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DAVID ROSSINI DE SOUSA ALVES

A REFORMA PROTESTANTE E A EDUCAÇÃO: a filosofia educacional dos


reformadores e suas contribuições para a pedagogia

PATOS DE MINAS

2021

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DAVID ROSSINI DE SOUSA ALVES

A REFORMA PROTESTANTE E A EDUCAÇÃO: a filosofia educacional dos


reformadores e suas contribuições para a pedagogia

Trabalho de Conclusão de Curso


apresentado como exigência parcial para a
obtenção do título de graduado(a) em
História pelo Centro Universitário de Patos
de Minas, sob orientação do professor
Altamir Fernandes de Sousa e coordenação
do Professor Me. Marcos Antônio Caixeta
Rassi.

PATOS DE MINAS

2021

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A REFORMA PROTESTANTE E A EDUCAÇÃO: a filosofia educacional dos
reformadores e suas contribuições para a pedagogia

David Rossini de Sousa ALVES1


Altamir Fernandes de SOUSA2

Somos miseráveis, essa é a verdade


(Martinho Lutero)

RESUMO:

A Reforma Protestante do século XVI está muito além das categorias meramente
religiosas, ela envolveu, por consequência, toda a estrutura social da Europa medieval.
Esse envolvimento social trouxe mudanças e inovações que afetaram a área da
educação, área que os reformadores zelaram e deram importância central. As mudanças
propostas pela Reforma serviram de modo inovador e contribuíram para o
desenvolvimento da sociedade como um todo. Analisar essas contribuições e inovações
é indispensável para entender as fontes de muitas concepções modernas em pedagogia.
Esta pesquisa analisa como e por que os reformadores se envolveram com temas
pedagógicos e desenvolveram suas próprias teorias, e como essas teorias se espalharam
pela Europa e América. Para melhor compreensão, é necessário contextualizar a
Reforma, entender a atmosfera medieval e sua relação com a pedagogia, bem como
analisar aspectos socioculturais e o cotidiano medieval em termos educacionais. Os
resultados gerais do impacto da Reforma na educação foram de indispensável
contribuição ao desenvolvimento das sociedades modernas. Este estudo possibilita uma
nova compreensão acerca da Reforma Protestante e uma busca pelas raízes da
pedagogia popular que se inicia na Reforma.

PALAVRAS-CHAVE: Reforma Protestante; Educação; Pedagogia.

1. INTRODUÇÃO

É comum encontrar nos manuais de história da educação um capítulo ou um


subcapítulo dedicado à Reforma Protestante. O movimento, que possui uma vasta gama
de interpretações e um enorme peso histórico, está além das categorias meramente
teológicas. “Juntamente com o Renascimento italiano, a Reforma alemã tem sido

1 Estudante de Graduação do 8º período do Curso de História do Centro Universitário de Patos de Minas,


UNIPAM. email: david.rossini2@hotmail.com
2 Orientador do Trabalho. Professor do Curso de História do Centro Universitário de Patos de Minas,
UNIPAM. email: altamirinho@unipam.edu.br

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tradicionalmente vista como a primeira das grandes revoluções que criaram o mundo
moderno” (LINDBERG, 2017, p. 35 apud OZMENT, 1992, p. 14).
Além de sua evidente relevância histórica, a presença da Reforma
Protestante nas obras de história da educação se deve, de antemão, ao fato de religião e
educação serem indissociáveis. De acordo com Giddens (2012, p. 489):

“[...] a religião geralmente desempenha um papel central na vida


social. Os símbolos e rituais religiosos costumam ser integrados à
cultura material e artística da sociedade – música, pintura ou escultura,
dança, contação de histórias e literatura”.

