Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Franciscana
Agostinho dos Remédios
Joaquim Ribeiro
John Naheten
Miguel Grilo
ÍNDICE
INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 2
CONCLUSÃO ........................................................................................................... 19
BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................ 20
1
Uma Estética Franciscana
INTRODUÇÃO
Este trabalho foi realizado no âmbito da disciplina de Estética e Teorias da Arte,
sendo essa disciplina leccionada pelo Prof. Dr. Acácio Aguiar de Castro.
Devido ao nosso gosto e interesse pelo Franciscanismo, optámos por escolher e
desenvolver o tema da “Estética Franciscana”, de um modo especial no “Cântico das
Criaturas” de São Francisco. E, tendo nós já presente a espiritualidade franciscana para
a elaboração deste trabalho, optaremos por expor o tema de uma forma simples, mas
ao mesmo tempo clara e concisa.
Para isso, inicialmente, iremos fazer um apanhado geral da evolução da estética
que posteriormente virá a influenciar o pensamento franciscano. Assim, tornar-se-á
mais fácil compreender a estética Franciscana se tivermos em conta as suas raízes.
Depois procuraremos abordar a estética em São Francisco de Assis. Para isso
propomo-nos aprofundar a espiritualidade e a figura de Francisco, onde se destaca o
recurso a uma série de qualificativos, o chamar Deus por ‘Tu’ e também, através da
forma lírico-rapsódica, visualizar o mundo como algo de belo e maravilhoso. Do
mesmo modo, iremos dar ênfase à alegria de Francisco, sendo que a religião, para
Francisco, deverá ser vivida alegremente. Por fim, será também oportuno fazermos
uma breve referência à beleza nas chagas de Francisco, visto que a experiência feita
por Francisco com a impressão das chagas no monte Alverne faz parte do culminar da
sua espiritualidade e do seu crescimento espiritual, levando-o assim a que, no fim da
sua vida, seja capaz de cantar e mostrar a beleza da vida como graça.
Num capítulo posterior iremos abordar a atitude de São Francisco perante a
beleza da Criação. De facto, como iremos ver, a natureza amada e admirada por
Francisco traz nítidos traços da Sabedoria criadora e torna-se num itinerário de
ascensão a Deus, transformando toda a criação num hino de amor para o louvor do
seu Criador. Verdadeiramente Francisco irá experimentar Deus como beleza suprema
na medida em que se transcende a si mesmo e se deixa imergir n’Ele.
Após termos visto a estética em São Francisco, será oportuno procurarmos
entender a estética em São Boaventura, também ele da Ordem Francisca e o
sistematizador de uma doutrina do belo previamente vivida por Francisco. Até porque,
como mais tarde iremos referir, entre os grandes escolásticos, foi quem mais espaço
dedicou ao tema do belo e quem mais o ressaltou, servindo-se de estruturas
conceituais caracteristicamente novas. Por isso, em São Boaventura faremos
referência aos transcendentais, às categorias estéticas, ao Mistério Trinitário, ao
exemplarismo, ao corpo humano, à natureza, e ao conhecer a Deus pelas e nas
Criaturas. Por fim, num último capítulo, iremos debruçar-nos sobre o Cântico das
Criaturas, composto por São Francisco de Assis dois anos antes da morte, e
procuraremos ver nele a estética do louvor e da bondade.
Com este trabalho procuraremos então verificar qual o papel que desempenha
a estética de Deus, do Mundo e da Vida numa visão franciscana.
2
Uma Estética Franciscana
Estética anímica – que interpreta a arte e o belo como experiência anímica. O seu
estudo e a sua valorização estão em relação com a própria vivência e o aspecto
psicológico.
1. Proporção ou harmonia;
2. Luz ou claridade;
3. Plenitude do ser.
3
Uma Estética Franciscana
Plotino, séculos mais tarde e na sequencia de Platão, definiu a beleza pela
unidade, a forma pura e a ordem. A beleza dos seres caracteriza-se pela medida e
simetria. A vida é forma e a forma é beleza. Por outro lado, o amor é sempre o amor
da beleza suprema e absoluta. Distinguem-se assim 3 caminhos para chegar à verdade:
o caminho do Musico (arte), do amante (amor) e do metafísico (pensamento).
