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De Umberto Eco
leia também:
O nome da rosa
EDITORA
NOVA
ISBN 85-209-0436-X FRONTEIRA
SEMPRE
UM BOM
LIVRO
9 788520 '90436?1
U m berto
I Eco I
VIAGEM
NA IRREALIDADE
COTIDIANA
Do mesmo autor de O NOME DA ROSA.
A Televisão, a Ecologia, a Religião, a Política,
o Esporte, o Cinema, os problemas da atualidade,
segundo o maior teórico da Comunicação.
Titulo original:
VIAGGIO NELLAIRREALITÃ QUOTIDIANA
Revisão:
UMBERTO FIGUEIREDO PINTO
TIZZIANA GlORGINI
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
CDD — 854
84-0463 CDU — 850-4
SUMÁRIO
As fortalezas da solidão, 9
Os presépios de Satanás, 19
. Os castelos encantados, 30
Os mosteiros da salvação, 41
A cidade dos autômatos, 51
Ecologia 1984 e a Coca-Cola tornada carne, 61
Projeto de Apocalipse, 75
Projeto alternativo de Idade Média, 77
Crise da Pax norte-americana, 80
A vietnamização do território, 82
A deterioração ecológica, 86
O neonomadismo, 87
A Insecuritas, 88
Os vagantes, 89
A Auctoritas, 91
As formas do pensamento, 93
A arte como bricolage, 95
Os mosteiros, 98
A transição permanente, 99
/. Projeto de apocalipse
75
rios dias. Como está nevando e as estradas ficam bloquea
das, os automóveis provocam monstruosos congestiona
mentos; nos escritórios acendem-se fogueiras para esquen
tar e irrompem incêndios que os bombeiros não conse
guem atingir e debelar. A rede telefônica fica bloqueada
pelo impacto de cinqüenta milhões de quarteirões que ten
tam se contatar telefonicamente. Têm início marchas na neve
com mortos ao longo da estrada.
Privados de abastecimentos de qualquer gênero, os
andarilhos procuram se apoderar de abrigos e mercadorias,
entram em ação as dezenas de milhões de armas de fogo
vendidas nos Estados Unidos, as forças armadas assumem
todo o poder, mas são vítimas, elas também, da paralisia
geral. Supermercados são saqueados, nas casas acabam as
reservas de velas, sobe o número de mortos pelo frio, pela
fome e por inanição nos hospitais. Quando, com toda a di
ficuldade, a normalidade for restabelecida após algumas se
manas, milhões de cadáveres espalhados pela cidade e pelo
campo começarão a propagar epidemias, repropondo flagelos
de dimensões semelhantes às da peste negra que no século
XIV destruiu dois terços da população européia. Surgirão
psicoses “ de contágio” e será imposto um novo macarthismo
bem mais cruento que o anterior. A vida política, entrando
em crise, se subdividirá numa série de subsistemas autônomos
e independentes do poder central, com milícias mercenárias
e administração autônoma da justiça. Enquanto a crise for
aumentando, os que conseguirão superá-la mais facilmente
serão os habitantes das áreas subdesenvolvidas, já preparados
para viver em condições elementares de vida e de competi
ção, e ocorrerão grandes migrações com fusões e contami
nações raciais, importações e difusões de novas ideologias.
Uma vez declinada a força das leis, destruídos os cadastros,
a propriedade se apoiará apenas no direito de usucapião; e,
por outro lado, a rápida decadência terá reduzido as cidades
a um monte de ruínas alternadas com casas habitáveis, e ha
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bitadas por quem delas se apodera, enquanto pequenas auto
ridades locais poderão manter um certo poder, constituindo
recintos e pequenas fortificações. A essa altura já se estará
em plena estrutura feudal, as alianças entre poderes locais
serão firmadas sobre o compromisso e não sobre a lei, as re
lações individuais estarão fundadas na agressão, na aliança
por amizade ou comunhão de interesses, renascerão costu
mes elementares de hospitalidade para o andarilho. Diante
de tal perspectiva, diz-nos Vacca, não resta senão pensar em
planificar o equivalente das comunidades monásticas que,
numa tamanha decadência, desde logo sejam treinadas para
manter vivas e para transmitir os conhecimentos técnicos e
científicos úteis para o advento de uma nova renascença.
