O pai, hoje e amanhã

(Carlos Drummond de Andrade, De notícias e não notícias faz-se a crônica, 1987.)

1 A civilização industrial, entidade abstrata, nem por isso menos poderosa, encomendou à ciência aplicada a
2 execução de um projeto extremamente concreto: a fabricação do ser humano sem pais.

3 A ciência aplicada faz o possível para aviar a encomenda a médio prazo. Já venceu a primeira etapa, com a
4 inseminação artificial, que, de um lado, acelera a produtividade dos rebanhos (resultado econômico) e, de outro,
5 anestesia o sentimento filial (resultado moral).

6 O ser humano concebido por esse processo tanto pode considerar-se filho de dois pais como de nenhum. Em
7 fase mais evoluída, o chamado bebê de proveta dispensará a incubação em ventre materno, desenvolvendo-se sob
8 condições artificiais plenamente satisfatórias. Nenhum vínculo de memória, gratidão, amor, interesse, costume – direi
9 mesmo: de ressentimento ou ódio – o ligará a qualquer pessoa responsável por seu aparecimento. O sêmen, anônimo,
10 obtido por masturbação profissional e recolhido ao banco especializado, por sua vez cederá lugar ao gerador sintético,
11 extraído de recursos da natureza vegetal e mineral. Estará abolida, assim, qualquer participação consciente do homem
12 e da mulher no preparo e formação de uma unidade humana. Esta será produzida sob critérios políticos e econômicos
13 tecnicamente estabelecidos, que excluem a inútil e mesmo perturbadora intromissão do casal. Pai? Mito do passado.

14 Aparentemente, tal projeto parece coincidir com a tendência, acentuada nos últimos anos, de se contestar a
15 figura tradicional do pai. Eliminando-se a presença incômoda, ter-se-ia realizado o ideal de inúmeros jovens que se
16 revoltam contra ela – o pai de família e o pai social, o governo, a lei – e aspiram à vida isenta de compromissos com
17 valores do passado.

18 Julgo ilusória esta interpretação. O projeto tecnológico de eliminação do pai vai longe demais no caminho da
19 quebra de padrões. A meu ver, a insubmissão dos filhos aos pais é fenômeno que envolve novo conceito de relações,
20 e não ruptura de relações.

21 O que eles pretendem, se bem analiso o sentimento difuso e confuso dos moços, é conviver com o pai, sem
22 obedecer-lhe por obrigação compulsória, fundada em dependência econômica. É fazer do pai o companheiro, a quem
23 desculpam ser mais velho que eles (alegada barreira para o entendimento), e que, por ser mais velho, deve atenuar essa
24 inconveniência procurando assimilar novo estilo de vida e nova tábua de valores, embora ainda pouco nítidos, mas em
25 processo iniludível de afirmação.

26 O peso demográfico dos jovens dá-lhes a força que torna ponderável essa atitude insólita. Não adianta ao pai
27 desconhecer um comportamento individual que espelha o movimento de massas juvenis compactas e crescentes no
28 mundo inteiro, sob as mais diversas estruturas sociais. Melhor é admitir e pôr em prática um exercício de revisão
29 intelectual, doloroso talvez para o seu orgulho de criador, mas fecundo em consequências de amor e fraternidade.

30 Uso conscientemente a palavra. A extensão do sentimento fraternal ao sentimento paternal, fundindo-se com
31 este e dando-lhe outro colorido, será possivelmente chave de um entendimento mais positivo que a simples abdicação
32 das exigências cruéis da mocidade, e incomparavelmente superior à atitude belicosa.

33 Parece, afinal de contas, que os moços têm alguma coisa a ensinar aos mais velhos. Essa coisa, como defini-
34 la? Eles próprios não têm noção exata do que seja, embora saibam com clareza o que deve ser excluído do elenco de
35 ensinamentos herdados dos mais velhos. Em termos imperfeitos diante da sutileza do fenômeno, eu diria que os moços
36 convidam os pais e, por extensão, os homens e mulheres de gerações anteriores a olhar com outros olhos a vida.

37 O pai é solicitado a olhar outra vez, com olhos desprevenidos, a paisagem sabida, para identificar nela pontos
38 de luz e de sombra, diferenças, nuanças, pormenores insuspeitados ou menosprezados, senão a totalidade do panorama
39 antes encerrado em moldura que não seja a própria capacidade de mirar, sentir, compreender. Isto lhe poupará, sem
40 dúvida, o risco de ser eliminado da sociedade futura, com a oficialização do filho de laboratório, planejado por
41 tecnocratas insensíveis à graça e à emoção de gerar pelas próprias entranhas o acontecimento da vida.