Santo Agostinho seguirá as linhas de pensamento neoplatónicas com grande
incidência no pensamento medieval.
Os pensadores medievais eram filósofos e teólogos ao mesmo tempo e a sua
grande preocupação foi Teocêntrica. Não há verdades solitárias, todos os problemas
são concêntricos. No horizonte mundano, a beleza e o esplendor dos seres visíveis são
a epifania e revelação do seu autor. Deus esconde-se radiante na natureza, manifesta-
se soberano na revelação e faz-se história esplendorosa na encarnação de Jesus Cristo.
A dimensão teológica encarna-se no existencial, traduz-se no ético e manifesta-
se no estético.
Tanto na experiencia religiosa franciscana como na sistematização da sua
doutrina, o franciscanismo está persuadido de que só uma teologia bela é capaz de
expressar profundamente o esplendor e a majestade da acção criadora de Deus no
Mundo. Para demonstrar se a teologia franciscana possui uma estética própria, não é
suficiente buscar e amontoar textos que falem explicitamente da beleza, pois essa
categoria pode estar oculta ou contida em outras formas expressivas similares,
parecidas, igualmente significativas.
A demonstração clara de uma estética teológica emerge do próprio coração do
sistema, da sua visão específica e da forma existencial que produz. Uma atitude
teológica pode estar formulada explicitamente ou revestir-se com linguagem simbólica
e manifestar-se com gestos e comportamentos significativos que exteriorizam uma
concepção bela do mundo e da vida.
O franciscanismo, como iremos ver, contém a sua visão peculiar da beleza,
expressa e articulada na profunda convicção de Deus Trinitário como beleza e da
criação enquanto manifestação bela do seu autor.
4
Uma Estética Franciscana
1
Cf. LD 1-5.
5
Uma Estética Franciscana
Nas duas cartas que dirige a todos os fiéis, transmite a sua própria convicção
com esta grande expressão de confiança: “Oh, quão glorioso é ter no céu um Pai santo
e Grande! Oh, quão santo é ter um tal esposo, consolador, formoso e admirável!” 2
Para Francisco, Deus é presença iluminadora e radiante, da qual decide ser
testemunho gozoso.
No cântico das criaturas3, toda a natureza se reveste de grande esplendor e
beleza para ressaltar a “Gloria e a Honra” do “Altíssimo, Omnipotente e bom Senhor”.
O Sol “é belo e radiante com grande esplendor”. A lua e as estrelas são “preciosas e
belas”. O fogo “é belo e alegre”. Inclusive as ervas e as flores do campo estão cheias de
frutos e de cores. Tanto o universo religioso como o mundo natural são belos,
radiantes e alegres. Este cântico consegue oferecer-nos uma imagem bela do mundo,
da vida e da religião de uma forma lírico-rapsódica. Encontramo-nos com uma estética
vivida, celebrada e cantada como expressão desse homem capaz de habitar no mundo
como em seu lar aconchegante e familiar.
A religião para Francisco é bela, alegre e vive-a com grande gozo e regozijo. Os
seus biógrafos sublinham a sua alegria, jovialidade e capacidade de celebrar a mesma
vida. Gostava de representar, encenar, fazer viva a mesma vida e expressá-la com as
mais vivas cores, recorrendo para isso a todos os meios que favoreciam a imaginação,
a fantasia e o mistério.
Vivia com inusitada intensidade a própria existência, aberto a todas as
dimensões, sem ficar preso a nenhuma delas. Passava da fantasia à realidade, da
realidade ao sonho, da diversão á penitência, do canto ao silêncio, da solidão à
companhia, do mundo a Deus, do Criador às criaturas. Neste ir sereno e gozoso de
uma realidade a outra é onde se expressa a experiência estética da vida.
A alegria de Francisco é a expressão espontânea da sua atitude festiva, porém,
o seu apoio e justificação estão na transcendência, em Deus, como fonte gozosa e
destino belo da existência.
E como homem de fé, descobre a beleza da vida, não só no positivo, mas
também no negativo, assumido como dimensão do nosso próprio limite existencial.
