard e Hormuzd Não obstante, nossa atenção se volta
Rassam (o único nativo da região). não para a tentativa de localização atual
As explorações foram brindadas com desse sítio (que possivelmente foi des-
a descoberta de antigos centros como configurada pelo mencionado dilúvio),
Nínive, Uruk (que na Bíblia aparece mas para o epíteto que se associa ao seu
com o nome de Ereque), Kish, Ur e nome. Dilmun (às vezes transliterado
outros. A mais antiga de todas as ci- como Telmun) é descrito como “o lugar
dades também foi encontrada. Seu aonde nasce o sol”.23 isso sugere que
nome era Eridu. os Sumerianos descenderam de algum
A decifração dos textos cuneifor- grupo vindo do Oriente, que sobreviveu
mes, que permitiu montar parcialmen- a uma gigantesca inundação.24
te o quebra cabeças dos sítios à medida É notória a coincidência entre essa
que iam sendo escavados, deveu-se a geografia e a menção bíblica de que,
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antes que do grande dilúvio, Deus Foi em Dilmun que Enki, seduzido
plantara “um jardim no Éden, na di- pela deusa Uttu31, trouxe para ela um
reção do Oriente”, i.e, do nascimento fruto especial como condição para que
do sol (Gn 2:8). Mas as semelhanças dormissem juntos. Enki conseguiu o
não se resumem a isso. que queria, mas como resultado, a ter-
No tablete intitulado “Enki e ra passou a brotar ervas daninhas que
Ninhursag”25, Dilmun é descrito como ele comeu, perdendo assim a imorta-
um lugar puro, sem doença, sofrimen- lidade. Amaldiçoado por sua esposa
to ou morte. Um lugar de paz, bên- Ninhursag, Enki começa a deteriorar,
ção e fertilidade. É a “boca dos rios” mas, por um ato posterior de miseri-
(como em Gn 2:10: “e saía um rio do córdia ele é restaurado à vida. A seme-
Éden para regar o jardim e dali se di- lhança com o Gênesis está na sedução
vidia, repartindo-se em quatro partes). envolvendo um fruto, na descrição da
Aliás, a ênfase nas “águas” é essencial, terra produzindo ervas daninhas, na
segundo Roberto Oro,26 para entender maldição que vem do erro de comer
o significado hebraico do termo Éden algo proibido e na perda da vida eter-
(‘ēden). Sua forma verbal ‘dn signifi- na. Mas note-se que aqui não se tra-
ca “dar um abundante suprimento de tam de seres humanos e sim de deuses
água”, “prosperar, fazer crescer”. Essa (como dissemos, também existem de-
etimologia sustenta-se em Gênesis sigualdades entre os relatos).32
13:10: “Levantou Ló os olhos ... viu a Foi depois desse episódio que veio
campina do Jordão que era bem rega- a criação da humanidade, segundo
da, ... como o jardim do Senhor”. De uma das versões, “formados do pó da
igual modo, embora alguns pensem terra” por obra de Ninhursag.33 Então
que Dilmun venha de uma desconheci- veio a destruição de quase todos por
da etimologia pré-sumeriana27, é pos- meio de um dilúvio e o repovoamento
sível que seu significado seja: Dil (ou do mundo por aqueles que sobrevi-
Til) = vida ou manter a vida + UM = veram à catástrofe, ficando errantes
crescer a semente + N = sufixo locati- pelo deserto, até chegarem à região
vo. Literalmente: “o lugar onde cresce do Crescente Fértil.
e mantém a semente da vida”.28 Do ponto de vista arqueológico,
Os sumerianos tinham também o as primeiras evidências mostraram
vocábulo edin para se referir a uma que realmente houve na Mesopotâmia
planície, pradaria ou, nalguns casos, uma sedentarização das comunidades
até a um deserto.29 Já o equivalente humanas que migraram para lá vindos
acadiano posterior seria edinu, que de outra região durante a passagem do
por semântica passou a significar Paleolítico para o Neolítico, o que te-
“um local abundantemente regado”.30 ria ocorrido,segundo alguns autores,
A relação entre esses signficados e o por volta de 10000 a.C. A cronologia
sentido hebraico de “Éden”, apresen- desse êxodo é questionada por alguns
tado acima por Oro, dificilmente seria especialistas e ainda está passível de
mera coincidência. discussão, embora não seja nosso ob-
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jetivo fazê-lo aqui.34 Quanto, porém, à nário progresso. Admite-se, frente ao


precedência dessas organizações civi- sucesso das atividades produtivas lo-
lizadas a qualquer outra do mundo, é cais, que por volta de 3000 a.C. (data
quase unânime a opinião de que essas que pode ser corrigida) algumas cida-
são as mais antigas unidades metro- des mesopotâmicas cresceram tanto
politanas que podemos rastrear com ao ponto de reunir, segundo algumas
ferramentas da arqueologia histórica. estimativas, mais de 30 mil habitan-
Segundo Childe (e isso é pratica- tes, a exemplo de Uruk e Ur.37
mente um consenso entre os arqueó- Quem hoje visita aquele local di-
logos), houve três ocorrências que le- ficilmente tem ideia da grandeza que
varam à invenção da cidade ou, como foram esses centros urbanos do passa-
ele prefere chamar, à “revolução ur- do. Em Ur, Eridu e Lagash chegava-se
bana na Mesopotâmia” .35 Primeiro, de barco! Mas os restos arqueológicos
bruscas mudanças no clima mundial desses centros jazem agora no meio
impossibilitando que os humanos so- do nada, em pleno deserto iraquiano.
brevivessem a menos que trabalhas- Ocorre que o meio ambiente nunca
sem em grupos para encontrar abri- mais permaneceu o mesmo. Ficou em
go e obter comida. Segundo, que tal constante alteração depois da grande
cooperação permitisse aos grupos se mudança climática que culminou no
especializarem em tarefas variadas, fenômeno da glaciação. Na Mesopotâ-
podendo trocar seus produtos com ou- mia as margens do Golfo retrocederam
tros membros de outros grupos, a fim cerca de 200 km para longe de onde
de suprirem as necessidades gerais de estariam os portos no terceiro milênio
todos. Terceiro, a invenção da roda, a.C. A descrição geográfica encontrada
da agricultura e do artesanato em ce- em alguns tabletes cuneiformes sus-
râmica que fez com que a luta pela so- tenta essa afirmação. Ademais diversas
brevivência se tornasse menor.36 atividades humanas tais como canais
Então apareceram as cidades na de irrigação, agricultura, pastagem de
Mesopotâmia, sendo Eridu a primei- animais e construção de novas cidades
ra delas. Todas a princípio assentadas também contribuíram para a mudança
entre a latitude de Eridu (30º norte) e do curso dos rios e a drenagem de boa
Uruk/Ereque (32º norte). Depois foram parte de seu leito fluvial.38
espalhadas para Canaã (Jericó), o norte Seja como for, no terceiro milênio
da África (Egito) e o vale do Indo. a.C. o ambiente ainda era bastante
O surgimento desses núcleos ur- convidativo. Assim, com a fundação
banos foi acompanhado do desen- desses centros urbanos desenvolveu-
volvimento de um complexo sistema se naturalmente a política, o comér-
hidráulico que favorecia a utilização cio e a religião – todos usando como
dos pântanos, evitava inundações e ferramenta a recém inventada arte de
garantia o suprimento de água para os escrever. Por isso, os tabletes são ri-
períodos de seca. Havia portos, esco- cos em informações administrativas,
las, intenso comércio e um extraordi- comerciais e teológicas, embora a ri-
A Suméria e os testemunhos extrabíblicos de Gênesis 1-11 / 29

