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Cultura Religiosa

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CULPA E PERDÃO:
UMA QUESTÃO EXISTENCIAL
Você já se sentiu culpado? Como é viver sob o peso da culpa?
Qual o efeito do perdão sobre as nossas vidas e relações?

Por Prof. Thomas Heimann

U
ma das primeiras questões que introdu- tar responder a esse questionamento de muitas
zem a nossa discussão diz respeito ao maneiras, mas duas delas já são suficientes para
porquê de abordar a temática da culpa fundamentar nossa posição de concordância. A
na disciplina de Cultura Religiosa. O texto base primeira delas remete a uma reportagem da Re-
que nos conduz nesta discussão encontra-se na vista Veja2 , cujo título de capa foi: “Culpa – por
obra do psiquiatra suíço Paul Tournier, cujo su- que esse sentimento se tornou um dos tormentos
gestivo título é Culpa e graça: uma análise do da vida moderna”. Nessa reportagem, a revista
sentimento de culpa e o ensino do evangelho1. procura apontar para “as culpas cotidianas de
cada um”, que parecem não ser mais uma ques-
Vamos tentar mostrar que a culpa é um dos
tão de escolha pessoal, mas sim de imposição
fatores fundantes e estruturantes de muitas religi-
aos indivíduos que vivem na sociedade moder-
ões, o que não invalida uma análise mais criterio-
na: competição no emprego, filhos ou carreira,
sa desse elemento, que aponte para as interfaces
desempenho sexual, comer demais, insucesso fi-
da culpa com aspectos psicológicos, sociológi-
nanceiro são apenas algumas das culpas listadas.
cos, antropológicos e existenciais do ser huma-
no. É essa visão interdisciplinar que propomos Uma segunda forma de fundamentar a uni-
observar. versalidade da culpa é fazer um exercício de
auto-análise. Cada um pode olhar para seu pas-
A culpa é uma questão existen- sado, recente ou remoto, e tentar listar todos os
momentos, as vivências e as situações em que se
cial. Ela acompanha o ser huma-
sentiu culpado, seja na última semana ou mês,
no desde o início da civilização.
Culpa e Perdão: Uma Questão Existencial

seja no último ano. Poderíamos perguntar se é


É formada a partir das normati- possível um sujeito saudável psiquicamente olhar
zações sociais e de sua própria para o seu passado e dizer que nunca sentiu al-
consciência. Pode se tornar um gum tipo de culpa. Uma resposta adequada preci-
peso insustentável na vida do ser saria ser negativa, pois a culpa parece fazer parte
humano. da dimensão humana, sendo uma questão inclu-
sive civilizatória.
Não queremos aqui dimensionar a culpa ou
A universalidade da culpa medir a sua intensidade, pois sabemos que as cul-
pas são diferentes para cada uma das pessoas: o
Alguns poderiam perguntar: será que é re- que para um pode ser motivo de culpa para ou-
levante abordar a questão do sentimento de cul- tro pode ser motivo de riso. A culpa é um senti-
pa? Será que a culpa diz respeito a minha vida mento muito pessoal, particular e subjetivo. Isso
ou faz parte do meu cotidiano? Poderíamos ten- não quer dizer, porém, que as culpas também não