6
Uma Estética Franciscana
De facto, “há muitos que amam a beleza, mas a beleza não está nas coisas
exteriores, que são só imagem; a verdadeira beleza encontra-se na beleza da
sabedoria”. A beleza da sabedoria mostra-se a Francisco em forma de serafim
crucificado. Aqui se verifica a singular estética da expressio e impressio.
A Imagem do crucificado que se expressa e se expõe à contemplação, torna-se
sujeito activo que imprime as suas próprias marcas (estigmas) em quem a contempla,
transformando o contemplativo em expressão do próprio contemplado. Tendo
alcançado a beleza da vida, convertendo-a num ars vivendi, irá concluí-la com um
prodigioso ars moriendi, cantando e mostrando a beleza da vida como graça.
Francisco criou com a sua vida os melhores pressupostos para uma estética
existencial que poderá traduzir-se em linguagem teológica, artística e literária, como
demonstrará depois a história da cultura e da arte. Ele soube mostrar-nos, de uma
forma formidável, a santidade como beleza e a beleza como santidade. Inspirou aos
pensadores da sua Ordem uma teologia bela e uma peculiar estética da existência
porque imprimiu em seus corações e suas mentes a feliz conjugação entre santidade,
sabedoria e arte.
7
Uma Estética Franciscana
Francisco instaura uma relação nova com a criação. Não quer possuir as
criaturas ou dominá-las, mas chama-as pelo nome, convidando-as a render louvores a
Deus, que as revestiu de beleza e de bondade. Francisco não deseja as criaturas como
objecto de prazer ou de poder, mas admira-as como obra de Deus e liberta-as do
gemido de suas prisões.
São Boaventura retoma a atitude de Francisco diante da natureza e desenvolve
teologicamente a sua visão de fé:
“Solicitado por tudo e por todos ao amor de Deus, exultava em todas as obras saídas
das mãos de Deus, e rejubilando de alegria na presença das criaturas, subia por meio
delas até àquela que é a causa e a razão vivificante do Universo. Nas coisas belas via a
beleza suprema do Criador, e pelas pegadas que ele deixara impressas nas coisas, ia
seguindo o Bem-amado, de tudo se servindo como escada para subir e chegar àquele
que é todo desejável. No inefável impulso de devoção, percebia a bondade infinita de
Deus em cada uma das criaturas como em Arroios que brotassem daquela nascente
inesgotável. Nas propriedades dos seres e nas suas interacções descobria como que
um concerto harmonioso e celeste, que o levava a exortar a todos, como fazia o
Profeta David, a cantar os louvores do Senhor.”6
“No nada da pobreza, tudo se torna para o homem um dom que ultrapassa a
existência e, se alguém se torna pobre por amor de Deus, assim o faz para poder
4
2C 165.
5
EP 113.
6
LM 9,1.
8
Uma Estética Franciscana
acolher todas as coisas como presentes de Deus, porque reconhece em todas as coisas
verdadeiramente um generoso presente de seu amor […] O Cântico do irmão Sol é
louvor que se faz mediante a natureza e juntamente com ela. A regra originária é mais
radical insistindo nesta atitude de louvor e simplicidade de todos os frades e depois
também da Igreja e ainda da humanidade tomada em seu todo.”7
No louvor das criaturas, toda a criação atinge a sua máxima realização e alcança
a sua mais perfeita expressão, porque o louvor está inserido na bênção de Deus que dá
a existência a tudo e que se completa somente quando este dom é acolhido por um
coração cheio de amor e restituído ao magnânimo doador ‘na santa caridade que é
Deus’.
Para Francisco, tudo atinge a plenitude no Tu divino. Ele mesmo torna-se
bênção não só para Frei leão, mas para toda a criação.
Todas as criaturas transformam-se em notas vibrantes que possibilitam a
composição do Cântico de Francisco.
“O amor de Francisco pelas criaturas está impregnado de um desejo que faz com que
ele transcenda a própria criatura: ama a luz, mas como reflexo da Luz eterna; ama a
vida, mas como imagem da Vida divina; ama o belo, mas como sombra da Beleza sem
mácula que é Deus.”8
7
VON BALTHASAR, Hans Urs – Nello spazio della Metafísica: l’Antichità. Glória, Una estetica teologica.
Volume IV. [s.n.], Jaca Book, 1977, p. 342-343.