Os símbolos culturais e religiosos citados por Giddens são elementos que


necessitam da educação. Essa estreita relação entre religião e educação começa já na
infância, segundo Durkheim (1961) citado por Giddens (2012. p. 590), a educação tem
papel importante na socialização das crianças, pois, ao estudarem, elas aprendem
valores comuns na sociedade e entre esses valores estão as crenças religiosas. Berger
(1985), por sua vez, vê a educação como um dos fatores que contribuem para a
“manutenção” dos fiéis na crença. Essas interpretações salientam a importância e a
necessidade da educação para a religião, tanto de maneira catequética quanto
apologética, tornando-as indissociáveis.
Todavia, tratar sobre a relação da Reforma Protestante com a educação não
é tratar propriamente da Reforma em si, mas sobre uma de suas muitas consequências.
No cenário do século XVI, um cisma religioso geraria consequências sociais
inevitáveis, visto que “a Igreja se encontrava há séculos de tal modo mesclada com a
sociedade, que jamais se havia atacado a primeira, sem quebrar os alicerces da segunda”
(PIRENNE, 1992, p. 415, tradução nossa).
Essas consequências, tanto as diretas como as indiretas, são
demasiadamente complexas. Estudiosos apontam como consequência da Reforma o
surgimento do capitalismo; a consolidação da burguesia; o surgimento da escola
pública; dentre outros. Essa gama de interpretações revela que a Reforma, mesmo sendo
um movimento primordialmente religioso, não se limitou exclusivamente a essa esfera e
os efeitos posteriores serviram de tal modo como consequências que requereriam a
atenção dos reformadores do que como intenções propriamente estabelecidas por eles.
O presente artigo tem como objetivo demonstrar como e por que os
reformadores trataram dos assuntos relacionados à educação e quais foram suas
contribuições para essa esfera. Visto que “a absolutização de um aspecto particular, cujo

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sentido é apenas relativo, destrói seu sentido e, da mesma forma, resulta em uma
ausência total de sentido” (DOOYEWEERD, 2018, p. 134), o artigo não visa fazer da
Reforma Protestante um movimento educacional, pois isso é um erro.
Apontar a Reforma como um movimento que teve a educação como
prioridade principal é certamente um erro, e da mesma maneira, rejeitar que ela atingiu
várias esferas além da Teologia também é um equívoco. De acordo com Lindberg
(2017. p. 31) “se perdermos de vista a rede complexa de relacionamentos históricos das
reformas, corremos o risco de simplificar demais nossa concepção e avaliação da
própria Reforma”. Weber (2001, p. 32), ao analisar a influência da Reforma na
formação da ética capitalista, disse: “é bem verdade que os caminhos do destino
humano só podem amedrontar a quem dele observa apenas um segmento”. É a partir
desta premissa que esse artigo foi desenvolvido: atento para não cometer negligências e
para não absolutizar uma parte em detrimento do todo. Ao comentar sobre a Reforma
Protestante, Burckhardt (2009, p. 407) atenua algo parecido:

Em seus detalhes, eclosão e em sua marcha, os acontecimentos


colossais como a Reforma do século XVI escapam a toda dedução
histórico-filosófica, por mais claramente que se possa, em linhas
gerais, demonstrar sua necessidade. Os movimentos do espírito, seu
súbito cintilar, sua propagação, seu estancamento, são e permanecem
sendo um enigma a nossos olhos, quando menos porque, das forças
que neles atuam, sempre nos é dado conhecer apenas esta ou aquela,
jamais todas.

Para melhor compreender a ação dos reformadores na área educacional, é


indispensável analisar o contexto e os eventos precedentes à Reforma. Segundo
González (2011, p. 508) “os últimos anos da Idade Média foram caracterizados por um
grande descontentamento popular, que combinava causas sociais com motivos
religiosos”. Os intensos séculos anteriores à Reforma apontavam para uma nova forma
de mentalidade. A modernidade estava à porta da Europa, que já aflorava as belas artes
do Renascimento italiano, navegava pelos mares e oceanos com as navegações ibéricas,
lucrava com a recém-formada burguesia, sucumbiam os latifúndios do Feudalismo e
questionava o papa e a autoridade da Igreja Católica, que era a principal responsável
pela educação.
À vista disso, o artigo enceta contextualizando essa relação: quais foram os
métodos pedagógicos utilizados, os erros e acertos e as rupturas e continuidades,
visando desvencilhar preconceitos e retomar um debate acadêmico sobre as
contribuições da religião, sobretudo a protestante, para a educação. A partir daí, usando

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a metodologia bibliográfica baseado em obras específicas, descrever os principais
pontos da filosofia educacional dos mais influentes reformadores e analisar suas
contribuições e inovações, bem como sua relação com a ideia de didática, com a
fundação de Harvard, com o prêmio Nobel, com Dom Pedro II, dentre outros.