gor os cidadãos mesopotâmicos não Era também o lugar de origem não


faziam distinção entre uma coisa e apenas da civilização sumeriana, mas,
outra. Tudo era parte do mesmo paco- por implicação, de todo centro urbano
te cultural. Não havia separação entre que posteriormente se originou dali.
religião e Estado; comércio e litur- Já nas primeiras etapas da prospecção
gia; artesanato e adoração. O Patesi de superfície, começaram a aparecer
(nome dado ao líder local) desempe- fragmentos de cerâmica, vasos, está-
nhava ao mesmo tempo as funções de tuas e uma boa quantidade de inscri-
rei e sacerdote. ções cuneiformes, desde os primeiros
estágios de formação da escrita.
O assentamento de Eridu A equipe começou os trabalhos de
escavação pelo topo da colina de areia
Apesar do esforço conjunto exis-
(Tell) aonde havia traços de um anti-
tente entre as comunidades e a livre
go edifício composto de maciças pa-
troca comercial, elementos étnicos co-
redes e vários degraus de uma enorme
meçaram a surgir, distinguindo os ci-
escada. Era de fato o resquício do que
dadãos de um e de outro assentamento.
fora outrora um edifício monumental
Diferentes modos de vestir, falar, agir
agora escondido por milênios de de-
e, principalmente, governar revelavam
posição arenosa. Tratava-se de um
agora o modus vivendi das cidades. Os
Zigurate, ou seja, uma torre-templo
monarcas, então, aproveitando esse
muito alta construída para adorar as
primeiro gérmen de nacionalismo,
divindades locais e, conforme revela-
construíram templos de elaborada ar-
riam os escritos cuneiformes, permitir
quitetura para servirem como centro
que alguns escapassem com vida caso
político, econômico e religioso. Na
voltassem a sofrer outra inundação
literatura começam a ampliar as dife-
enviada pelos deuses. Como veremos
rentes versões do passado.
mais à frente, a lembrança de um di-
Eridu, o mais antigo dos assen-
lúvio e o receio que o mesmo voltas-
tamentos (e por isso escolhido como
se a ocorrer pareciam muito fortes na
nosso estudo de caso), é uma boa sín-
mente daqueles cidadãos!
tese das crenças que havia na região.
É aqui que destaca-se a importân-
É o topônimo de um lugar conhecido
cia desse Zigurate local e das demais
pelos árabes como Abu Shaherein.
ruínas de 31 torres sagradas desco-
Suas escavações foram iniciadas em
1946, tendo como diretor um arque- bertas em outras partes da região. O
ólogo iraquiano chamado Fuad Safar. zigurate de Eridu fazia parte de um
Como não era muito experiente, Safar complexo de 16 ou 19 ocupações.39
contou com a ajuda técnica do britâ- A que está no topo, sendo, portanto,
nico Seton Lloyd, que atuava como a mais recente, é datada em torno do
conselheiro de campo. ano 2100 a.C.. Essa datação foi pos-
Em pouco tempo, o sítio revelou sível graças a tijolos comemorativos
ser a representação da mais recuada que faziam parte da estrutura original
época de habitação humana na região. e traziam inscrições dedicadas aos
30 / Parousia - 1º semestre de 2010

reis Ur Nammu e Amar-Sin, gover- cúltico. Os altares foram os primeiros


nantes da terceira dinastia de Ur, por santuários e o sacrifício de cordeiros
volta ao século 21 a.C.. ou ovelhas, a mais antiga forma ritua-
Os arqueólogos ainda encontraram lística de que se tem notícia.
sob uma das esquinas do Zigurate as Eridu começa com um altar apa-
paredes de outros prédios mais anti- rentemente perpetuando a atitude de
gos, todos feitos de adobe. E no nível Noé ao sair da arca. Mas há um ele-
mais baixo um elemento especial: sob mento estranho no ambiente: entre
a duna de uma areia limpa, havia um os achados do VIII nível estratigrá-
altar que seria a mais antiga edificação fico, foi encontrada uma considerá-
de todo o complexo arquitetônico. Era vel quantidade de rolos cerâmicos
um altar modesto cuja área não ia além assemelhando-se a serpentes, o que
de 3 metros quadrados. Continha um indicou, para a surpresa de todos, que
pedestal de frente para a entrada e um houve nalgum estágio da cidade a
nicho numa parede. Aquele foi, prova- substituição sacrifical do cordeiro por
velmente, a primeira edificação feita outro animal ou a mistura sincretista
pelos habitantes de Eridu como pedra do antigo culto com alguma forma de
fundamental da cidade. adoração à serpente.43
Note-se a semelhança desse ato com Novamente é notório que todos
as referências bíblicas à construção de os demais edifícios cúlticos que se
altares sacrificais a Deus, uma prática seguiram até à construção de sua tor-
vinda desde os tempos adâmicos e se re templo, ocupam sempre o mesmo
tornara o primeiro ato de Noé ao sair lugar, o novo edifício era erguido so-
da arca juntamente com sua família bre as bases do anterior, aproveitan-
(Gn 8:20 e 21).40 Aliás, segundo o es- do seus alicerces e até parte de suas
tudo de Moshe Weinfeld41, a prática de paredes. Foram séculos de edifica-
erguer altares, mencionada na Bíblia, ções sobre a mesma elevação, até ao
está intimamente atrelada à fundação ostracismo completo da cidade por
de um novo assentamento urbano. De volta do ano 600 a.C.
fato, o altar de Jacó erguido em Betel Quanto aos Zigurates (o de Eri-
parece intrinsecamente lidado à fun- du e os demais), não há como evitar
dação da nova cidade e concorre para a comparação com o episódio da torre
confirmação dessa tese. de Babel registrado em Gênesis 11. À
De acordo com o léxico sumeriano semelhança do programa de gover-
produzido por John Halloran42, o mes- no de Ninrode, tanto Eridu quando as
mo pictograma usado para expressar cidades circunvizinhas centralizaram
“curral de ovelhas” (tùr, turs) funcio- sua sociedade na construção de torres
nava frequentemente como metáfora monumentais. Embora essas torres
para representar um templo ou santu- às vezes pareçam ter objetivos dis-
ário. Assim, o achado de Eridu, junta- tintos44, de um modo geral, as razões
mente com a narrativa bíblica, corro- bíblicas para a edificação da torre de
boram com a explicação do fenômeno Babel identificam-se com o contexto
A Suméria e os testemunhos extrabíblicos de Gênesis 1-11 / 31

mesopotâmico sugerido pelo registro seguiu recuperar apenas um pedaço


arqueológico. Em ambos os casos, a pequeno do texto que teria original-
construção de uma torre oferece união mente de quatro a seis colunas. Na
política e cultural à comunidade, a fim coluna 1, linha 8 começava a menção
de que seus moradores não dispersem de um povo (os babilônios?) que pe-
para outros assentamentos ou criem caram por construir uma torre. Algu-
novos centros urbanos. Isso provocaria ma divindade, descontente, espalhou-
uma degeneração da metrópole.45 Tal os pela face da terra e tornou confusa
programa centralizaria o poder num só sua linguagem e seu conselho.
lugar e aumentaria o controle por parte Quanto ao nome “Eridu” (eri-
do patesi local. É difícil afirmar, con- du10), temos aqui uma palavra cuja
forme as recentes tentativas de David etimologia ainda é objeto de discussão
Rohl46, que o Zigurate de Eridu fosse entre os especialistas.49 As sugestões
a mesma torre de Babel mencionada variam entre “a boa cidade”, “a bela
na Bíblia. Não obstante, a semelhança cidade” e “lugar poderoso”. Outra pos-
contextual entre o relato escriturístico sibilidade menos aventada é conectar
e esses monumentos é o suficiente para o nome com a palavra urudu (cobre).
estabelecer a evidência historiográfica Seja como for, como lembra Leick50,
de Gênesis 11. a palavra pode estar conectada a um
Isso sem contar que tradições pos- substrato linguístico pré-sumeriano. E,
teriores testemunham de um tempo de fato, os sumérios escreviam Eridu
em que os habitantes da suméria fa- usando o duplo signo NUN.KI.
lavam uma só língua que depois foi Jacobsen sugere que o signo NUN
confundida espalhando os povos. A seria uma designação antiga – par-
edificação de uma torre ofensiva aos cialmente um nome, parcialmente um
deuses aparece nalguns fragmentos epíteto – para o deus Enki (o patrono
como motivação para isso. de Eridu) e que o KI designaria um lu-
Num texto sumério intitulado gar conectado com esse deus ou com
“Enmerkar e o Senhor de Aratta”, há, a “divindade” de um modo genérico.
segundo a tradução inglesa de Kra- Logo, NUN.KI seria “o lugar (ou a ci-
mer, a clara menção de uma época em dade) de Enki” ou “cidade divina”.51
que havia “harmonia de línguagem Não se pode olvidar, porém, como
em toda Suméria” e os cidadãos “ado- lembram Leick52 e Unger53, que o sig-
ravam a Enlil numa só língua”.47 Mais no NUN remete a uma espécie de ár-
abaixo o texto faz menção a Enki, o vore, junco ou um sinônimo tardio da
deus patrono de Eridu, o que pode palavra “princípe”.
remeter a tradição para os tempos do Nesse sentido, vale mencionar a
terceiro milênio a.C. referência sumeriana a uma árvore es-
George Smith48, um dos primeiros pecial chamada KHALUB. Sua mais
assiriólogos da Inglaterra, também completa descrição aparece no mito
publicou o fragmento de um tablete de “Gilgamesh, Enkidu e o Mundo
que admitiu tê-lo intrigado. Ele con- dos Mortos”. Lá fala de uma árvore
32 / Parousia - 1º semestre de 2010