8
CICCARELLI, V. – I capisaldi della spiritualità francescana. Benevento, [s.n.], 1959, p. 417.
9
Uma Estética Franciscana
4.1 – Os transcendentais
São Boaventura não oferece uma doutrina articulada sobre estética, pois não
escreveu um tratado particular sobre ela. Ele apresenta unidos os três transcendentais
primários da metafísica tradicional como explicitações universais do ser: unum, verum
e bonum; porque ele pensa em termos triádico-trinitários. A dimensão estética é o
horizonte luminoso e hermenêutico de Boaventura. O belo é uma propriedade
transcendental de todo o ser, necessariamente ligado ao uno, ao verdadeiro e ao bom.
Em Boaventura entrelaçam-se filosofia, teologia e mística, num sistema unitário
e compacto dificilmente superável em harmonia e beleza. É um dialéctico da síntese
mais do que da antítese e da análise pura, seguindo o ensinamento platónico de que o
homem é sábio quando consegue uma visão sinóptica da realidade. Conjuga
genialmente o conceptual, o figurativo e o afectivo, conseguindo com isso uma
expressão estética dificilmente superável.
Seguindo Santo Agostinho, define a beleza como “igualdade numerosa”, ou
também “certa acomodação das partes acompanhada da suavidade da cor”. A beleza
consiste na ordem, pelo que a apreensão da ordem leva ao deleite.
“O sentido deleita-se no objecto, percebido mediante a sua semelhança abstracta, ou
por razão de formosura, como na visão; ou por razão de suavidade, como no olfacto e
na audição; ou por razão de salubridade, como no gosto e no tacto. Se a deleitação
existe deve-se à causa da proporção.”10
A beleza enquanto ‘suavidade da cor’ aplica-se só à beleza sensível, porém
enquanto ‘igualdade numerosa’ é aplicável a todo o belo, tanto material como
espiritual. A beleza material deleita certamente, porém não satisfaz e impele a ir mais
além dela até alcançar a origem da suprema beleza, que é Deus, seguindo a dialéctica
neoplatónica e agostiniana.
A sua teologia está elaborada na base do anima simplex de Francisco e da sua visão
optimista e bela de Deus, do mundo e da vida.
9
Segundo Von Balthasar.
10
Itin. Cap. 2, Nº5.
10
Uma Estética Franciscana
4.2 – Categorias Estéticas
Quem não penetre no Mistério Trinitário, como causa criadora, não será capaz
de compreender o enigma nem a beleza da criação.
De facto, as pessoas trinitárias são boas e, precisamente por isso, são
comunicáveis, consubstanciais, co-iguais e co-íntimas. Nesta singular comunidade
existe uma profunda comunicação, íntima convivência, forte solidariedade, igualdade e
comparticipação totais, infinitas delícias e ilimitadas alegrias. Intensas relações
interpessoais que expressam fecundidade, alegria, harmonia e beleza.
O amor tem uma visão muito própria da realidade; e o amor trinitário é luz que
descobre e revela o horizonte transparente da existência comunitária.
O conceito boaventuriano de beleza compreende-se dentro de uma metafísica
do amor de uma ontologia de expressão. O verbo incriado e encarnado é a arte
suprema e a razão determinante para uma estética do ser infinito e do ser finito.
4.4 – O exemplarismo
11
Uma Estética Franciscana
O exemplarismo é a doutrina das relações de expressão que existem entre as
criaturas tal como são em si mesmas e como são em Deus ou no Verbo. As coisas estão
em Deus como ideias exemplares.
O pensamento boaventuriano analisa não somente a estrutura dos seres, mas
oferece também uma ontologia do significado e da expressão enquanto interpreta o
mundo como linguagem e em chave simbólica e referencial. Segundo o exemplarismo,
as criaturas são, sobretudo, espelho onde se reflectem e se explanam as percepções
divinas de um modo hierarquizado. Os atributos divinos de unidade, verdade, bondade
e beleza manifestam-se nas criaturas segundo a sua participação na escala do ser.
