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A necessidade de fundamentação da moral https://criticanarede.com/fundamentacaodamoral.

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20 de Março de 2016 Ética

A necessidade de fundamentação da moral


Pedro Galvão

No que se baseia a moral? Os bons juízos morais baseiam-se na razão ou, pelo contrário,
em última análise resultam de um certo tipo de emoção? O problema de saber se a ética se
baseia na razão ou na emoção foi intensamente debatido no século XVIII, permanecendo
bem vivo ainda hoje. Este capítulo é uma introdução a este debate. Vamos aqui apresentar
as perspectivas de David Hume e Immanuel Kant. Enquanto Hume defende que na ética a
razão desempenha apenas um papel secundário, Kant entende que agir eticamente é o
mesmo que agir de uma forma puramente racional. Veremos como Kant tentou
desenvolver uma ética deontológica baseada na razão. Hume e Kant apresentaram as suas
teorias em duas obras muito influentes — o Tratado sobre a Natureza Humana (TNH) e a
Fundamentação da Metafísica dos Costumes (FMC).

1. Hume: a razão é escrava das paixões


A ideia de que existe em nós uma espécie de combate entre a emoção e a razão está
presente tanto ao nível do senso comum como na obra de muitos filósofos. De acordo com
esta ideia, a razão impele-nos a agir de uma certa maneira, mas encontra a oposição das
nossas emoções ou paixões, que muitas vezes nos impelem a agir de outra maneira. Quem
pensa assim costuma acrescentar que, como criaturas racionais, devemos fazer a razão
subjugar ou pelo menos controlar as nossas emoções. Segundo esta perspectiva, a razão
rivaliza com as emoções para tomar conta da nossa vontade. Pressupõe-se assim que,
embora muitas das nossas acções resultem de emoções, a razão por si também pode levar-
nos a agir.

David Hume defende que este pressuposto é falso. Entende que por si a razão não pode
levar-nos a agir, isto é, não pode indicar-nos quaisquer objectivos ou fins — pode apenas
indicar-nos os meios mais apropriados para atingir os nossos fins. Hume pensa assim que,
a nível prático, a razão é meramente instrumental — é apenas uma espécie de ferramenta
que nos ajuda a alcançar aquilo que queremos, sem nunca fazer-nos por si mesma querer
algo nem nos dizer aquilo que devemos querer. Declara Hume: “A razão é, e deve ser
apenas, a escrava das paixões, e nunca poderá aspirar a qualquer outro cargo que não o de

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servi-las e obedecer-lhes” (TNH, p. 266).

Segundo Hume, a razão não nos impõe quaisquer fins — nunca nos diz “Faz x!”. As
nossas acções resultam de certos desejos que são imunes à avaliação racional. Tudo o que
a razão nos pode dizer é algo como “Dado que queres x, faz y!” ou “Se quiseres x, faz y!”.
Se queres ser médico, tira uma licenciatura em Medicina, e se queres tirar uma
licenciatura em medicina, esforça-te para ter boas notas — é este tipo de coisas que a
razão nos permite descobrir, influenciando assim as nossas acções. Deste modo, podemos
dizer que alguém age irracionalmente quando não procede de maneira apropriada para
obter aquilo que deseja — se queres ser médico, mas não te esforças por ter boas notas,
estás a ser irracional. No entanto, quando uma pessoa usa os melhores meios para atingir
os seus fins, não podemos acusá-la de irracionalidade sejam quais for os seus fins. Hume
exprimiu esta ideia controversa de uma forma muito contundente:

Não é contrário à razão preferir a destruição do mundo inteiro a esfolar o meu dedo.
Não é contrário à razão escolher a minha ruína total para impedir o menor incómodo a
um índio ou a uma pessoa que me é totalmente desconhecida. Tão-pouco é contrário à
razão preferir até aquilo que reconheço ser um bem menor a um bem maior, e ter uma
afeição mais ardente pelo primeiro que pelo segundo. Um bem trivial pode, em certas
circunstâncias, produzir um desejo superior àquele que surge do prazer maior e mais
valioso. (David Hume, TNH, 1739, p. 267)

