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Insolvência Empresarial

42.1Introdução

O direito concursal brasileiro conhece incisivas modificações com o


advento da Lei de Recuperação de Empresas (LRE), que trata da
recuperação judicial, falência e recuperação extrajudicial de empresários. O
novo diploma regente dos efeitos da crise econômico-financeira das
empresas vem substituir o Decreto-Lei nº 7.661/45 (LFC – Lei de falências
e concordatas), cuja vigência fica restrita aos processos de falência e
concordata em curso, iniciados sob sua égide.
Elegemos a sigla LRE para designar a nova regulamentação da
insolvência porque seu intuito primordial não é a falência, embora esta
também seja agraciada com disciplina mais clara e muito mais objetiva. A
LRE pretende introduzir no sistema jurídico brasileiro instrumentos legais e
mecanismos jurisdicionais capazes de propiciar a reorganização e o
soerguimento de empresas viáveis que se encontram em crise econômico-
financeira.
Essa orientação não significa menosprezo pelo relevante instituto da
falência, mas a valorização das possibilidades jurídicas de sua prevenção,
tendo em vista os efeitos econômicos da insolvência, na estrutura social
brasileira, às vésperas da globalização.

42.2Síntese histórica

Para bem compreender as causas, procedimentos e efeitos do fenômeno


da insolvência empresarial, bem como suas múltiplas determinações e
repercussões no universo socioeconômico, é inevitável que se recorra,
ainda que superficialmente, aos subsídios históricos.
Em outras palavras, a recuperação de empresas viáveis e a falência das
inviáveis, como alternativas para a insolvência, não são fenômenos a-
históricos. Resultam de um longo processo de maturação em que os
institutos jurídicos se sucedem, sempre caracterizados pelo seu
condicionamento por um modo de produção econômica predominante. O
direito desempenha função disciplinadora das relações intersubjetivas,
tendo por paradigma a conservação das respectivas estruturas sociais onde
interage com outras instâncias sociais.
Por isso, encetar uma viagem retrospectiva do direito concursal implica
reconhecer a ocorrência de quatro fases distintas, onde predominam,
respectivamente:
•o direito concursal como regulador da execução dos bens do
devedor;
•a judicialização da execução concursal;
•o caráter preventivo do estado de liquidação; e
•a recuperação da empresa em crise.
No direito romano arcaico, a execução incidia sobre a pessoa do
devedor, do que é exemplo significativo a manus injectio, que autorizava
ao credor manter o devedor em cárcere privado ou escravizá-lo. Desse
instituto draconiano, o regime executório passou para o sistema da
constrição patrimonial com a lei Paetelia Papiria, que admitia a execução
forçada das condenações em dinheiro por meio da venditio bonorum.
Já no direito romano tardio, surgiram as primeiras regras orientadoras
da administração da massa, a assembleia de credores, a classificação dos
créditos, a revogação dos atos fraudulentos do devedor e, sobretudo, a regra
essencial da par conditio omnium creditorum.
O instituto da falência vem dos estatutos das corporações medievais,
restringindo o caráter privado da execução, embora isso não signifique a
emancipação física do devedor. É certo que num estatuto da cidade de
Verona, no início do século XIII, foram esboçadas as primeiras regras que
vieram a constituir essa execução patrimonial especial.
Resumindo, a regulação do concurso creditício até a Idade Média:
•não era privativa dos mercadores;
•tinha caráter penal;
•passou gradualmente da execução pessoal à constrição patrimonial;
e
•trouxe ao mundo jurídico as primeiras acordanças preventivas da
liquidação.
No século XVII, as Ordenações Filipinas trataram das quebras dos
mercadores, e o Alvará Real de 1756, em Lisboa, estabeleceu um processo
peculiar para os negociantes falidos. No direito francês, o Código Savary
(1673) disciplinou o regime de insolvência sem particularizar os
comerciantes, especificidade que só aconteceu na primeira década do
século XIX, com a cisão legislativa do direito privado empresarial, por
meio dos códigos de Napoleão Bonaparte, o civil e o comercial.
Assim, o direito concursal, na Idade Contemporânea, surge como
liquidação do ativo do devedor comerciante insolvente, sob a supervisão do
Estado-Juiz. A liquidação do patrimônio do devedor passa a ser assegurada
pelos organismos judiciais encarregados de aplicar a lei. É o regime que
predominou no direito brasileiro da Lei de Falências e Concordatas (LFC),
concebido em meados do século passado e agora substituído pela LRE.
Contudo, a paulatina unificação do direito privado, a interpenetração do
direito público e do direito privado e, ainda, a valorização dos direitos
fiscal, do consumidor, previdenciário e financeiro levaram à procura de
soluções mais fecundas e menos drásticas para as crises econômico-
financeiras das empresas, tendo em vista as eventuais possibilidades de
preservar os empreendimentos que, conquanto em dificuldades, conservam
margens satisfatórias de viabilidade.
Como lecionamos em nosso lei de falência e recuperação de empresas
(59 : 21-22):
“O quadro da patologia empresarial, tal como concebido pelos antigos sistemas
concursais, de natureza simplesmente falimentar, quase sempre conduzia a um
estágio terminal, em que a figura do empresário assemelhava-se muito à do de
cujus sem herança. Esse mesmo quadro agora é compreendido de outra forma.
Percebeu-se que o meio mais razoável de obviar esse inconveniente é a
recuperação da empresa paciente mediante a reversão da síndrome patológica,
para proporcionar algumas possibilidades, ainda que diminutas, de solução do
passivo. Evitar a morte do paciente é, no mínimo, mais inteligente do que
eliminar a patologia pela supressão de seu portador.
Somente quando o organismo da empresa exterioriza sinais tanatológicos, ou
seja, quando a crise econômico-financeira atinge o grau de insolvência
irreversível, é que se justifica a adoção de condutas liquidatórias. A questão,
nesse caso, é prevenir a eventual disseminação dos efeitos da debacle da
empresa, no mercado. Se impossível a cura, faz-se mister a liquidação, como
medida protectiva do crédito público em face do contágio.”
Sob essa nova perspectiva, a transformação do direito concursal veio
como a resposta mais racional à necessidade de estabilização do mercado.
Daí por que os atuais sistemas jurídicos regentes da insolvência
privilegiam o parâmetro da realização dos direitos dos credores mediante a
recuperação da empresa devedora. A falência, pelo seu cunho liquidatório,
permanece como desfecho residual, como regramento inevitável reservado,
exclusivamente, aos empreendimentos inviáveis.
42.3Princípios do regime concursal empresarial