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possam ser questões de caráter cultural, religioso norma é violada. O transgressor é culpado peran-
e familiar, ou seja, o que para determinada socie- te essa lei (pela transgressão dela), mesmo que
dade, grupo ou cultura pode ser taxado de culpa talvez não se sinta culpado. Já a culpa subjetiva é
(ou ato culposo) para outra pode ser um costume o sentimento pouco confortável de pesar, remor-
normal ou natural. so, vergonha e autocondenação que surge com
freqüência quando fazemos e pensamos algo que
O que podemos afirmar, catego- sentimos estar errado ou quando deixamos de fa-
zer algo que julgamos que deveria ter sido feito3.
ricamente, é que a culpa é um
sentimento humano universal, A culpa subjetiva, portanto, está intimamen-
existencial, que precisaria estar te associada aos sentimentos humanos e remete-
nos à segunda fonte da culpa: a nossa própria
presente em todos os seres huma-
consciência. É possível afirmar que o ser huma-
nos ditos saudáveis, isto é, a falta no é dotado de uma capacidade inata, uma voz
de qualquer sentimento de culpa interior, que lhe dá uma intuição íntima e pessoal
é uma das marcas da psicopatia, do que é certo ou errado. Vamos exemplificar:
de uma mente não saudável. você pode ter feito algo que todas as pessoas ao
seu redor julgam como correto, mas mesmo as-
sim brota no seu coração o sentimento de culpa.
Origem da culpa Dois exemplos concretos: uma mãe que precisa
aplicar um castigo ao filho por um erro que este
De onde, afinal, surge a culpa humana? É um cometeu ou um gerente que precisa despedir um
fator externo ou interno ao ser humano? Ela brota mau funcionário que, entrementes, está com difi-
de dentro para fora, sendo um aspecto humano culdades de saúde na família. Tanto a mãe quanto
inato, ou é incutida de fora para dentro, como um o gerente fazem o que é socialmente esperado,
produto do meio social? Observamos que as duas agindo corretamente; porém, mesmo assim, po-
visões não se excluem mutuamente, pelo contrá- dem sentir-se culpados pela decisão que toma-
rio, são complementares. Há, portanto, um duplo ram. Isso confirma que a culpa subjetiva pode
caminho na formação da culpa humana: interno brotar no indivíduo mesmo quando não há uma
e externo. culpa objetiva ou exterior imposta a ele.
Que a culpa é incutida exteriormente é pos-
sível provar a partir de uma rápida análise do Culpa: um sentimento nega-
meio em que se vive. Quanto mais regras, leis
e mandamentos uma sociedade tiver, tanto mais
tivo ou positivo?
culpa gerará nos indivíduos que dela fazem parte.
Um dos grandes questionamentos na análi-
Mesmo que os indivíduos não se sintam culpados
se do sentimento de culpa é se ele é um aspecto
Culpa e Perdão: Uma Questão Existencial

em transgredir determinadas regras sociais, a


negativo ou positivo na vida de um indivíduo e
culpa existe e é reputada a eles. Há inúmeros ti-
da própria sociedade. A resposta dependerá de
pos de regras ou leis que regem a convivência em
alguns critérios, como freqüência, quantidade,
sociedade: civis, religiosas, sociais, profissionais
intensidade e duração da culpa ou, ainda, do uso
e pessoais. Todas elas são praticamente “impos-
e do abuso que alguns indivíduos fazem dela.
tas” aos indivíduos que desejam viver e conviver
em coletividade. Numa primeira análise, podemos dizer que
os aspectos negativos da culpa prevalecem, sen-
Nesse sentido, precisamos fazer aqui uma
do vista como produtora de neuroses, geradora de
diferenciação entre dois tipos de culpa: culpa ob-
angústias e até promotora de doenças de cunho
jetiva e culpa subjetiva, conforme descreve Gary
psicossomático. Aprofundaremos tais questões
Collins.
mais adiante.
A culpa objetiva existe em separado de nos-
Vamos olhar, contudo, para os aspectos po-
sos sentimentos. Ela ocorre quando uma lei ou
sitivos da culpa. Ela pode, sim, cumprir funções

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positivas e construtivas, tanto para o indivíduo parte de nosso repertório comportamental. É um