Imagina uma pessoa que deseja acima de tudo exterminar todos os que não pertencem à
sua raça. E imagina que, ao longo da sua vida, essa pessoa faz tudo o que está ao seu
alcance para que o seu desejo se realize: funda uma organização racista, atrai jovens para
a sua causa, distribui propaganda e persegue todos os que considera inferiores. Será que
essa pessoa é irracional? Numa perspectiva humiana, não — se ela souber usar a razão
para escolher os melhores meios para atingir o seu fim, não podemos considerá-la
irracional. Mas podemos, sem dúvida, considerá-la imoral. Não há nisto qualquer
contradição, pois para Hume a ética não se baseia na razão. Assim, uma pessoa pode agir
de uma forma perfeitamente racional, mas profundamente imoral.

2. Hume: as distinções morais não derivam da razão


Vejamos agora, muito resumidamente, por que motivo Hume defende que a ética não se
baseia na razão. O seu argumento é o seguinte:

[…] como a moral influencia as acções e emoções, segue-se que esta não pode derivar
da razão, pois a razão por si, como já provámos, nunca pode exercer tal influência. A
moral excita paixões e produz ou impede acções. A razão por si é totalmente
impotente neste aspecto. Logo, as regras da moral não são conclusões da nossa razão.
(David Hume, TNH, 1740, p. 294)

Examinemos este argumento. A ideia de Hume é que a moral é intrinsecamente


motivadora — os juízos morais por si influenciam decisivamente a nossa conduta. Quem
julga, por exemplo, que quebrar promessas é errado, está motivado para manter as
promessas que faz. Mas a razão, como vimos, por si não nos motiva para fazer nada, pois

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é apenas um instrumento ao serviço das paixões. Logo, os juízos morais não resultam da
razão.

Não é a razão que nos faz desejar manter promessas, pois o raciocínio, seja ele dedutivo
ou indutivo, apenas nos permite formar crenças ou convicções. Por isso, reitera Hume, “é
impossível que a distinção entre o bem e o mal morais seja feita pela razão, pois esta
distinção tem uma influência nas nossas acções que a razão por si não pode ter” (TNH,
pp. 297–8).

Se a ética não se baseia na razão, de que resultam os nossos juízos morais? Para
compreendermos a resposta de Hume, imaginemos uma situação que envolve alguém que
age, alguém que é afectado pela acção e alguém que observa a situação — um agente, um
receptor e um espectador. João, o agente, motivado pela sua benevolência, acolhe na sua
casa Paulo, que foi despejado por não ter dinheiro para pagar a renda. Paulo, o receptor,
fica obviamente satisfeito por não ter que passar a viver na rua. Pedro, o espectador,
observa a situação e, por simpatia, sente-se também satisfeito. Isso leva-o a aprovar a
benevolência de João, considerando-a uma virtude — na verdade, a sua aprovação moral
resume-se ao seu sentimento aprazível.

Os nossos juízos morais exprimem a nossa aprovação (ou reprovação) de certos tipos de
conduta ou de certas qualidades do carácter. A ideia de Hume é que tal aprovação é
inteiramente emotiva — consiste, mais precisamente, num sentimento de prazer
desencadeado pela simpatia. É preciso explicar esta última noção, pois a palavra
“simpatia” tem aqui um significado diferente do usual: a simpatia é a capacidade de
entrarmos nos sentimentos dos outros e partilharmos o seu prazer ou sofrimento. Quando
vemos alguém alegre, muitas vezes isso faz-nos sentir prazer, e quando vemos alguém em
grande sofrimento, é provável que isso nos faça também sofrer, sobretudo se quem estiver
a sofrer nos for muito próximo — a simpatia consiste nesta espécie de transmissão de
emoções.

Imagina, para dar outro exemplo, que observas um grupo de homens embriagados, os
agentes, a espancar um cão inofensivo, o receptor. Por simpatia, o sofrimento do cão faz-
te sofrer. Tu, o espectador moral, reprovas a conduta dos homens, e a tua reprovação não é
mais que o sentimento desagradável que tens ao observar a situação. Ela não se baseia em
nenhum princípio estabelecido racionalmente.

