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Voltando neste livro ao gênero e assunto que

o consagraram antes mesmo do grande sucesso


de O nome da rosa, Umberto Eco focaliza uma
variadíssima gama de assuntos, que
compreende entre outros os orixás do
candomblé, as questões filosóficas, a ecologia,
a deterioração dos meios de comunicação de
massa e o problema da segurança nos dias de
hoje. Esses temas são comentados do ponto de
vista da semiologia, para a qual tudo é
comunicação: Eco procura ver não apenas as
coisas em si, mas também o que querem dizer,
o que comunicam. E o fa z numa linguagem
viva, com aguda percepção do detalhe
revelador, com fino senso de humor e uma
ironia que muitas vezes se transforma em
mordacidade.

De Umberto Eco
leia também:

O nome da rosa

EDITORA
NOVA
ISBN 85-209-0436-X FRONTEIRA

SEMPRE
UM BOM
LIVRO
9 788520 '90436?1
U m berto
I Eco I
VIAGEM
NA IRREALIDADE
COTIDIANA
Do mesmo autor de O NOME DA ROSA.
A Televisão, a Ecologia, a Religião, a Política,
o Esporte, o Cinema, os problemas da atualidade,
segundo o maior teórico da Comunicação.
Titulo original:
VIAGGIO NELLAIRREALITÃ QUOTIDIANA

© Grupo Editorialc Fabbri-Bompiani, Sonzogno, Etas S.p.A. Milão,


Dalla periferia delTimpero, 1977
II costume di casa, 1973
7 anni di desiderio, 1983

Direitos adquiridos para a Hngua portuguesa pela


EDITORA NOVA FRONTEIRA S/A
Rua Bambina, 25 - Botafogo - CEP 22.2S1 - Tel.: 286-7822
Endereço telegráfico: NEOFRONT
Rio de Janeiro - RJ

Revisão:
UMBERTO FIGUEIREDO PINTO
TIZZIANA GlORGINI

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Eco, Umberto. 1932 -


E22v Viagem na Irrealidade Cotidiana / Umberto Eco; tradução de
Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade — Rio de
Janeiro: Nova Fronteira. 1984

Tradução de: Viaggio Nella Irrealitá Quotidiana

I. Ensaios italianos 1. Titulo II. Série

CDD — 854
84-0463 CDU — 850-4
SUMÁRIO

I. VIAGEM PELA HIPER-REALIDADE, 7

As fortalezas da solidão, 9
Os presépios de Satanás, 19
. Os castelos encantados, 30
Os mosteiros da salvação, 41
A cidade dos autômatos, 51
Ecologia 1984 e a Coca-Cola tornada carne, 61

II. A NOVA IDADE MÉDIA, 73

Projeto de Apocalipse, 75
Projeto alternativo de Idade Média, 77
Crise da Pax norte-americana, 80
A vietnamização do território, 82
A deterioração ecológica, 86
O neonomadismo, 87
A Insecuritas, 88
Os vagantes, 89
A Auctoritas, 91
As formas do pensamento, 93
A arte como bricolage, 95
Os mosteiros, 98
A transição permanente, 99

III. OS DEUSES DO SUBSOLO, 101

A mística de Planète, 103


O sagrado não é uma moda, 110
Os suicidas do templo, 117
A NOVA IDADE MÉDIA
Recentemente, e de muitos lados, começaram a falar de
nossa época como de uma nova Idade Média. O problema é
saber se se trata de uma profecia ou de uma constatação.
Em outros termos: já entramos na Nova Idade Média ou,
como se expressou Roberto Vacca num seu inquietante livro,
“ haverá uma Idade Média próxima e vindoura?” A tese de
Vacca refere-se à degradação dos grandes sistemas típicos da
era tecnológica; demasiado vastos e complexos para serem
coordenados por uma autoridade central e para serem con­
trolados, mesmo individualmente, por um aparelho empre­
sarial eficiente, estão fadados ao colapso e, por um jogo de
interações recíprocas, a produzir um recuo de toda a civili­
zação industrial. Vejamos de novo rapidamente a hipótese
mais apocalíptica que Vacca concebe, numa espécie de “ ro­
teiro” futurível aparentemente bastante persuasivo.

/. Projeto de apocalipse

Um dia nos Estados Unidos a coincidência de um en­


garrafamento rodoviário e de uma paralisação do tráfego fer­
roviário impedirá o pessoal substitutivo de atingir um grande
aeroporto. Vencidos pelo estresse, os operadores não-substi-
tuídos provocam a colisão entre dois quadrirreatores fazendo
com que caiam em cima de um fio elétrico de alta tensão, cuja
carga, repartida por outros fios já sobrecarregados, provoca
um blecaute como aquele que Nova Iorque conheceu há
alguns anos. Só que desta vez é mais radical e dura vá­

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rios dias. Como está nevando e as estradas ficam bloquea­
das, os automóveis provocam monstruosos congestiona­
mentos; nos escritórios acendem-se fogueiras para esquen­
tar e irrompem incêndios que os bombeiros não conse­
guem atingir e debelar. A rede telefônica fica bloqueada
pelo impacto de cinqüenta milhões de quarteirões que ten­
tam se contatar telefonicamente. Têm início marchas na neve
com mortos ao longo da estrada.
Privados de abastecimentos de qualquer gênero, os
andarilhos procuram se apoderar de abrigos e mercadorias,
entram em ação as dezenas de milhões de armas de fogo
vendidas nos Estados Unidos, as forças armadas assumem
todo o poder, mas são vítimas, elas também, da paralisia
geral. Supermercados são saqueados, nas casas acabam as
reservas de velas, sobe o número de mortos pelo frio, pela
fome e por inanição nos hospitais. Quando, com toda a di­
ficuldade, a normalidade for restabelecida após algumas se­
manas, milhões de cadáveres espalhados pela cidade e pelo
campo começarão a propagar epidemias, repropondo flagelos
de dimensões semelhantes às da peste negra que no século
XIV destruiu dois terços da população européia. Surgirão
psicoses “ de contágio” e será imposto um novo macarthismo
bem mais cruento que o anterior. A vida política, entrando
em crise, se subdividirá numa série de subsistemas autônomos
e independentes do poder central, com milícias mercenárias
e administração autônoma da justiça. Enquanto a crise for
aumentando, os que conseguirão superá-la mais facilmente
serão os habitantes das áreas subdesenvolvidas, já preparados
para viver em condições elementares de vida e de competi­
ção, e ocorrerão grandes migrações com fusões e contami­
nações raciais, importações e difusões de novas ideologias.
Uma vez declinada a força das leis, destruídos os cadastros,
a propriedade se apoiará apenas no direito de usucapião; e,
por outro lado, a rápida decadência terá reduzido as cidades
a um monte de ruínas alternadas com casas habitáveis, e ha­

