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Pretitude e Governança
Pretitude e Governança
O presente artigo discute questões relativas à identidade preta no contexto das de-
mocracias modernas e como a performance preta deve ser mobilizada para não ser
capturada pelo racismo inerente ao capitalismo e à democracia ocidental. Os autores
mobilizam questões teóricas e filosóficas para revirar o espectro racista que assombra
nossa sociedade.
2. Considere a seguinte declaração: “Não há nada de errado com a pretitude”: e se esse fosse o axioma
primitivo de um novo “estudos negros”2 não derivados da psico-político-patologia das populações e suas
teorizações corolares do Estado ou do racismo de Estado; um axioma derivado, como todos os axiomas
Martin Luther King Jr. em discurso no Mason Temple, em Mênfis (EUA), 3 de abril de 1968
Foto: Ernest C. Withers
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do tipo são, das “línguas fugitivas” e vulgaridades paradigma para sua não existência. As técnicas
eloquentes encriptadas em trabalhos e dias que da performance preta – nas suas manifestas di-
acabam sendo do nativo ou do escravo apenas ferenças umas das outras, no amplo alcance de
porque o fugitivo não é reconhecido corretamen- sua transferibilidade e na sua inserção numa his-
te, e em vidas nuas que acabam só sendo nuas tória que é estruturada mas não determinada por
porque nenhuma atenção lhes é dada, porque imposição – são entendidas como constituintes
tais vidas persistem sob o signo e o peso de uma da “prova” de que a pretitude não é, ou é perdi-
questão fechada? da, ou é perda. Desse ponto de vista, abstração e
performatividade existem para carregar parte do
3. A estética preta ativa uma dialética de retenção
mesmo peso no qual a refutação das demandas
luxuriante – abundância e falta empurram a técni-
sobre a autenticidade ou unidade da pretitude
ca para além do limite da recusa, de modo que o
torna-se a refutação da pretitude como tal. Esse
problema com a beleza, que é a própria animação
apelo à técnica é, em si mesmo, uma técnica de
e emanação da arte, é sempre e em todo lugar
governança. No meio tempo, pretitude significa
problematizado de novo e de novo. Nova técnica,
deixar sem resposta a questão de como governar
nova beleza. Ao mesmo tempo, a estética preta
aquela coisa que se perde e se encontra a si mes-
não tem a ver com técnica, ela não é uma técni-
ma como algo que ela não é.
ca, embora um elemento fundamental da terrível
negação anestética de “nossa terribilidade” seja o 5. Não no interesse de alguma oposição simples
sampleamento eclético de técnicas de performati- ou complexa entre Technik e Eigentlichkeit, mas
vidade preta em prol da não problemática asser- sim na improvisação que acontece por meio da
ção despossessiva de uma diferença, complexida- oposição entre elas é que a estética preta se mo-
de ou sintaxe interna que foi sempre e em todo vimenta. Qual é o conteúdo de (sua) técnica (pre-
lugar tão aparente, que a asserção é um tipo de ta)? Qual é a essência de (sua) performance (pre-
excesso [superfluity] autoindulgente, autoexpiató- ta)? Um imperativo está implicado aqui: é preciso
rio. Tal asserção contribui para tentar refutar as prestar atenção às performances (pretas) já que
afirmações da simplicidade atômica da pretitude, é deixado para aqueles que prestam tal atenção
que nunca foram sérias o suficiente para refutar reteorizar essência, representação, abstração, per-
(asserções não falseáveis, sem evidência, feitas por formance, ser [being].
motivações irrazoáveis, embora totalmente racio-
6. A negação é uma tendência inerente à tradi-
nalizadas, de má-fé e num torpor dogmático).
ção radical preta,3 um tipo de inevitabilidade que
4. A rejeição de qualquer afirmação possível no emerge da força patologicamente autocrítica de
que tange à essência ou mesmo à existência da (uma variante antecipatória de) um iluminismo
pretitude (em sua performatividade irredutível) mais genuíno, por um lado, e os mais básicos – o
se torna, em si mesmo, a rejeição da pretitude. que não significa nada além de dizer base – de-
Técnicas diferenciais ou diferenciadoras existem sejos que animam a ideologia da elevação [ideo-
para dar conta de e cobrir uma ausência. Ape- logy of uplift]. A lógica da correção é o fugitivo
los à diferença interna são realizados de modo a da instrumentalidade política, apesar de tal fugiti-
desautorizar a instanciação. A abstração do que vidade ter uma borda duplicada, autoconsumível
parte do ou pertence ao referente é vista como – o impulso patológico do patologista; o fim de
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I Am A Man, Greve dos trabalhadores do sistema de água e esgoto de Mênfis (EUA), 28 de
março de 1968 Foto: Ernest C. Withers
mum [commons] rasga o senso comum – a dêitico tipo-favela perde o controle; como música
necessariamente fracassada contabilização ad- evento, cheia de cor, explode o horizonte de even-
ministrativa do incalculável – isto é, o objeto/ tos; como as ondas sonoras desse buraco negro
objetivo do autocontrole iluminista; e tentan- carregam imagens saborosas para tocar; como a
do chegar a essa sensualidade subcomum, esse única maneira de se entender com eles é senti-los.