Como organizar esses conhecimentos, como impedir que se
corrompam no processo de transmissão, ou que certas co
munidades os utilizem para fins de poder privado, esses e
outros problemas constituem os capítulos finais (e em grande
parte discutíveis) do A Idade Média próxima e vindoura.
Mas a questão (como se dizia no início) é outra. Trata-se,
antes de mais nada, de decidir se o roteiro de Vacca é apo
calíptico ou a enfatização de algo que já existe. E, em segundo
lugar, de libertar a noção de Idade Média da aura negativa
com que a cingiu uma certa publicística cultural de inspiração
renascentista. Tentemos então compreender o que se entende
por Idade Média.
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pleno florescimento; aliás, falam antes em três Renascenças,
uma Carolíngia, a outra nos séculos X I e X II e a terceira
aquela conhecida como Renascença propriamente dita.
Admitindo-se que se consiga sintetizar a Idade Média
numa espécie de modelo abstrato, a qual dos dois irá cor
responder a nossa época? Uma correspondência ponto por
ponto seria ingênua, mesmo porque vivemos numa época
de processos imensamente acelerados, em que aquilo que
acontece em cinco de nossos anos pode às vezes corresponder
ao que então sucedia em cinco séculos. Depois, o centro
do mundo alargou-se por todo o planeta, atualmente convi
vem civilizações, culturas e estágios diferentes de desenvol
vimento, e em termos de senso comum somos levados a falar
em “condição medieval” das populações bengalis ao mesmo
tempo que vemos Nova Iorque como uma florescente
Babilônia, ou Pequim como o modelo de uma nova civiliza
ção renascentista. Por isso o paralelo, se é feito, deve se
instaurar entre alguns momentos e situações de nossa civili
zação planetária e diversos momentos de um processo histó
rico que vai do século V ao X III da nossa era. Certamente
comparar um momento histórico preciso (hoje) com um pe
ríodo de quase mil anos tem muito de brincadeira sem graça,
e sem graça seria se assim fosse. Mas aqui estamos tentando
elaborar uma “ hipótese de Idade Média” (como se nos pro
puséssemos a construir uma Idade Média e pensássemos nos
ingredientes necessários para produzir uma eficiente e plau
sível).
Essa hipótese, ou esse modelo, terá as características de
todas as criaturas de laboratório: será o resultado de uma
escolha, de uma filtragem e a escolha dependerá de um obje
tivo preciso. Em nosso caso o objetivo é dispor de uma ima
gem histórica com que medir tendências e situações do nosso
tempo. Será uma brincadeira de laboratório, mas nunca nin
guém disse seriamente que os brinquedos são inúteis. Brin
cando, a criança aprende a viver no mundo, justamente por
que finge aquilo que depois será obrigada a executar de
verdade.
O que é necessário para se fazer uma boa Idade Média?
Antes de mais nada uma grande Paz que se desfolha, um
grande poder estatal internacional que unificara o mundo
como língua, costumes, ideologias, religiões, arte e tecnologia
e que a certa altura, por sua própria complexidade ingover
nável, se desmorona. Desmorona-se porque nas fronteiras
investem os “ bárbaros” , que não são necessariamente incul
tos, mas trazem novos costumes e novas visões de mundo.
