Você está na página 1de 21

Uma Estética

Franciscana
Agostinho dos Remédios
Joaquim Ribeiro
John Naheten
Miguel Grilo

Trabalho elaborado no âmbito da disciplina


de Estética e Teorias da Arte leccionada pelo
Prof. Dr. Acácio Aguiar de Castro

Porto, 19 de Abril de 2011


Uma Estética Franciscana

ÍNDICE
INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 2

I – AS RAIZES DA ESTÉTICA FRANCISCANA ................................................................. 3

II - A ESTÉTICA EM SÃO FRANCISCO DE ASSIS ............................................................ 5


2.1 – A espiritualidade e a beleza ..................................................................................5
2.2 – A beleza da alegria ................................................................................................6
2.3 – A beleza do Crucificado .........................................................................................6

III – A ATITUDE DE SÃO FRANCISCO PERANTE A CRIAÇÃO ......................................... 8

IV – A ESTÉTICA EM SÃO BOAVENTURA .................................................................. 10


4.1 – Os transcendentais..............................................................................................10
4.2 – Categorias estéticas ............................................................................................11
4.3 – Mistério Trinitário ...............................................................................................11
4.4 – O exemplarismo ..................................................................................................11
4.5 – O corpo humano .................................................................................................12
4.6 – A Natureza...........................................................................................................12
4.7 – Conhecer a Deus pelas e nas Criaturas ...............................................................14

V – O CÂNTICO DAS CRIATURAS: A ESTÉTICA DO LOUVOR E DA BONDADE .............. 15

CONCLUSÃO ........................................................................................................... 19

BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................ 20

1
Uma Estética Franciscana

INTRODUÇÃO
Este trabalho foi realizado no âmbito da disciplina de Estética e Teorias da Arte,
sendo essa disciplina leccionada pelo Prof. Dr. Acácio Aguiar de Castro.
Devido ao nosso gosto e interesse pelo Franciscanismo, optámos por escolher e
desenvolver o tema da “Estética Franciscana”, de um modo especial no “Cântico das
Criaturas” de São Francisco. E, tendo nós já presente a espiritualidade franciscana para
a elaboração deste trabalho, optaremos por expor o tema de uma forma simples, mas
ao mesmo tempo clara e concisa.
Para isso, inicialmente, iremos fazer um apanhado geral da evolução da estética
que posteriormente virá a influenciar o pensamento franciscano. Assim, tornar-se-á
mais fácil compreender a estética Franciscana se tivermos em conta as suas raízes.
Depois procuraremos abordar a estética em São Francisco de Assis. Para isso
propomo-nos aprofundar a espiritualidade e a figura de Francisco, onde se destaca o
recurso a uma série de qualificativos, o chamar Deus por ‘Tu’ e também, através da
forma lírico-rapsódica, visualizar o mundo como algo de belo e maravilhoso. Do
mesmo modo, iremos dar ênfase à alegria de Francisco, sendo que a religião, para
Francisco, deverá ser vivida alegremente. Por fim, será também oportuno fazermos
uma breve referência à beleza nas chagas de Francisco, visto que a experiência feita
por Francisco com a impressão das chagas no monte Alverne faz parte do culminar da
sua espiritualidade e do seu crescimento espiritual, levando-o assim a que, no fim da
sua vida, seja capaz de cantar e mostrar a beleza da vida como graça.
Num capítulo posterior iremos abordar a atitude de São Francisco perante a
beleza da Criação. De facto, como iremos ver, a natureza amada e admirada por
Francisco traz nítidos traços da Sabedoria criadora e torna-se num itinerário de
ascensão a Deus, transformando toda a criação num hino de amor para o louvor do
seu Criador. Verdadeiramente Francisco irá experimentar Deus como beleza suprema
na medida em que se transcende a si mesmo e se deixa imergir n’Ele.
Após termos visto a estética em São Francisco, será oportuno procurarmos
entender a estética em São Boaventura, também ele da Ordem Francisca e o
sistematizador de uma doutrina do belo previamente vivida por Francisco. Até porque,
como mais tarde iremos referir, entre os grandes escolásticos, foi quem mais espaço
dedicou ao tema do belo e quem mais o ressaltou, servindo-se de estruturas
conceituais caracteristicamente novas. Por isso, em São Boaventura faremos
referência aos transcendentais, às categorias estéticas, ao Mistério Trinitário, ao
exemplarismo, ao corpo humano, à natureza, e ao conhecer a Deus pelas e nas
Criaturas. Por fim, num último capítulo, iremos debruçar-nos sobre o Cântico das
Criaturas, composto por São Francisco de Assis dois anos antes da morte, e
procuraremos ver nele a estética do louvor e da bondade.
Com este trabalho procuraremos então verificar qual o papel que desempenha
a estética de Deus, do Mundo e da Vida numa visão franciscana.

2
Uma Estética Franciscana

I - AS ‘RAIZES’ DA ESTÉTICA FRANCISCANA


Para melhor compreendermos a estética Franciscana é forçoso termos em
conta, ainda que muito ao de leve, a evolução da estética até então, é necessário
compreendermos as suas raízes. De facto, a estética é algo bastante remoto, pelo que,
somente tendo em conta a evolução da noção de estética, poderemos compreender a
estética franciscana, ainda que esta se vá distinguir das anteriores.

Na Idade Medieval não existia um tratado explícito sobre a estética. Porém


existia um profundo sentido da beleza, que dependia do pensamento filosófico grego
para a exposição de suas teses. Isto significa que o conceito medieval de beleza torna-
se compreensível somente a partir do horizonte grego e não do conceito moderno de
estética como filosofia da arte.
Há diversos tipos de estética que dependem do seu objecto formal e das
diversas perspectivas desde as quais se interpreta o belo e que podem reduzir-se a três
modelos:

Estética ontológica – considera a arte em si mesma, com valores intrínsecos e sem


relação ao sujeito que a contempla.

Estética anímica – que interpreta a arte e o belo como experiência anímica. O seu
estudo e a sua valorização estão em relação com a própria vivência e o aspecto
psicológico.