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bitadas por quem delas se apodera, enquanto pequenas auto­
ridades locais poderão manter um certo poder, constituindo
recintos e pequenas fortificações. A essa altura já se estará
em plena estrutura feudal, as alianças entre poderes locais
serão firmadas sobre o compromisso e não sobre a lei, as re­
lações individuais estarão fundadas na agressão, na aliança
por amizade ou comunhão de interesses, renascerão costu­
mes elementares de hospitalidade para o andarilho. Diante
de tal perspectiva, diz-nos Vacca, não resta senão pensar em
planificar o equivalente das comunidades monásticas que,
numa tamanha decadência, desde logo sejam treinadas para
manter vivas e para transmitir os conhecimentos técnicos e
científicos úteis para o advento de uma nova renascença.
Como organizar esses conhecimentos, como impedir que se
corrompam no processo de transmissão, ou que certas co­
munidades os utilizem para fins de poder privado, esses e
outros problemas constituem os capítulos finais (e em grande
parte discutíveis) do A Idade Média próxima e vindoura.
Mas a questão (como se dizia no início) é outra. Trata-se,
antes de mais nada, de decidir se o roteiro de Vacca é apo­
calíptico ou a enfatização de algo que já existe. E, em segundo
lugar, de libertar a noção de Idade Média da aura negativa
com que a cingiu uma certa publicística cultural de inspiração
renascentista. Tentemos então compreender o que se entende
por Idade Média.

2. Projeto alternativo de Idade Média

Por enquanto percebemos que o nome define dois mo­


mentos históricos bastante distintos, um que vai da queda
do Império Romano do Ocidente até o Milênio, e é uma
época de crise, decadência, massacres violentos de povos
e choque de culturas; o outro vai do Milênio àquilo que na
escola nos definem como Humanismo, e não por acaso mui­
tos historiadores estrangeiros já o consideram uma época de

77
pleno florescimento; aliás, falam antes em três Renascenças,
uma Carolíngia, a outra nos séculos X I e X II e a terceira
aquela conhecida como Renascença propriamente dita.
Admitindo-se que se consiga sintetizar a Idade Média
numa espécie de modelo abstrato, a qual dos dois irá cor­
responder a nossa época? Uma correspondência ponto por
ponto seria ingênua, mesmo porque vivemos numa época
de processos imensamente acelerados, em que aquilo que
acontece em cinco de nossos anos pode às vezes corresponder
ao que então sucedia em cinco séculos. Depois, o centro
do mundo alargou-se por todo o planeta, atualmente convi­
vem civilizações, culturas e estágios diferentes de desenvol­
vimento, e em termos de senso comum somos levados a falar
em “condição medieval” das populações bengalis ao mesmo
tempo que vemos Nova Iorque como uma florescente
Babilônia, ou Pequim como o modelo de uma nova civiliza­
ção renascentista. Por isso o paralelo, se é feito, deve se
instaurar entre alguns momentos e situações de nossa civili­
zação planetária e diversos momentos de um processo histó­
rico que vai do século V ao X III da nossa era. Certamente
comparar um momento histórico preciso (hoje) com um pe­
ríodo de quase mil anos tem muito de brincadeira sem graça,
e sem graça seria se assim fosse. Mas aqui estamos tentando
elaborar uma “ hipótese de Idade Média” (como se nos pro­
puséssemos a construir uma Idade Média e pensássemos nos
ingredientes necessários para produzir uma eficiente e plau­
sível).
Essa hipótese, ou esse modelo, terá as características de
todas as criaturas de laboratório: será o resultado de uma
escolha, de uma filtragem e a escolha dependerá de um obje­
tivo preciso. Em nosso caso o objetivo é dispor de uma ima­
gem histórica com que medir tendências e situações do nosso
tempo. Será uma brincadeira de laboratório, mas nunca nin­
guém disse seriamente que os brinquedos são inúteis. Brin­
cando, a criança aprende a viver no mundo, justamente por­
que finge aquilo que depois será obrigada a executar de
verdade.
O que é necessário para se fazer uma boa Idade Média?
Antes de mais nada uma grande Paz que se desfolha, um
grande poder estatal internacional que unificara o mundo
como língua, costumes, ideologias, religiões, arte e tecnologia
e que a certa altura, por sua própria complexidade ingover­
nável, se desmorona. Desmorona-se porque nas fronteiras
investem os “ bárbaros” , que não são necessariamente incul­
tos, mas trazem novos costumes e novas visões de mundo.
Esses bárbaros podem penetrar com violência, porque pre­
tendem se apropriar de uma riqueza que lhes fora negada;
ou podem insinuar-se no corpo social e cultural da Pax do­
minante, pondo em circulação novas crenças e novas perspec­
tivas de vida. No início de sua queda o Império Romano
não estava minado pela ética cristã; já se deixara minar so­
zinho, acolhendo sincreticamente a cultura alexandrina e os
cultos orientais de Mitra ou de Astarte, brincando com a
magia, as novas éticas sexuais, várias esperanças e imagens
de salvação. Acolheu novos componentes raciais, eliminou
por força das circunstâncias rígidas divisões de classe, reduziu
a diferença entre cidadãos e não-cidadãos, entre patrícios e
plebeus, conservou a divisão das riquezas mas misturou as
diferenças entre papéis sociais, nem podia proceder de modo
diverso. Assistiu a fenômenos de aculturamentos rápidos,
pôs no governo homens de raças que duzentos anos antes
teriam sido julgadas inferiores, desdogmatizou muitas teolo-
gias. No mesmo período o governo pode adorar deuses clás­
sicos, os soldados Mitra e os escravos Jesus. Por instinto
persegue-se a fé que, de longe, parece mais letal ao sistema,
mas em regra uma grande tolerância repressiva permite acei­
tar tudo.
O colapso da Grande Pax (militar, civil, social e cultu­
ral ao mesmo tempo) inicia um período de crise econômica
e de carência de poderes, mas é apenas uma justificável rea­
ção anticlerical a que permitiu ver as Idades das Trevas

79
como tão “ obscuras” ; com efeito também a alta Idade Média
(e talvez mais que a Idade Média após o Milênio) foi uma
época de incrível vitalidade intelectual, de diálogos apaixo-
nantes entre civilizações bárbaras, herança romana e tem­
peros cristão-orientais, de viagens e encontros, com os mon­
ges irlandeses que atravessavam a Europa difundindo idéias,
fazendo conferências, inventando maluquices de todo ti­
po. . . Em poucas palavras: foi ali que amadureceu o homem
ocidental moderno, e é nesse sentido que o modelo de uma
Idade Média pode nos servir para compreender o que está
acontecendo nos nossos dias: à queda de uma grande Pax
se sucedem crises e períodos de insegurança, chocam-se ci­
vilizações diferentes e se esboça lentamente a imagem de
um homem novo. Ela se tornará clara apenas mais tarde,
mas os elementos fundamentais já ali estão em ebulição
num dramático caldeirão. Boécio, que divulga Pitágoras e
relê Aristóteles, não está repetindo de memória a lição do
passado, mas inventa um novo modo de fazer cultura e, fin­
gindo ser o último dos romanos, efetivamente constitui o
primeiro gabinete de estudos das cortes bárbaras.