Esses bárbaros podem penetrar com violência, porque pre
tendem se apropriar de uma riqueza que lhes fora negada;
ou podem insinuar-se no corpo social e cultural da Pax do
minante, pondo em circulação novas crenças e novas perspec
tivas de vida. No início de sua queda o Império Romano
não estava minado pela ética cristã; já se deixara minar so
zinho, acolhendo sincreticamente a cultura alexandrina e os
cultos orientais de Mitra ou de Astarte, brincando com a
magia, as novas éticas sexuais, várias esperanças e imagens
de salvação. Acolheu novos componentes raciais, eliminou
por força das circunstâncias rígidas divisões de classe, reduziu
a diferença entre cidadãos e não-cidadãos, entre patrícios e
plebeus, conservou a divisão das riquezas mas misturou as
diferenças entre papéis sociais, nem podia proceder de modo
diverso. Assistiu a fenômenos de aculturamentos rápidos,
pôs no governo homens de raças que duzentos anos antes
teriam sido julgadas inferiores, desdogmatizou muitas teolo-
gias. No mesmo período o governo pode adorar deuses clás
sicos, os soldados Mitra e os escravos Jesus. Por instinto
persegue-se a fé que, de longe, parece mais letal ao sistema,
mas em regra uma grande tolerância repressiva permite acei
tar tudo.
O colapso da Grande Pax (militar, civil, social e cultu
ral ao mesmo tempo) inicia um período de crise econômica
e de carência de poderes, mas é apenas uma justificável rea
ção anticlerical a que permitiu ver as Idades das Trevas
79
como tão “ obscuras” ; com efeito também a alta Idade Média
(e talvez mais que a Idade Média após o Milênio) foi uma
época de incrível vitalidade intelectual, de diálogos apaixo-
nantes entre civilizações bárbaras, herança romana e tem
peros cristão-orientais, de viagens e encontros, com os mon
ges irlandeses que atravessavam a Europa difundindo idéias,
fazendo conferências, inventando maluquices de todo ti
po. . . Em poucas palavras: foi ali que amadureceu o homem
ocidental moderno, e é nesse sentido que o modelo de uma
Idade Média pode nos servir para compreender o que está
acontecendo nos nossos dias: à queda de uma grande Pax
se sucedem crises e períodos de insegurança, chocam-se ci
vilizações diferentes e se esboça lentamente a imagem de
um homem novo. Ela se tornará clara apenas mais tarde,
mas os elementos fundamentais já ali estão em ebulição
num dramático caldeirão. Boécio, que divulga Pitágoras e
relê Aristóteles, não está repetindo de memória a lição do
passado, mas inventa um novo modo de fazer cultura e, fin
gindo ser o último dos romanos, efetivamente constitui o
primeiro gabinete de estudos das cortes bárbaras.
80
hunos, os godos ou os povos asiáticos e africanos que envol
viam o centro do Império em seus comércios e religiões?
A única coisa que de preciso estava desaparecendo era o
Romano, assim como hoje desaparece o Homem Liberal,
empresário de língua anglo-saxônica, que tinha tido em Ro-
binson Crusoé o seu poema primitivo e em Max W eber o
seu Virgílio.
Nos vilarejos dos subúrbios, o executivo médio de cabe
los à escovinha personifica ainda o romano de antiga cepa,
mas seu filho já se veste com cabelos de indiano, poncho
de mexicano, toca citara asiática, lê textos budistas ou libelos
leninistas e consegue quase sempre (como acontecia no baixo
Império) conciliar Hesse, o zodíaco, a alquimia, o pensa
mento de Mao, a maconha e as técnicas de guerrilha urbana;
basta ler Do It de Jerry Rubin ou pensar nos programas da
Alternate University, que há dois anos, em Nova Iorque,
organizava cursos sobre Marx, a economia cubana e a astro
logia. Por outro lado, também esse sobrevivente romano,
nos momentos de tédio, pratica a troca de casais e põe em
crise o modelo da família puritana.