“Para que no mesmo homem se manifestasse a sabedoria de Deus, fez de tal forma o
corpo que a seu modo tivesse proporção com a alma. Para conformar-se a alma como
motora pela variedade de potências, teve diversidade de órgãos com suma beleza,
artificio e ductilidade; como se manifesta no rosto e na mão, que é o órgão por
excelência. Para que se conformasse a alma com tendência para cima, teve
verticalidade de posição e a cabeça levantada para cima, para que assim a direcção do
corpo ateste a rectitude mental.”12
4.6 – A Natureza
Se o homem é a coroação do devir cósmico, Cristo é o culminar do
desenvolvimento histórico, dando-se deste modo uma conjunção perfeita entre o
mundo natural e o mundo divino mediante o homem.
11
II Sent. d.17 a.2 q.2 ad6.
12
Brev. p.2 c.10.
12
Uma Estética Franciscana
“O universo cristão, pelas suas dimensões e também pela intensidade da crença,
tornara-se, para aquele tempo, a mais lídima expressão do universo natural. É
certamente o mundo da cultura a sobrepor-se ao da natureza. Boaventura sabe que a
arte não pode acrescentar nada de essencial à natureza, mas será muito difícil ao
homem não reduzir o que é considerado natural a um esquema de elaboração cultural.
A descoberta da natureza processar-se-á através da cultura. O asserto é ainda mais
justo se dermos à palavra natureza um significado o mais lato possível, nunca o
reduzindo à sua dimensão cosmológica. Assim, a vida do homem – a questão mais
importante – realizar-se-á, sob o ponto de vista da natureza, através da cultura. O
homem cristão, na plena consciência de seus ideais, era, para o pensador do século
XIII, o ideal de toda a humanidade.”13
13
GONÇALVES, Joaquim Cerqueira – Homem e Mundo em São Boaventura. Braga: Gulbenkian, 1970,
pp.31-32.
14
Cf. GONÇALVES, Joaquim Cerqueira – Homem e Mundo em São Boaventura, p.32.
13
Uma Estética Franciscana
4.7 – Conhecer a Deus pelas e nas Criaturas
15
Cf. GONÇALVES, Joaquim Cerqueira – Homem e Mundo em São Boaventura, p. 373.
16
Cf. GONÇALVES, Joaquim Cerqueira – Homem e Mundo em São Boaventura, pp. 374-375.
17
Cf. GONÇALVES, Joaquim Cerqueira – Homem e Mundo em São Boaventura, p. 380.
18
Cf. GONÇALVES, Joaquim Cerqueira – Homem e Mundo em São Boaventura, p. 382.
19
Cf. GONÇALVES, Joaquim Cerqueira – Homem e Mundo em São Boaventura, p. 384.
20
GONÇALVES, Joaquim Cerqueira – Homem e Mundo em São Boaventura, pp. 384-385.
14
Uma Estética Franciscana
“Nada mais desejemos, nada mais queiramos, nada mais nos agrade e deleite senão o
nosso Criador e Redentor e Salvador, o só Deus verdadeiro, que é a plenitude do bem,
todo o bem, o bem completo, o verdadeiro e sumo bem; ele, o único que é bom,
misericordioso e manso, suave e doce; o único que é santo, justo, verdadeiro e recto; o
único que é benigno, inocente e puro; de quem, por quem nos vem e em quem está
todo o perdão, toda a graça, toda a glória dos penitentes e justos, e dos bem-
aventurados do céu.”21
Nesta oração estão presentes todas as suas preocupações pessoais. Mas a visão
de Francisco dilata-se atingindo as dimensões do mundo e do desígnio de Deus. A
prece revela um Francisco completamente orientado na direcção de Deus. O seu canto
é dirigido ao Pai por meio do Filho no Espírito Santo envolvendo nele o destino do
mundo.
Se o capítulo 23 da Regra de 1221 é o canto do Amor que salva, o Cântico das
Criaturas é o canto do homem salvo e reconciliado com todas as coisas. Este cântico,
chamado também de Cântico do irmão Sol, é a obra mais célebre de São Francisco de
Assis. Composto em vernáculo, quase meio século antes do nascimento de Dante, é
considerado a mais antiga e mais preciosa pérola da poesia italiana.
21
1R 23,9.
22
Cântico composto por São Francisco no inverno de 1224-1225.
15
Uma Estética Franciscana
Louvado sejas, ó meu Senhor,
pela irmã Lua e as Estrelas:
no céu as acendeste, claras, e preciosas e belas.