quanto para a sociedade. São elas: filho que diz que a mãe não gosta dele, caso não
lhe pague uma viagem; é um pai que simula ao
Os aspectos benéficos da culpa: filho choro, caso ele não lhe dê um abraço; é o
rapaz que se faz de vítima diante do término do
• prevenção namoro, dizendo que vai se matar etc. Aqui cabe
• reflexão um alerta: precisamos tomar cuidado para não
pautarmos os nossos relacionamentos sobre o
• reparação sentimento de culpa, pois ele leva a sentimentos
• retificação de vida não construtivos, como pena, comiseração, ran-
cor, indiferença, gerando um ambiente não sau-
dável e de sofrimento aos envolvidos.
Prevenção – Antes de cometer um ato ilíci-
to, a culpa já pode surgir, evitando que o indiví-
duo cometa o ato que está pensando. Ou seja, a
culpa antecipatória age prevenindo um possível
Culpa e pagamento
erro moral ou legal, podendo evitar um eventual
prejuízo de terceiros. Segundo Paul Tournier, toda
Reflexão – Após cometer uma ação que a
culpa implica em um pagamen-
sua consciência apontou como errada ou má, a to. Nas relações interpessoais é
culpa surge e leva o indivíduo a refletir sobre esta comum pagarmos nossas faltas e
sua ação. A culpa leva, portanto, a uma auto-aná- culpas com agrados ou presentes,
lise crítica das próprias ações. na busca de obter o perdão de
Reparação – Quando a culpa brota no indi- quem magoamos.
víduo, pode levá-lo a reparar o seu erro, seja no
pedido de perdão e desculpas, seja na restituição Na obra do psiquiatra Paul Tournier, que ci-
concreta do que lesou ao outro. tamos na introdução, o autor afirma que a culpa
traz como conseqüência quase inevitável uma
Retificação de vida – Como última função
idéia de pagamento: “tudo deve ser pago”, diz
positiva, a culpa pode levar o indivíduo a não
o autor. “Parece-me que isto surge, pelo menos
mais cometer um ato que sua consciência julgou
em grande medida, de uma atitude psicológica
como ilícito, isto é, a culpa faz com que o sujeito
que eu agora quero enfatizar, a saber, a idéia,
não reincida no erro, gerando uma mudança po-
profundamente enraizada no coração de todos os
sitiva de comportamento.
homens, de que tudo deve ser pago”4.
Olhando para as funções positivas mencio-
Esse sentimento de dívida constante, mesmo
nadas, podemos afirmar que um indivíduo que
que tenha sido valorizado na perspectiva judai-
Culpa e Perdão: Uma Questão Existencial

não sinta nenhuma culpa diante de algumas ati-


co-cristã, não fica circunscrito ao mundo cristão
tudes e decisões pessoais pode se tornar uma
tradicional. Como diz Tournier, basta lembrar as
ameaça para si e para a própria sociedade. A au-
multidões inumeráveis de fiéis hindus que mer-
sência da culpa, que parece indicar a inoperância
gulham nas águas do rio Ganges a fim de serem
da consciência moral, faz com que o indivíduo
lavados de suas culpas e até as ofertas votivas e o
perca a noção dos limites e da liberdade do outro,
ouro que cobrem as estátuas de Buda. Igualmen-
tornando-o um indivíduo “perigoso”.
te, são inúmeros os penitentes e os peregrinos de
Um outro aspecto negativo da culpa é o uso todas as religiões que impõem a si mesmos sa-
nocivo que alguns indivíduos fazem dela, no crifícios, práticas ascéticas (privar-se de qualquer
sentido de manipular as pessoas, situação que é forma de prazer) ou duras jornadas como formas
comumente chamada de chantagem emocional. de pagamento, seja por culpas cometidas, seja até
Normalmente, quando fazemos as pessoas se por graças alcançadas. Tais pessoas parecem ter
sentirem culpadas, passamos a ter certo contro- uma necessidade interna de pagar, de expiar as
le sobre elas. Essas pequenas chantagens fazem suas culpas5.