radical ocupado-em-outro-lugar, aquele utópico Essa informação não pode ser perdida nunca,
comum-subterrâneo dessa distopia, o conturba- apenas irrevogavelmente dada em trânsito. Nós
do aqui e agora dessa particularidade anecêntrica não poderíamos nunca providenciar uma série de
que nós ocupamos e com a qual nós estamos pre- suaves transições para essa ordem de valas e vãos
ocupados. Deve ser que, ao explorar o lado opos- escondidos. Há somente essa serialidade aberta
to do mercado negro dessa constante economia de terminais em transcrições em off. Algumas
de reconhecimento equivocado, esse conheci- pessoas querem tocar as coisas, outras coisas que-
mento da miséria [misery cognition], será possível rem correr.4 Se eles te perguntarem, diga-lhes que
descobrir os prazeres informais, que dão forma à estávamos voando. O conhecimento da liberdade
economia do conteúdo: pois nós estamos apai- é a (está na) invenção da fuga, roubar nos confins,
xonados pelo modo como a batida desse círculo na forma, de uma ruptura. Isso é mantido próxi-
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preender que Rose achava que governança tinha (intelectual, relacional, linguístico e afetivo, em
a ver com governo. Pior ainda, alguns dizem que vez de físico, individual, muscular, instrumental)
governança é meramente um neologismo de não subestima, mas acentua a corporalidade e a
gestão, uma peça de ideologia fora de moda. materialidade do trabalho”.7 Mas acumular tra-
Outros pensam que governança é uma simples balho coletivo cognitivo e afetivo dessas diferen-
retirada do fundamentalismo de mercado do ne- ças altamente comunicáveis não é o mesmo que
oliberalismo para o liberalismo. acumular corpos biopolíticos que trabalham. As
diferenças aqui importam não pela ordem, mas a
Mas nós queremos reduzi-lo a uma forma de
‘pensamento-Estado’, uma forma de pensamento ordem importa para as diferenças. A ordem que
que, para Gilles Deleuze e Felix Guattari, apoiava a coleciona as diferenças, a ordem que coleciona o
constituição e o direcionamento da riqueza social. que Marx chamou de trabalho ainda objetificando
Um pensamento que escapa em pensar o privado a si mesma, é a ordem da governança.
antes do público e do privado, mas não exatamen- 13. Mas a governança coleciona como uma son-
te antes, e sim um passo à frente. O pensamen- da perfurando em busca de amostras. Gover-
to-Estado diz “eles queimaram o próprio bairro nança é uma forma de prospectar esse trabalho
deles”. Não deles, antes deles. Mas, aí, ninguém imaterial. O trabalho imaterial é opaco para o
escreve mais sobre o Estado, pois a governança é pensamento-Estado até que ele se torne trabalho-
muito esperta para isso, a governança nos convi- -poder, potencialidade intercambiável. O trabalho
da a rir do Estado, para olhá-lo pelas costas, sua imaterial poderia facilmente ser confundido com
imaturidade política frente à governamentalida- a vida, e é por isso que o biopolítico deve tomar
de por todos, seu comportamento perigoso, sua uma nova forma. Uma forma que provoca a vida
preguiça, sua pretitude. O que significa de fato a abrir mão desse novo potencial. A responsa-
a exaustão da pretitude pensada pelo Estado e a bilidade social corporativa é sincera. O convite à
nova maneira de roubar dos roubados, que se re-
governamentalidade é feito por meio de transfe-
cusam a entregar o segredo de roubar com seu
rência de responsabilidade, e o trabalho imaterial
roubo, o segredo de eles roubarem seu roubo.