Terá Hume razão? Será verdade que, em última análise, os nossos juízos morais não são
racionais? Entre os que tentaram mostrar que Hume está enganado destaca-se Kant, cuja
teoria moral iremos agora examinar.

3. Kant: agir bem é agir por dever


Uma das ideias fundamentais de Kant é que, na avaliação moral das acções, interessa
sobretudo determinar o motivo do agente. Isto não nos deve surpreender, pois no capítulo
anterior já vimos que Kant rejeita o consequencialismo. Por vezes fazemos o que está
certo, mas pelos motivos errados, o que faz a nossa acção não ter qualquer valor moral.

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Um comerciante que não engana os seus clientes, por exemplo, procede correctamente,
mas terá a sua conduta valor moral? Isso, pensa Kant, depende daquilo que o leva a
proceder assim. Se o comerciante não engana os seus clientes porque receia perdê-los, a
sua conduta não tem valor moral, pois resulta de um desejo ou inclinação egoísta. Mas se,
em vez disso, o comerciante procede assim apenas porque julga ter o dever de ser honesto,
então a sua conduta tem valor moral.

Kant pensa que só têm valor moral as acções realizadas por dever. Estas distinguem-se das
acções que estão em mera conformidade com o dever, ou seja, das acções que, embora
estejam de acordo com aquilo que devemos fazer, não são motivadas pelo sentido do
dever. Kant inclui aqui não só as acções que são manifestamente motivadas pelo interesse
pessoal, mas também todas as acções que resultam de sentimentos louváveis, como a
compaixão. Vejamos, por exemplo, o que diz Kant sobre os que ajudam os outros por
compaixão:

Ser caridoso quando se pode sê-lo é um dever, e há além disso muitas almas de
disposição tão compassiva que, mesmo sem nenhum outro motivo de vaidade ou
interesse, acham íntimo prazer em espalhar alegria à sua volta e podem-se alegrar com
o contentamento dos outros, enquanto este é obra sua. Eu afirmo, porém, que neste
caso uma tal acção, por conforme ao dever, por amável que ela seja, não tem contudo
nenhum verdadeiro valor moral, mas vai emparelhar com outras inclinações, como o
amor das honras, que, quando por feliz acaso coincidem com aquilo que é
efectivamente de interesse geral e conforme ao dever, são consequentemente honrosas
e merecem louvor e estímulo, mas não estima; pois à sua máxima falta o conteúdo
moral que manda que tais acções se pratiquem, não por inclinação, mas por dever.
(Immanuel Kant, FMC, 1785, p. 28)

Depois de afirmar, nesta passagem, que quem ajuda os outros por compaixão não está a
realizar um acto com genuíno valor moral, Kant contrasta os que procedem assim com
alguém que, embora seja “por temperamento frio e indiferente às dores dos outros”,
também ajuda quem precisa, mas só porque sabe que tem o dever de ajudar. Para Kant, só
quem é exclusivamente motivado por tal dever quando ajuda os outros faz algo com valor
moral.

Um conceito importante na ética kantiana é o de máxima. As pessoas agem segundo


máximas — um comerciante que não engana os clientes pode agir segundo a máxima
“Devemos ser honestos”, mas também pode agir segundo a máxima “Não enganes os
outros se não queres perder clientes”. As máximas são assim os princípios que nos
indicam o motivo dos agentes. Podemos então reformular a tese de Kant dizendo que o
valor moral de uma acção depende da máxima que lhe subjaz. Deste modo, só fazemos
algo com valor moral quando agimos segundo máximas ditadas pelo nosso sentido do
dever, como “Mantém as tuas promessas” ou “Ajuda quem precisa”.

Mas no que se baseia o nosso sentido do dever? Na razão, pensa Kant. Assim, quando
agimos por dever estamos a agir racionalmente. Quando agimos por outros motivos —
por inclinação, como diz Kant — estamos a agir em função de desejos não racionais,
desejos esses que, como vimos, tiram todo o valor moral às nossas acções.