3. Crise da Pax norte-americana

Que estejamos vivendo uma crise da Pax norte-ame­


ricana já é agora lugar-comum de uma historiografia do pre­
sente. Seria pueril tornar rígidos numa imagem precisa os
“ novos bárbaros” , também pelo peso negativo e despistador
que o termo “ bárbaro” sempre tem aos nossos ouvidos:
difícil dizer se são os chineses ou os povos do Terceiro
Mundo, ou a geração da contestação; ou os imigrados me­
ridionais que em Turim estão criando um novo Piemonte
que nunca existira; e se forçam as fronteiras (onde estão)
ou já trabalham no interior do corpo social. Por outro lado,
quem eram os bárbaros na época da decadência imperial, os

80
hunos, os godos ou os povos asiáticos e africanos que envol­
viam o centro do Império em seus comércios e religiões?
A única coisa que de preciso estava desaparecendo era o
Romano, assim como hoje desaparece o Homem Liberal,
empresário de língua anglo-saxônica, que tinha tido em Ro-
binson Crusoé o seu poema primitivo e em Max W eber o
seu Virgílio.
Nos vilarejos dos subúrbios, o executivo médio de cabe­
los à escovinha personifica ainda o romano de antiga cepa,
mas seu filho já se veste com cabelos de indiano, poncho
de mexicano, toca citara asiática, lê textos budistas ou libelos
leninistas e consegue quase sempre (como acontecia no baixo
Império) conciliar Hesse, o zodíaco, a alquimia, o pensa­
mento de Mao, a maconha e as técnicas de guerrilha urbana;
basta ler Do It de Jerry Rubin ou pensar nos programas da
Alternate University, que há dois anos, em Nova Iorque,
organizava cursos sobre Marx, a economia cubana e a astro­
logia. Por outro lado, também esse sobrevivente romano,
nos momentos de tédio, pratica a troca de casais e põe em
crise o modelo da família puritana.
Inserido numa grande Corporation (grande sistema em
degradação), o romano de cabelos à escovinha já está, de
fato, vivendo a descentralização absoluta e a crise do poder
(ou dos poderes) central reduzido a uma ficção (como já
era o Império) e a um sistema de princípios cada vez mais
abstratos. Veja-se o impressionante ensaio de Furio Colom­
bo (“ Poder, grupos e conflito na sociedade neofeudal” ) ',
do qual emerge a contemporaneidade de uma situação tipi­
camente neomedieval. Todos sabemos, sem necessidade de
fazer sociologia, o quanto em nossa época as decisões do
governo são quase sempre formais em relação a decisões
aparentemente periféricas de grandes centros econômicos;

'Cf. A. A. V. V., Documenti su il nuovo medioevo, Bompiani, 1973, em


que aparece também o presente ensaio.

81
os quais não por acaso começam a constituir o seu Sifar par­
ticular, talvez usando as forças daquele público, e suas uni­
versidades, chegando a resultados de eficiência particular,
em relação ao Desmoronamento do Distribuidor Central de
Treinamento. Em que proporção, afinal, a política do Pentá­
gono ou do FB I possa proceder de modo absolutamente inde­
pendente daquela da Casa Branca é notícia de todos os dias.
“ O avanço do poder tecnológico esvaziou as insti­
tuições e abandonou o centro da estrutura social” , observa
Colombo, e o poder “ se organiza abertamente fora da área
central e média do corpo social, rumo a uma zona livre dos
deveres e responsabilidades gerais, revelando aberta e re­
pentinamente o caráter acessório das instituições” .
Os apelos não são mais em termos de hierarquia ou
função codificada, mas de prestígio e pressão efetiva; Co­
lombo cita o caso da rebelião nas prisões de Nova Iorque
em outubro de 1970, em que a autoridade institucional, o
prefeito Lindsay, pôde agir apenas mediante convites ao
equilíbrio, mas a transação acontecia antes entre prisioneiros
e serventes, e depois entre jornalistas e autoridades carcerá­
rias, com a mediação efetiva da televisão.

4. A vietnamizaçao do território

No jogo desses interesses privados que são autogeridos


e chegam a manter compromissos e equilíbrios recíprocos,
servidos por polícias particulares e mercenárias, com suas
próprias centrais torreadas de recepção e defesa, assiste-se
àquilo que Colombo chama de uma progressiva vietnamiza-
ção dos territórios, freqüentados por novas companhias mer­
cenárias (quem são os minutemen e os black panters?). Expe­
rimente aterrissar em Nova Iorque com um avião da t w a :
entrará num mundo absolutamente privado, uma catedral
autogerida que não tem nada a ver com o terminal da Pan-

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american. O poder central, que sofre a pressão da t w a de
modo particularmente intenso, fornece à companhia um ser­
viço de vistos e alfândega mais rápido que às outras. Voan­
do pela t w a , entra-se nos Estados Unidos em cinco minutos
marcados no relógio, por outras companhias você gastará
nisso uma hora. Tudo depende do feudatário voador a quem
estará ligado e os missi dominici (que também são investi­
dos do poder de condenação e absolvição ideológica) tirarão
de alguns excomunhões que para outros serão muito mais
dogmaticamente irrevogáveis.
Não é preciso ir aos Estados Unidos para notar que se
modificou o aspecto exterior da sala central de um banco de
Milão ou de Turim, e para conferir, tentando entrar no pa­
lácio da r a i na Avenida Mazzini em Roma, qual complexo de
controles, geridos por polícias internas, é necessário atraves­
sar antes de poder pôr os pés num castelo mais fortificado
que os outros. O exemplo da fortificação e pré-militarização
das fábricas, também aqui, está em nível de experiência co­
tidiana. A essa altura o policial em serviço é útil e inútil,
reforça a presença simbólica do poder, que por vezes pode
se tornar um braço secular efetivo; mas quase sempre bastam
as forças mercenárias internas. Quando, então, a fortificação
herética (pense-se na Estatal de Milão, com seu território
livre guarnecido de privilégios “ de fato” ) se torna embara­
çosa, então o poder central intervém para restabelecer a
autoridade da Imagem do Estado; mas na Faculdade de
Arquitetura em Milão, transformada em cidadela, o poder
central interveio somente quando senhores feudais de va­
riada extração, indústrias, jornais, d c urbana, decidiram que
a cidadela inimiga estava sendo expugnada. Somente então
o poder central percebeu ou fingiu acreditar que a situação
era ilegal há anos, e acusou o conselho da faculdade. Até que
a pressão de feudatários mais ricos não se tornasse insusten­
tável, aquele pequeno feudo de templários extravagantes,
ou aquele mosteiro de monges dissolutos, foi abandonado à