é distinto da vitalidade da vida, de seu receptáculo
Na linguagem mais nova das ciências sociais nós [vessel], por tomar responsabilidade, e a vida agora
podemos dizer que a governança é gerada por é diferenciada por sua irresponsabilidade explícita.
uma recusa entre as populações biopolíticas. Ou
Já que nem o Estado nem o capital sabem onde
então pela autoatividade do trabalho imaterial.
encontrar o trabalho imaterial ou como distingui-lo
Mas talvez nós gostaríamos de dizer que ela é
da vida, a governança é um tipo de perfuração
provocada pela comunicabilidade de diferenças
exploratória com uma ponta de responsabilidade.
raciais e sexuais não gerenciáveis, insistindo em
Mas essa perfuração não é realmente por traba-
uma agora incomensurável dívida de riqueza.
lho-poder. Ela é pela política ou, ao contrário,
12. A governança é uma estratégia para a pri- como Tiziana Terranova sugere, é por soft-control,
vatização do trabalho social reprodutivo, uma o cultivo da política sob o político. O slogan da
estratégia provocada por essa comunicabilidade, governança pode ser não “onde há gás, há óleo”,
infectada por ela, receptiva e hostil. Como Toni mas “onde há política há trabalho”, um tipo de
Negri diz, “a nova cara do trabalho produtivo trabalho que pode ser provocado para, nas pala-
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ir além da representação como uma forma de so- 20. Governança e criminalidade – a condição de
berania, é autogerar representação, em ambos os ser sem interesses e sem juros – vêm para fazer
sentidos. Aqueles que podem se representar serão cada qual possível. O que significaria lutar contra
também aqueles que irão re-presentar a si mes- a governança, contra aquela que pode produzir
mos como interesses em um só movimento, co- luta ao germinar interesses? Quando a gover-
lapsando a distinção. A ONG é o braço de pesqui- nança é entendida como a criminalização do ser
sa e desenvolvimento da governança encontrando sem interesses, como uma regulação trazida à
novas maneiras de trazer para a pretitude aquilo existência pela criminalidade, em que criminali-
que dizem que lhe falta, aquilo que não pode ser dade é aquele excesso que sobra da criminali-
trazido, interesses. Eu não quero falar por aquelas zação, uma certa fragilidade emerge, um certo
pessoas é o mantra da governança. limite, uma imposição incerta por um impulso
maior, a mera enunciação daquele cujo nome
18. A governança é o empregar da democracia.
tornou-se uma vez mais, e completamente, mui-
Quando a representação se torna obrigação de
to preto, muito forte.
todos, quando política se torna o trabalho de to-
dos, a democracia é trabalhada. A democracia não
pode mais prometer o retorno de algo perdido no Tradução André Leal
local de trabalho, mas, ao contrário, ela mesma se Revisão técnica Fabiana Lopes
torna uma extensão do local de trabalho. E nem
mesmo a democracia pode conter a governança,
mas é apenas uma ferramenta em sua caixa. Go- NOTAS
vernança é sempre gerada, ela é sempre orgânica O texto foi publicado originalmente em:
para qualquer situação. A democracia cai bastan-
Harney, Stefano; Moten, Fred. The undercommons –
te mal em muitas situações, e deve ser trabalhada,
fugitive planning & black study. Wivenhoe/New York/
feita para parecer tão natural quanto a governan-
Port Watson: Minor Compositions, 2013, p. 44-57.
ça, feita para servir à governança.
1 Optamos aqui por traduzir blackness por pretitude
19. Porque a governança é a anunciação da tro-
em vez de negritude, pois consideramos que esse
ca universal. A troca pela comunicação de todas
termo é mais representativo da performance preta
as formas institucionais, todas as formas de va-
da linguagem à qual o texto se propõe. [N.T.]
lor de troca umas com as outras é a enunciação
da governança. O hospital dialoga com a prisão 2 “Estudos negros”, ou Black studies, é uma área
que dialoga com a universidade que dialoga com de estudos muito importante nas universidades dos
a ONG que dialoga com a corporação por meio Estados Unidos. [N.T.]
da governança, e não apenas dialogam uns com 3 Tradição radical preta refere-se à Black radical
os outros, mas falam uns sobre os outros. Todo tradition, desenvolvida por diversos estudiosos e que
mundo sabe tudo sobre nossa biopolítica. Esse é o diz respeito a um ‘capitalismo racial’ e à opressão
aperfeiçoamento da democracia sob o equivalen- e resistência dos pretos nesse contexto. Ela seria
te geral. É também a anunciação da governança uma tradição revolucionária de libertação dos povos
como a realização da troca universal nos termos escravizados na colonização americana e africana,
do capitalismo. bem como um combate ao racismo inerente e
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