Inserido numa grande Corporation (grande sistema em
degradação), o romano de cabelos à escovinha já está, de
fato, vivendo a descentralização absoluta e a crise do poder
(ou dos poderes) central reduzido a uma ficção (como já
era o Império) e a um sistema de princípios cada vez mais
abstratos. Veja-se o impressionante ensaio de Furio Colom
bo (“ Poder, grupos e conflito na sociedade neofeudal” ) ',
do qual emerge a contemporaneidade de uma situação tipi
camente neomedieval. Todos sabemos, sem necessidade de
fazer sociologia, o quanto em nossa época as decisões do
governo são quase sempre formais em relação a decisões
aparentemente periféricas de grandes centros econômicos;
81
os quais não por acaso começam a constituir o seu Sifar par
ticular, talvez usando as forças daquele público, e suas uni
versidades, chegando a resultados de eficiência particular,
em relação ao Desmoronamento do Distribuidor Central de
Treinamento. Em que proporção, afinal, a política do Pentá
gono ou do FB I possa proceder de modo absolutamente inde
pendente daquela da Casa Branca é notícia de todos os dias.
“ O avanço do poder tecnológico esvaziou as insti
tuições e abandonou o centro da estrutura social” , observa
Colombo, e o poder “ se organiza abertamente fora da área
central e média do corpo social, rumo a uma zona livre dos
deveres e responsabilidades gerais, revelando aberta e re
pentinamente o caráter acessório das instituições” .
Os apelos não são mais em termos de hierarquia ou
função codificada, mas de prestígio e pressão efetiva; Co
lombo cita o caso da rebelião nas prisões de Nova Iorque
em outubro de 1970, em que a autoridade institucional, o
prefeito Lindsay, pôde agir apenas mediante convites ao
equilíbrio, mas a transação acontecia antes entre prisioneiros
e serventes, e depois entre jornalistas e autoridades carcerá
rias, com a mediação efetiva da televisão.
4. A vietnamizaçao do território
82
american. O poder central, que sofre a pressão da t w a de
modo particularmente intenso, fornece à companhia um ser
viço de vistos e alfândega mais rápido que às outras. Voan
do pela t w a , entra-se nos Estados Unidos em cinco minutos
marcados no relógio, por outras companhias você gastará
nisso uma hora. Tudo depende do feudatário voador a quem
estará ligado e os missi dominici (que também são investi
dos do poder de condenação e absolvição ideológica) tirarão
de alguns excomunhões que para outros serão muito mais
dogmaticamente irrevogáveis.
Não é preciso ir aos Estados Unidos para notar que se
modificou o aspecto exterior da sala central de um banco de
Milão ou de Turim, e para conferir, tentando entrar no pa
lácio da r a i na Avenida Mazzini em Roma, qual complexo de
controles, geridos por polícias internas, é necessário atraves
sar antes de poder pôr os pés num castelo mais fortificado
que os outros. O exemplo da fortificação e pré-militarização
das fábricas, também aqui, está em nível de experiência co
tidiana. A essa altura o policial em serviço é útil e inútil,
reforça a presença simbólica do poder, que por vezes pode
se tornar um braço secular efetivo; mas quase sempre bastam
as forças mercenárias internas. Quando, então, a fortificação
herética (pense-se na Estatal de Milão, com seu território
livre guarnecido de privilégios “ de fato” ) se torna embara
çosa, então o poder central intervém para restabelecer a
autoridade da Imagem do Estado; mas na Faculdade de
Arquitetura em Milão, transformada em cidadela, o poder
central interveio somente quando senhores feudais de va
riada extração, indústrias, jornais, d c urbana, decidiram que
a cidadela inimiga estava sendo expugnada. Somente então
o poder central percebeu ou fingiu acreditar que a situação
era ilegal há anos, e acusou o conselho da faculdade. Até que
a pressão de feudatários mais ricos não se tornasse insusten
tável, aquele pequeno feudo de templários extravagantes,
ou aquele mosteiro de monges dissolutos, foi abandonado à
83
autogestão com suas regras e abstenções, ou suas liberti-
nagens.2
Um geógrafo italiano, Giuseppe Sacco, desenvolveu há
um ano o tema da medievalização da cidade. Uma série de
minorias que recusam a integração constitui-se em clã e
cada clã escolhe um bairro que se torna o próprio centro,
freqüentemente inacessível: estamos na “ contrada” medieval
(Sacco ensina em Siena). Dentro do espírito de clã são res
tabelecidas, por outro lado, também as classes abastadas que,
84
i
seguindo o mito da natureza, retiram-se para fora da cidade,
no bairro-jardim com supermercados autônomos, dando vida
a outros tipos de microssociedade.