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autogestão com suas regras e abstenções, ou suas liberti-
nagens.2
Um geógrafo italiano, Giuseppe Sacco, desenvolveu há
um ano o tema da medievalização da cidade. Uma série de
minorias que recusam a integração constitui-se em clã e
cada clã escolhe um bairro que se torna o próprio centro,
freqüentemente inacessível: estamos na “ contrada” medieval
(Sacco ensina em Siena). Dentro do espírito de clã são res­
tabelecidas, por outro lado, também as classes abastadas que,

2 Os estudantes protestam porque as classes estão cheias demais e o ensino


é demasiado autoritário. Os professores gostariam de organizar o trabalho
em seminários com os alunos, mas a política intervém. Num choque cinco
estudantes são mortos (ano 1200). É aprovada uma reforma que dá auto­
nomia aos professores e estudantes: o chanceler não poderá recusar a
licença de ensino ao candidato proposto por seis professores (ano 1215).
O chanceler de Notre Dame proíbe Aristóteles. Os estudantes, sob pre­
texto dos preços demasiado caros, invadem e demolem uma hospedaria.
O chefe de polícia intervém com uma companhia de arqueiros e fere os
transeuntes. Grupos de estudantes chegam das ruas vizinhas e atacam a
força pública, quebrando a pavimentação para poder lançar pedras. O chefe
de polícia dá ordem de atirar: três estudantes mortos. Greve geral na uni­
versidade, barricada no prédio, delegação ao governo. Estudantes e profes­
sores dirigem-se para universidades periféricas. Após longas negociações o
rei estabelece uma lei que regulamenta a preço baixo os alojamentos para
os estudantes e cria associações universitárias e cantinas (março de 1229).
As ordens mendicantes ocupam três cátedras em cada doze. Revolta dos
docentes seculares que os acusam de constituir uma máfia de barões
(1252). No ano seguinte explode uma luta violenta entre estudantes e polí­
cia, os docentes seculares se abstêm dos cursos em solidariedade, enquanto
os catedráticos das ordens regulares continuam mantendo os seus (1253).
A universidade entra em conflito com o papa, que dá razão aos docentes
das ordens regulares até que Alexandre IV precisa conceder o direito de
greve se a decisão é tomada pela assembléia da faculdade por maioria de
dois terços. Alguns docentes recusam as concessões e> são destituídos:
Guillaume de Saint-Amour, Eudes de Douai, Chrétien de Beauvais e Nico-
las de Bar-sur-Aube são processados. Os professores destituídos publicam
um livro branco intitulado O perigo dos tempos atuais, mas o livro é con­
denado como “iníquo, criminoso e execrável” por uma bula de 1256 (cf.
Gilette Ziegler, Le défi de la Sorbonne, Paris, Julliard, 1969).

84
i
seguindo o mito da natureza, retiram-se para fora da cidade,
no bairro-jardim com supermercados autônomos, dando vida
a outros tipos de microssociedade.
Sacco também retoma o tema da vietnamização dos ter­
ritórios, teatros de tensões permanentes, por causa da ruptu­
ra do consenso: entre as respostas do poder, a tendência a
descentralizar as grandes universidades (uma espécie de
“ desfolhamento” estudantil) para evitar perigosas concen­
trações de massa. Nesse quadro de guerra civil permanen­
te, dominado por um choque de minorias opostas e sem cen­
tro, as cidades estarão preparadas cada vez mais para se
tornarem aquilo que já podemos encontrar em algumas locali­
dades latino-americanas, habituadas à guerrilha “ onde a frag­
mentação do corpo social é bem simbolizada pelo fato de o
porteiro dos prédios de apartamentos estar habitualmente
armado de metralhadora. Nessas mesmas cidades os edifícios
públicos parecem de algum modo fortalezas, como os palácios
presidenciais, e são circundados por uma espécie de barragem
em terra que os protege dos ataques das bazucas” .
Naturalmente o nosso paralelo medieval deve ser arti­
culado de modo a não temer as imagens simetricamente opos­
tas. Porque enquanto a outra Idade Média via como intima­
mente ligados decréscimo de população, abandono das
cidades e carestia dos campos, dificuldade de comunicação,
deterioração das estradas e das postas romanas, crise do
controle central, hoje parece acontecer (referente e subja­
cente à crise dos poderes centrais) o fenômeno oposto: o
excesso de população que interage com o excesso de comu­
nicação e transportes, tornando as cidades inabitáveis não
por destruição e abandono, mas por paroxismo de atividade,
a hera que corrói as grandes construções que desabam é
substituída agora pela poluição atmosférica e pelo acúmulo
de lixo que deturpa e torna irrespiráveis as grandes cons­
truções que se renovam; a cidade fica cheia de imigrantes,
mas esvaziada de seus velhos habitantes que a usam para
trabalhar, correndo depois aos subúrbios (cada vez mais for-

85
tifiçados após a chacina de Bel Air). Manhattan prepara-se
para ser habitada apenas por negros, Turim por meridionais,
enquanto nas colinas e nas planícies circundantes brotam
castelos aristocráticos, ligados a etiquetas de boa vizinhança,
confiança mútua e grandes ocasiões cerimoniais de encontro.