solitária plantada às margens do rio Segue-se a isso o desafio de re-


Eufrates que ligava o Céu e a Terra. cuperar grande parte dos tabletes que
Mas ela foi originalmente infectada estão em péssimo estado de conserva-
por uma “serpente que não pode ser ção, principalmente aqueles do Antigo
seduzida” e pelo terrível pássaro An- Sumeriano. Existem muitas palavras
zud, uma criatura demoníaca retrata- que são obscuras e a sintaxe de várias
da na literatura e na iconografia como sentenças ainda é um mistério. Mui-
uma mistura de leão e águia com dois
tos textos permanecem introduzidos
chifres na cabeça.54
e não analisados, principalmente al-
Vários cilindros e painéis sume-
guns que jazem, infelizmente, presos
rianos mostram seres alados prote-
em coleções particulares sem acesso
gendo a árvore sagrada para que os
seres humanos não chegassem até ela. para os especialistas.
Um exemplo clássico é o relativamen- Mesmo com tais impedimentos,
te bem preservado mural do palácio muitos progressos foram feitos na
de Zimri-Lim, rei de Mari (perto do compreensão do corpus literário me-
Eufrates) datado de cerca 1778-1758 sopotâmico, especialmente aquele que
a.C. (época de Hamurabi). Ali é pos- gravita em torno de Eridu, o mais anti-
sivel ver claramente as criaturas ala- go e proemimente dos assentamentos.
das protegendo a árvore sagrada. De um modo geral, os textos cos-
Mais uma vez, percebe-se a conti- mogônicos mencionam os seguintes
nuidade com as referências bíblicas à elementos encontradiços também na
árvore da vida e aos querubins alados versão bíblica das origens:
que a vigiam depois da queda humana, 1 – A criação e desobediência do
impedindo seu acesso aos descenden- gênero humano, feito a partir do bar-
tes de Adão e Eva (Cf. Gn 2:9; 3:24). ro, que perde o paraíso.
2 – A maldição que segue à de-
O mito de Eridu sobediência trazendo sofrimento aos
habitantes da Terra.
A lista das composições literárias da 3 – O início da família humana mar-
Mesopotâmia é tremendamente com- cado pela tragédia de um fratricídio.
plexa. Somente num dos carregamen- 4 – A humanidade que se torna má
tos da época de Rawlinson, o Museu e, por isso, é destruída por um dilúvio.
Britânico recebeu de uma vez mais de 5 – O perecimento de quase todos,
25 mil tabletes, provindos da antiga bi- menos alguns que são preservados
blioteca de Assurbanipal. Separar esse pelos deuses.
acervo e classificá-lo cronologicamente 6 – A construção de uma torre
e em composições literárias é até hoje sagrada e a confusão de idiomas
um a árdua tarefa. Uma lista extensa, que espalha os homens pelos quatro
porém ainda incompleta foi editada por cantos da Terra.
Samuel Kramer55 e outra por Pritchard Até mesmo Levi-Strauss que con-
no ANET56. Ambas ainda servem de re- siderava o relato da criação um mito
ferência para muitos pesquisadores. foi forçado a admitir que “grande
A Suméria e os testemunhos extrabíblicos de Gênesis 1-11 / 33

surpresa e perplexidade surgem do em sumério de Abzu (Ab = águas, Zu


fato de que esses temas básicos para = distantes). Os textos, então, falam de
os mitos da criação são mundialmen- poderosas criaturas “pré-diluvianas”
te os mesmos em diferentes áreas do chamadas Anunnakis que alguns in-
globo”, não só na Mesopotâmia, mas terpretam como sendo seres “divinos”.
também fora do Oriente Médio.57 Outros entendem que seriam apenas
Há várias versões para o mito de criaturas poderosas. O nome Anunaki
Eridu, preservadas e editadas inclusive vem de alguma das seguintes etimolo-
nos tempos neobabilônicos. Na versão gia: “da-nuna”, “da-nuna-ke4-ne”, ou
babilônica, por exemplo, será Marku- “da-nun-na”, e significaria algo como
que o fundador da primeira cidade e “aqueles de sangue real” ou “os pode-
não Enki, conforme o relato sumeria- rosos da dinastia”.59
no. Seja como for, de um modo geral, Dentre os Anunnakis havia, segun-
os tabletes mais antigos informam que do o mito do Atrahasis, um grupo in-
Eridu foi a primeira cidade a ser criada, ferior chamado Igigi.60 Embora tives-
uma das cinco fundadas antes do dilú- sem antes servido a Enlil e aos demais
vio (embora, uma versão assíria afirme Anunnakis superiores, eles iniciaram
que Nippur a precedeu no tempo58). uma rebelião reclamando o direito de
Enki, que é uma divindade ligada serem divinos (comp. com Gn 3:4 e 5).
às águas (mais tarde reconhecido como Numa assembleia celestial, ocorrida
Ea), ergueu para si uma casa (templo) e em função da guerra, os Igigi (em nú-
a decorou com todo tipo de pedras pre- mero de 300) são punidos e separados
ciosas, ouro e lapislazuli. Ele encheu dos demais Annunakis bons (em nú-
o lugar com música, para comemorar mero de 600). Do total, evidentemente
sua criação. Eridu era bela, cercada simbólico, temos a proporção de um
de águas por fora e por baixo, mas as terço rebelde contra dois terços fiéis
águas não a submergiam. (comp. com a imagem de Apocalipse
No final de sua criação, Enki con- 12:3 e 4, 7-12).61 Segundo esses textos,
vida os deuses para abençoar o que a humanidade teria sido criada para re-
ele havia criado. Uma festa, pois, é povoar o céu, suprindo a lacuna que
preparada com todo protocolo neces- os deixaram, daí o seu ódio pelo gêne-
sário. No ápice do encontro, Anu, o ro humano.62 Outras versões, como o
deus-pai de Enki, diz alegremente pe- texto sumeriano de Enki e Ninhursag,
rante todos: “Meu filho Enki construiu acrescentam que a humanidade tam-
seu templo ... e ele cresceu do solo e bém foi criada para trabalhar e servir
encheu a terra como uma montanha” aos deuses, no lugar dos Igigi que de-
(compare com a visão de Nabucodo- sertaram de sua função.
nosor acerca de uma pedra celestial O primeiro ser humano criado rece-
que cresce e enche toda a Terra, em be, de acordo com a escola sumeriana
Daniel 2:35). de Eridu, o nome de Adapa. Em 1906
As mesmas águas que circundavam Archibald Sayce argumentou que o
a cidade eram o reino de Enki chamado nome Adapa deveria ser transliterado
34 / Parousia - 1º semestre de 2010