Sacco também retoma o tema da vietnamização dos ter
ritórios, teatros de tensões permanentes, por causa da ruptu
ra do consenso: entre as respostas do poder, a tendência a
descentralizar as grandes universidades (uma espécie de
“ desfolhamento” estudantil) para evitar perigosas concen
trações de massa. Nesse quadro de guerra civil permanen
te, dominado por um choque de minorias opostas e sem cen
tro, as cidades estarão preparadas cada vez mais para se
tornarem aquilo que já podemos encontrar em algumas locali
dades latino-americanas, habituadas à guerrilha “ onde a frag
mentação do corpo social é bem simbolizada pelo fato de o
porteiro dos prédios de apartamentos estar habitualmente
armado de metralhadora. Nessas mesmas cidades os edifícios
públicos parecem de algum modo fortalezas, como os palácios
presidenciais, e são circundados por uma espécie de barragem
em terra que os protege dos ataques das bazucas” .
Naturalmente o nosso paralelo medieval deve ser arti
culado de modo a não temer as imagens simetricamente opos
tas. Porque enquanto a outra Idade Média via como intima
mente ligados decréscimo de população, abandono das
cidades e carestia dos campos, dificuldade de comunicação,
deterioração das estradas e das postas romanas, crise do
controle central, hoje parece acontecer (referente e subja
cente à crise dos poderes centrais) o fenômeno oposto: o
excesso de população que interage com o excesso de comu
nicação e transportes, tornando as cidades inabitáveis não
por destruição e abandono, mas por paroxismo de atividade,
a hera que corrói as grandes construções que desabam é
substituída agora pela poluição atmosférica e pelo acúmulo
de lixo que deturpa e torna irrespiráveis as grandes cons
truções que se renovam; a cidade fica cheia de imigrantes,
mas esvaziada de seus velhos habitantes que a usam para
trabalhar, correndo depois aos subúrbios (cada vez mais for-
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tifiçados após a chacina de Bel Air). Manhattan prepara-se
para ser habitada apenas por negros, Turim por meridionais,
enquanto nas colinas e nas planícies circundantes brotam
castelos aristocráticos, ligados a etiquetas de boa vizinhança,
confiança mútua e grandes ocasiões cerimoniais de encontro.
5. A deterioração ecológica
86
decréscimo de população aumenta apenas depois do Milênio
justamente graças à introdução do plantio do feijão, lentilha
e fava, de alto poder nutritivo, sem o que a Europa teria
morrido de fraqueza orgânica (a relação entre feijões e re
nascimento cultural é decisiva). O paralelo, hoje, se inverte
para ser restabelecido: um enorme desenvolvimento tecno
lógico provoca bloqueios e desarranjos e a expansão de uma
indústria alimentícia converte-se na produção de alimentos
venenosos e cancerígenos.
Por outro lado, a sociedade de consumo no mais alto
nível não produz objetos perfeitos, mas engenhocas facil
mente deterioráveis (se quiser uma boa faca, compre-a na
África; nos Estados Unidos, depois do primeiro uso, ela se
quebra) e a civilização tecnológica está se tornando uma so
ciedade de objetos usados e inúteis; enquanto nos campos
assistimos a desmatamentos, abandono dos cultivos, polui
ção hídrica, atmosférica e vegetal, desaparecimento de espé
cies animais e assim por diante, de modo que, se não os
feijões, pelo menos uma injeção de elementos genuínos se
torna cada vez mais urgente.
6. O neonomadismo
87
medieval era sulcada de estradas de peregrinação (enumera
das em seus bons guias turísticos que citavam as igrejas aba
dais como hoje são citados os motéis e os Hilton) como
nossos céus são sulcados por linhas aéreas que tornam mais
fácil ir de Roma a Nova Iorque que de Spoleto a Roma.
