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LAHIRE, BERNARD. II. Um dispositivo metodológico inédito.

 (Pags. 32-44).

O método, parte essencial do trabalho de pesquisa, é a preocupação de Lahire no


capítulo: "Um dispositivo metodológico inédito". Neste texto o autor trata de expor e
discutir um formato de acolhimento de informações biográficas oriundas de entrevistas
realizadas por sociólogos. Ao apontar como foi feita a sua organização, os parâmetros
que conduziriam as entrevistas - as grades-, o posicionamento adotado pelos
pesquisadores, o formato das rodadas de entrevistas, números de entrevistas e
entrevistadores em seu "experimento" metodológico, Lahire nos indica um caminho
possível para minimizar lacunas inerentes ao próprio processo de recuperação das
memórias empreendido pelo entrevistado.
Seis entrevistas com oito pesquisados, com nenhuma substituição de qualquer
um deles, sobre comportamentos, práticas e modos de agir em diferentes esferas de
atividades. Um mesmo pesquisador entrevistou seis vezes os mesmos entrevistados
sobre temas voltados para a escola, o lazer, o trabalho, a família, o corpo, a
sociabilidades e as práticas culturais. Esse dispositivo metodológico, explica Lahire, foi
organizado com o intuito de transpor algumas barreiras relativas à escolha e manutenção
de entrevistados interessados na pesquisa. E desenvolvido a partir da preocupação em
contornar às habituais limitações enfrentadas no método biográfico: a perda de
informações no processo de entrevista, no qual incide diferentes fatores de difícil
apreensão do universo do pesquisado.

Quebra de percurso: o estado de vigília, rupturas biográficas e incertezas

Lahire observa que o esforço empregado na construção do trabalho biográfico


empreendido pelo sociólogo é acompanhado do risco da reconstrução utópica e
exaustiva dos eventos que lhes é relatado. Isso ocorre, tal como argumentado pelo autor,
pelo simples ato de o sociólogo acolher os fatos de um relato biográfico organizado em
uma trajetória que pode parecer evidente, óbvia, com ligações lógicas e objetivas.
Todavia, em vistas disso, Lahire sugere que ao invés de considerar cada momento da
trajetória do indivíduo como algo lógico num percurso linear, deve-se considerar que
seus comportamentos, escolhas e decisões estejam sujeitos a forças sociais não
coerentes.
“... as entrevistas biográficas podem representar meios excelentes de questionar
os modelos de personalidade coerente e estável, associados a modelos de decisão sem
incertezas." (LAHIRE, P. 35).

Ao tomar cada ponto da trajetória como decorrentes de possíveis crises,


negociações, dúvidas, hesitações, resistências e pressões, Lahire buscou dar espaço, em
seu dispositivo metodológico, aos momentos que denominou: "rupturas biográficas".
Ainda que fossem pouco significativas, Lahire observa que "nestes momentos as
disposições podem entrar em crise ou podem ser reativadas e sair do estado de vigília."
(LAHIRE, P. 35).
O estado de vigília representa tudo àquilo que ocorre na vida do indivíduo em
momentos de perda, medo, mudanças bruscas na vida que envolve incerteza, hesitação,
tensão, mas com o passar do tempo são aceitas por este indivíduo e esquecidas. O
trabalho sistemático de questionamento e posicionamento, com perguntas precisas e
contextualizadas, ao invés de gerais e abstratas, permite o acesso a memórias e
experiências antigas, úteis, que foram recalcadas por algum motivo.
Lahire aponta que a complexa relação entre ativação/vigília das disposições
incorporadas é condicionada pela existência de todo tipo de diferenciações sociais
ligadas às posições e papéis que cada indivíduo ocupa em diferentes universos, esfera,
domínios e contextos de interação: econômico, cultural, erótica, culinário, familiar,
escolar, profissional, etc. Neste sentido, o autor observa que para cada momento de
decisão ou situação qualquer que surja para o indivíduo, uma parte de suas disposições é
colocada em estado de vigília, por um período mais ou menos longo.
Lahire abre uma reflexão a partir da teoria dos mortos sociais  sugerida por
Erving Goffman, na qual seu ponto reside em uma análise voltada aos processos sociais
que levam a morte das faculdades sociais daqueles que não podem mais assumir papéis
sociais. Eles podem ser os processos sociais de expulsão ou permissão, retirada
voluntária ou forçada, separações, prisões, derrotas em jogos e concursos, abandono de
um círculo de amigos ou de relação social íntima, problemas econômicos, mortos que
interessam seus herdeiros etc. Seguindo a reflexão, lahire sugere que as disposições
desenvolvidas nesses processos são colocadas em estado de vigília e pode ser
acompanhadas de racionalizações protetoras, que podem ser captadas pelo sociólogo
nas entrevistas.
"... As disposições em estado de vigília, as "mortes sociais parciais" (Goffman
pensava em termos de papéis e não de disposições) são muito difíceis (do ponto de vista
mnemônico) ou muito dolorosas de serem evocadas, e o pesquisado pode realizar a
"naturalização" de seu percurso, apresentado como "corrente que provém da fonte", se
não as buscamos explicitamente. Nessa situação, o pesquisado contribui em grande
parte com uma visão determinista unívoca e linear de seu percurso." (LAHIRE. P. 37).