Estética cientifica – em que o estudo do belo se converte em filosofia ou ciência da


arte em puro valor cultural.

As três grandes categorias estéticas da filosofia grega que marcam a Idade


Medieval são:

1. Proporção ou harmonia;
2. Luz ou claridade;
3. Plenitude do ser.

As duas primeiras correspondem à corrente Platónico-Agostiniana e a última à


corrente aristotélica.
Foi Platão com a sua concepção de beleza quem mais influenciou os
pensadores medievais que trataram das categorias estéticas. No tratado “Filebo”
salienta-se a beleza enquanto medida e proporção, estando intrinsecamente ligado
com a harmonia. No “Banquete” chega-se à beleza mediante o amor. Este consiste na
superação de si mesmo em busca da beleza suprema. A filosofia da arte em Platão é o
próprio pensamento da transcendência. A beleza não se dá nesta vida nem aqui em
baixo, encontra-se acima e mais além deste mundo.

3
Uma Estética Franciscana
Plotino, séculos mais tarde e na sequencia de Platão, definiu a beleza pela
unidade, a forma pura e a ordem. A beleza dos seres caracteriza-se pela medida e
simetria. A vida é forma e a forma é beleza. Por outro lado, o amor é sempre o amor
da beleza suprema e absoluta. Distinguem-se assim 3 caminhos para chegar à verdade:
o caminho do Musico (arte), do amante (amor) e do metafísico (pensamento).
Santo Agostinho seguirá as linhas de pensamento neoplatónicas com grande
incidência no pensamento medieval.
Os pensadores medievais eram filósofos e teólogos ao mesmo tempo e a sua
grande preocupação foi Teocêntrica. Não há verdades solitárias, todos os problemas
são concêntricos. No horizonte mundano, a beleza e o esplendor dos seres visíveis são
a epifania e revelação do seu autor. Deus esconde-se radiante na natureza, manifesta-
se soberano na revelação e faz-se história esplendorosa na encarnação de Jesus Cristo.
A dimensão teológica encarna-se no existencial, traduz-se no ético e manifesta-
se no estético.
Tanto na experiencia religiosa franciscana como na sistematização da sua
doutrina, o franciscanismo está persuadido de que só uma teologia bela é capaz de
expressar profundamente o esplendor e a majestade da acção criadora de Deus no
Mundo. Para demonstrar se a teologia franciscana possui uma estética própria, não é
suficiente buscar e amontoar textos que falem explicitamente da beleza, pois essa
categoria pode estar oculta ou contida em outras formas expressivas similares,
parecidas, igualmente significativas.
A demonstração clara de uma estética teológica emerge do próprio coração do
sistema, da sua visão específica e da forma existencial que produz. Uma atitude
teológica pode estar formulada explicitamente ou revestir-se com linguagem simbólica
e manifestar-se com gestos e comportamentos significativos que exteriorizam uma
concepção bela do mundo e da vida.
O franciscanismo, como iremos ver, contém a sua visão peculiar da beleza,
expressa e articulada na profunda convicção de Deus Trinitário como beleza e da
criação enquanto manifestação bela do seu autor.

4
Uma Estética Franciscana

II - A ESTÉTICA EM SÃO FRANCISCO DE ASSIS


A ‘filosofia’ de São Francisco consistia em seguir o Mestre, buscando sempre as
coisas mais perfeitas, interrogando para isso sábios simples. Para ele, a verdadeira
filosofia é a santa simplicidade, que coloca o amor de Deus em primeiro lugar e os
valores do Espírito acima de toda a razão, sabedoria e ciência humanas. A única
filosofia de Francisco consiste em ouvir com simplicidade o Evangelho e vivê-lo com a
mesma simplicidade.
Francisco não é nem teólogo, nem filósofo, segundo o uso comum deste e
outros termos abstractos, até porque o seu horizonte nunca se pautou nos moldes da
mentalidade materialista de então e de sempre.
Por conseguinte, é inútil pretender encontrar nele um sistema doutrinal
articulado. Era um simples cristão que viveu com tal intensidade a essência do
cristianismo e encarnou tão singularmente a utopia evangélica de Jesus Cristo, que da
sua experiencia original se inspira, brota e emerge uma teoria ou uma doutrina
peculiar. Nele destaca-se um comportamento vital e existencial que pode traduzir-se
em termos teológicos e estéticos. Francisco vive a existência como graça e gratuidade,
manifestando uma atitude estética através dos gestos que expressam a certeza da
presença de Deus no mundo como autor, sumo bem e beleza.
Assim como há uma estética da palavra, há também uma estética dos gestos,
pois estes também são linguagem e contêm significado. Frequentemente um gesto é
muito mais significativo que um discurso, porque mediante o comportamento se
transmite uma atitude e uma convicção. Como exemplo, verificamos que para a
compreensão de fundo de uma epopeia nem sempre o pintor ou escritor o consegue
melhor que o actor ou intérprete. De facto, as artes reproduzem; por seu lado o
homem encarna.
A razão de Francisco não é especulativa, nem analítica nem dialéctica. É uma
razão intuitiva, contemplativa, mística. Razão e estética que se manifesta numa atitude
lúdica. Ele exprime-se muito em gestos, porque está convencido de que só assim pode
expressar a presença bela e gozosa de Deus que o habita.

2.1 – A espiritualidade e a beleza

O horizonte espiritual em que Francisco se move é luminoso e belo. Há um


texto essencial que revela a interioridade do santo quando, ao dirigir-se a Deus belo na
espontaneidade da oração1, diz: ‘Tu és formosura!’, aplicando-lhe de seguida uma série
de qualificativos de grande ressonância estética e com reiterada insistência do
pronome pessoal ‘Tu’.