Alguém poderia objetar que a sociedade seminômade
medieval era uma sociedade de viagem insegura; partir signi
ficava fazer testamento (pense-se na partida do velho Anne
Vercos em UAnnonce faite à Marie de Claudel), e viajar
significava encontrar salteadores, bandos de andarilhos, fei
ras. Mas a idéia da viagem moderna como uma obra-prima
de conforto e segurança já naufragou faz tempo, e tomar um
jato atravessando os vários controles eletrônicos e as investi
gações contra o desvio de rota restabelece de modo semelhan
te o antigo sentimento de insegurança aventureira destinado
presumivelmente a aumentar.
7. A Insecurítas
Os vagantes
X9
constituindo como vagantes, e recorrem sempre e somente
a mestres não-permanentes, rejeitando os próprios “ precep-
tores naturais” , temos de um lado bandos de hippies —
verdadeiras ordens mendicantes — que vivem da caridade
pública em busca de uma felicidade mística (droga ou Graça
divina faz pouca diferença, mesmo porque várias religiões
não-cristãs despontam entre as dobras da felicidade química).
As populações locais não os aceitam e perseguem-nos, e
quando for expulso de todas as casas da juventude escreva
o irmão das flores que aqui reina perfeita alegria. Como
na Idade Média quase sempre o limite entre o místico e o
ladrão é mínimo e Manson outra coisa não é senão um
monge que se excedeu, como seus ancestrais, nos ritos satâ
nicos (por outro lado também quando o homem de poder
faz sombra ao governo legítimo acaba envolvido, como fez
Filipe, o Belo, com os Templários, no escândalo dos baila
dos verdes). Excitação mística e rito diabólico estão muito
próximos, e Gilles de Rais, queimado vivo por ter devorado
muitas criancinhas, era companheiro de armas de Joana
d ’Arc, guerrilheira carismática como Che. Outras formas
afins àquelas das ordens mendicantes são, ao contrário, rei
vindicadas, em outra chave, por grupos politizados, e o mo-
ralismo da União dos marxistas-leninistas tem raízes monás
ticas, com seu apelo à pobreza, à austeridade dos costumes
e “ ao serviço do povo” .
Se os paralelos parecem desordenados, pense-se na enor
me diferença, sob a aparente cobertura religiosa, que se in
terpunha entre monges contemplativos e indolentes, que no
recesso do mosteiro viviam fazendo das suas, franciscanos
ativos e populistas, dominicanos doutrinários e intransigen
tes, todos juntos porém se marginalizando por vontade pró
pria e de modos diferentes do contexto social corrente,
desprezado como decadente, diabólico, fonte de neuroses,
de “ alienação” . Essas sociedades de renovadores, divididas
entre uma furiosa atividade prática a serviço dos desampa
rados e uma violenta discussão teológica, são dilaceradas por
90
recíprocas acusações de heresia e pelo ricochete contínuo de
excomunhões. Cada grupo fabrica os próprios dissidentes e
os próprios heresiarcas, os ataques que se dirigiam uns aos
outros dominicanos e franciscanos não são diferentes daque
les que se dirigem trotskistas e stalinistas — nem esse é
o indício, ceticamente sublinhado, de uma desordem sem
objetivo, mas, ao contrário, é o indício de uma sociedade em
que novas forças buscam novas imagens de vida coletiva e
descobrem não poder impô-las a não ser através da luta con
tra os “ sistemas” estabelecidos, praticando uma consciente
e rigorosa intolerância teórica e prática.
9. A Auctoritas
91
a quem chega a uma assembléia estudantil, lê a imprensa
dos grupinhos extraparlamentares ou os escritos da revolu
ção cultural.