5. A deterioração ecológica

Por outro lado a cidade grande, que atualmente não é


invadida por bárbaros beligerantes e devastada por incêndios,
sofre de escassez de água, crise de energia elétrica disponível,
paralisia do tráfego. Ao tentar afetar nas bases a convivência
tecnológica, Vacca lembra a existência de grupos under-
ground que conclamam à exploração de todas as redes elé­
tricas, usando simultaneamente a maior quantidade possível
de eletrodomésticos, e a refrescar a casa deixando a geladeira
aberta. Vacca observa, como cientista, que, deixando a ge­
ladeira aberta, a temperatura não diminui, mas aumenta;
porém os filósofos pagãos tinham objeções bem mais graves
para opor às teorias sexuais ou econômicas dos primeiros
cristãos, e todavia o problema não era tanto ver se as teorias
eram eficientes quanto, ao contrário, o de reprimir, além
de um certo limite, o abstencionismo e a recusa de colabo­
ração. Os professores do Castelnuovo são incriminados por­
que não registrar as ausências à assembléia eqüivale a não
fazer sacrifícios aos deuses. O poder receia o relaxamento
dos cerimoniais e a falta de respeito formal às institui­
ções, onde vê o desejo de sabotagem da ordem tradicional
e de inserção de novos costumes.
A alta Idade Média caracteriza-se também por uma for­
te decadência tecnológica e pelo empobrecimento dos cam­
pos. Escasseia o ferro e um camponês que deixa cair no poço
a única podadeira que tem deve esperar a intervenção mila­
grosa de um santo que a faça reaparecer (como testemunham
as lendas), do contrário não tem como viver. O pavoroso

86
decréscimo de população aumenta apenas depois do Milênio
justamente graças à introdução do plantio do feijão, lentilha
e fava, de alto poder nutritivo, sem o que a Europa teria
morrido de fraqueza orgânica (a relação entre feijões e re­
nascimento cultural é decisiva). O paralelo, hoje, se inverte
para ser restabelecido: um enorme desenvolvimento tecno­
lógico provoca bloqueios e desarranjos e a expansão de uma
indústria alimentícia converte-se na produção de alimentos
venenosos e cancerígenos.
Por outro lado, a sociedade de consumo no mais alto
nível não produz objetos perfeitos, mas engenhocas facil­
mente deterioráveis (se quiser uma boa faca, compre-a na
África; nos Estados Unidos, depois do primeiro uso, ela se
quebra) e a civilização tecnológica está se tornando uma so­
ciedade de objetos usados e inúteis; enquanto nos campos
assistimos a desmatamentos, abandono dos cultivos, polui­
ção hídrica, atmosférica e vegetal, desaparecimento de espé­
cies animais e assim por diante, de modo que, se não os
feijões, pelo menos uma injeção de elementos genuínos se
torna cada vez mais urgente.

6. O neonomadismo

O fato de que hoje se vá à lua, sejam transmitidas com­


petições esportivas via satélite e se inventem novas substân­
cias coincide muito bem com a outra face, quase sempre
ignorada, da Idade Média a cavalo entre os dois milênios,
que é definida como a época de uma primeira importantís­
sima revolução industrial; no decorrer de três séculos são
inventados os estribos e arreios que aumentam o rendimento
do cavalo, o timão posterior articulado que permite aos na­
vios navegar à bolina contra o vento, o moinho de vento.
Não parece, mas são poucas as oportunidades que um ho­
mem tem em sua vida de ver Pavia, e muitas as de ir parar
em Santiago de Compostela ou em Jerusalém. A Europa

87
medieval era sulcada de estradas de peregrinação (enumera­
das em seus bons guias turísticos que citavam as igrejas aba­
dais como hoje são citados os motéis e os Hilton) como
nossos céus são sulcados por linhas aéreas que tornam mais
fácil ir de Roma a Nova Iorque que de Spoleto a Roma.
Alguém poderia objetar que a sociedade seminômade
medieval era uma sociedade de viagem insegura; partir signi­
ficava fazer testamento (pense-se na partida do velho Anne
Vercos em UAnnonce faite à Marie de Claudel), e viajar
significava encontrar salteadores, bandos de andarilhos, fei­
ras. Mas a idéia da viagem moderna como uma obra-prima
de conforto e segurança já naufragou faz tempo, e tomar um
jato atravessando os vários controles eletrônicos e as investi­
gações contra o desvio de rota restabelece de modo semelhan­
te o antigo sentimento de insegurança aventureira destinado
presumivelmente a aumentar.

7. A Insecurítas

“ Insegurança” é uma palavra-chave: é preciso inserir


essa sensação no quadro das aflições milenaristas ou “ quiliás-
ticas” : o mundo está no fim, uma catástrofe final acabará
com o milênio. Os famosos horrores do ano Mil são uma
lenda, como já foi demonstrado, mas que durante todo o
século X serpenteava o medo do fim, isso também já foi de­
monstrado (exceto que no término do milênio a psicose já
tinha passado). No que se refere aos nossos dias, os temas
recorrentes da catástrofe atômica e da catástrofe ecológica
(além do presente estudo) bastam para indicar vigorosas cor­
rentes apocalípticas. Como corretivo utópico havia naquela
época a idéia da “ renovado imperii” e há hoje a idéia bas­
tante modulável de “ revolução” , ambas com sólidas pers­
pectivas reais, salvo defasagens finais em relação ao projeto
(não será o Império a se renovar, mas haverá o renascimento
das comunas e as monarquias nacionais a disciplinar a inse­
gurança). Mas a insegurança não é apenas “ histórica” , é
psicológica, incorpora-se na relação homem-paisagem, ho-
mem-sociedade. Perambulava-se pelos bosques à noite ven­
do-os apinhados de presenças maléficas, não era conveniente
aventurar-se tão facilmente fora do povoado, andava-se arma­
do; condição a que chega o habitante de Nova Iorque, que
não mais põe os pés depois das cinco da tarde no Central
Park, ou presta atenção para não pegar um metrô que o dei­
xe, por engano, no Harlem, nem toma o metrô sozinho
depois da meia-noite, e mesmo antes, se é uma mulher.
Entretanto, ao mesmo tempo que em toda a parte as forças
policiais começam a reprimir os saques mediante massacres
indiscriminados de bons e maus, instaura-se a prática do
roubo revolucionário e do seqüestro de embaixador, assim
como um cardeal com seu séquito podia ser capturado por um
Robin Hood qualquer e ser trocado por um par de alegres
companheiros da floresta, destinados à forca ou à roda.
Último retoque no quadro da insegurança coletiva, o fato
de que como naquela época, e diferentemente dos usos ins­
taurados pelos Estados modernos liberais, a guerra não é
mais declarada (a não ser no fim do conflito, vide índia e
Paquistão) e nunca se sabe se se está em estado de belige­
rância ou não. De resto, que se vá a Livorno, a Verona ou
a Malta para perceber que tropas do Império aquartelam-se
nos vários territórios nacionais como presídio contínuo, e
trata-se de exércitos plurilíngües com comandantes continua­
mente tentados a usar essa força para guerrear (ou fazer po­
lítica) por conta própria.