1
Cf. LD 1-5.

5
Uma Estética Franciscana
Nas duas cartas que dirige a todos os fiéis, transmite a sua própria convicção
com esta grande expressão de confiança: “Oh, quão glorioso é ter no céu um Pai santo
e Grande! Oh, quão santo é ter um tal esposo, consolador, formoso e admirável!” 2
Para Francisco, Deus é presença iluminadora e radiante, da qual decide ser
testemunho gozoso.
No cântico das criaturas3, toda a natureza se reveste de grande esplendor e
beleza para ressaltar a “Gloria e a Honra” do “Altíssimo, Omnipotente e bom Senhor”.
O Sol “é belo e radiante com grande esplendor”. A lua e as estrelas são “preciosas e
belas”. O fogo “é belo e alegre”. Inclusive as ervas e as flores do campo estão cheias de
frutos e de cores. Tanto o universo religioso como o mundo natural são belos,
radiantes e alegres. Este cântico consegue oferecer-nos uma imagem bela do mundo,
da vida e da religião de uma forma lírico-rapsódica. Encontramo-nos com uma estética
vivida, celebrada e cantada como expressão desse homem capaz de habitar no mundo
como em seu lar aconchegante e familiar.

2.2 – A beleza da alegria

A religião para Francisco é bela, alegre e vive-a com grande gozo e regozijo. Os
seus biógrafos sublinham a sua alegria, jovialidade e capacidade de celebrar a mesma
vida. Gostava de representar, encenar, fazer viva a mesma vida e expressá-la com as
mais vivas cores, recorrendo para isso a todos os meios que favoreciam a imaginação,
a fantasia e o mistério.
Vivia com inusitada intensidade a própria existência, aberto a todas as
dimensões, sem ficar preso a nenhuma delas. Passava da fantasia à realidade, da
realidade ao sonho, da diversão á penitência, do canto ao silêncio, da solidão à
companhia, do mundo a Deus, do Criador às criaturas. Neste ir sereno e gozoso de
uma realidade a outra é onde se expressa a experiência estética da vida.
A alegria de Francisco é a expressão espontânea da sua atitude festiva, porém,
o seu apoio e justificação estão na transcendência, em Deus, como fonte gozosa e
destino belo da existência.
E como homem de fé, descobre a beleza da vida, não só no positivo, mas
também no negativo, assumido como dimensão do nosso próprio limite existencial.

2.3 – A beleza do Crucificado

A experiencia primordial e suprema de Francisco é consumada com a impressão


das chagas no Monte Alverne. O calvário pode apresentar-se e aparecer como o
obscuro divino, a negação da beleza de Deus como se a beleza se tivesse escondido.
2
1CF 11-13; 2CF 54-56.
3
Mais adiante no trabalho iremos debruçar-nos mais a fundo sobre este cântico.

6
Uma Estética Franciscana
De facto, “há muitos que amam a beleza, mas a beleza não está nas coisas
exteriores, que são só imagem; a verdadeira beleza encontra-se na beleza da
sabedoria”. A beleza da sabedoria mostra-se a Francisco em forma de serafim
crucificado. Aqui se verifica a singular estética da expressio e impressio.
A Imagem do crucificado que se expressa e se expõe à contemplação, torna-se
sujeito activo que imprime as suas próprias marcas (estigmas) em quem a contempla,
transformando o contemplativo em expressão do próprio contemplado. Tendo
alcançado a beleza da vida, convertendo-a num ars vivendi, irá concluí-la com um
prodigioso ars moriendi, cantando e mostrando a beleza da vida como graça.
Francisco criou com a sua vida os melhores pressupostos para uma estética
existencial que poderá traduzir-se em linguagem teológica, artística e literária, como
demonstrará depois a história da cultura e da arte. Ele soube mostrar-nos, de uma
forma formidável, a santidade como beleza e a beleza como santidade. Inspirou aos
pensadores da sua Ordem uma teologia bela e uma peculiar estética da existência
porque imprimiu em seus corações e suas mentes a feliz conjugação entre santidade,
sabedoria e arte.

7
Uma Estética Franciscana

III – A ATITUDE DE SÃO FRANCISCO PERANTE A CRIAÇÃO

O biógrafo Celano descreve com grande realismo a atitude do santo de Assis


ante o espectáculo belo da natureza:
“Em todas as criaturas Francisco cantava o Artífice; tudo o que nelas via o referia ao
Criador. Exultava de alegria com todas as obras saídas da mão de Deus e, através desta
visão letificante, remontava-se Àquele que é a causa e o princípio que lhes dá vida. Nas
coisas belas reconhecia a suprema beleza, pois a todas ele ouvia proclamar: «Quem
nos criou é infinitamente bom». Pelas marcas impressas na natureza, seguia ao
encontro do Amado e de tudo se servia para subir ao seu trono.”4

A natureza amada e admirada por Francisco traz nítidos traços da sabedoria


criadora e torna-se itinerário de ascensão a Deus, transformando para isso toda a
criação num hino de amor para o louvor do seu Criador. Francisco reveste a criação de
jovialidade renovando-a com a pureza de seu olhar e livre de tudo, conservando-a
como ‘Imagem de Deus’ em sua soberana dignidade de criatura.

“Totalmente absorto no amor de Deus, S. Francisco vislumbrava perfeitamente a


bondade divina não só no interior da sua alma já adornada da perfeição das virtudes,
mas também em todas as criaturas, a que ele devotava um singular e entranhado
amor, principalmente àquelas nas quais via a representação de alguma coisa referente
a Deus ou à religião.”5

Francisco instaura uma relação nova com a criação. Não quer possuir as
criaturas ou dominá-las, mas chama-as pelo nome, convidando-as a render louvores a
Deus, que as revestiu de beleza e de bondade. Francisco não deseja as criaturas como
objecto de prazer ou de poder, mas admira-as como obra de Deus e liberta-as do
gemido de suas prisões.
São Boaventura retoma a atitude de Francisco diante da natureza e desenvolve
teologicamente a sua visão de fé:

“Solicitado por tudo e por todos ao amor de Deus, exultava em todas as obras saídas
das mãos de Deus, e rejubilando de alegria na presença das criaturas, subia por meio
delas até àquela que é a causa e a razão vivificante do Universo. Nas coisas belas via a
beleza suprema do Criador, e pelas pegadas que ele deixara impressas nas coisas, ia
seguindo o Bem-amado, de tudo se servindo como escada para subir e chegar àquele
que é todo desejável. No inefável impulso de devoção, percebia a bondade infinita de
Deus em cada uma das criaturas como em Arroios que brotassem daquela nascente
inesgotável. Nas propriedades dos seres e nas suas interacções descobria como que
um concerto harmonioso e celeste, que o levava a exortar a todos, como fazia o
Profeta David, a cantar os louvores do Senhor.”6

“No nada da pobreza, tudo se torna para o homem um dom que ultrapassa a
existência e, se alguém se torna pobre por amor de Deus, assim o faz para poder

4
2C 165.
5
EP 113.
6
LM 9,1.