De fato, o estudioso de assuntos medievais sabe reco
nhecer diferenças fundamentais assim como o político, hoje,
nada com desenvoltura individuando diferenças e desvios a
cada intervenção e sabendo classificar imediatamente seu
interlocutor neste ou naquele engajamento. É que o medieval
sabe muito bem que da auctoritas pode-se fazer o que bem se
entende: “ A auctoritas tem um nariz de cera que pode ser
deformado como se quiser” , diz Alain de Lille no século
X II. Mas já antes Bernard de Chartres dissera: “Nós somos
como que anões em cima dos ombros de gigantes” ; os gi
gantes são as autoridades indiscutíveis, muito mais lúcidas
e enxergando mais longe que nós, mas nós, pequenos que
somos, quando nos sustentamos em cima deles enxergamos
mais longe. Havia, então, de um lado a consciência de estar
inovando e continuando, mas a inovação devia ser apoiada
num corpus cultural que garantisse de uma parte algumas
persuasões indiscutíveis e de outra uma linguagem comum.
O que não constituía apenas (embora quase sempre acabas
se se tornando) dogmatismo, mas era o modo como o medie
val reagia à desordem e à dissipação cultural da baixa ro-
manidade, ao cadinho de idéias, religiões, promessas e
linguagens do mundo helenístico, em que cada um se encon
trava só com seu tesouro de sabedoria. A primeira coisa a
fazer era reconstruir uma temática, uma retórica e um
léxico comum, nos quais se reconhecer, do contrário não
se podia mais comunicar e (o que interessava) não se podia
lançar uma ponte entre o intelectual e o povo — coisa que
o medieval, paternalmente e por conta própria, fazia, ao
contrário do intelectual grego e romano.
Ora, o comportamento dos grupos políticos juvenis
hoje é exatamente do mesmo tipo, representa a reação à dis
sipação da originalidade romântico-idealista, e ao pluralismo
das perspectivas liberais, vistas como capas ideológicas que
92
ocultam, sob a pátina da diferença de opiniões e de métodos,
a maciça unidade do domínio econômico. A pesquisa dos
textos sagrados (sejam eles Marx ou Mao, Guevara ou Rosa
Luxemburg) tem antes de mais nada a seguinte função: res
tabelecer uma base de discurso comum, um corpo de autori
dades reconhecíveis sobre as quais instaurar o jogo das di
ferenças e das propostas em conflito. Tudo isso com uma
humildade completamente medieval e exatamente oposta ao
espírito moderno, burguês e renascentista; não tem mais im
portância a personalidade de quem propõe, e a proposta não
deve passar como descoberta individual, mas como fruto de
uma decisão coletiva, sempre e rigorosamente anônima. Des
se modo uma reunião em assembléia se desenvolve como
uma quaestio disputata: a qual dava ao forasteiro a impres
são de um jogo monótono e bizantino, enquanto nela eram
debatidos não só os grandes problemas do destino do ho
mem, mas as questões concernentes à propriedade, à dis
tribuição da riqueza, às relações com o Príncipe, ou à natu
reza dos corpos terrestres em movimento e dos corpos ce
lestes imóveis.
93
que o formalismo da lógica e da ciência física e matemática
contemporânea. Que no próprio território antigo possam ser
encontrados paralelos com o debate dialético dos políticos
ou com a descrição matematicizante da ciência não deve
surpreender ninguém, justamente porque estamos comparan
do uma realidade atual a um modelo condensado: mas tra
ta-se, em ambos os casos, de dois modos de enfrentar a
realidade que não encontram paralelos satisfatórios na cultura
moderna burguesa e que dependem ambos de um projeto de
reconstituição, diante de um mundo cuja imagem oficial foi
perdida ou rejeitada.