Os vagantes

Nesses amplos territórios dominados pela insecuritas,


vagam bandos de marginalizados, místicos ou aventureiros.
Afora que na crise geral das universidades e no plano de
bolsas de estudo descoordenadas, os estudantes vão se re­

X9
constituindo como vagantes, e recorrem sempre e somente
a mestres não-permanentes, rejeitando os próprios “ precep-
tores naturais” , temos de um lado bandos de hippies —
verdadeiras ordens mendicantes — que vivem da caridade
pública em busca de uma felicidade mística (droga ou Graça
divina faz pouca diferença, mesmo porque várias religiões
não-cristãs despontam entre as dobras da felicidade química).
As populações locais não os aceitam e perseguem-nos, e
quando for expulso de todas as casas da juventude escreva
o irmão das flores que aqui reina perfeita alegria. Como
na Idade Média quase sempre o limite entre o místico e o
ladrão é mínimo e Manson outra coisa não é senão um
monge que se excedeu, como seus ancestrais, nos ritos satâ­
nicos (por outro lado também quando o homem de poder
faz sombra ao governo legítimo acaba envolvido, como fez
Filipe, o Belo, com os Templários, no escândalo dos baila­
dos verdes). Excitação mística e rito diabólico estão muito
próximos, e Gilles de Rais, queimado vivo por ter devorado
muitas criancinhas, era companheiro de armas de Joana
d ’Arc, guerrilheira carismática como Che. Outras formas
afins àquelas das ordens mendicantes são, ao contrário, rei­
vindicadas, em outra chave, por grupos politizados, e o mo-
ralismo da União dos marxistas-leninistas tem raízes monás­
ticas, com seu apelo à pobreza, à austeridade dos costumes
e “ ao serviço do povo” .
Se os paralelos parecem desordenados, pense-se na enor­
me diferença, sob a aparente cobertura religiosa, que se in­
terpunha entre monges contemplativos e indolentes, que no
recesso do mosteiro viviam fazendo das suas, franciscanos
ativos e populistas, dominicanos doutrinários e intransigen­
tes, todos juntos porém se marginalizando por vontade pró­
pria e de modos diferentes do contexto social corrente,
desprezado como decadente, diabólico, fonte de neuroses,
de “ alienação” . Essas sociedades de renovadores, divididas
entre uma furiosa atividade prática a serviço dos desampa­
rados e uma violenta discussão teológica, são dilaceradas por

90
recíprocas acusações de heresia e pelo ricochete contínuo de
excomunhões. Cada grupo fabrica os próprios dissidentes e
os próprios heresiarcas, os ataques que se dirigiam uns aos
outros dominicanos e franciscanos não são diferentes daque­
les que se dirigem trotskistas e stalinistas — nem esse é
o indício, ceticamente sublinhado, de uma desordem sem
objetivo, mas, ao contrário, é o indício de uma sociedade em
que novas forças buscam novas imagens de vida coletiva e
descobrem não poder impô-las a não ser através da luta con­
tra os “ sistemas” estabelecidos, praticando uma consciente
e rigorosa intolerância teórica e prática.

9. A Auctoritas

Há um aspecto da civilização medieval que uma óptica


leiga, iluminista e liberal nos levou, por excesso de obriga­
tória polêmica, a deformar e a julgar mal, é a prática de
recurso à auctoritas. O estudioso medieval finge sempre não
ter inventado nada e cita continuamente uma autoridade pre­
cedente. Serão os padres da Igreja oriental, será Agostinho,
serão Aristóteles ou as Sagradas Escrituras ou estudiosos de
apenas um século antes, mas nunca nada de novo deve ser
sustentado a não ser fazendo com que apareça como que
já dito por outrem que nos precedeu. Se pensarmos bem,
é justamente o contrário daquilo que se fará de Descartes
até o nosso século, em que o filósofo ou o cientista que va­
lem alguma coisa são exatamente aqueles que trouxeram
algo de novo (e o mesmo, do Romantismo e quem sabe até
do Maneirismo em diante, vale para o artista). O medieval
não, faz exatamente o contrário. Desse modo o discurso
cultural medieval parece, de fora, um enorme monólogo sem
variações, porque todos se preocupam em usar a mesma lin­
guagem, as mesmas citações, os mesmos argumentos, o mes­
mo léxico, e parece ao ouvinte que está de fora que se está
dizendo sempre a mesma coisa, exatamente como acontece

91
a quem chega a uma assembléia estudantil, lê a imprensa
dos grupinhos extraparlamentares ou os escritos da revolu­
ção cultural.
De fato, o estudioso de assuntos medievais sabe reco­
nhecer diferenças fundamentais assim como o político, hoje,
nada com desenvoltura individuando diferenças e desvios a
cada intervenção e sabendo classificar imediatamente seu
interlocutor neste ou naquele engajamento. É que o medieval
sabe muito bem que da auctoritas pode-se fazer o que bem se
entende: “ A auctoritas tem um nariz de cera que pode ser
deformado como se quiser” , diz Alain de Lille no século
X II. Mas já antes Bernard de Chartres dissera: “Nós somos
como que anões em cima dos ombros de gigantes” ; os gi­
gantes são as autoridades indiscutíveis, muito mais lúcidas
e enxergando mais longe que nós, mas nós, pequenos que
somos, quando nos sustentamos em cima deles enxergamos
mais longe. Havia, então, de um lado a consciência de estar
inovando e continuando, mas a inovação devia ser apoiada
num corpus cultural que garantisse de uma parte algumas
persuasões indiscutíveis e de outra uma linguagem comum.
O que não constituía apenas (embora quase sempre acabas­
se se tornando) dogmatismo, mas era o modo como o medie­
val reagia à desordem e à dissipação cultural da baixa ro-
manidade, ao cadinho de idéias, religiões, promessas e
linguagens do mundo helenístico, em que cada um se encon­
trava só com seu tesouro de sabedoria. A primeira coisa a
fazer era reconstruir uma temática, uma retórica e um
léxico comum, nos quais se reconhecer, do contrário não
se podia mais comunicar e (o que interessava) não se podia
lançar uma ponte entre o intelectual e o povo — coisa que
o medieval, paternalmente e por conta própria, fazia, ao
contrário do intelectual grego e romano.
Ora, o comportamento dos grupos políticos juvenis
hoje é exatamente do mesmo tipo, representa a reação à dis­
sipação da originalidade romântico-idealista, e ao pluralismo
das perspectivas liberais, vistas como capas ideológicas que

92
ocultam, sob a pátina da diferença de opiniões e de métodos,
a maciça unidade do domínio econômico. A pesquisa dos
textos sagrados (sejam eles Marx ou Mao, Guevara ou Rosa
Luxemburg) tem antes de mais nada a seguinte função: res­
tabelecer uma base de discurso comum, um corpo de autori­
dades reconhecíveis sobre as quais instaurar o jogo das di­
ferenças e das propostas em conflito. Tudo isso com uma
humildade completamente medieval e exatamente oposta ao
espírito moderno, burguês e renascentista; não tem mais im­
portância a personalidade de quem propõe, e a proposta não
deve passar como descoberta individual, mas como fruto de
uma decisão coletiva, sempre e rigorosamente anônima. Des­
se modo uma reunião em assembléia se desenvolve como
uma quaestio disputata: a qual dava ao forasteiro a impres­
são de um jogo monótono e bizantino, enquanto nela eram
debatidos não só os grandes problemas do destino do ho­
mem, mas as questões concernentes à propriedade, à dis­
tribuição da riqueza, às relações com o Príncipe, ou à natu­
reza dos corpos terrestres em movimento e dos corpos ce­
lestes imóveis.