8
Uma Estética Franciscana
acolher todas as coisas como presentes de Deus, porque reconhece em todas as coisas
verdadeiramente um generoso presente de seu amor […] O Cântico do irmão Sol é
louvor que se faz mediante a natureza e juntamente com ela. A regra originária é mais
radical insistindo nesta atitude de louvor e simplicidade de todos os frades e depois
também da Igreja e ainda da humanidade tomada em seu todo.”7

No louvor das criaturas, toda a criação atinge a sua máxima realização e alcança
a sua mais perfeita expressão, porque o louvor está inserido na bênção de Deus que dá
a existência a tudo e que se completa somente quando este dom é acolhido por um
coração cheio de amor e restituído ao magnânimo doador ‘na santa caridade que é
Deus’.
Para Francisco, tudo atinge a plenitude no Tu divino. Ele mesmo torna-se
bênção não só para Frei leão, mas para toda a criação.
Todas as criaturas transformam-se em notas vibrantes que possibilitam a
composição do Cântico de Francisco.

“O amor de Francisco pelas criaturas está impregnado de um desejo que faz com que
ele transcenda a própria criatura: ama a luz, mas como reflexo da Luz eterna; ama a
vida, mas como imagem da Vida divina; ama o belo, mas como sombra da Beleza sem
mácula que é Deus.”8

Na verdade do seu corpo humano, toda a criação tende a harmonizar-se com a


beleza eterna da Arte eterna que é Jesus Cristo.
Francisco experimenta Deus como beleza suprema na medida em que se
transcende a si mesmo e se deixa imergir n’Ele, em admiração e êxtase, mas vê uma
forma de divina beleza também no crucifixo de São Damião e, por fim, em si mesmo
crucificado, bem como em todas as coisas criadas, nas quais ela está estampada.
Por isso, através das criaturas, busca o belíssimo, pois contempla nas coisas o
Deus que as possui e plenifica. Parte daí a sua admiração estática diante da
maravilhosa obra do grande Artista, pois o mundo é o espelho claro da beleza e
bondade de Deus. ‘Tu és beleza’ é um dos títulos singulares que Francisco atribui a
Deus. A dimensão estética da religiosidade e humanidade de Francisco, que canta a
beleza de Deus e depois para ela se volta gozando-a em todas as coisas nas quais ela se
irradia, encontra as suas raízes na vida interior e no Espírito.

7
VON BALTHASAR, Hans Urs – Nello spazio della Metafísica: l’Antichità. Glória, Una estetica teologica.
Volume IV. [s.n.], Jaca Book, 1977, p. 342-343.
8
CICCARELLI, V. – I capisaldi della spiritualità francescana. Benevento, [s.n.], 1959, p. 417.

9
Uma Estética Franciscana

IV – A ESTÉTICA EM SÃO BOAVENTURA


São Boaventura, entre os grandes escolásticos, foi quem mais espaço dedicou
ao tema do belo e quem mais o ressaltou9, servindo-se de estruturas conceituais
caracteristicamente novas. O ponto de vista estético unifica a ontologia, a
epistemologia e a metafísica boaventuriana, dando uma percepção estética universal
de toda a realidade.

4.1 – Os transcendentais
São Boaventura não oferece uma doutrina articulada sobre estética, pois não
escreveu um tratado particular sobre ela. Ele apresenta unidos os três transcendentais
primários da metafísica tradicional como explicitações universais do ser: unum, verum
e bonum; porque ele pensa em termos triádico-trinitários. A dimensão estética é o
horizonte luminoso e hermenêutico de Boaventura. O belo é uma propriedade
transcendental de todo o ser, necessariamente ligado ao uno, ao verdadeiro e ao bom.
Em Boaventura entrelaçam-se filosofia, teologia e mística, num sistema unitário
e compacto dificilmente superável em harmonia e beleza. É um dialéctico da síntese
mais do que da antítese e da análise pura, seguindo o ensinamento platónico de que o
homem é sábio quando consegue uma visão sinóptica da realidade. Conjuga
genialmente o conceptual, o figurativo e o afectivo, conseguindo com isso uma
expressão estética dificilmente superável.
Seguindo Santo Agostinho, define a beleza como “igualdade numerosa”, ou
também “certa acomodação das partes acompanhada da suavidade da cor”. A beleza
consiste na ordem, pelo que a apreensão da ordem leva ao deleite.
“O sentido deleita-se no objecto, percebido mediante a sua semelhança abstracta, ou
por razão de formosura, como na visão; ou por razão de suavidade, como no olfacto e
na audição; ou por razão de salubridade, como no gosto e no tacto. Se a deleitação
existe deve-se à causa da proporção.”10
A beleza enquanto ‘suavidade da cor’ aplica-se só à beleza sensível, porém
enquanto ‘igualdade numerosa’ é aplicável a todo o belo, tanto material como
espiritual. A beleza material deleita certamente, porém não satisfaz e impele a ir mais
além dela até alcançar a origem da suprema beleza, que é Deus, seguindo a dialéctica
neoplatónica e agostiniana.
A sua teologia está elaborada na base do anima simplex de Francisco e da sua visão
optimista e bela de Deus, do mundo e da vida.