O político argumenta com sutileza, apoiado pela auto
ridade, para fundamentar em bases teóricas uma práxis de
formação; o cientista tenta restituir uma forma, através de
classificações e distinções, a um universo cultural explodido
(como o greco-romano) por excesso de originalidade e pela
confluência conflitante de contribuições demasiado díspares,
Oriente e Ocidente, magia, religião e direito, poesia, medi
cina ou física. Trata-se de mostrar que existem abscissas do
pensamento que permitem recuperar modernos e primitivos
sob a égide de uma mesma lógica. Os excessos formalistas
e a tentação anti-histórica do estruturalismo são os mesmos
das discussões escolásticas, assim como a tensão pragmática
e modificadora dos revolucionários, que então eram chama
dos reformadores ou hereges tout court, deve (como devia)
apoiar-se em cima de furiosas diatribes teóricas e cada nuan-
ça teórica implicava uma práxis diferente. Até as discussões
entre São Bernardo, partidário de uma arte sem imagens,
depurada e rigorosa, e Suger, partidário da catedral suntuosa
e pululante de comunicações figurativas, têm correspondên
cia, em variados níveis e chaves, com a oposição entre cons-
trutivismo soviético e realismo socialista, entre abstratos e
neobarrocos, entre teóricos puristas da comunicação concei
tuai e partidários mcluhanianos da aldeia global da comu
nicação visual.
94
11. A arte como bricolage
95
um programa para Godard, e sobretudo o gosto da coleção
e do inventário. Que então se concretizava nos tesouros
dos príncipes ou das catedrais, onde eram recolhidos indis
tintamente uma lasca da cruz de Jesus, um ovo achado den
tro de outro ovo, um chifre de unicórnio, o anel de noivado
de São José, o crânio de São João aos doze anos de idade
(.sic) .3
E dominava uma total indistinção entre objeto estético
e objeto mecânico (um autômato em forma de galo, artisti
camente cinzelado, é presenteado por Harun al-Rachid a Car
los Magno, jóia cinêtica se é que existiram), e não havia di
ferença entre objeto de “ criação” e objeto de curiosidade,
com uma indistinção entre artesanal e artístico, entre “ múlti
plo” e exemplar único e sobretudo entre trouvaille curiosa
(o lustre liberty como o dente de baleia) e obra de arte. O
todo dominado pelo senso da cor berrante e da luz como ele
mento físico de prazer, e não importa que lá houvesse vasos
de ouro incrustados de topázios postos para refletir os raios
de sol refratados por um vitral de igreja, e aqui haja a orgia
em multimídias de um Electric Circus qualquer, com pro
jeções polaroid cambiantes e lembrando a natureza da água.
96
Dizia Huizinga que para compreender o gosto estético
medieval é necessário pensar no tipo de reação que experi
menta diante do objeto curioso e precioso um burguês estar
recido. Huizinga pensava em termos de sensibilidade esté
tica pós-romântica; hoje veremos que esse tipo de reação é
o mesmo que sente um jovem em relação a um pôster que
representa um dinossauro ou uma motocicleta, ou a uma caixa
mágica transistorizada em que rodam feixes luminosos, a
meio caminho entre o modelinho tecnológico e a promessa
de ficção científica, com componentes de ourivesaria bár
bara.
Arte não sistemática mas cumulativa e compositiva a
nossa como a medieval, hoje como então coexiste o experi
mento elitista refinado com a grande empresa de divulgação
popular (a relação miniatura-catedral é a mesma que há entre
o Museum of Modern Art e Hollywood), com intercâmbios
e empréstimos recíprocos e contínuos: e o aparente bizanti-
nismo, o gosto tresloucado pela coleção, o elenco, o assern-
blage, o amontoamento de coisas diferentes é devido à ne
cessidade de decompor e reavaliar os detritos de um mundo
precedente, talvez harmônico, mas já agora obsoleto, para
ser vivido, diria Sanguineti, como uma Palus Putredinis, que
fora ultrapassada e esquecida. Enquanto Fellini e Antonioni
experimentam seus Infernos e Pasolini seus Decamerões (e
o Orlando de Ronconi não é absolutamente uma festa re
nascentista, mas um mistério medieval na praça e para a
arraia-miúda), alguém tenta desesperadamente salvar a cultu
ra antiga, achando-se investido de um mandato intelectual,
e se acumulam as enciclopédias, os digestos, as mostras ele
trônicas da informação com que Vacca contava para trans
mitir aos pósteros um tesouro de saber que está arriscado a
se dissolver na catástrofe.
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12. Os mosteiros
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do a astronomia de Ptolomeu e a geografia de Eratóste-
nes. . .
1972
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