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O contraste com Hume não podia ser maior: Kant pensa não só que a razão por si mesma
é motivadora, mas também que só têm valor moral as acções motivadas pela razão. A
razão não é meramente instrumental — ela impõe certos deveres que determinam o que
está certo ou errado, independentemente dos desejos que as pessoas têm. Ela diz-nos, por
exemplo, “Mantém as tuas promessas!”. Um imperativo como este, por oposição a algo
como “Se queres ter prestígio social, mantém as tuas promessas!”, não depende de
quaisquer desejos específicos — aplica-se universalmente a todos os seres racionais.

4. Kant: o imperativo categórico


Kant pensa que, como agentes morais, temos que respeitar certos deveres. E pensa, além
disso, que tais deveres não resultam dos nossos desejos, pois são-nos impostos
incondicionalmente pela razão. Mas por que julga Kant que os nossos deveres morais
resultam da razão? A ideia de Kant é que toda a moral se baseia num princípio racional
fundamental: racional porque todos o reconhecemos como verdadeiro usando a razão;
fundamental porque é dele que derivam todos os nossos deveres morais específicos, como
o de não quebrar promessas ou de ajudar os outros.

Esse princípio é o imperativo categórico — ele é categórico, por oposição a hipotético,


porque se nos apresenta como uma obrigação absoluta ou incondicional. Já examinámos
uma das fórmulas deste princípio no capítulo anterior — a fórmula do fim em si — a
propósito do debate entre utilitaristas e deontologistas. Consideremos agora a fórmula
aparentemente mais básica do imperativo categórico, conhecida por fórmula da lei
universal:

Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se
torne lei universal.

O que quer isto dizer? A ideia é que só devemos agir segundo máximas que possamos
querer universalizar. Se não podemos querer que todos ajam segundo uma certa máxima,
então ela não é universalizável e, por isso, devemos rejeitá-la. O imperativo categórico é,
sem dúvida, um princípio muito abstracto. Para o clarificar, vejamos como funciona
considerando dois exemplos apresentados por Kant.

4.1. Manter promessas

Imagina uma pessoa que está com problemas financeiros e que decide pedir dinheiro
emprestado. Ela sabe que não vai poder pagar, mas sabe também que se não prometer
pagar num certo prazo não lhe emprestarão o dinheiro. Ainda assim, faz a promessa e
recebe o dinheiro. Ela agiu segundo a máxima “Faz promessas com a intenção de as não
cumprires”. Será esta máxima universalizável? É óbvio que não. Se todos fizessem
promessas com a intenção de as não cumprirem a própria prática de fazer promessas
desapareceria, pois esta baseia-se na confiança entre as pessoas. É pura e simplesmente
impossível todos fazerem promessas com a intenção de as não cumprirem. Por isso, não
podemos querer que todos ajam segundo essa máxima — ela deve ser rejeitada.

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Este exemplo mostra claramente que o imperativo categórico serve para testar as nossas
máximas. Uma máxima como “Faz promessas com a intenção de as não cumprires” não
passa o teste, pois não podemos querer que ela se torne lei universal. E, pensa Kant, sendo
assim devemos manter sempre as promessas que fazemos.

4.2. Ajudar os outros

Imagina agora uma pessoa rica que, embora possa fazer muito pelos outros sem se
sacrificar muito, só se preocupa com o seu próprio bem-estar. Em toda a sua vida segue a
máxima “Recusa-te sempre a ajudar os outros”. Será esta máxima universalizável? Aqui a
situação é um pouco diferente da anterior, pois Kant admite que seria possível todos
agirem segundo essa máxima. Ainda assim, a verdade é que todos nós ao longo de vida
precisamos que os outros nos ajudem, nem que seja ocasionalmente. Por isso, não
queremos viver num mundo em que ninguém nos ajude quando precisamos. Logo, não
podemos querer que todos recusem sempre ajudar os outros. A máxima “Recusa-te
sempre a ajudar os outros” não é então universalizável, e isto significa que é errado viver
sem nos preocuparmos minimamente com o bem-estar dos outros — temos o dever de
ajudar.