Os princípios estruturantes do regime legal de insolvência empresarial


são as diretrizes que, em nexo de complementaridade, permeiam os
procedimentos concursais, conferindo-lhes as matrizes para análise de seus
problemas mais importantes:
•o princípio da viabilidade da empresa em crise;
•o princípio da prevalência do interesse dos credores;
•o princípio da publicidade procedimental;
•o princípio da par conditio creditorum;
•o princípio da conservação e maximização dos ativos do devedor; e
•o princípio da conservação da atividade empresarial viável.

42.3.1Princípio da viabilidade da empresa

A Lei de Recuperação de Empresas (LRE) fixa uma dicotomia


essencial entre as empresas economicamente viáveis e as inviáveis. De tal
arte que o mecanismo da recuperação é indicado para as primeiras,
enquanto o processo de falência apresenta-se como a solução judicial da
situação econômica das empresas inviáveis. Viáveis, é claro, são aquelas
empresas que reúnem condições de observar os planos de reorganização
estipulados na LRE. A aferição dessa viabilidade está ligada a fatores
endógenos (ativo e passivo, faturamento anual, nível de endividamento,
tempo de constituição e outras características da empresa) e exógenos
(relevância socioeconômica da atividade etc.).
Qualquer plano de recuperação passa pela adoção de um dos meios
estabelecidos na LRE e, como tal, deve ser oferecido à consideração
judicial e dos credores.
É certo que, se verificada, desde logo, a impossibilidade de
cumprimento do plano proposto, o indeferimento da pretensão
recuperatória é de rigor. A constatação posterior (no curso da recuperação)
da inviabilidade implica a conversão do processo de recuperação em
solução liquidatória.

42.3.2Princípio da prevalência do interesse dos credores

Qualquer regime de insolvência visa satisfazer, equitativamente,


pretensões creditícias legítimas. Mesmo ante a necessidade de se considerar
o interesse social na manutenção ou não do empreendimento insolvente, o
fato é que a solução proporcional do passivo sempre será o norte do
procedimento adotado. A reestruturação da empresa em dificuldades é
instrumental da satisfação dos credores, desde que observados níveis
mínimos da paridade.
O regime de insolvência, desde suas origens, retrata a preocupação do
legislador com a sorte dos que titulam haveres contra o empresário em
crise. Pode ser dito que, desde sua origem, é uma postura jurídica
estabelecida, essencialmente, para atender aos direitos dos credores.
Contudo, o interesse dos credores também não pode ser identificado
como a realização de pronto de seus haveres. Pagamentos satisfatórios são
aqueles que se aproximam do ideal de integral satisfação dos créditos. A
predominância do interesse dos credores deve identificar-se com o interesse
público inerente à empresa.

42.3.3Princípio da publicidade dos procedimentos

Os procedimentos para solução da insolvência devem ser transparentes,


o que significa não somente a publicidade dos atos processuais, mas
também a clareza e objetividade na definição dos diversos atos que os
integram. O conceito de publicidade está conectado com o de
previsibilidade.
A estipulação objetiva de requisitos, fundamentos e prazos, se não
impede a adoção de manobras procedimentais e expedientes protelatórios,
dificulta bastante essa prática negativa.
É claro que a plena publicidade não se aperfeiçoa apenas com sua
menção legal. Pressupõe fiscalização permanente e zelosa do órgão
judiciário, do administrador da massa, dos diversos corpos creditícios e do
representante do Ministério Público.