17
Uma Estética Franciscana
devastar, o fogo crepita sem queimar, a agua não afoga. Um mundo assim, sem
perigos mas fraterno e maravilhoso, pode parecer ilídico e ingénuo. Esta visão, porém,
tem um sentido mais profundo. Reflecte uma purificação interior capaz de impregnar
de luz todos os impulsos naturais, espiritualizando-os, despindo-os de todo o amor-
próprio que pode corrompê-los.
Assim, chegamos ao sentido último do Cântico do irmão Sol: a vida espiritual
não consiste em ver a natureza renegada, mas transfigurada; transfigurada até no
homem, nas suas forças mais obscuras, mas que se iluminam a partir do interior. O
Cântico das Criaturas é o canto do homem plenamente reconciliado consigo mesmo,
com a natureza, com os seus semelhantes e com o próprio Deus. Não terá sido por
acaso que Francisco acrescentou uma estrofe ao louvor das criaturas para cantar o
perdão e a paz.
Finalmente, a própria morte não apavorou Francisco. Quando descobriu, pela
boca do médico, que lhe restavam apenas alguns dias de vida, compôs então a última
estrofe na qual canta à irmã Morte da mesma maneira como canta ao irmão Sol. A
mesma luz que para ele tinha sido esplendor do Sol, vê agora brilhar na irmã Morte.
Percebemos então que toda a vida de Francisco se exprime através do Cântico
das Criaturas. O seu cantar é o canto do homem salvo na sua totalidade, de tal modo
unido a Deus, que pode aplacar todos os conflitos que dividem a consciência comum. A
sua visão do mundo permite que nos apercebamos daquilo em que Francisco se tinha
tornado: um ser inteiramente luminoso, penetrado e renovado pelo Espírito de Deus
até às raízes da sua carne.
18
Uma Estética Franciscana
CONCLUSÃO
Ao concluirmos este trabalho verificamos que a percepção estética de Deus, do
Mundo e da Vida é o centro do pensamento vivido e tematizado do franciscanismo. A
estética é o horizonte mental e afectivo do universo franciscano que tornou possível
uma cosmovisão característica da vida e que criou a sua peculiar forma de existência.
O franciscanismo possui o seu próprio universo mental que engendra um
sentimento afectivo, que motiva um comportamento existencial coerente. A firme
ideia de Deus beleza produz na pessoa um sentimento profundo de agradecimento e
de regozijo que se constata numa atitude festiva e lúdica. O estético não é um
fragmento, mas um sinal luminoso de compreensão, interpretação e expressão do ser
e do saber estar.
Para o franciscanismo, a realidade profunda do mundo não é o trágico nem o
antagónico, mas a harmonia e a sinfonia dos elementos diferentes. A essência e o
núcleo da vida e do mundo não é a contraposição, mas a presença impressa e expressa
do Criador. O franciscanismo não vê o espectáculo do mundo como um espectáculo
trágico, tipo tragédia grega, mas como um espectáculo belo, que se manifesta na sua
atitude lúdica de celebração e participação.
A estética teológica pode inspirar a ética social e incidir na política, porque a
desigualdade desproporcionada entre os seres humanos, a discriminação, as violações
e as violências, são factores enormemente feios e anti-estéticos, para além de erros e
horrores metafísicos. Uma teologia bela de conjunto franciscano poderá libertar-nos
da ‘patologia do funcional’ e abrir-nos os espaços luminosos da grande beleza que
liberta e deleita. O futuro e a incidência da religião na nossa sociedade e cultura
dependem muito da estética, porque o feio ‘vende-se mal’. Neste campo o
franciscanismo tem algo a dizer, não por motivos comerciais, mas pela razão suprema
de que o Deus belo é o grande fascínio para o ser humano.
19
Uma Estética Franciscana
BIBLIOGRAFIA
SÃO BOAVENTURA – Itinerário da mente para Deus. Trad. e notas: António Soares
Pinheiro. Leitura introd.: M. Manuela Brito Martins. Porto: CEF, 2009.
VON BALTHASAR, Hans Urs – Nello spazio della Metafísica: l’Antichità. Glória, Una
estetica teologica. Volume IV. Jaca Book, 1977, p. 342-343.
20