como Adamu.63 Apesar do grande res- xílio de Enki, prosseguir na criação


peito pela erudição de Sayce, alguns se do ser humano.
mostraram um tanto reticentes quanto Num outro tablete também é dito
a essa equiparação, embora, até hoje, que Adapa, foi o responsável por tra-
não se tenham apresentaram arrazoa- zer os seres humanos para habitarem
dos convincentes para descrê-la a não em Eridu. Mas antes de chegar ali, eles
ser o fato de que o nome sumeriano andaram errantes pelo deserto (literal-
é mais frequentemente grafado como mente, pelas “terras secas”), dividindo
Adapa e que o hebraico ả dam aparen- o território com animais selvagens. À
temente é uma boa palavra semítica semelhança do Adão bíblico, esses se-
mais conectada com o árabe ả nām e o res humanos andavam originalmente
babilônio amēlu.64 nus! Eles viviam naturalmente assim
Porém, uma evidência encontra- desde que foram colocados para traba-
da posteriormente reforçou a tese de lhar na planície de edin tendo os ani-
Sayce. Descobriu-se que o signo pa mais por companhia (o texto é dúbio
tinha nalgumas vezes o valor de mu. quanto à convivência pacífica ou não
O princípio que governava a transcri- do homens com esses animais).
ção de nomes e palavras era a seleção Um vaso de alabastro datado do
de caracteres cujo som pudesse ser terceiro milênio a.C. foi encontrado
harmonizado com seu significado ori- em Uruk, cidade vizinha de Eridu.
ginal. Nesse caso, a última sílaba de Nele há uma fila de homens nus ofe-
um nome grafado como Ada-um era recendo à deusa Ianna cestas cheias
representada por um ideograma que de colheitas. Alguns especialistas têm
não apenas tinha a representação fo- interpretado que esses homens seriam
nética de um, mas também significa- sacerdotes, trabalhadores do campo
va “homem”. Adapa era para ser lido ou adoradores numa cerimônia litúr-
Adawa ou Adamu e isso é idêntico a gica que remetia sua memória a esse
Adão tanto em fonética quanto em tempo em que os homens ainda não
etymologia e significado.65 precisavam de roupas para se vestir
Adapa também é formado do pó (compare com Gn 2:25).
da terra, exatamente como diz em Os sumérios também tinham uma
Gênesis 2:7, embora em seu caso versão parecida com alguns elementos
haja a estranha mistura de carne e que aparecem em Gênesis 3. Num dos
sangue proveniente de um deus imo- tabletes é dito que Ninhursag a consorte
lado. Segundo o que encontramos de Enki, incumbiu seu amado, de cui-
no poema do Athrahasis, depois que dar dos animais e do jardim. Mas ele se
houve a batalha celestial envolvendo tornou curioso e seu assistente, Adapa,
os Annakins e os Igigi, Geshtu-e (um selecionou sete plantas proibidas e lhas
dos rebeldes) foi escolhido para ser ofereceu. Enki ficou então doente e sen-
morto. O motivo era para que a partir tiu dores em sua costela. O sinal gráfico
de seu sangue (misturado com carne para “costela” em sumério é “Ti” que
e barro) Ninmah pudesse, com o au- quer dizer tanto “costela” como “vida”.
A Suméria e os testemunhos extrabíblicos de Gênesis 1-11 / 35

Os outros deuses convenceram cimento pleno” (similar ao “conheci-


Ninhursag a resolver a questão. Ela, mento do bem e do mal”). Após esse
então, criou Ninti (Nin= Senhora; Ti ocorrido, Ishtar lhe declara: “Você
costela) para curar Enki e dar-lhe vida. agora é um conhecedor, Enkidu. Você
Na versão bíblica, Eva (que significa será igual aos deuses”.
“vida”), é criada da costela de Adão. Sobre “a árvore da vida” é impor-
Noutra versão ainda mais elabo- tante dizer que essa expressão não
rada, Adapa, criado sem imortalida- ocorre em nenhum texto sumeriano
de, é obrigado a comparecer perante descoberto até hoje. Contudo, ela
os deuses por causa de seu erro (ele pode ser deduzida das representações
quebrou o vento sul com a vela de seu iconográficas de rituais religiosos
barco). Um ser divino que nalguns em que uma árvore sagrada aparece
momentos aparece como guardião do como elemento de destaque. É o caso
submundo, noutros como guardião do da tradição posterior acerca da árvore
portal dos deuses, oferece-se como sagrada de kiskanu, que foi plantada
intercessor para levá-lo às divindades. no túmulo de Adapa, em Eridu, para
É esse mesmo guardião, que a mando homenageá-lo e servir de referencial
de Anu, coloca diante de Adapa um para rituais religiosos.66
alimento proibido que só os deuses Uma mescla entre os mitos de
poderiam consumir para ter vida eter- Adapa e o dilúvio, fez com que o
na. Se Adapa cedesse em experimen- primogênito da humanidade fosse
tar o banquete, certamente morreria, cultuado como um herói, recebendo
mas, diferente do Adão bíblico, ele se o título de Abgallu, isto é, ab=água,
recusou comer o alimento dos deuses, gal=grande, lu=homem.
razão pela qual é elogiado. Como re- Os tabletes trazem ainda uma lista
compensa por sua esperteza e sabedo- de reis sumerianos que governaram
ria, Enki dá a Adapa um conhecimen- Eridu por assombrosa quantidade de
to proibido aos homens e restrito aos tempo (“milhares de anos”, conforme
deuses. O guardião que ajuda homem o entendimento dos tradutores). Sua
a obter esse conhecimento secreto é dinastia, no entanto, é bruscamente
Ningishzida, um ser associado nos interrompida pela frase “então veio o
mitos sumerianos tanto à serpente dilúvio”. Assim fala-se de monarcas
quando ao dragão alado. Seu nome pré e pós diluvianos (compare com
significa “senhor da árvore cobiçá- Gênesis 5 e 10).
vel”, expressão que novamente nos A inundação foi tão intensa que
remete a Gênesis 3:6. apenas alguns se salvaram liderados
Num texto babilônico posterior, o por Utnapishtim ou Ziuzudra. Ele foi
mesmo episódio acontece tendo como orientado pelo deus Enki a construir
protagonista Enkidu, um amigo de um barco e assim sobreviver às águas
Gilgamesh (lendário herói sumeria- abismais que cairiam sobre a terra.
no) que seduzido por uma cortesã da À semelhança da história bíblica de
deusa Ishtar passa a ter um “conhe- Noé, ele também leva animais e pes-
36 / Parousia - 1º semestre de 2010

soas consigo no barco. Até que depois Gênesis apresenta seu pecado e deso-
do periodo de chuvas, o barco enca- bediência. Como cristãos tendemos a
lha no topo de uma cordilheira mon- assumir esses pontos em nossa teolo-
tanhosa. Para garantir se as águas ha- gia, mas, via de regra, falhamos em
viam mesmo abaixado Utnapishtim reconhecê-los na estrita originalidade
solta uma pomba, mas ela retorna. da mensagem de Gênesis 1-11… Em
Depois de alguns dias ele solta um todos esses casos não há nenhuma
corvo e esse não voltou. Era o sinal evidência do mais simples emprésti-
de que havia terra seca e eles pode- mo literário feito pelo escritor hebreu.
riam sair em segurança. Uma vez são É claro que seria mais fácil supor que
e salvo, o herói oferece um sacrifício ele tivesse plagiado vários motivos
aos deuses Anu e Enlil que respiram mitológicos, transformado-os e inte-
a fumaça e ficam satisfeitos. grado-os a uma história nova e origi-
nal de sua própria autoria. Só que, en-
Conclusão quanto Adapa respeitou o mundo do
deus Ea e não comeu o fruto proibido,
A disposição comum de muitos Adão e Eva rejeitaram a ordem do Se-
comentaristas já não é atribuir à Bí- nhor e seguiram a serpente.”68
blia a “invenção” de seus relatos e
De fato, embora tenhamos destaca-
sim de havê-los plagiado ou copiado
dos neste artigo várias semelhanças entre
desses mitos mesopotâmicos. Mas
o relato bíblico e as versões mitológicas
não precisamos, necessariamente op-
sumerianas, essas continuidades estão
tar por essa conclusão apenas por ser
claramente restritas àqueles elementos
o caminho mais fácil de se interpretar
as coincidências. Excelentes traba- do mito que podem evidenciar traços co-
lhos foram publicados questionando muns de historicidade dos fatos. Os pa-
a ideia comum de que o Gênesis seja ralelos verificados constituem não uma
o resultado “adaptado” de um em- emulação ou endosso da cultura pagã,
prétimo litetário feito pelos judeus na mas uma subversão dela. As posições
vasta literatura mesopotâmica.67 teológicas do Gênesis e da literatura su-
Notemos, ainda, esta importante meriana são tão oponentes entre si, que
observação de Wenham: “O pano de ainda que o autor bíblico tenha tido al-
fundo do Gênesis no Antigo Oriente gum contato com qualquer desses mitos,
está focado em questões diferentes certamente escreveu com o fim de refu-
daquelas que ocupam os leitores mo- tá-los e não de inspirar-se neles. Existe
dernos. Ele afirma a unidade de Deus uma grande controvérsia entre as fontes
em face ao politeísmo; sua justiça, no que diz respeito às afirmações sobre
em lugar de seus caprichos; seu poder Deus, a origem do universo e o propósi-
como o oposto de sua impotência; sua to da criação humana.
preocupação pela humanidade, ao in- K. A. Kitchen observa que “a su-
vés de sua exploração dela. Ao passo posição comum de que esse relato
que a Mesopotâmia prende-se à sabe- [bíblico] é simplesmente uma versão
doria do homem primevo, o relato do simplificada de lendas babilônicas é
A Suméria e os testemunhos extrabíblicos de Gênesis 1-11 / 37