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Aqui podemos perguntar: será que a culpa mo e continua repetindo indefinidamente como
e o seu respectivo pagamento são produtos ex- uma espécie de fatalidade inexorável6. Um exem-
clusivos da religião? Será que Freud está certo plo hipotético de como isso pode acontecer: uma
em afirmar que, libertando-se o homem do sen- mãe, muito irritada com seu filho de oito anos,
timento de culpa, a religião perde a sua finali- acaba dizendo a ele que o seu nascimento a impe-
dade ou necessidade? Pensamos que essa é uma diu de concluir o curso de Medicina, levando-a a
afirmação muito radical. Afinal, a relação entre abdicar de sua realização pessoal e profissional,
culpa-pagamento-perdão existe também fora do e que hoje se vê frustrada por ter feito tal escolha.
contexto religioso ou espiritual. Esse filho pode internalizar essa crítica e, por um
sentimento de culpa reprimido, não conseguir
Basta observarmos as relações humanas
concluir nenhum curso superior como forma de
cotidianas para comprovar tal assertiva. Muitos
pagar a culpa pela frustração profissional da mãe.
exemplos podem ser dados. Uma falha leve com
a namorada (deixar de acompanhá-la à liquida- A culpa, portanto, sempre cobra algum pre-
ção no shopping para ir ao jogo com os amigos) ço, muitas vezes um preço altíssimo, que pode
pode ser pago com um buquê de flores e um con- incapacitar o indivíduo de ser uma pessoa reali-
vite para jantar. Já uma falha mais grave (uma zada e feliz. Essa é uma crítica também reputada
traição) certamente exigirá um pagamento mais às religiões, como veremos a seguir.
“caro”, para a conquista de um eventual perdão.
A típica frase “Essa ele me paga!”, muitas
vezes repetida por nós em inúmeras e variadas
Culpa e religião
situações e contextos, expressa o que estamos
A culpa é um dos aspectos fundantes ou es-
afirmando neste texto. Todas as faltas, erros, de-
truturantes de muitas religiões. Por mais ácida
litos e pecados exigem um pagamento, que nor-
que seja essa afirmação, ela não é de todo injusta,
malmente implica uma proporcionalidade, isto é,
pois, após analisarmos grande parte das religiões
o tamanho (preço) do pagamento é proporcional
existentes, veremos que a culpa foi, e ainda é, uti-
ao tamanho do erro. Exemplo: no direito, um cri-
lizada como um dos mais eficazes instrumentos
me leve normalmente demanda uma pena leve, já
de domínio das Igrejas sobre os fiéis. Porém, ao
um crime grave demanda uma pena mais longa e
final desta análise, queremos apontar para uma
severa. Também na prática da confissão católica,
proposta religiosa que vai num caminho contrá-
normalmente, a penitência é dada ao fiel de acor-
rio, ensinando a total erradicação da culpa por
do com a gravidade do seu pecado.
intermédio de Jesus Cristo.
Indo além nesta abordagem psicológica,
O próprio Sigmund Freud, fundador da psi-
muitos dos problemas e neuroses trazidos pelos
canálise e um dos maiores críticos da religião,
pacientes nos consultórios estão ligados direta-
afirma que o sentimento de culpa é que deu ori-
mente ao sentimento de culpa, como já foi dito
gem às religiões, quando faz referência ao tote-
Culpa e Perdão: Uma Questão Existencial

anteriormente. Algumas vezes essa culpa é cla-


mismo, que se configura como uma das mais an-
ramente identificável e manifesta, estando no
tigas e primitivas formas de religiosidade. Na sua
plano consciente. Outras vezes, porém, as culpas
obra Totem e tabu, Freud faz referência ao mito
surgem como um sentimento vago e indefinido,
do parricídio, em que os filhos se unem e matam
ligado a uma esfera semiconsciente, cujo prejuí-
o pai, chefe do clã, que era invejado e temido por
zo na saúde psíquica pode ser até mais grave do
eles. Após o assassinato, os filhos devoram seu
que quando se trata de culpa consciente.
cadáver (antropofagia) e, identificando-se com o
A própria psicanálise afirma que muitas pai, apropriam-se de sua força. Após o parricí-
doenças nervosas e físicas, e até mesmo aciden- dio, a culpa dos filhos se estabelece em virtude
tes, bem como frustrações na vida profissional dos sentimentos ambivalentes: ódio ao pai, que
podem ser tentativas de expiação da culpa que representava um impedimento de alcançar o po-
é totalmente inconsciente. Essa seria uma forma der e satisfazer os desejos sexuais, em contrapo-
de punição que o sofredor administra a si mes- sição ao amor e à admiração pelo que ele repre-