Grades de entrevista: os pilares teóricos e o conhecimento sociológico

O conhecimento sociológico não se constitui da observação daquilo que o


próprio sociólogo introduziu no mundo social. A preocupação em construir hipóteses e
objetos livres de preconceitos que comprometem toda a grade de entrevista, encerrando
simbolicamente o pesquisado e destituindo de autenticidade e legitimidade todo o relato
oferecido ao escrever sobre o sujeito, levou Lahire à organização de algumas exigências
teóricas que perpassaram toda a construção das grades de entrevistas.
Lahire lista onze exigências teóricas na construção de suas grades, a saber: 1)
Parte da divisão das seis grades diferentes está ligada à importância dos grandes
universos de socialização, pois se deseja captar os efeitos das matrizes socializadores -
família, escola, universo de trabalho, religiosas, políticas etc.-; 2) Embora a divisão das
grades tenha sido pensada com a intenção de dissociar as esferas de atividade, prática ou
domínios sociais, cada grade não pretende dar conta de uma matriz socializadora
diferente. O autor compreende que todas estão interligadas - escola/família,
trabalho/escola/família, alimentação/estética corporal/ sociabilidade/família/escola,
etc.-; 3) Com o cuidado de não cair uma homogeneidade ou globalização dos contextos,
estimulando diferenciações de pessoas importantes no ambiente do pesquisado, optou
por captar não somente as grandes variações intra-individuais de um universo para o
outro, mas as variações intradomínios, em função do lugar ocupado pelo pesquisado,
das propriedades das pessoas com quem ele interage e das propriedades das situações.
Buscou-se ainda apreender a pluralidade dos princípios de socialização entre os
membros significativos do universo do pesquisado em diferentes momentos de sua
existência.; 4) Parte das perguntas visava compreender fenômenos de interpenetração
das esferas de atividade, das relações de sociabilidade e de concorrência ou
complementariedade entre investimentos sociais.
Algumas das exigências teóricas estão voltadas à observação de uma
temporalidade narrativa, tanto sincrônica quanto diacronicamente, são elas: 5)  Cada
grade da entrevista tem um caráter mais ou menos biográfico e se orienta através de
uma narrativa que tenta remontar primeiras experiências de socialização e tenta situar
no passado a origem de práticas atuais. Essa escolha biográfica repousa em duas razões:
A) a vontade de captar as variações intra-individuais (tanto do ponto de vista sincrônico
quanto diacrônico) e B) a tentativa de abordar a questão da gênese das disposições,
apetências e competências que fazem parte do patrimônio individual atual dos
pesquisados.; 6) O aspecto diacrônico das variações intra-individuais está em partes
ligada à mudanças já estudas como objeto da sociologia, compreender de que forma elas
reorganizam o patrimônio de disposições individuais é o que importa para Lahire. "...O
retorno ao passado incorporado e à variação diacrônica muitas vezes permite
compreender melhor as variações sincrônicas constatadas e os novos contextos
presentes que solicitam antigas experiências incorporadas e que estão em estado de
vigília."(LAHIRE, P. 40).
As demais exigências teóricas são: 7) Parte das perguntas visa estudas algumas
disposições precisas, a fim de evidenciar seu grau de ativação, contextos de sua
aplicação e os de seu eventual estado de vigília. 8)Outra parte das perguntas consistiu
em considerar, por meio de relatos, as relações dos pesquisados com uma ou outra
situação, prática ou instituição. 9) A importância da grade sociabilidade, onde através
dela é possível a reconstituição da natureza de diversos vínculos ou afinidades. 10)
Algumas perguntas tentam evidenciar mal-estar, atritos, tensões, crises, frustrações
passageiras ou duradouras. Trata-se de encontrar sinais ou sintomas de desajustes ou
contradições. 11) De maneira geral, a maioria das perguntas tem a ver com a precisão
dos contextos, com as pessoas que desempenham um papel, com a modalidade das
práticas, com a variedade dos exemplos dados, das cenas relatadas.

  

  

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