4.3. Universalização

Depois de discutir estes exemplos, entre outros, Kant conclui:

Temos que poder querer que uma máxima da nossa acção se transforme em lei
universal: é este o cânone pelo qual a julgamos moralmente em geral. Algumas acções
são de tal ordem que a sua máxima nem sequer se pode pensar sem contradição como
lei universal da natureza, muito menos ainda se pode querer que deva ser tal. Em
outras não se encontra, na verdade, essa impossibilidade interna, mas é contudo
impossível querer que a sua máxima se erga à universalidade de uma lei da natureza,
pois uma tal vontade se contradiria a si mesma. (Immanuel Kant, FMC, 1785, p. 62)

Como vimos, a máxima “Faz promessas com a intenção de as não cumprires” nem sequer
se pode pensar como lei universal. E a máxima “Recusa-te sempre a ajudar os outros”
inclui-se na segunda categoria: embora possamos pensá-la como lei universal, não
podemos querer coerentemente que ela se torne lei universal.

5. A razão na ética
Qual é então o lugar da razão na ética? Como vimos, Hume defende que não é a razão que
nos leva a agir moralmente, pois esta é meramente instrumental. Kant tenta mostrar que a
perspectiva humiana é falsa. Afirma que a razão nos impõe a obrigação de agir apenas
segundo máximas que possamos querer universalizar. Kant sustenta que esta obrigação dá
origem a deveres específicos, como os de manter sempre as promessas que fazemos, de
ajudar os outros, bem como os de desenvolver os nossos talentos e ou de conservar a
nossa própria vida. E, como vimos, Kant pensa também que só têm valor moral as acções

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exclusivamente motivadas por tais deveres racionais.

Terá Kant sido bem-sucedido na sua tentativa de mostrar que Hume está profundamente
enganado quanto ao papel da razão na ética? A verdade é que a teoria de Kant tem sido
muito criticada, mas ainda assim há quem pense que a ética se baseia na razão. O debate
continua em aberto e envolve questões muito complicadas que não podemos considerar
aqui. Mas, para concluir este capítulo, vale a pena explorar um pouco esse debate. O
diálogo que se segue, no qual os interlocutores discutem o imperativo categórico, fornece-
te pistas importantes que certamente te permitirão pensar melhor sobre este assunto.

— Admito que estou profundamente desapontado com a teoria de Kant.

— Porquê? A mim parece-me uma excelente teoria. Julgo que o imperativo categórico
é realmente o princípio ético fundamental — é um princípio, aliás, que qualquer
agente racional tem de aceitar.

— Ora aí está uma coisa que não percebo. Porque é que o imperativo categórico é um
princípio racional? Porque é que uma pessoa racional não pode rejeitá-lo?

— Hmmm… Uma pessoa racional tem de ser coerente, não é?

— Sim.

— Então imagina alguém que diz isto: “Eu posso quebrar as promessas que faço, mas
não quero (aliás, não posso querer!) que todos quebrem as promessas que fazem”.
Julgo que quem pensa assim, rejeitando o imperativo categórico, está a ser incoerente,
não te parece? Julgo que o imperativo categórico é uma simples exigência de
coerência que nos impede, entre outras coisas, de abrir excepções convenientes para
nós próprios. Portanto, qualquer pessoa racional tem de aceitá-lo.

— Talvez tenhas razão… Talvez seja verdade que, como agentes racionais, temos que
agir apenas segundo máximas que possamos querer universalizar. No entanto, este
princípio parece-me vazio — ele não tem as implicações práticas que Kant indicou.
Ele não implica, por exemplo, que devemos manter sempre as promessas que
fazemos.

— Explica lá o teu argumento…

— Eu até estou disposto a admitir, concordando com Kant, que a máxima “Faz
promessas com a intenção de as não cumprires” não é universalizável, pois se todos
agissem segundo essa máxima a prática de fazer promessas desapareceria. Mas agora
imagina que eu adopto uma máxima mais específica, como “Faz promessas com a
intenção de as não cumprires quando isso é necessário para salvar a vida de uma
pessoa”. Esta máxima é claramente universalizável, pois mesmo que todos a
adoptassem isso não abalaria a prática de fazer promessas ao ponto de a destruir.
Posso perfeitamente querer que as pessoas quebrem promessas para salvar vidas! E,
sendo assim, o imperativo categórico não me proíbe sempre de quebrar promessas.