um sofisma em suas bases metodoló- atenção em nossa pesquisa compara-


gicas. No Antigo Oriente Próximo, a tive foram os desvínculos teológicos
regra é que relatos e tradições podem entre o Gênesis e os mitos sumeria-
surgir (por acréscimo ou embeleza- nos. Além daquelas já mencionadas
mento) na elaboração de lendas, mas por Wenham, podemos ainda anotar
não o contrário. No Antigo Oriente, as seguintes descontinuidades:
as lendas não eram simplificadas para 1 – Os mitos simplesmente não
se tornar pseudo-histórias como tem concebem a unicidade do conceito de
sido sugerido para o Gênesis”69 Deus. Seu ponto de partida é a neces-
Quanto às alegadas semelhanças sária existência de múltiplos deuses.
estruturais entre o relato bíblico da Cada um criando um elemento cosmi-
criação e os tabletes do Enuma Elish, co diferente: Anu cria os as estrelas
ou o paralelo literário entre a história e constelações, Enki e Ninmah criam
de Noé e o épico de Athrahasis, essas o homem, Marduk cria a terra com o
podem ser explicados não na depen- sangue de Tiamat e Mummu é aque-
dência literária por parte do autor bí- le que dá forma às coisa criadas. A
blico, mas no fato de que aquelas tra- singularidade bíblica se evidência no
dições (no que diz respeito à maneira texto de abertura: “No princípio criou
de pensar e escrever) faziam parte do Deus os céus e a Terra” (Gn 1:1). Um
contexto cultural de todo o Oriente único é protagonista causador todos
Médio desde o Crescente Fértil até o os elementos criados.
Egito.70 Um jovem brasileiro do final 2 – A opção por um único Deus,
do século 19 e início do século 20, que que antecede em existência ao uni-
estivesse apaixonado por uma don- verso e causa sua existência por meio
zela, não precisaria necessariamente de um ato criador é outro elemento
“conhecer” Castro Alves, Casimiro estranho, antagônico à cultura meso-
de Abreu ou Fagundes Varela para de potâmica. Para os sumérios (e tam-
declarar de modo completamente ro- bém para os assírios, egípcios e gre-
mantico, com uma fraseologia similar gos) os deuses não criam o universo;
à dos autores mencionados. Bastava- são filhos dele. No Enuma Elish, por
lhe ecoar o inconsciente coletivo de exemplo, forças cósmicas primordiais
sua geração. Ele havia visto a aboli- (Tiamat – a água abismal e Apsu – a
ção dos escravos, a proclamação da água refrescante) se unem e geram um
República, a divulgação de ideais grupo de seres místicos que, por sua
nacionalistas. Isso seria mais que su- vez, fazem nascer em relações inces-
ficiente para explicar as semelhanças tuosas os primeiros deuses Antu, Anu
sem recorrer à tese mais simples de (patronos do céu) e Ki (deusa mãe da
uma dependência literária de autores terra). Eles são irmão e novamente se
prévios. Afinal, todos estavam sob a relacionam incestuosamente forman-
influência cultural do romantismo. do novos deuses como Enki (Ea), Ni-
Num primeiro momento, pode- nhursag, Enlil e outros. Depois disso,
mos dizer que o que mais chamou a num interminável intercurso sexual
38 / Parousia - 1º semestre de 2010

surgem mais e mais divindades que, cia. Tudo foi criado por sua Palavra,
ao contrário de Yahweh (sem começo uma categoria de criação jamais en-
e sem fim), não apenas nascem, mas contrada em qualquer ponto da litera-
podem morrer, mesmo se dizendo tura analisada nesta pesquisa.
imortais. Aparentemente é a comida 5 – O Gênesis desmitifica também
celeste recusada por Adapa que lhes a ideia personalizada do céu, dos astros,
garante a vida eterna. da terra e das águas abismais como sen-
3 – A criação nos mitos mesopo- do forças cósmicas anteriores a alguns
tâmicos ocorre por gestação, projeção deuses e reprodutores de seres celes-
seminal ou batalha, provocando se- tiais. O sol, a lua, as estrelas são descri-
paração entre partes. Até a morte de tos apenas como “luzeiros” inanimados
um deus pode ser necessária para o para governar (i.e. direcionar diante do
surgimento de uma nova vida. Esse observador astronômico) o dia, a noite,
foi, como vimos no caso de Geshtu-e, as estações etc. Eles não têm qualquer
eleito depois da batalha dos anunakis influência na criação ou no destino do
para ser imolado e, com o seu san- ser humano (Gn 1:14-16).
gue, Enki e Ninmah poderem criar os 6 – Na literatura sumeriana a natu-
primeiros seres humanos. No versão reza tem vida em si mesma e poderes
do Gênesis, Deus concede a Adão o mágicos semelhantes aos deuses. No
seu próprio fôlego de vida e não o texto de encantamentos intitulado “O
sangue de uma criatura sacrificada. A verme e a dor de dente” é dito que a
ideia parece ser afirmar que definiti- terra criou os rios, os rios criaram os
vamente, não temos nenhum DNA de canais, os canais criaram os pântanos e
rebeldes celestiais! os pântanos criaram os vermes. Por isso
4 – Ainda sobre a criação por se- os mesopotâmicos favoreciam tanto a
paração entre partes, no épico “Gilga- prática de encantamentos inspirados no
mesh, Enkidu e o mundo dos mortos” animismo. A Bíblia jamais admite qual-
é preciso que a terra se desprenda quer ideia que se associe a isso. Deus é
definitivamente do céu para que seja apresentado como o criador de tudo o
iniciada a criação. Diz o texto: “Nos que existe, os pássaros, as árvores, os
dias primevos, nos mais primevos rios, etc. Tudo se submete ao seu poder
dos dias, nos antigos dias quando e nada tem vida em si mesmo.
tudo que é vital foi gerado… quando 7 – Alguns indícios da própria
o céu foi removido da Terra, quando narrativa bíblica dão a entender que,
o nome do homem foi fixado, quando num primeiro estágio de seu amadu-
[o deus] An ficou encarregado do céu recimento teológico, os hebreus ti-
e Enlil ficou encarregado da Terra.71 nham uma tendência mais henoteísta
Na versão bíblica, ainda que haja re- que monoteísta. Noutras palavras, eles
ferência à separação entre as águas, adoravam apenas um Deus (Yahweh),
entre a luz e as trevas etc, Deus não mas não descriam da existência real de
precisou batalhar com ninguém para outros deuses. No seu conceito havia
trazer o mundo e o universo à existên- várias divindades no universo, mas es-
A Suméria e os testemunhos extrabíblicos de Gênesis 1-11 / 39