2. SÍNTESE DA EDUCAÇÃO MEDIEVAL

O ponto de partida para compreender o motivo pelo qual os reformadores


tinham como uma missão vital a reforma do sistema educacional é ter em mente que “na
Idade Média a religião era, com efeito, a mola propulsora de toda a atividade
pedagógica; o estudo e a investigação não tinham finalidade em si mesmos, mas
endereçavam à busca da perfeição cristã” (NUNES, 1979, p. 169). A educação,
portanto, ficou na incumbência exclusiva da Igreja Católica pelo menos até os últimos
anos da Idade Média. Em vista disso, qualquer ataque ou tentativa de reformar a Igreja,
consequentemente resultaria também em um ataque e em uma reforma do sistema
educacional.
Com a queda do Império Romano, gradativamente a Igreja Católica passou
a assumir os fardos sociais e culturais. No tocante à educação, Nunes (1979, p. 103)
apresenta como as escolas passaram a ser organizadas:

À medida que as escolas oficiais e a dos mestres particulares foram


desaparecendo, a Igreja tomou providências quanto à formação dos
candidatos ao sacerdócio, a fim de lhes assegurar a instrução mínima
necessária ao desempenho do ministério sacerdotal. O nível elementar
desse ensino era representado pelas escolas paroquiais e o superior,
pelas episcopais. A escola paroquial funcionava na igreja matriz da
paróquia ou na casa paroquial, e a escola episcopal alojava-se na
igreja catedral ou na residência do bispo.

Nos primeiros séculos da Idade Média até seu ocaso, a educação foi
extremamente limitada. Enquanto nobres e clérigos tinham os estudos e a formação
intelectual como obrigação, os servos, camponeses e os guerreiros não tinham a mínima
pretensão. Não meramente por negligência da Igreja em promover uma alfabetização
em massa, mas a própria educação era vista como perda de tempo e pouco atrativa. Na
vida comum do medievo não havia espaço para tal preocupação, na verdade “muitos
blasonavam a própria ignorância e caçoavam dos letrados” (NUNES, 1979, p. 150).
A primeira sombra de variação dessa mentalidade surgiu com o
Renascimento Carolíngio. De acordo com González (2011) e Le Goff (2016), Carlos
Magno se preocupou com a educação dos seus súditos e com o cultivo das letras,

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reformou escolas e ordenou a presença de eruditos como Alcuíno e Teodulfo para
comporem sua reforma educacional. Os clássicos estudos do Trivium e Quadrivium
ganharam maior prestígio e difusão e a partir dali se tornaram inextinguíveis para as
escolas e para futuras universidades na Idade Média. Foi ordenado que em cada
paróquia houvesse uma escola e que fosse proibido negar educação aos pobres ou que
exigissem pagamento pelo ensino. Todavia, essas escolas abertas nas paróquias não
eram públicas no sentido atual do termo, mas abertas a clérigos e a monges de qualquer
região. O comentário de Le Goff (2016, p. 133) denota os méritos do Renascimento
Carolíngio para a educação:

Embora suas realizações estivessem muito distantes de suas aspirações


e pretensões, o Renascimento Carolíngio transmitirá aos homens da
Idade Média a ideia de que a instrução é um dos deveres essenciais e
uma das forças principais dos estados e dos príncipes. [...] o
Renascimento Carolíngio foi decerto uma investida abortada ou
prematuramente interrompida. Mas na verdade é a primeira
manifestação de um Renascimento mais longo e mais profundo, o que
se afirmará do século X ao XVI.

A próxima vez em que a Europa contemplou um progresso na educação foi


com a criação das universidades. Uma gênese intelectual em meados dos séculos XII e
XIII foi fundamental para seu surgimento. Segundo Alexandre-Bidon (2013), essa
gênese intelectual pode ser explicado pela expansão comercial nas grandes cidades a
partir do século XIII, com isso o prestígio das escolas episcopais nas cidades foi
aumentando e “ao longo do século XII as escolas urbanas ultrapassaram as escolas
monásticas de maneira decisiva” (LE GOFF, 2016, p. 71). Outro importante fator foi o
surgimento das escolas de ofício, dedicadas ao ensino de profissões. Esses fatores
explicam essa gênese intelectual que culminaria no surgimento das universidades.
Inicialmente, as universidades eram corporações de mestres e estudantes.
Não se tem uma data exata sobre seu surgimento. O que convém saber é que
universidade “não significava o conjunto das faculdades, mas indicava apenas a
associação de pessoas, alunos, professores e funcionários de uma cidade, aplicados ao
estudo das artes, do direito, da teologia e da medicina” (NUNES, 1979, p. 218). Essas
quatro áreas do saber eram o foco das corporações, que visavam uma formação
adequada e um maior domínio dessas ciências. Com o passar do tempo “muitas
universidades surgiram por iniciativa dos reis que as fundavam com intuitos políticos:
promover a própria terra, beneficiar os súditos e evitar a intromissão dos políticos