9
Segundo Von Balthasar.
10
Itin. Cap. 2, Nº5.

10
Uma Estética Franciscana
4.2 – Categorias Estéticas

Deus é inefável e insondável em seus desígnios que produzem admiração,


desconcerto e surpresa. A sabedoria insondável é também ‘sabedoria amorosa’.
Quanto mais se aproxima de Deus, mais intensa é a experiência da beleza. Em
Boaventura, os grandes mistérios expressam-se com categorias estéticas. Só os
espíritos profundos, que têm purificada a raiz da sua visão, são capazes de gozar do
universo harmónico e belo que os rodeia.
A estética boaventuriana aparece em seu esplendor, força e harmonia ao tratar
de Deus como trindade de pessoas inter-relacionadas em perfeita sintonia, onde a
força vinculante é o amor.
O amor não é somente força expansiva, mas também sinónimo de plenitude
existencial. Deus não seria infinito se não possuísse gozo supremo, alegria ilimitada e
beleza absoluta que, em categorias humanas, são simbolizadas pelo amor. Boaventura
acentua que Deus é Amor, não só por motivos de fé, mas também por motivos
existenciais. O conceito utópico de fraternidade proclamado por Francisco de Assis é a
arqueologia fundante e o logos tácito no pensamento boaventuriano.

4.3 – Mistério Trinitário

Quem não penetre no Mistério Trinitário, como causa criadora, não será capaz
de compreender o enigma nem a beleza da criação.
De facto, as pessoas trinitárias são boas e, precisamente por isso, são
comunicáveis, consubstanciais, co-iguais e co-íntimas. Nesta singular comunidade
existe uma profunda comunicação, íntima convivência, forte solidariedade, igualdade e
comparticipação totais, infinitas delícias e ilimitadas alegrias. Intensas relações
interpessoais que expressam fecundidade, alegria, harmonia e beleza.
O amor tem uma visão muito própria da realidade; e o amor trinitário é luz que
descobre e revela o horizonte transparente da existência comunitária.
O conceito boaventuriano de beleza compreende-se dentro de uma metafísica
do amor de uma ontologia de expressão. O verbo incriado e encarnado é a arte
suprema e a razão determinante para uma estética do ser infinito e do ser finito.

4.4 – O exemplarismo

O sistema boaventuriano fundamenta-se no exemplarismo. A posição


exemplarista é a chave de compreensão da sua articulação sistemática. O verdadeiro
segredo do exemplarismo consiste no tríplice conhecimento: o conhecimento do verbo
incriado, por quem são produzidas todas as coisas; o conhecimento do verbo
encarnado, por quem são reparadas todas as coisas; o conhecimento do verbo
inspirado, por quem são reveladas todas as coisas.

11
Uma Estética Franciscana
O exemplarismo é a doutrina das relações de expressão que existem entre as
criaturas tal como são em si mesmas e como são em Deus ou no Verbo. As coisas estão
em Deus como ideias exemplares.
O pensamento boaventuriano analisa não somente a estrutura dos seres, mas
oferece também uma ontologia do significado e da expressão enquanto interpreta o
mundo como linguagem e em chave simbólica e referencial. Segundo o exemplarismo,
as criaturas são, sobretudo, espelho onde se reflectem e se explanam as percepções
divinas de um modo hierarquizado. Os atributos divinos de unidade, verdade, bondade
e beleza manifestam-se nas criaturas segundo a sua participação na escala do ser.

4.5 – O corpo humano

O corpo humano é o ponto de chegada do impulso progressivo e dinâmico das


realidades materiais mais elementares e primárias. É o fruto maduro do universo
sensível.
De facto, “grande é a dignidade do corpo pela admirável harmonia e conjunção
proporcionada das suas partes. Por ela, ainda que sendo uma criatura terrena, o corpo
humano assemelha-se às naturezas celestes”11.

“Para que no mesmo homem se manifestasse a sabedoria de Deus, fez de tal forma o
corpo que a seu modo tivesse proporção com a alma. Para conformar-se a alma como
motora pela variedade de potências, teve diversidade de órgãos com suma beleza,
artificio e ductilidade; como se manifesta no rosto e na mão, que é o órgão por
excelência. Para que se conformasse a alma com tendência para cima, teve
verticalidade de posição e a cabeça levantada para cima, para que assim a direcção do
corpo ateste a rectitude mental.”12

Toda a pessoa humana – alma e corpo – participa da bondade e beleza dos


dons supremos.
Por esta linha de pensamento, Boaventura supera o dualismo corpo/alma que
caracteriza o pensamento grego. A pessoa humana enquanto realidade corporal é
expressão dessa outra dimensão do ser humano a que chama alma. A beleza da alma
manifesta-se corporalmente na mesma pessoa humana enquanto corpo.

4.6 – A Natureza
Se o homem é a coroação do devir cósmico, Cristo é o culminar do
desenvolvimento histórico, dando-se deste modo uma conjunção perfeita entre o
mundo natural e o mundo divino mediante o homem.

11
II Sent. d.17 a.2 q.2 ad6.
12
Brev. p.2 c.10.

12
Uma Estética Franciscana
“O universo cristão, pelas suas dimensões e também pela intensidade da crença,
tornara-se, para aquele tempo, a mais lídima expressão do universo natural. É
certamente o mundo da cultura a sobrepor-se ao da natureza. Boaventura sabe que a
arte não pode acrescentar nada de essencial à natureza, mas será muito difícil ao
homem não reduzir o que é considerado natural a um esquema de elaboração cultural.
A descoberta da natureza processar-se-á através da cultura. O asserto é ainda mais
justo se dermos à palavra natureza um significado o mais lato possível, nunca o
reduzindo à sua dimensão cosmológica. Assim, a vida do homem – a questão mais
importante – realizar-se-á, sob o ponto de vista da natureza, através da cultura. O
homem cristão, na plena consciência de seus ideais, era, para o pensador do século
XIII, o ideal de toda a humanidade.”13