10. As formas do pensamento

Mudando rapidamente (no que diz respeito a hoje) de


cenário, mas sem nos deslocarmos um centímetro no que
diz respeito ao paralelo medieval, eis-nos numa aula univer­
sitária onde Chomsky recorta gramaticalmente nossos enun­
ciados em elementos atômicos que se ramificam em dois, ou
Jakobson reduz a espaços binários as emissões fonológicas,
ou Lévi-Strauss estrutura em jogos antinômicos a vida pa-
rental e a textura dos mitos, ou Roland Barthes lê Balzac,
Sade e Inácio de Loyola como o medieval lia Virgílio, no
encalço de ilusões opostas e simétricas. Nada está mais pró­
ximo do jogo intelectual medieval que a lógica estruturalis-
ta, como nada está mais próximo dela, no fim das contas,

93
que o formalismo da lógica e da ciência física e matemática
contemporânea. Que no próprio território antigo possam ser
encontrados paralelos com o debate dialético dos políticos
ou com a descrição matematicizante da ciência não deve
surpreender ninguém, justamente porque estamos comparan­
do uma realidade atual a um modelo condensado: mas tra­
ta-se, em ambos os casos, de dois modos de enfrentar a
realidade que não encontram paralelos satisfatórios na cultura
moderna burguesa e que dependem ambos de um projeto de
reconstituição, diante de um mundo cuja imagem oficial foi
perdida ou rejeitada.
O político argumenta com sutileza, apoiado pela auto­
ridade, para fundamentar em bases teóricas uma práxis de
formação; o cientista tenta restituir uma forma, através de
classificações e distinções, a um universo cultural explodido
(como o greco-romano) por excesso de originalidade e pela
confluência conflitante de contribuições demasiado díspares,
Oriente e Ocidente, magia, religião e direito, poesia, medi­
cina ou física. Trata-se de mostrar que existem abscissas do
pensamento que permitem recuperar modernos e primitivos
sob a égide de uma mesma lógica. Os excessos formalistas
e a tentação anti-histórica do estruturalismo são os mesmos
das discussões escolásticas, assim como a tensão pragmática
e modificadora dos revolucionários, que então eram chama­
dos reformadores ou hereges tout court, deve (como devia)
apoiar-se em cima de furiosas diatribes teóricas e cada nuan-
ça teórica implicava uma práxis diferente. Até as discussões
entre São Bernardo, partidário de uma arte sem imagens,
depurada e rigorosa, e Suger, partidário da catedral suntuosa
e pululante de comunicações figurativas, têm correspondên­
cia, em variados níveis e chaves, com a oposição entre cons-
trutivismo soviético e realismo socialista, entre abstratos e
neobarrocos, entre teóricos puristas da comunicação concei­
tuai e partidários mcluhanianos da aldeia global da comu­
nicação visual.

94
11. A arte como bricolage

Quando se passa porém aos paralelos culturais e artís­


ticos, o panorama se torna muito mais complexo. De um
lado temos uma correspondência bastante perfeita entre duas
épocas que de diferentes modos, com semelhantes utopias
educativas e com semelhante mascaramento ideológico de
um projeto paternalista de direção das consciências, tentam
preencher a diferença entre cultura culta e cultura popular,
passando através da comunicação visual. Ambas são épocas
cuja elite selecionada raciocina sobre textos escritos com
mentalidade alfabética, mas depois traduz em imagens os
dados essenciais do saber e as estruturas portadoras da
ideologia dominante. Civilização da visão, a Idade Média,
onde a catedral é o grande livro de pedra, e de fato é o
manifesto publicitário, o vídeo televisual, o místico almana­
que que deve contar e explicar tudo, os povos da terra,
as artes e as profissões, os dias do ano, as estações da se-
meadura e da colheita, os mistérios da fé, as anedotas da
história sagrada e profana e a vida dos santos (grandes mo­
delos de comportamento, como hoje os astros e os cantores,
elite sem poder político, como explicaria Francesco Alberoni,
mas com imenso poder carismático).
Junto a essa maciça empresa de cultura popular de­
senvolve-se o trabalho de composição e colagem que a cultu­
ra culta exerce sobre os detritos da cultura passada. Pegue-
se uma caixa mágica de Cornell ou Armand, uma colagem
de Ernst, uma máquina inútil de Munari ou de Tinguely, e
se estará numa paisagem que não tem nada a ver com Rafael
ou Canova, mas que tem muitíssimo a ver com o gosto esté­
tico medieval. Na poesia são centões e adivinhas, os kenning
irlandeses, os acrósticos, as tramas verbais de citações múlti­
plas que lembram Pound e Sanguineti; os jogos etimológicos
desvairados de Virgilio de Bigorre e Isidoro de Sevilha, que
lembram tanto Joyce (Joyce sabia disso), os exercícios de
composição temporais dos tratados de poética, que parecem

95
um programa para Godard, e sobretudo o gosto da coleção
e do inventário. Que então se concretizava nos tesouros
dos príncipes ou das catedrais, onde eram recolhidos indis­
tintamente uma lasca da cruz de Jesus, um ovo achado den­
tro de outro ovo, um chifre de unicórnio, o anel de noivado
de São José, o crânio de São João aos doze anos de idade
(.sic) .3
E dominava uma total indistinção entre objeto estético
e objeto mecânico (um autômato em forma de galo, artisti­
camente cinzelado, é presenteado por Harun al-Rachid a Car­
los Magno, jóia cinêtica se é que existiram), e não havia di­
ferença entre objeto de “ criação” e objeto de curiosidade,
com uma indistinção entre artesanal e artístico, entre “ múlti­
plo” e exemplar único e sobretudo entre trouvaille curiosa
(o lustre liberty como o dente de baleia) e obra de arte. O
todo dominado pelo senso da cor berrante e da luz como ele­
mento físico de prazer, e não importa que lá houvesse vasos
de ouro incrustados de topázios postos para refletir os raios
de sol refratados por um vitral de igreja, e aqui haja a orgia
em multimídias de um Electric Circus qualquer, com pro­
jeções polaroid cambiantes e lembrando a natureza da água.