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estrangeiros” (NUNES, 1979, p. 219). As principais universidades eram a de Bolonha,
famosa pelo curso de Direito, Paris (Artes e Teologia) e Montpellier (Medicina).
Paralelamente ao surgimento das Universidades, nas escolas se desenvolvia
e tomava corpo uma nova forma filosófica e pedagógica: a escolástica. A introdução dos
textos de Aristóteles no Ocidente foi o fator culminante para seu desenvolvimento, que
chegou ao seu ápice com a Filosofia de Tomaz de Aquino. De acordo com Nunes (1979,
p. 244), do ponto de vista da educação:

[...] parece-nos mais apropriado, considerar a escolástica como um


método de pensamento e de ensino e como um conjunto de doutrinas.
A escolástica foi um método de pensamento e de ensino que surgiu e
se formou nas escolas e se plasmou de modo inexcedível nas
universidades do século XIII [...] O termo escolástica, porém, significa
ainda o conjunto de doutrinas literárias, filosóficas, jurídicas, médicas
e teológicas, e mais outras cientificas, que se elaboraram e
corporificaram no ensino das escolas universitárias do século XII ao
século XV.

Pedagogicamente falando, a escolástica tenta estabelecer um vínculo entre


artes liberais e artes mecânicas, entre ciências e técnicas (LE GOFF, 2016). O método
escolástico seguiu utilizando as sete artes liberais, mas se diferenciava por dois pontos:
pelo uso exacerbado das auctoritas (as autoridades intelectuais, que em Teologia são os
padres, os concílios e a Bíblia, e em Filosofia, são Aristóteles, Boécio e Santo
Agostinho); e pela sua substancial valorização da ratio, a razão humana. O uso
constante do raciocínio, da prática da reflexão filosófica; a disposição do pensamento
em argumentações silogísticas; o recurso à dialética e o gosto das discussões eram a
alma da forma escolástica (NUNES, 1979). As etapas do sistema educacional
escolástico, desde a lectio à questio, que levavam a disputata, eram exaustivas e sempre
balizadas nos parâmetros da lógica aristotélica. O ambiente das disputas era o motor das
universidades. Nelas não havia esse atual método didático expositivo e a tradicional
rigidez das escolas não era muito diferente por lá.
A colheita fornecida pela escolástica para o avanço de todas as áreas do
conhecimento é imensa e incapaz de ser descrita brevemente, mas como toda grande
ideia carrega suas mazelas, com ela não seria diferente. A dimensão quase santa que a
escolástica deu aos textos de Aristóteles se tornou um infortúnio para as futuras
gerações. Na medida em que as gerações dos grandes nomes passavam, as próximas não
dispunham da mesma qualidade intelectual e “a questão dos estudos aristotélicos azedou
porque se, de um lado, [...] favorecia a concepção da filosofia autônoma quanto à

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teologia, por outro, trazia no bojo ideias estranhas e contrárias à fé cristã” (NUNES,
1979, p. 262). Esse culto a Aristóteles rendeu uma crítica de Lutero que antes mesmo
das 95 teses mais famosas já havia elaborado outras 97 direcionadas contra a escolástica
de sua época, entre elas, algumas questionavam esse culto a Aristóteles, como a 43: “É
um erro dizer que nenhum homem pode se tornar um teólogo sem Aristóteles”. Todavia,
“Lutero não tinha nada contra Aristóteles em si. O que ele rejeitava era todo o esforço
da teologia escolástica de fazer da filosofia aristotélica a pressuposição da doutrina
cristã” (GEORGE, 1993, p. 59).
Essa escolástica tardia que recebia críticas contundentes foi fruto de uma
decadência intelectual no século XIV, causada principalmente pela Peste Negra. De
acordo com Nunes (1979), a praga disseminou-se principalmente nas cidades com os
seus aglomerados humanos e a falta de higiene, daí a mortandade nos conventos e nas
escolas. Em termos educacionais:

A Peste Negra [...] foi sem dúvida um desastre para as universidades,


a educação e o ensino, e um sério retrocesso da civilização. Por isso,
está aí a explicação para a distância entre o esplendoroso século XIII
com as suas magníficas realizações no campo do pensamento, do
ensino e das artes, e o aflito, medíocre, tristonho e convulso século
XIV em que começa a desmoronar o longo período medieval.
(NUNES, 1980, p.13)