— És capaz de ter razão… Talvez o imperativo categórico, contrariamente ao que


Kant pensou, não leve a deveres absolutos. Mas, mesmo assim, estás enganado
quando dizes que ele é vazio. Este princípio tem consequências práticas importantes,
pois, como acabaste de admitir, proíbe-nos de andar sempre a fazer promessas sem a

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intenção de as cumprir, de as quebrar só porque nos dá jeito. E é claro que poderíamos


usar muitos outros exemplos.

— Tudo bem, admito isso. Mas, seja como for, é óbvio que a ética não se pode basear
apenas no imperativo categórico, pois há muitas máximas claramente imorais, como
“Mata os teus avós”, que são universalizáveis. Afinal, porque é que eu não posso
querer que esta máxima se torne uma lei universal?

— Eu acho que essa máxima não é universalizável. Se fosses avô, gostarias que os
teus netos te matassem?

— É claro que não! Mas a questão não é essa. Eu, dados os desejos que tenho, não
quero que essa máxima se universalize. Mas outra pessoa qualquer, com desejos
diferentes, poderia querer que essa máxima fosse uma lei universal. Imagina um
homem que odeia tanto as pessoas mais velhas que até está disposto a ser morto
quando chegar a velho. Se perguntares a esse homem “Queres que a máxima “Mata os
teus avós” se torne lei universal?”, ele responderá que sim.

— Só um homem extraordinariamente insensível daria essa resposta!

— Ele seria insensível, sem dúvida, mas dados os seus desejos não poderias acusá-lo
de ser incoerente ou irracional. O problema desse homem não seria falta de
racionalidade, mas talvez lhe faltasse aquilo a que Hume chamou simpatia.
Provavelmente, não teria grande capacidade de sentir o que os outros sentem, nem de
se imaginar no lugar dos outros e de se identificar com os seus interesses. E, se isto é
verdade, então mesmo que a razão tenha um papel importante na ética, esta não pode
passar ao lado das nossas emoções.

Questões de revisão
1. Segundo Hume, na ética a razão é meramente instrumental. O que quer isto dizer?
2. Por que pensa Hume que a ética não se baseia na razão?
3. Segundo Hume, como é que os nossos juízos morais se baseiam na emoção?
4. Segundo Kant, quando é que as nossas acções têm valor moral?
5. O que nos diz a fórmula da lei universal do imperativo categórico?
6. Para que serve o imperativo categórico?

Problemas
1. Há muitas pessoas que dizem coisas como “Não faças isso, senão Deus castiga-te”. Kant
aceitaria este tipo de justificação moral? Porquê?
2. Considera a máxima “Rouba o que desejas ter”. Será que esta máxima sobrevive ao teste
imposto pelo imperativo categórico? Porquê?
3. Numa perspectiva humiana, não é a razão que nos leva a condenar aqueles que roubam.
Sendo assim, por que julgamos, segundo essa perspectiva, que roubar é errado?
4. Recorda o diálogo sobre o imperativo categórico. 1) Por que razão pensa um dos
interlocutores que o imperativo categórico não conduz a deveres absolutos, como “Nunca
deves quebrar promessas” ou “Nunca deves roubar”? 2) Por que razão pensa esse interlocutor
que a ética não se pode basear apenas no imperativo categórico?
5. Imagina alguém que, depois de ler o que Kant afirma sobre quebrar promessas, diz o

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seguinte: “Afinal, no fundo, Kant é uma espécie de utilitarista! Ele acha que não devemos
quebrar promessas porque, se todos quebrassem as promessas que fazem, isso teria más
consequências, pois as pessoas deixariam de confiar umas nas outras. Ora, este é um
raciocínio utilitarista típico, orientado para as consequências das acções”. Será que quem diz
isto percebeu realmente o argumento de Kant contra quebrar promessas? Porquê?
6. Kant exprimiu o imperativo categórico tanto através da fórmula da lei universal como através
da fórmula do fim em si. Estas são aparentemente muito diferentes. Como se relacionam
entre si?

Pedro Galvão
A Arte de Pensar (Didáctica Editora, Lisboa, 2003)

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