3 Objetos contidos no tesouro de Carlos IV da Boêmia: o crânio de Sto.


Adalberto, a espada de Sto. Estêvão, um espinho da coroa de Jesus, lascas
da Cruz, toalha da Última Ceia, um dente de Sta. Margarida, uma lasca
de osso de S. Vital, uma costela de Sta. Sofia, o queixo de Sto. Eubano,
costela de baleia, presa de elefante, cajado de Moisés, roupas da Virgem.
Objetos do tesouro do duque de Berry: um elefante empalhado, um basi-
lisco, maná encontrado no deserto, chifre de unicórnio, cocos, aliança de
casamento de S. José. Descrição de uma amostra de pop art e nouveau
réalisme: boneca estripada com cabeças de outras bonecas à mostra, um
par de óculos com olhos pintados por cima, cruz incrustada de garrafas
de Coca-Cola e uma luzinha no meio, retrato de Marilyn Monroe multi­
plicado, ampliação de quadrinhos de Dick Tracy, cadeira elétrica, mesa de
pingue-pongue com bolas de gesso, pedaços de automóveis comprimidos,
capacete de motociclista pintado a óleo, pilha elétrica de bronze sobre pe­
destal, caixa com tampinhas de garrafas, mesa vertical com prato, faca,
maço de Gitanes e chuveiro pendente sobre paisagem a óleo.

96
Dizia Huizinga que para compreender o gosto estético
medieval é necessário pensar no tipo de reação que experi­
menta diante do objeto curioso e precioso um burguês estar­
recido. Huizinga pensava em termos de sensibilidade esté­
tica pós-romântica; hoje veremos que esse tipo de reação é
o mesmo que sente um jovem em relação a um pôster que
representa um dinossauro ou uma motocicleta, ou a uma caixa
mágica transistorizada em que rodam feixes luminosos, a
meio caminho entre o modelinho tecnológico e a promessa
de ficção científica, com componentes de ourivesaria bár­
bara.
Arte não sistemática mas cumulativa e compositiva a
nossa como a medieval, hoje como então coexiste o experi­
mento elitista refinado com a grande empresa de divulgação
popular (a relação miniatura-catedral é a mesma que há entre
o Museum of Modern Art e Hollywood), com intercâmbios
e empréstimos recíprocos e contínuos: e o aparente bizanti-
nismo, o gosto tresloucado pela coleção, o elenco, o assern-
blage, o amontoamento de coisas diferentes é devido à ne­
cessidade de decompor e reavaliar os detritos de um mundo
precedente, talvez harmônico, mas já agora obsoleto, para
ser vivido, diria Sanguineti, como uma Palus Putredinis, que
fora ultrapassada e esquecida. Enquanto Fellini e Antonioni
experimentam seus Infernos e Pasolini seus Decamerões (e
o Orlando de Ronconi não é absolutamente uma festa re­
nascentista, mas um mistério medieval na praça e para a
arraia-miúda), alguém tenta desesperadamente salvar a cultu­
ra antiga, achando-se investido de um mandato intelectual,
e se acumulam as enciclopédias, os digestos, as mostras ele­
trônicas da informação com que Vacca contava para trans­
mitir aos pósteros um tesouro de saber que está arriscado a
se dissolver na catástrofe.

97
12. Os mosteiros

Nada é mais semelhante a um mosteiro (perdido no


campo, cercado e rodeado por hordas bárbaras e estranhas,
habitado por monges que não têm nada a ver com o mundo
e desenvolvem suas pesquisas particulares) que um campus
universitário norte-americano. Às vezes o Príncipe chama um
desses monges e faz dele seu conselheiro, mandando-o em
embaixada a Catai; e esse passa do claustro ao século com
indiferença, tornando-se homem de poder e tentando gover­
nar o mundo com a mesma asséptica perfeição com que co­
leciona seus textos gregos. Chame-se Gerbert d ’Aurillac
ou MacNamara, Bernard de Clairvaux ou Kissinger, pode
ser homem de paz ou de guerra (como Eisenhower, que ven­
ce algumas batalhas e em seguida se retira para um mosteiro,
tornando-se diretor de college, só para depois voltar ao
serviço do Império quando a multidão o chama como herói
carismático).
Mas é de duvidar se pertencerá a esses centros monás­
ticos a tarefa de registrar, conservar e transmitir o fundo
da cultura passada, talvez mediante complicados aparelhos
eletrônicos (como sugere Vacca) que a restituam aos poucos,
estimulando sua reconstrução sem nunca revelar a fundo to­
dos os segredos. A outra Idade Média produziu no fim um
Renascimento que se divertia em fazer arqueologia, mas
de fato a Idade Média não fez obra de conservação sistemá­
tica, mas sim de destruição casual e conservação desordenada:
perdeu manuscritos essenciais e salvou outros completamen­
te irrisórios, raspou poemas maravilhosos para escrever em
cima adivinhas ou preces, falsificou os textos sagrados inter-
polando passagens e assim procedendo escrevia os “ seus li­
vros” . A Idade Média inventa a sociedade comunal sem ter
tido notícias precisas sobre a pólis grega, chega à China acre­
ditando encontrar homens de um pé só ou com a boca na
barriga, chega quem sabe à América antes de Colombo usan­

98

k
do a astronomia de Ptolomeu e a geografia de Eratóste-
nes. . .

13. A transição permanente

Dessa nossa nova Idade Média já se disse que será uma


época de “ transição permanente” na qual serão adotados no­
vos métodos de adaptação: o problema não será tanto o de
conservar cientificamente o passado quanto o de elaborar hi­
póteses sobre o aproveitamento da desordem, entrando na
lógica da conflitualidade. Nascerá, como já está nascendo,
uma cultura da readaptação contínua, nutrida de utopia. Foi
assim que o homem medieval inventou a universidade, com
a mesma desinibição com que os clérigos vagantes de hoje a
estão destruindo; e talvez transformando. A Idade Média
conservou a seu modo a herança do passado não para hiber­
nação, mas para contínua retraduçao e reutilização, foi uma
imensa operação de bricolage em equilíbrio instável entre
nostalgia, esperança e desespero.
Sob sua aparência imobilista e dogmática foi, parado­
xalmente, um momento de “ revolução cultural” . O processo
todo foi naturalmente caracterizado por pestes e massacres,
intolerância e morte. Ninguém diz que a nova Idade Média
representa uma perspectiva de todo alegre. Como diziam os
chineses para maldizer alguém: “ Que você possa viver numa
época interessante.”

1972

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