colheram apenas uma como digna de entrelinhas do relato a pergunta de


adoração. Esse conceito monolátrico Deus para Adão e Eva: “Gostaram
era comum mesmo entre cidades poli- da surpresa que preparei para a che-
teístas que, a exemplo de Eridu e Enki, gada de vocês?” Já nos mitos o jar-
escolhiam um deus patrono para ser dim de Edinu ou Edin é criado para
adorado dentro de seus limites. o deleite dos deuses. A ideia de criar
Foi talvez com a ideia de corrigir a humanidade surge acidentalmente,
uma ideia errônea, popularizada até sem nenhum desejo prévio pela exis-
mesmo entre o povo hebreu, que o tência humana, mas apenas por causa
autor inspirado optou por revelar o te- de uma situação inesperada: a batalha
tragrama sagrado (YHWH) apenas na celestial fez com que os deuses supe-
segunda parte de seu relato, que nas riores ficassem sem seus empregados
edições modernas equivaleria a Gê- (os Igigi). Então foi necessário criar
nesis 2:4. No começo ele se limita a o ser humano, para servir aos deuses
chamar o Criador pelo título genérico e cuidar do jardim que nunca foi seu,
de Elohim. Uma postura, convenha- mas deles. Até a comida produzida na
mos, bem diferente do Enuma Elish, terra (que na versão bíblica seria para
que já nos primeiros dois parágrafos alimentar Adão, Eva e aos animais),
elenca pelo nome nove diferentes na versão pagã serve para garantir o
divindades (Apsu, Tiamat, Lahmu, banquete dos deuses.
Lahamu, Ansar, Kisar, Anu, Nudim- 9 – Ainda nessa sequência do pro-
mud e Mummu). A ideia parece ser pósito da raça humana, sua descarta-
a de mostrar que “Deus” é uma pala- bilidade é vista no mito sumeriano a
vra que não precisa de complemento. partir da razão pela qual os deuses de-
Como não há “vários” deuses, desfaz- cidem destruí-la por meio de um dilú-
se a necessidade de explicar “de que vio. Na versão bíblica a humanidade
Deus está se tratando”. Deus seria, na se torna altamente má e violenta e por
verdade, um sinônimo excluviso de isso precisa ser exterminada (Gn 6:5 e
Yahweh, os demais assim classifica- 6). Na versão sumeriana, os deuses se
dos são seres inexistentes. enfadam do homem por causa do ba-
8 – Quanto ao propósito divino rulho que esse fazia durante o traba-
para a raça humana, no Gênesis, tudo lho, perturbando o sono dos imortais.
no que se refere ao planeta terra pare- E quanto às semelhanças, o que
ce ser criado em prol do homem que podemos concluir delas? Exatamente
seria, por isso formado no ultimo dia. a confirmação da hipótese de trabalho
Na versão bíblica, o criador se asse- levantada no início do artigo. É razo-
melha a um pai que com muito cari- ável deduzir pela evidência textual e
nho monta um quarto e um enxoval arqueológica apresentadas que os res-
para o filho que está para nascer. Só tos que hoje conhecemos de Eridu não
que, nesse caso, o filho nasce adulto sejam daquela cidade que precedeu à
e entende o que acabou de receber de inundação diluviana, mas de um ou-
presente. Não é difícil imaginar nas tro assentamento com o mesmo nome
40 / Parousia - 1º semestre de 2010

dela. Embora alguns insistam que a dois rios que margeiam a região coin-
cidade teria sido assentada em cerca cidentemente recebem nomes de dois
de 5000 a.C., a arqueóloga Jacquet- dos quatro rios que havia no Éden, a
ta Hawkes diz que a arte de se fazer saber, “o Tigre e Eufrates”. Afinal, na
tijolos queimados (como aqueles que própria linguagem sumeriana exis-
compõem a arquitetura do sítio) não tem certas palavras que, acredita-se,
poderia ter sido inventada antes de são preservações de um substrato lin-
3000 a.C72 o que dá uma diferença de guístico anterior “pré-sumeriano”. O
2 mil anos para a datação mais recua- nome desses rios (idiglat e buranun,
da. Logo, o mais provável é que essa em cuneiforme), de várias localidades
cidade seja um assentamento poste- (como Edin e Eridu) e de alguns ofí-
rior à inundação. O que os novos ha- cios (como tibira para metalúrgico ou
bitantes fizeram foi perpetuar em seus naggar para carpinteiro) evidenciam
escritos e tradições as memórias (ago- essa afirmação.
ra um tanto distorcidas) de um relato Não cabe à arqueologia “provar”
advindo desde os seus ancestrais. a Bíblia no sentido de sustentar sua
Semelhante aos imigrantes mo- autoridade, sua procedência divina
dernos, que ao chegaram num novo ou suas doutrinas que demandam fé.
lugar fundam assentamentos homôni- Contudo, é possível através do méto-
mos àqueles de sua terra natal (“Nova do histórico-arqueológico compreen-
Trento”, “Nova Hamburgo”, “Nova der o contexto bíblico e confirmar a
Friburgo” etc), é muito provável que veracidade ou pelo menos a “plausi-
os moradores da suméria ainda pre- bilidade histórica” de alguns eventos
servassem nomes e comportamentos nela descritos. Sendo assim, o axioma
que lembravam o local de onde seus lógico se torna exato, pois se a histó-
ancestrais haviam saído. Isso também ria é real, a teologia que se sustenta
explicaria hipoteticamente porque os nessa historicidade também o será.

Referências Jeremias 5:22; Amós 9:6; Zacarias 12:1;


Romanos 1:18-25; 5:12-14, 19; 8:19-23;
1
Cf. Terry Mortenson, Thane H. Ury, Colossenses 1:15-20; Hebreus 1:10;4:1-
ed., Coming to Grips with Genesis – Bi- 10; 2 Pedro 3:5; etc.
blical Authority and the Age of the Earth 3
Mateus 19:4; 24:37-39; Marcos
(Green Forest, AR: Master Books, 2008). 10:2ss.; 13:19; Lucas 11:50-51; etc.
Essa antologia de artigos apresenta uma 4
A tônica divergente dos alegoristas
boa resenha dos autores patrísticos, me- era sua simbolização dos dias da semana
dievais e modernos e sua posição sobre da criação e não a historicidade do relato.
Gênesis 1-11 com fontes primárias. Nos- Agostinho, por exemplo, ainda que sim-
sa discordância segue apenas quanto ao bolizasse esses dias, cria que Adão ha-
conceito de inerrância defendido por al- via sido criado há menos de 6 mil anos.
guns dos articulistas. Agostinho City of God [NPNF1] vol. 2:
2
Jó 12:7-10; 38:8-11; Salmo 19:1; 12:10; 18:40.
24:2; 102:25; 104:9; Isaías 48:13; 51:13; 5
Julius Wellhausen, Prolegomena to
A Suméria e os testemunhos extrabíblicos de Gênesis 1-11 / 41

the History of Ancient Israel (Gloucester, Assessment of the Theories of Georges


MA: Peter Smith, 1973), p. 298; Gerhard Dumezil (Berkeley: University of Cali-
von Rad, Old Testament Theology (New fornia Press, 1973), p. 32ss.
York: Harper & Row, 1962), vol. 1, p. 12
De sua obra “História Sagrada”
158 e 159. (Hiera Anagrafê) só temos fragmentos
6
Adam Kuper, A Reinvenção da So- citados principalmente por Diodorus
ciedade Primitiva – transformações de Siculus. Cf. G. Booth (trad.), Historical
um mito (Recife: Ed. Universitária da Library of Diodorus the Sicilian in Fifte-
UFPE, 2008), esp. 17-41. en Books to which are add the fragments
7
Alguns desses documentos só foram of Diodorus (Londres: 1814), vol. 2, p.
recuperados em cópias tardias como, por 504 e 505. Disponível na íntegra no site
exemplo, os exemplares achados na bi- http://books.google.com.br.
blioteca de Assurbanipal que datam do
13
Os mitos, contudo, só foram vis-
século 7 a.C. Contudo, é praticamente tos como fontes para História a partir da
unânime a opinião de que esse tipo de construção de uma nova relação entre a
literatura remonta a uma tradição que ad- memória e a história, como ressaltou Le
vém do 3º. 2º. milênios a.C. Cf. W. G. Goff. Nesse sentido, foi de grande im-
Lambert, Babylonian Wistom Literature portância o diálogo da História com as
(Oxford: Oxford University Press, 1996), Ciências Sociais. A contribuição de Max
p. 1-20; J. M. Durant, “Os Escritos Meso- Weber, com o conceito de neutralidade
potâmicos”, em A. Barucq et. al, Escritos axiológica, trouxe à baila discussões que
do Oriente Antigo e Fontes Bíblicas (São possibilitaram aos historiadores conside-
Paulo: Paulinas, 1992), p. 127-186. rar a seleção consciente ou inconsciente,
8
Joseph Campbell,  The Hero with as distorções e omissões, como fenôme-
a Thousand Faces  (Novato, CA: New nos característicos da estrutura social
World Library, 2008), p. 23. da memória na construção dos grupos
9
Para uma apresentação das corren- sociais. J. Le Goff, Memória e Histó-
tes modernas acerca da teorias do mito ria (Campinas, SP: Editora UNICAMP,
cf.: Eleazer M. Meletinsky, The Poetics 1996); André Ortiz-Osés, Cuestiones
of Myth (Nova Iorque, NY: Routledge, Fronterizas – uma filosofía simbólica
2000), parte 1, p. 13-125. (Rubi, Barcelona: Anthropos Editorial,
10
P. A. Brunt, Studies in Greek His- 1999), p. 9-11 e 19-24.
tory and Thought (Oxford: Oxford Uni-
14
Bruce G. Trigger, A History of Ar-
versity Press, 2004), p. 75ss.; Walter chaeological Thought (Cambridge: Cam-
Burkert, The Orientalizing Revolution: bridge University Press, 2006), p. 217ss.
Near Eastern Influence on Greek Cultu-
15
Bruce G. Trigger, “Archaeology
re in the Early Bronze Age (Cambridge: and Epistemology: Dialoguing across the
Harvard University Press 1992), p. 2; G. Darwinian chasm”,  em American Jour-
Schepens, “The Phoenicians in Ephorus’ nal of Archaeology (1991), 102:1-34.
16
Herodoto, The History of the Persian
Universal History”, em Studia Phoenin-
Wars I:178.
cia V, Phoenicia and the East Mediter- 17
Entre os vários sítios aonde os arque-
ranean in the First Milenium B.C. (Lou- ólogos encontraram fontes textuais antigas
vain: Orientalia Lovaniensia Analecta, destacam-se Uruk, Kish e Ur. De modo espe-
1987), p. 317. cial, temos um grande número de textos recu-
11
Covington Littleton, The New Com- perados do sítio de Nuffar (a antiga Nippur, a
parative Mythology: An Anthropological 160 km de Bagdá) e Telloh (65km ao norte de
42 / Parousia - 1º semestre de 2010