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sentava. Essa afeição, antes recalcada, surge em pelas culpas e pelos pecados cometidos. Na Ida-
forma de remorso. A partir daí, os filhos criam de Média, era comum a venda das indulgências,
uma representação totêmica do pai morto, que se que representavam a compra do perdão e da sal-
torna ainda mais forte do que quando estava vivo. vação, além da veneração de relíquias sagradas,
Esta, portanto, seria para Freud a base estrutu- das encomendas de missas pagas, da realização
rante das religiões: a culpa que deu origem aos de votos e promessas e das práticas de autoflage-
rituais religiosos totêmicos. lo, tudo como forma de expiar as suas culpas, pa-
gar as dívidas com Deus e ganhar algum mérito
Nota: O mito é contado aqui de forma pessoal diante Dele.
muito resumida. Para uma melhor compre-
ensão, devido à complexidade do tema, A colunista Martha Medeiros, numa de suas
sugere-se a leitura do texto de Freud na crônicas publicadas no Zero Hora8, intitulada
sua íntegra. Prometa não sofrer, ressalta que algumas religi-
ões cristãs têm na culpa o seu maior alicerce, e
Saindo dessa abordagem antropológica, po- o rito das promessas seria a maior prova de que,
demos apontar diversas religiões que fazem uso aos olhos de Deus, o ser humano não é merecedor
cotidiano da culpa na sua relação com os fiéis. da felicidade, ao menos não de uma felicidade
Como diz Tournier, para apagar o passado de cul- gratuita. A autora faz referência a ritos penosos,
pas e pecados, uma expiação (pagamento) deve como subir 300 degraus de uma igreja, caminhar
ser feita, sendo esse o sentido de quase todos os vários quilômetros para pagar uma graça alcança-
ritos e sacrifícios praticados nas diferentes religi- da, dar uma soma polpuda para a caixa de coleta
ões. Atos de culto não deixam de ser uma forma etc. “Como sofrem esses fiéis”, diz Martha Me-
de pagamento, ao menos do ponto de vista psico- deiros, afirmando que eles se sentem devedores
lógico. Espera-se que eles garantam a libertação da própria fé, impingindo a si próprios inúmeros
da culpa descartando o débito que deu origem a sofrimentos e privações para pagar o que julgam
ela7. Vamos traduzir isso em exemplos práticos. dever a Deus. Ao almejar a felicidade, finaliza
Em tribos primitivas, quando aconteciam a autora, torna-se implícito que se pagará muito
tragédias, derrotas ou cataclismas (furacões, ter- caro por ela, se não financeiramente, ao menos
remotos, temporais etc.), normalmente se acre- com bolhas nas mãos e calos nos pés.
ditava que alguém da tribo havia cometido um Não é essa proposta, porém, que o cristianis-
grave pecado. Quando se achava o culpado, este mo, comprometido com os evangelhos bíblicos
era punido e sacrificado aos deuses. Portanto, e com a obra de Jesus Cristo, oferece aos seres
aplacar a ira dos deuses por meio de oferendas, humanos. A Igreja cristã tem o compromisso de
rituais e sacrifícios era prática comum em inú- proclamar a salvação, a graça e o perdão de Deus
meros povos, tribos e culturas da Antiguidade. à humanidade oprimida pela culpa: a salvação
Na realidade brasileira, temos a doutrina es- conquistada em Cristo, com Cristo e por inter-
médio de Cristo. Essa salvação não tem preço,
Culpa e Perdão: Uma Questão Existencial

pírita, que se aproxima muito da expressão, utili-


zada por Tournier, de que “tudo deve ser pago”. não pode ser comprada por ninguém, até porque,
Mesmo que o conceito pagamento não seja no- para o cristianismo, sacrifícios expiatórios ou es-
meado, sendo substituído por palavras como forço moral não são suficientes para pagar a dívi-
resgate, missão ou aprendizado, está implícito da com Deus. Na realidade, o cristão não precisa
na doutrina espírita que cada indivíduo é respon- pagar nada, pois Cristo já pagou em seu lugar.
sável pelo seu aprimoramento e pelo “resgate” Como lembra Tournier,
de suas culpas passadas. Muitas doenças, pro- é Deus mesmo quem paga, Deus mesmo pa-
blemas, dificuldades e tragédias que surgem na gou o preço de uma vez por todas, o preço mais
vida das pessoas são interpretados pelos espíritas caro que ele poderia pagar: a sua própria morte,
como uma forma de “pagamento” de um carma em Jesus Cristo, na cruz. A obliteração (destrui-
anterior. Sem esse resgate, não há evolução. ção/eliminação) de nossa culpa é livre para nós
O cristianismo, por um longo tempo, tam- porque Deus pagou o preço. Jesus Cristo veio
bém se estruturou sobre a prática do pagamento ‘para salvar o que estava perdido’ (Mt 18:11).9