A educação, de uma maneira geral, desde as universidades até as escolas


episcopais e primárias, nunca se recuperou da peste. A crise escolar no fim da Idade
Média afetou todos os campos educacionais, desde a área metodológica até as áreas
administrativas. “No campo metodológico registram-se os abusos da auctoritas e da
ratio [...] que iriam atrair as pechas e as zombarias dos humanistas e que eram
aplicáveis, com efeito, aos escolásticos dos séculos XIV e XV” (NUNES, 1979, p. 294).
E foram eles, os humanistas, os primeiros a identificarem uma necessidade
de renovo educacional e a iniciar uma campanha “anti-escolástica”. Filhos da cultura
renascentista e baseados na máxima do ad fontes, os humanistas não mais visavam
aquela formação humana para a perfeição cristã firmada no asceticismo imposto pela
Igreja, mas sim uma formação integral do homem em sua personalidade, dignidade e
centralidade. Com uma nova mentalidade, um novo estilo literário, uma nova visão
sobre a função da escola e uma nova pedagogia, os humanistas se espalharam pela
Europa a partir do século XIV. Na área da educação grandes nomes foram responsáveis
por espalhar essa nova pedagogia: Coluccio Salutati na Itália; Rudolf Agrícola na

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Holanda, Johannes Reuchlin na Alemanha; Guillaume Budé na França; Thomas Linacre
na Inglaterra; entre muitos outros.
Todavia, deve-se atentar que o avanço de uma não implica o fim da outra.
Na verdade, o avanço da pedagogia humanista deve ser analisado a luz de que, no fim
da Idade Média, a educação e o acesso a informações pertinentes apenas deixaram de
ser algo exclusivo da Igreja Católica e da aristocracia (ALEXANDRE-BIDON, 2013).
De acordo com Huberman (1986, p. 75), “antes a Igreja tinha controle total da
educação; agora, surgiam escolas independentes fundadas por mercadores que haviam
prosperado”. Com a educação aos poucos se tornando desmonopolizada, a formação dos
príncipes, outrora tarefa dos teólogos, passa também a ser, naturalmente, assunto dos
humanistas (BURCKHARDT, 2009).
Se “o inimigo do meu inimigo é meu amigo”, Lutero inicialmente recebeu
apoio dos humanistas na causa reformista, chegou a trocar cartas com Erasmo, mas, por
desavenças de opiniões, acabaram rompendo. Apesar dos embates, em linhas gerais o
humanismo foi o mais importante braço intelectual para o surgimento da Reforma. De
acordo com Biéler (2017, p. 42), “renascença e Reforma correspondem ambas ao
mesmo anseio. São dois movimentos complementares sobre os quais difícil é dizer qual
engendrou o outro”. George (1993, p. 50), complementa dizendo que:

Sem o apoio dos humanistas a Lutero, principalmente seu aliciamento


das 95 teses, é duvidoso que o ataque de Lutero contra Roma tivesse-
se tornado a causa célèbre que incendiou as mentes e as energias de
toda a Europa. [...] O humanismo, assim como o misticismo foi parte
da estrutura que possibilitou aos reformadores questionar certas
suposições da tradição recebida.

Sendo antes de tudo uma forma, assim como a escolástica era, a forma humanística de
retorno às fontes gregas serviu utilmente a Reforma Protestante, mas no tocante a
educação, “em tese, a pedagogia humanista refere-se à formação do homem, do ser
humano abstrato, mas na prática é essencialmente aristocrática e só acessível aos ricos”
(NUNES, 1980, p. 28). Sendo a Reforma um movimento que atingiu e recebeu
fervoroso apoio das classes mais populares de camponeses e servos e da faminta
burguesia que buscava emancipação, os reformadores se viram diante de um dilema; a
educação aos poucos se tornava um fenômeno (ALEXANDRE-BIDON, 2013), porém
as classes não aristocráticas, majoritariamente analfabetas e sem acesso amplo
necessitavam urgentemente receber educação. O sola scriptura, o mais importante lema
reformista se sustentaria somente com um povo alfabetizado, mas o cenário era de um

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lado a ultrapassada educação escolástica católica, que não servia de modo algum a
cosmovisão protestante, e do outro a educação humanista, assim como a católica,
aristocrática e divergente em cosmovisão. Quando a Reforma eclode, os reformadores
sabiam então claramente da necessidade de uma reforma educacional, pois a Reforma
“também estava associado à reivindicação humanística pela reforma do fossilizado
sistema educacional escolástico” (SCHEIBLE, 2013, p. 34).