42.3.4Princípio da par conditio creditorum

O tratamento equitativo dos créditos é o princípio regente de todos os


processos concursais, considerando-se prioritariamente o mérito das
pretensões antes que a celeridade na sua satisfação.
A própria finalidade do concurso de credores observa o parâmetro da
paridade, obstando que se priorize o mais célere em detrimento do mais
meritório.
Na verdade, esta regra diz respeito à proporcionalidade na consideração
dos créditos, o que implica respeitar as peculiaridades que a lei atribui a
cada um. Não se trata, pois, de nivelamento.
42.3.5Princípio da conservação e maximização dos ativos

O esvaziamento dos ativos do devedor em crise financeira, presas da


ação de credores mais expeditos, em prejuízo da coletividade dos credores
e da observância do mérito que assiste a cada pretensão, não é fenômeno
que se possa rotular como raridade. Sua frequência é uma das causas do
insucesso da maioria dos concursos de credores.
A realização das finalidades do processo de insolvência demanda que
os ativos da empresa devedora sejam preservados e, se possível,
valorizados. Não se trata de tutelar os ativos capazes de soerguer a empresa
para desfrute de seu titular ou de seus administradores, mas da recuperação
da unidade econômica e da manutenção de sua atividade produtiva, para
satisfação dos credores e proveito da sociedade.
Pode ser dito que a separação entre o destino da empresa e o de seus
titulares apresenta-se, às vezes, como o caminho mais proveitoso no
sentido de uma solução justa e eficaz para a conjuntura jurídico-econômica
da insolvência.

42.3.6Princípio da conservação da empresa viável

A atividade empresarial afeta o mercado e a sociedade. O modo de


produção econômica, no sistema capitalista, é determinante das demais
instâncias sociais. Por isso, o interesse de agir nos processos regidos pela
LRE reside na necessidade de um provimento judiciário para deslindar não
só a crise econômico-financeira de um empresário, mas toda espécie de
relações daí decorrentes e suas repercussões sociais.
A preservação da atividade negocial é o ponto mais delicado do regime
jurídico de insolvência. Só deve ser liquidada a empresa inviável, ou seja,
aquela que não comporta uma reorganização eficiente ou não justifica o
desejável resgate.

42.4Transição legal

A vigência da LRE não acarreta a plena e imediata revogação da Lei de


Falências e Concordatas (LFC). A transição de um sistema legal para outro
envolve algumas situações que merecem tratamento peculiar, no sentido de
se obter um perfeito enquadramento das conjunturas socioeconômicas no
âmbito dos novos parâmetros normativos.
As normas do Decreto-Lei nº 7.661/45 (LFC) continuam em vigor para
aplicação aos processos de concordata preventiva, concordata suspensiva e
falência, em curso no dia anterior ao do início da vigência da LRE.
De tal arte que a empresa que, hoje, se defrontar com crise econômico-
financeira, não poderá mais pleitear a concessão do favor legal da
concordata preventiva. Contudo, o agente econômico que já se encontra em
regime de concordata preventiva continua observando as regras da LFC, se
não optar pelo ingresso no sistema da recuperação judicial, ou seja, se não
possuir os requisitos necessários para tal.
A existência de pedido de concordata anterior à LRE não obsta o
pedido de recuperação judicial pelo devedor, desde que este não tenha
deixado de cumprir obrigação da concordata. Os créditos submetidos à
concordata devem ser inscritos, por seu valor original, na recuperação
judicial, abatidas as parcelas pagas pelo concordatário.
Observe-se que essa alternativa não vale para as microempresas e
empresas de pequeno porte, quanto ao plano especial de recuperação
judicial.
Nos processos de falência em andamento, na data da vigência da LRE,
não será possível a obtenção de concordata suspensiva, porque esta não
existe mais, como alternativa legal à falência em curso. Na sistemática da
LRE a recuperação judicial só é cabível como procedimento preventivo da
falência.
Aqueles devedores que, nos termos da legislação específica, estão
proibidos de requerer concordata, também não podem postular nenhuma
espécie de recuperação.
A LRE é diploma subsidiário da Lei nº 6.024/74 referente à liquidação
extrajudicial de instituições financeiras, da Lei nº 9.514/97, do Decreto-lei
nº 73/66 e do Decreto-lei nº 2.321/87. Até que se publiquem as leis
específicas previstas na LRE, para a disciplina desses casos.
A LRE aplica-se, desde logo, às falências decretadas em sua vigência,
com base no artigo 162 (convolação de concordata preventiva em falência)
da antiga LFC. Isso significa que, se o juiz decretar a falência do devedor
que postulou a concordata, em face da ocorrência de impedimentos, da falta
de condições para a concordata ou de inexatidão documental, a falência
assim instaurada já será regida pela LRE e não pelas normas da LFC.
Também assim no caso de concordata preventiva em curso com base na lei
anterior, a convolação em falência por falta de pagamento de parcela da
concordata (art. 175, § 8º, da LFC) coloca a empresa falida sob a égide da
LRE.
O CPC e o CPP são fontes subsidiárias da LRE, sempre que houver
compatibilidade das normas daqueles estatutos instrumentais com a
regulamentação processual contida na LRE.

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