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Imagem 64: Revista Agulha


Conforme está escrito na Escritura Sagrada,
“O sangue de Jesus, seu Filho, nos purifica de
todo pecado” (1 João 1:7); “no qual temos a re-
denção pelo seu sangue, a remissão dos pecados”
(Efésios 1:7); “Pois também Cristo morreu, uma
única vez, pelos pecados, o justo pelos injustos”
(1 Pedro 3:18).
Em síntese, a libertação total da culpa, a sal-
vação, não é mais uma idéia remota de perfeição,
para sempre inacessível, mas é uma pessoa: Jesus
Cristo, que veio a nós, veio para ficar conosco,
em nossas casas, em nossos corações. O remorso
é silenciado pela sua absolvição. Jesus substitui
o remorso com uma simples pergunta, aquela que
fez ao apóstolo Pedro, que o tinha negado por três
vezes: “Tu me amas?” (João 21:15). Precisamos
responder a essa questão e achar em nossa liga-
ção pessoal com Jesus Cristo paz para as nossas
almas.
Todos os homens podem se beneficiar dessa
expiação única; todos os homens, de fato, “todo o
mundo”, como João afirmou (1 João 2:2). Jesus
Cristo morreu por todos, sem qualquer distinção,
para homens de todas as idades e regiões, para
hindus, para budistas, para muçulmanos, para pa-
Nesta obra de Rembrandt, “O Filho Pródigo”, temos o re-
gãos e para ateus; basta que nele creiam. trato de um pai amoroso que recebe o seu filho de volta,
perdoando seu pecado. Trata-se de uma parábola bíblica
que fala do amor incondicional de Deus por seus filhos e
Culpa e perdão do perdão oferecido por ele a todos que se arrependem.

O grande ápice de nosso texto é a palavra toa que se diz que “errar é humano e perdoar é
perdão. De nada adianta falar de culpas se não divino”.
abrimos a possibilidade de refletir sobre o per-
Hoje já há estudos que comprovam ter a prá-
dão. Numa dimensão humana, a das relações in-
tica do perdão um efeito benéfico sobre a saúde
terpessoais, poderíamos afirmar que o perdão é
humana. O psicólogo americano Frederic Luskin
uma das mais importantes ferramentas terapêuti-
Culpa e Perdão: Uma Questão Existencial

cas existentes nesta vida. O perdão pode ser visto faz uma relação entre o bem-estar trazido pelo
sob três aspectos: o perdão divino, o perdoar a si perdão e a saúde do ser humano. Luskin afirma
próprio e o perdoar aos outros. Poderíamos per- que guardar ressentimentos, culpar os outros ou
guntar: o que é mais difícil, perdoar aos outros, apegar-se às mágoas estimula o organismo a libe-
pedir perdão aos outros ou ainda se apoderar do rar na corrente sangüínea as mesmas substâncias
perdão divino? Obviamente que a resposta a essa químicas associadas ao estresse, que prejudicam
questão está ligada a uma série de variáveis. o corpo. Um outro estudo de Luskin indicou que
as pessoas mais inclinadas ao perdão sofriam
Para um indivíduo orgulhoso, assumir o erro menos enfermidades e tinham menos doenças
e pedir perdão é quase uma impossibilidade. Para crônicas diagnosticadas10.
um indivíduo com pouca confiança em Deus,
Portanto, perdoar e pedir perdão são ações
aceitar o perdão de Cristo também é difícil. Ago-
promotoras da saúde na dimensão emocional, fí-
ra, perdoar realmente aos que nos fizeram algum
sica e espiritual. São ações que precisamos apri-
mal parece ser a mais árdua das tarefas. Não é à