Ur) que os árabes apelidaram de Tell el-Loh 24


A rigor Dilmun se refere mais a uma
(a montanha de tabletes). Cf. André Parrot, região que a uma cidade específica. No en-
Tello, vingt campagnes de fouilles (1877- tanto, alguns textos a descrevem como um
1933) (Paris: A. Michel, 1948). centro urbano. Nesse caso, sugerimos a
18
A. Falkestein, “Zur Chronologie der possibilidade de falar de pelo menos duas
sumerischen Literatur”, em Compte rendu de localidades chamadas de Dilmun. Uma idí-
la second Rencontre Assyriologique Interna- lica, pré-diluviana, e outra posterior com o
tionale 2 (1951), p. 12-27. mesmo nome, que manteve comércio com os
19
Cf. William W. Hallo, “On Antiquity assírios. As mais antigas menções a Dilmun
of Sumerian Literature”, em Journal of Ame- vêm de tabletes datados do início do terceito
rican Oriental Society 83, n. 2, abril-junho de milênio escavados nos alicerces do Templo
1963, p. 167-176. da deusa Ianna em Uruk. Mas há outras men-
20
Veja, por exemplo, o questionamento ções posteriores a uma certa Dilmun (bem
de David Bidney, “The Concept of Myth and menos idílica do que a primeira) que fazia
the Problem of Psychocultural Evolution”, comércio com a Babilônia e posteriormente
em American Anthopologist, New Series, vol. com a Assíria. Uma dessas menções está num
52, n. 1, janeiro-março de 1950, p. 16-26. tablete encontrado em Nippur e datado de c.
21
Gwendolyn Leick, Mesopotâmia, a de 1370 a.C. (período da dinastia kassita de
invenção da cidade, (Rio de Janeiro: Imago, Babilônia). Outras menções estão em inscri-
2003), p. 14 e 15; Paul Bairoch, Cities and ções assírias e neoassírias aonde o rei da
Economic Development- from the dawn of Assíria é proclamado como “Governante de
History to present (Chicago: Chicago Univer- Dilmun e Meluhha”. Os tabletes falam, inclu-
sity Press, 1988), p. 25 e 26; John Reader, Ci- sive, de tributos que o rei da Assíria recebia
ties (Nova Iorque: Grove Press, 2004), p. 10. de Dilmun.
22
Jack Finegan, Archaeological History 25
Cf. uma tradução do texto em James
of the Ancient Middle East (Nova Iorque: B. Pritchard, ed., Ancient Near Eastern Texts
Dorset Press, 1979); Michael Rice “‘Dilmun – Relating to the Old Testament [doravante:
discovered’ - the archaeology of Bahrain to ANET] (Princenton: Princenton University
the early second millenium BC”, em Asian Press, 1955), p. 37-41.
Affairs, vol. 17, n. 3, outubro de 1986, p. 252- 26
Roberto Ouro, “The Garden of Eden
263; D. T. Potts, ed., Dilmun: New Studies Account: The Chiastic Structure of Genesis
in Archaeology and Early History of Bahrain 2-3”, em Andrews University Seminary Stu-
(Berlim: D. Reimer, 1983); Eric H. Cline, dies 40, Autum 2002, p. 226.
From Eden to Exile – Unraveling Mysteries 27
Michael Rice, p. 145.
of the Bible (Washington D.C.: National Ge- 28
Alfred Hamori, “The origin of the Su-
ographic, 2007), p. 5 e 14; Harriet E. W. Cra- merians and the great flood”, pesquisa reali-
wford, Dilmun and its Gulf neighbours (Cam- zada no site http://users.cwnet.com/millenia/
bridge: Cambridge University Press1998), p. Summer-origins.htm. Acessado em 2 de abril
5; Theresa Howard-Carter, “Dilmun: At Sea de 2010.
or Not at Sea? A Review Article”, em Journal 29
S. R. Driver, The Book of Genesis
of Cuneiform Studies, vol. 39, n. 1, spring (London: Methuen & Co, Ltd., 1938), p. 38;
de 1987, p. 54-117; idem, “The Tangible Evi- R. Laird Harris, Gleason Archer, and Bru-
dence for the Earliest Dilmun”, em  Journal ce Waltke, ed., Theological Wordbook of
of Cuneiform Studies, vol. 33, n. 3/4, julho- the Old Testament, vol. 2 (Chicago: Moody
outubro de 1981, p. 210-223. Press, 1980), p. 646.
23
Michael Rice, Archaeology of the 30
Richard James Fischer, Historical Gene-
Arabian Gulf (Londres: Taylor and Francis sis – From Adam to Abraham (Lanham, MD:
e-Library, 2002), p. 133; Samuel Noah Kra- University Press of America, 2008), p. 44.
mer, The Sumerians, Their History, Culture 31
Que na verdade era também sua bisneta.
and Character (Chicago: The University of 32
Por isso, alguns especialistas desisti-
Chicago Press, 1972), p. 281. ram de fazer qualquer comparação entre Dil-
A Suméria e os testemunhos extrabíblicos de Gênesis 1-11 / 43