Se toda a Natureza se orienta para o homem, este orienta-se para Cristo, no


qual caminham o mundo natural e a história. Todas as realidades, divinas e humanas,
sincronizam-se num projecto convergente de finalidades. Através de Cristo, o homem
da história adquire o seu pleno sentido e suma beleza, pois Ele embeleza todo o
mundo; torna as coisas disformes em belas; as belas em mais belas e as mais belas em
belíssimas.
Boaventura insiste constantemente no tema da beleza quando fala de Deus, de
Jesus Cristo, da Igreja, do Homem e da Natureza. A beleza não se apresenta como algo
exterior que advém aos seres, mas sim como algo intrínseco que brota deles mesmos.
É uma pertença ontológica dos seres como o são a unidade, a bondade e a verdade. Na
manifestação e esplendor da beleza percebe-se um fundo de gratuidade, liberdade,
desinteresse e luminosidade que convidam o contemplativo a admirar, a participar e a
celebrar, como fez Francisco com o Cântico das Criaturas. De facto, a criação é arte
divina, pelo que esta constitui o fundamento da própria natureza.
Por vezes, interpreta-se este conceito de arte em sentido passivo, visto esta
não passar de uma imitação da natureza, carecendo de valor intrínseco. Porém, São
Boaventura vê não só nas ideias eternas as normas das coisas, como ainda do que é
executado pelo homem. Além disso, o que o homem imita não é natureza mas o seu
exemplar, de riqueza inesgotável14.
De facto as coisas mostram e demonstram a sua gratuidade, porque são
vestígio e cópia da beleza Trinitária. A beleza também constrói comunidade e convida
ao respeito, à gratuidade e à celebração.
O acto supremo do entendimento é um acto estético. A estética não se reduz a
uma simples disciplina ou a uma ciência da arte mas é uma forma bela de interpretar a
vida e de habitar no mundo.

13
GONÇALVES, Joaquim Cerqueira – Homem e Mundo em São Boaventura. Braga: Gulbenkian, 1970,
pp.31-32.
14
Cf. GONÇALVES, Joaquim Cerqueira – Homem e Mundo em São Boaventura, p.32.

13
Uma Estética Franciscana
4.7 – Conhecer a Deus pelas e nas Criaturas

O ser humano, porque é essencialmente imagem, só pode ser alimentado pela


mediação divina, enquanto princípio, meio e fim de toda a actividade15.
A experiência mediadora do espírito humano coincide com a dinâmica da
mediação ontológica e esta aponta o rumo da mediação transcendente, da qual
participa o homem e o mundo. Será então, num processo mediador que o homem se
eleva à Transcendência16.
Para São Boaventura não basta a afirmação da existência de Deus. Importa
também saber como Deus é (quid sit), pois só desse modo será viável traçar um
estatuto metafísico para todas e cada uma das criaturas.
Para Boaventura, a existência de Deus não constitui um problema. Só O não vê
quem não vive segundo as exigências de sua natureza espiritual. Esta, desde que não
abdique da sua capacidade expressiva, encontra-se necessariamente com a realidade
divina. Com efeito, o homem não se engana relativamente à existência de Deus,
duvidando dela apenas quando deforma a Sua essência. Portanto, todo o problema de
acesso à Divindade incidirá sobre a essência e não sobre a existência17.
Nesse sentido, São Boaventura apresenta-nos dois modos de conhecer a Deus:
pelas (per) criaturas e nas (in) criaturas.
São Boaventura favorece o segundo processo – cognoscere in creaturis –
atribuindo-o aos bem-aventurados, embora no estado presente o homem também
dele possa desfrutar, em forma atenuada – semiplene. O acesso a Deus pelas (per)
criaturas está mais próximo do conhecimento discursivo do que o modo de O
compreender nas (in) criaturas, onde parece haver uma espécie de visão18.
Para São Boaventura, inspirado por Santo Agostinho, as criaturas (res) são
verdadeiros sinais (signa), carregadas de um significado ôntico muito semelhante ao
do símbolo, que é uma verdadeira teofania19.
Porém, “o facto de se distinguir essas duas formas de conhecimento – nas e
pelas criaturas – não obriga a contrastar raciocínio e contemplação. Dir-se-ia que todo
o conhecimento humano é simultaneamente discurso e visão, quer tenha por objecto
a realidade criada quer a divina”20.

15
Cf. GONÇALVES, Joaquim Cerqueira – Homem e Mundo em São Boaventura, p. 373.
16
Cf. GONÇALVES, Joaquim Cerqueira – Homem e Mundo em São Boaventura, pp. 374-375.
17
Cf. GONÇALVES, Joaquim Cerqueira – Homem e Mundo em São Boaventura, p. 380.
18
Cf. GONÇALVES, Joaquim Cerqueira – Homem e Mundo em São Boaventura, p. 382.
19
Cf. GONÇALVES, Joaquim Cerqueira – Homem e Mundo em São Boaventura, p. 384.
20
GONÇALVES, Joaquim Cerqueira – Homem e Mundo em São Boaventura, pp. 384-385.

14
Uma Estética Franciscana

V – O CÂNTICO DAS CRIATURAS:


A ESTÉTICA DO LOUVOR E DA BONDADE
Por detrás do modo de Francisco cantar, seja litúrgico ou popular, está como
pano de fundo o tema básico do louvor. Esse louvor brota da estupefacção diante da
obra de Deus. Para se ter uma ideia do canto para Francisco, basta recordar a seguinte
oração de Francisco:

“Nada mais desejemos, nada mais queiramos, nada mais nos agrade e deleite senão o
nosso Criador e Redentor e Salvador, o só Deus verdadeiro, que é a plenitude do bem,
todo o bem, o bem completo, o verdadeiro e sumo bem; ele, o único que é bom,
misericordioso e manso, suave e doce; o único que é santo, justo, verdadeiro e recto; o
único que é benigno, inocente e puro; de quem, por quem nos vem e em quem está
todo o perdão, toda a graça, toda a glória dos penitentes e justos, e dos bem-
aventurados do céu.”21

Nesta oração estão presentes todas as suas preocupações pessoais. Mas a visão
de Francisco dilata-se atingindo as dimensões do mundo e do desígnio de Deus. A
prece revela um Francisco completamente orientado na direcção de Deus. O seu canto
é dirigido ao Pai por meio do Filho no Espírito Santo envolvendo nele o destino do
mundo.
Se o capítulo 23 da Regra de 1221 é o canto do Amor que salva, o Cântico das
Criaturas é o canto do homem salvo e reconciliado com todas as coisas. Este cântico,
chamado também de Cântico do irmão Sol, é a obra mais célebre de São Francisco de
Assis. Composto em vernáculo, quase meio século antes do nascimento de Dante, é
considerado a mais antiga e mais preciosa pérola da poesia italiana.