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morar em nossa vida. O primeiro passo para isso as obras do cristão acompanham a verdadeira
é aceitar que as nossas culpas, os nossos erros já fé, mas obras feitas como símbolo de gratidão,
estão perdoados por Deus. como conseqüência natural da morada de Cristo
em nossos corações e mentes, e não como forma
Acabamos de ver que esse perdão divino é
de pagar alguma culpa ou ganhar mérito diante
concedido a nós gratuitamente, sem qualquer
de Deus. Finalmente, libertar-se da culpa impli-
barganha com Deus. Ele nos oferece o perdão
ca também uma disposição interna constante em
a todas as nossas culpas. Diante dessa verdade
perdoar aos outros, num compartilhamento mú-
bíblica, vem-nos à mente um ditado popular:
tuo e recíproco do perdão que nos é oferecido por
“Quando a esmola é muita, o santo desconfia”.
Deus em Cristo Jesus.
O ser humano parece ter uma grande di-
Culpa e perdão – uma questão existencial que
ficuldade de se apoderar do perdão oferecido
permanecerá atuando e ressoando nos corações
pelo evangelho bíblico. Mesmo participando de
humanos enquanto o indivíduo viver, mas cuja
rituais como a Comunhão (Santa Ceia), a Con-
resolução está mais próxima do nosso alcance do
fissão e a Absolvição nas missas e nos cultos, o
que podemos imaginar: na pessoa que se tornou a
ser humano não consegue libertar-se de suas cul-
encarnação viva do amor, da paz, do consolo e do
pas, presas a ele como sanguessugas a retirar sua
perdão, chamada Jesus Cristo. Crer nesse perdão
alegria, bem-estar, auto-estima e paz de espírito.
e apoderar-se dele é a ferramenta terapêutica por
Como diz Tournier:
excelência, fonte de vida e alegria, da qual todos,
Parecia-lhe impossível (ao ser humano) que sem exceção, podem fazer uso.
Deus pudesse remover a sua culpa sem que ele
tivesse de pagar alguma coisa. Pois a noção de Pela fé em Jesus Cristo as culpas
que tudo tem que ser pago está profundamente do ser humano são apagadas e o
arraigada e atuante em nós, tão universal quan-
perdão nos é concedida de graça.
to inabalável por qualquer argumento lógico.
Portanto, as pessoas que anseiam ardentemente É a grande e libertadora mensa-
pela graça são as que têm maior dificuldade em gem do Cristianismo.
aceitá-la. Seria uma solução muito simples, e
uma espécie de intuição se lhe opõe.12
Notas deste capítulo
Precisamos crer e confiar que Deus nos per-
doa. O grande privilégio que temos como cris-
1
Paul Tournier. Culpa e graça: uma análise do senti-
mento de culpa e o ensino do evangelho. São Paulo:
tãos é saber que somos perdoados e que o perdão ABU, 1985.
nos alcança por meio de Jesus Cristo. Foi para 2
Revista Veja, 31 de julho de 2002, edição 1762.
pregar a transformação radical, o despertar da
consciência de culpa e a erradicação desta culpa:
3
Collins, Gary R. Aconselhamento cristão. São Pau-
lo: Vida Nova, 1995, p.100-101.
Culpa e Perdão: Uma Questão Existencial

a humilhação do orgulhoso e a restauração dos


angustiados. Não que a salvação tenha que ser
4
Tournier, Paul. Culpa e graça: uma análise do senti-
mento de culpa..., p.200.
conseguida. Ela já foi de uma vez assegurada a
nós e a todos os que crêem. Tudo já foi consuma- 5
Ibidem, p.200-1
do em Jesus Cristo12. 6
Ibidem, p 201
Vale uma reflexão final para o tema em ques- 7
TOURNIER, Paul. Op.cit., p.202
tão: o processo que leva a uma verdadeira liber- 8
Jornal Zero Hora, Caderno Donna, 12 de setembro
tação da culpa, que parte da confiança no perdão de 1999.
divino oferecido a nós, implica três momentos. 9
TOURNIER, Paul. Op.cit., p.212-3
Primeiro, o reconhecimento dos nossos erros que
leve a um verdadeiro e sincero arrependimento.
10
Mônica TARANTINO. Perdoar é humano. Revista
Isto É, 08 de janeiro de 2003, edição n. 1736.
Segundo, o firme desejo de corrigir a nossa vida,
transformando-nos positivamente como pessoas
11
TOURNIER, Paul. Op.cit., p.200
e como cristãos. Como diz a Bíblia, os frutos e 12
Ibidem, p.215

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