mun e o Éden, mas as semelhanças, a nosso des derniers millénaires”, Paléorient, 15/2,
ver, ainda são muito notáveis para serem ol- 1989, p. 5-27; Susan Pollock, Ancient Meso-
vidadas. Cf. Kenton L. Sparks, Ancient Texts potamia (Cambrigde: Cambrigde University
for the Study of the Hebrew Bible – A Guide Press, 2004), p. 34 e 35; Douglas J. Kennett,
to the Background Literature (Peabody, MA: James P. Kennett, “Early State Formation in
Hendrickson Publishers, 2006), p. 307, 308. Southern Mesopotamia: Sea Levels, Shoreli-
33
Na versão sumeriana, ela mistura carne nes, and Climate Change”, em The Journal of
com sangue de um Deus sacrificado. ANET, Island and Coastal Archaeology, vol. 1, n. 1,
p. 99ss. julho de 2006, p. 67-99.
34
Cf. H. Wright, “Problems of Absolute 39
John Oates, “Ur and Eridu, the Prehis-
Chronology in Proto-Historic Mesopotamia”, tory”, em Iraq, n.s., 22, 1960, p. 33; Michael
em Paléorient 6 (1980), p. 93-98; J. Mellaart, Wood, Legacy: The Search for Ancient Cul-
“Egyptian and Near Easter Chronology: a Di- tures  (New York: Sterling, 1994), p. 21-24.
lemma?” em Antiquity 53 (1979), p. 6-18; Alguns sugerem um máximo de 18 níveis de
Michael G. hasel, “Recent Developments ocupação. Cf. Leick, p. 27.
in Near Eastern Chronology and Radiocar- 40
A rigor, a primeira menção bíblica à
bon Dating”, em Origins 56 (2004), p. 6-31, construção de um altar vêm-nos da experiên-
Rodrigo P. Silva, Escavando a Verdade – a cia de Noé. Contudo, é possível deduzir, por
arqueologia e as incríveis histórias da Bí- inferência, a presença de altares nas ofertas
blia (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, sacrificais apresentadas por Caim e Abel (Gn
2008), p. 33-44. 4:1-7) e na referência às peles de animais que
35
Vere Gordon Childe, What Happened vestiram Adão e sua mulher. Segundo alguns,
in History? (Nova Iorque: Penguin Books, essas seriam as peles de algum animal ofere-
1954), p. 49ss. cido em sacrifício, o primeiro holocausto do
36
Com algumas modificações essa ideia planeta (Cf. Gn 3:21).
é compartilhada por autores como Yohanan 41
Moshe Weinfeld, The Promise of the
Ahaoroni, Amihai Mazar, Thomas Levy, Ja- Land - The Inheritance of the Land of Cana-
mes Sauer e outros. an by the Israelites (Berkeley: University of
37
Sobre as estimativas populacionais e California Press, 1993), p. 37 e 38.
os critérios para se chegar a certos números 42
Sumerian Lexicon, p. 45 - 3.0 versão
cf.: Tartius Chandler, Four Thousand Ye- digital. Disponível em www.sumerian.org/
ars of Urban Growth: An Historical Cen- sumerlex.htm; também em PDF em http://
sus (Lewiston: St. Gavid’s 1987); George www.scribd.com/doc/502645/Sumerian-Le-
Modelski, “Cities of the Ancient World: xicon.
An Inventory (3,500 to 1,200)”, Monogra- 43
P. Charvát, Mesopotamia Before His-
fia do Departamento de Ciências Políticas tory (Praga: Oriental Institute, 2002), p. 55
da Universidade de Washington, disponível 44
De acordo com os assiriologistas, a
em http://faculty.washington.edu/modelski/ interpretação de alguns tabletes e dos nomes
WCITI2.html. Alguns autores mais come- dados a diferentes torres podem sugerir múl-
didos sugerem uma população em torno de tiplas funções para as mesmas. Por exemplo:
12,5 mil habitantes, enquanto outros falam duas torres são dedicadas à divindade pa-
de até 80 mil habitantes. Cf. Paul Bairoch, droeira da cidade; três envolvem um louvor
Cities and Economic Development (Chicago: mais generalizado, duas torres têm ligação
University of Chicago Press, 1988); A. Fekri com a montanha sagrada aonde habitam os
Hassan, Demographic Archaeology (Nova deuses (sua função era levar os homens aos
Iorque: Academic Press 1981); Mark Van de deuses representados pelo Patesi). Em seis
Mieroop, The Ancient Mesopotamian City casos, as torres funcionariam como morada
(Oxford: Oxford University Press, 2004), p. dos deuses (trazer a divindade aos homens).
97 e 108, nota 14. Quatro torres parecem claramente ter a fun-
38
P.  Sanlaville,  “Considérations  sur ção de uma escadaria ligando a Terra ao céu
l’évolution de la Basse Mésopotamie au cours e também existe a ideia de fuga diante de um
44 / Parousia - 1º semestre de 2010

possível dilúvio. Também não é inverossímil Foragers to Farmer - Papers in honour of


supor que as torres pudessem ter todas essas Gordon C. Hillman (Oxford: Oxbow Books
funções ao mesmo tempo ou pelo menos uma 2009), p. 239-243; Nili Wazana, “Anzu and
parte delas. Ziz: Great Mythical Birds in Ancient Near
45
Veja a opinião de Leick, p. 147-150. Eastern, Biblical, and Rabinical Traditions”,
46
Seu livro não tem gozado de muita em The Journal of Near Eastern Society, vol.
aceitação no muito acadêmico, mas existem 31, março de 2009, p. 111-135.
entusiasmados seguidores de sua teoria. Cf. 55
S. N. Kramer, The Sumerians (Chica-
David Rohl, Legend: The Genesis of Civili- go: University of Chicago Press, 1963), ca-
sation (Londres: Century, 1998). pítulo 5.
47
S. N. Kramer, “The ‘Babel of Ton- 56
Veja nota 25.
gues’: A Sumerian Version”, em Journal of 57
Claude Levi-Strauss, “The Structural
the American Oriental Society  88, 1968, p. Study of Myth”, em Structural Anthropology
109, 111. (Nova Iorque: Basic Books, 1963), p. 208.
48
George Smith, The Chaldean Account 58
Veja o texto em “The Journey Of The
of Genesis  (New York: Scribner, Armstrong Water-God To Nippur” traduzido por Samuel
& Co., 1876), p. 160 e 161 (fac-símile publi- Noah Kramer.
cada em Londres: Adamant Media Corpora- 59
Gwendolyn Leick, A Dictionary of An-
tion, 2005). cient Near Eastern Mythology  (New York:
49
Os mais especializados autores que dis- Routledge, 1998), p. 7; Jeremy Black e An-
cutem o nome e as etimologia de Eridu são: thony Green, Gods, Demons and Symbols of
Thorkild Jacobsen, “Some Sumerian city-na- Ancient Mesopotamia: An Illustrated Dictio-
mes”, em Journal of Cuneiform Studies 21, nary  (Waco, TX: University of Texas Press
1967, p. 100-103 e Margaret Whitney Green 1992), p. 34.
que escreveu uma tese doutoral na Universi- 60
Igigi é a forma plural, o singular seria
dade de Chicado cuja tema é justamente uma Igigu.
análise de Eridu à luz da arqueologia, da his- 61
Esse detalhe dos números aparece ape-
tória e da mitologia mesopotâmica. Cf. Eridu nas numa versão babilônica tardia do Enuma
in Sumerian Literature (Chicago: University Elish, nas linhas 39-69, mas a batalha celes-
of Chicago, 1975), p. 149-150. tial (incluindo a expulsão de alguns do céu)
50
Leick, p. 24. já é testemunhada em fragmentos sumeria-
51
Jacobsen, p. 102; Steible, Altsumeris- nos mais antigos. Cf. ANET, 57-59. Sobre os
che Inschriften, p. 110 e 111; APUD Moni- números 600 e 300 e comentários sobre os
ka Ottermann, Tese doutoral, As Brigas Di- respectivos textos que os contêm cf.: Wayne
vinas de Inana. Reconstrução Feminista da Horovitz, Mesopotamian Cosmic Geography
Repressão e Resistência em torno de uma (Wiona Lake, IN: Eisenbrauns, 1998), p. 124;
Deusa. Pesquisa feit no site http://ibict.meto- F. Rochberg “Mesopotamian Cosmology”,
dista.br/tedeSimplificado/tde_busca/arquivo. em Noriss S. Hetherington, ed., Cosmology,
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54
Cf. A tese doutoral de Alhena Gadot- 62
Gwendolyn Leick, A Dictionary of An-
ti, ‘Gilgamesh, Enkidu and the Netherworld’ cient Near Eastern Mythology (Nova Iorque:
and the Sumerian Gilgamesh Cycle. (Baltmo- Routledge, 1998), p. 85
re: Johns Hopkins, 2005), p. 305; Naomi F. 63
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Miller, Alhena Gadotti, “The KHALUB-tree Cuneiform Inscriptions (Londres: Society for
in Mesopotamia: Myth or Reality?”, em An- Promotion of Christianity, 1908), p. 91. Obra
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A Suméria e os testemunhos extrabíblicos de Gênesis 1-11 / 45

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com. Commentary.Genesis 1-15 (Waco, TX: Word
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rael (Nova Iorque: The Book Tree, 1999 fac- Testament (Downers Grove, IL: Inter Varsity
símile da edição original de 1923), p. 109. Press, 1966), p. 89.
66
Fischer, p. 42; E. O. James, The Tree of 70
Uma crítica à excessiva equiparação
Life (Leiden: E. J. Brill, 1966), p. 13 e 41. literária entre o Gênesis e a literatua sumeria-
67
Veja por exemplo: G. Hasel, “The Sig- na pode ser encontrada em Walter C. Kaiser,
nificance of the Cosmology in Genesis I in “The literary form of Genesis 1-11”, em J. P.
Relation to Ancient Near Eastern Parallels”, Payne, JP, ed., New Perspectives on the Old
em Andrews University Seminary Studies 10, Testament (Waco, TX: Word Books, 1970).
1972, p. 1-20; idem, “The Polemic Nature 7
Texto baseado na tradução inglesa de S.
of the Genesis Cosmology”, em  Evangelical N. Kramer, From the Poetry of Sumer: Crea-
quarterly 46, 1974, p. 81-102. Veja também a tion, Glorification, Adoration (Berkeley, CA:
coletânea de artigos publicada por Richard S University of California Press, 1979), p. 23.
Hess e David Toshio Tsumura, ed., I Studied 72
Jacquetta Hawkes, The Atlas of Early
Inscriptions before the Flood: Ancient near Man (New York: St. Martin’s, 1976), p. 50, 76.

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