Cântico das Criaturas22


Altíssimo, omnipotente, bom Senhor,
a ti o louvor, a glória,
a honra e toda a bênção.
A ti só, Altíssimo, se hão-de prestar
e nenhum homem é digno de te nomear.

Louvado sejas, ó meu Senhor,


com todas as tuas criaturas,
especialmente o meu senhor irmão Sol,
o qual faz o dia e por ele nos alumias.
E ele é belo e radiante,
com grande esplendor:
de ti, Altíssimo, nos dá ele a imagem.

21
1R 23,9.
22
Cântico composto por São Francisco no inverno de 1224-1225.

15
Uma Estética Franciscana
Louvado sejas, ó meu Senhor,
pela irmã Lua e as Estrelas:
no céu as acendeste, claras, e preciosas e belas.

Louvado sejas, ó meu Senhor,


pelo irmão Vento
e pelo Ar, e Nuvens, e Sereno,
e todo o tempo,
por quem dás às tuas criaturas o sustento.

Louvado sejas, ó meu Senhor, pela irmã Água,


que é tão útil e humilde, e preciosa e casta.

Louvado sejas, ó meu Senhor,


pelo irmão Fogo,
pelo qual alumias a noite:
e ele é belo, e jucundo, e robusto e forte.

Louvado sejas, ó meu Senhor,


pela nossa irmã a mãe Terra,
que nos sustenta e governa,
e produz variados frutos,
com flores coloridas, e verduras.

Louvado sejas, ó meu Senhor,


por aqueles que perdoam por teu amor
e suportam enfermidades e tribulações.
Bem-aventurados aqueles
que as suportam em paz,
pois por ti, Altíssimo, serão coroados.

Louvado sejas, ó meu Senhor,


por nossa irmã a Morte corporal,
à qual nenhum homem vivente pode escapar.
Ai daqueles que morrem em pecado mortal!
Bem-aventurados aqueles
que cumpriram a tua santíssima vontade,
porque a segunda morte não lhes fará mal.

Louvai e bendizei a meu Senhor,


e dai-lhe graças
e servi-o com grande humildade.

O Cântico chama a atenção pela sua profunda inspiração. Composto no


momento do sofrimento e às vésperas da morte, exprime uma profunda e
entusiasmada adesão ao mundo, bem como à própria matéria; é um ‘sim’ ao
esplendor do universo, afirmação do valor dos seres e das coisas, que todos
recebemos no universo e que nos vieram das mãos do Criador.
16
Uma Estética Franciscana
A primeira estrofe exprime um amplo louvor, todo orientado na direcção do
Altíssimo. O Deus que Francisco se propõe a louvar não é um espírito qualquer que
anima o mundo, mas o Deus transcendente, de forma inefável, que está acima de tudo
quanto existe e cujo “nome homem algum é digno de mencionar”.
Não é de admirar que, no final da primeira estrofe, o canto enverede para o
silêncio da contemplação. O olhar de Francisco parece ter-se distanciado da terra. Mas
este esforço vertical conjuga-se a um movimento de comunhão com todas as criaturas.
Unindo-se aos seres e às coisas deste mundo, Francisco deseja pronunciar o louvor do
Altíssimo. Precisamente neste ponto está a originalidade do seu cântico. Enquanto
diversos místicos, inebriados no seu impulso interior, colocaram-se acima da criação
material com soberbo desdém, pensando poderem exaltar a Deus e menosprezar as
coisas criadas, Francisco, ao contrário, achega-se às criaturas com humildade e
encantamento, considerando-as belíssimas. Desta forma, o seu louvor do Altíssimo
será também o louvor das criaturas, através do qual exprimirá o seu fascínio pelo
mundo.
Este louvor das criaturas inspira-se nos salmos e nos cânticos da Bíblia,
principalmente no cântico dos três jovens na fornalha. Porem, Francisco confraterniza-
se com as criaturas, com os próprios elementos materiais. Não os chama somente de
‘irmão’ ou ‘irmã’, mas prova realmente ter sentimentos fraternos para com eles (Cf.
2Cel 165).
Qual o significado desta fraternidade cósmica? Certamente não está na linha da
estima ou do antropomorfismo. A sua fraternidade está fundada no sentido da
paternidade universal de Deus (Cf. LM 8,6). Por isso é que Francisco, com acentuado
senso teológico, falava do sol, das estrelas, do vento, da água, do fogo… como se
fossem seus irmãos e suas irmãs. A seus olhos um único impulso de amor gerava todos
os seres e criava entre eles laços de estreito parentesco (Cf. LM 9,1). Tal intuição fazia
nascer nele simpatia e ternura universais, que eram como eco do próprio amor
criador.
Todos os elementos materiais com os quais Francisco se confraterniza no seu
cântico são qualificados e avaliados com discrição e profundidade. Francisco não
somente confraterniza com os elementos, mas também com os seus valores mais
íntimos, que ele projecta no seu inconsciente, sendo estes reflexo da sua vida interior.
Sob este prisma, o Cântico assume uma dimensão profunda. Nele o homem
está envolvido por todos os lados. As imagens poéticas do sol, da água, do vento, do
fogo e da terra sempre foram linguagem simbólica das grandes forças afectivas e
fantasiosas. Celebrando o mundo, o poeta manifesta o sonho profundo do homem. De
facto está exprimindo um segredo que a natureza lhe revela.
Ao ouvirmos Francisco a cantar os elementos da criação, estamos escutando
simultaneamente o seu sonho profundo. O seu Cântico do irmão Sol é o canto das
fontes íntimas que chegam à luz. Observe-se que neste cântico, todos os elementos
aparecem destituídos de seu carácter temível ou destruidor: o vento sopra sem

17
Uma Estética Franciscana
devastar, o fogo crepita sem queimar, a agua não afoga. Um mundo assim, sem
perigos mas fraterno e maravilhoso, pode parecer ilídico e ingénuo. Esta visão, porém,
tem um sentido mais profundo. Reflecte uma purificação interior capaz de impregnar
de luz todos os impulsos naturais, espiritualizando-os, despindo-os de todo o amor-
próprio que pode corrompê-los.
Assim, chegamos ao sentido último do Cântico do irmão Sol: a vida espiritual
não consiste em ver a natureza renegada, mas transfigurada; transfigurada até no
homem, nas suas forças mais obscuras, mas que se iluminam a partir do interior. O
Cântico das Criaturas é o canto do homem plenamente reconciliado consigo mesmo,
com a natureza, com os seus semelhantes e com o próprio Deus. Não terá sido por
acaso que Francisco acrescentou uma estrofe ao louvor das criaturas para cantar o
perdão e a paz.
Finalmente, a própria morte não apavorou Francisco. Quando descobriu, pela
boca do médico, que lhe restavam apenas alguns dias de vida, compôs então a última
estrofe na qual canta à irmã Morte da mesma maneira como canta ao irmão Sol. A
mesma luz que para ele tinha sido esplendor do Sol, vê agora brilhar na irmã Morte.
Percebemos então que toda a vida de Francisco se exprime através do Cântico
das Criaturas. O seu cantar é o canto do homem salvo na sua totalidade, de tal modo
unido a Deus, que pode aplacar todos os conflitos que dividem a consciência comum. A
sua visão do mundo permite que nos apercebamos daquilo em que Francisco se tinha
tornado: um ser inteiramente luminoso, penetrado e renovado pelo Espírito de Deus
até às raízes da sua carne.

18
Uma Estética Franciscana

CONCLUSÃO
Ao concluirmos este trabalho verificamos que a percepção estética de Deus, do
Mundo e da Vida é o centro do pensamento vivido e tematizado do franciscanismo. A
estética é o horizonte mental e afectivo do universo franciscano que tornou possível
uma cosmovisão característica da vida e que criou a sua peculiar forma de existência.
O franciscanismo possui o seu próprio universo mental que engendra um
sentimento afectivo, que motiva um comportamento existencial coerente. A firme
ideia de Deus beleza produz na pessoa um sentimento profundo de agradecimento e
de regozijo que se constata numa atitude festiva e lúdica. O estético não é um
fragmento, mas um sinal luminoso de compreensão, interpretação e expressão do ser
e do saber estar.
Para o franciscanismo, a realidade profunda do mundo não é o trágico nem o
antagónico, mas a harmonia e a sinfonia dos elementos diferentes. A essência e o
núcleo da vida e do mundo não é a contraposição, mas a presença impressa e expressa
do Criador. O franciscanismo não vê o espectáculo do mundo como um espectáculo
trágico, tipo tragédia grega, mas como um espectáculo belo, que se manifesta na sua
atitude lúdica de celebração e participação.
A estética teológica pode inspirar a ética social e incidir na política, porque a
desigualdade desproporcionada entre os seres humanos, a discriminação, as violações
e as violências, são factores enormemente feios e anti-estéticos, para além de erros e
horrores metafísicos. Uma teologia bela de conjunto franciscano poderá libertar-nos
da ‘patologia do funcional’ e abrir-nos os espaços luminosos da grande beleza que
liberta e deleita. O futuro e a incidência da religião na nossa sociedade e cultura
dependem muito da estética, porque o feio ‘vende-se mal’. Neste campo o
franciscanismo tem algo a dizer, não por motivos comerciais, mas pela razão suprema
de que o Deus belo é o grande fascínio para o ser humano.

Por isso, ao concluirmos este trabalho sentimo-nos satisfeitos por termos


escolhido este tema. É nítido que, apesar de já terem passado 8 séculos, a visão
franciscana da estética continua a ser fundamental para que se compreenda
verdadeiramente a relação amorosa entre Deus, o Homem e o Mundo.
Apesar das diversas dificuldades que foram surgindo ao longo da elaboração do
trabalho, foi-nos bastante importante a orientação do professor para que, recorrendo
ao material de investigação adequado, pudéssemos mergulhar no mais fundo do
pensamento franciscano e compreender o sentido da beleza de tudo quanto existe
neste planeta e para além dele, e assim compreender a beleza da estética franciscana.

19
Uma Estética Franciscana

BIBLIOGRAFIA

CAROLI, Ernesto – Dizionario Bonaventuriano: Filosofia, Teologia, Spiritualità. Editrici


Francescane.

CARVALHO, Mário Santiago de – Recondução das Ciências à Teologia, de São


Boaventura. Lisboa: Porto Editora, 1996.

CICCARELLI, V. – I capisaldi della spiritualità francescana. Benevento: [s.n.], 1959, p.


417.

FONTES FRANCISCANAS – S. Francisco de Assis: Escritos, Biografias, Documentos. 2ª


Edição. Braga: Editorial Franciscana, 1994.

GONÇALVES, Joaquim Cerqueira – Homem e Mundo em São Boaventura. Braga:


Gulbenkian, 1970.

MERINO, José António; FRESNEDA, Francisco Martínez – Manual de Teología


Franciscana. Madrid: BAC, 2003.

SÃO BOAVENTURA – Itinerário da mente para Deus. Trad. e notas: António Soares
Pinheiro. Leitura introd.: M. Manuela Brito Martins. Porto: CEF, 2009.

URIBE, Frei Fernando – O Processo Vocacional de Francisco de Assis: Os 6 encontros


que determinaram a sua vida. Braga, Editorial Franciscana, Maio 2001.

VON BALTHASAR, Hans Urs – Nello spazio della Metafísica: l’Antichità. Glória, Una
estetica teologica. Volume IV. Jaca Book, 1977, p. 342-343.

20

Você também pode gostar