3. A REFORMA PROTESTANTE E A EDUCAÇÃO

Dois lemas da Reforma são necessários para analisar o lugar da educação no


projeto reformista: o sola fide e o sola scriptura. O sola fide abalou a mentalidade
medieval, que até então estava arraigada na salvação alcançada ou por obras ou por
indulgência. Com a Reforma, surgiu a ideia de que as boas obras e as indulgências não
eram suficientes para alcançar a salvação, pois a natureza depravada do ser humano
produz apenas obras provenientes do pecado, por isso a salvação é dada apenas
mediante a fé. Essa visão, consequentemente, acabou rompendo com outra tradição
medieval: a de que a Igreja intermediava a relação de Deus com o homem. Assim, se a
salvação é individual e pela fé, “o ser humano não precisaria ser intermediado por outro
indivíduo para chegar a Deus. O caminho passaria, então, pelas Escrituras” (VIEIRA,
2008, p. 25). Daí o sola scriptura e a importância de ler a Bíblia e ter livre acesso a ela.
De acordo com Boegner (1926, p. 14), citado por Biéler (2017, p. 50):

Já que a Bíblia substituiu os padres como autoridade, faz-se mister que


os fiéis, todos os fiéis, possam conhecê-la e empreendam um estudo
pessoal dela. É necessário, portanto, que ela seja traduzida para as
diversas línguas nacionais e que cada fiel aprenda sua língua materna
de modo que possa ler a Bíblia com proveito. Daí a necessidade de
uma instrução popular, pela qual a atividade intelectual do povo é
despertada e excitada.

Essas teses fortaleceram a ideia da igualdade geral perante Deus, que aos
poucos acabou rompendo concepções medievais de que algumas profissões, ofícios ou
diferenças de nascimento tornavam os homens diferentes entre si. De acordo com
Cambi (1999, p. 247), “no plano social, é superada a distinção de origem medieval entre
clero e laicato, entre ação religiosa e ação civil”.
Com todos os seres humanos nivelados perante Deus e alcançando a
salvação pela fé através da leitura da Bíblia, nada seria mais importante do que fornecer
uma alfabetização básica e universal, visto que, segundo Cambi (1999), o povo durante

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a Idade Média, e por muito tempo da Idade Moderna, é majoritariamente analfabeto. Por
isso, “Lutero compreendeu que a Educação Básica seria a pilastra para sustentar esse
novo edifício” (JARDILINO, 2009, p. 27).

3.1 Lutero e a Educação

É comum o hábito de enxergar Lutero como um rebelde ou revolucionário.


Todavia, “Lutero não era um radical” (HUBERMAN, 1986, p. 74) e “não via a si
mesmo como um agente da revolução eclesiástica, um Lênin ou um Robespierre do
século XVI que abalaria o mundo e derrubaria reinos” (GEORGE, 1993, p. 56). Lutero
nada mais era do que um homem de seu tempo, que na sua vida monástica praticou o
asceticismo, flagelou-se, confessava-se por horas, vivia atemorizado pela morte e
passou por profundas crises espirituais. Coisas comuns a um monge medievo. Quando,
já na qualidade de doutor em Teologia, Lutero publicou suas 95 teses, que em 15 dias se
espalharam por toda a Europa, ele:

certamente não tinha a intenção de modernizar a sociedade, iniciar a


Idade Moderna ou mesmo ativar uma revolução social. O período
moderno já estava a caminho enquanto o Reformador se engajava em
sua luta religiosa para encontrar um Deus misericordioso.
(LINDBERG, 2017, p. 440 apud BLASCHKE, 1993, p. 520)

A Igreja Protestante que surgiu do cisma de Lutero não era uma Igreja
revolucionária que visava a não intervenção do Estado, uma autonomia plena e uma
liberdade total de ação. Era nada mais do que uma Igreja com uma nova doutrina moral
e teológica, que assim como a Igreja Católica, se apoiava nos príncipes que lhe davam
abertura e garantia sua proteção estatal, na ausência de tal proteção, certamente o
projeto reformista de Lutero não teria sido bem sucedido. Segundo Pirenne (1992, p.
422, tradução nossa), “com o luteranismo, ao que parece, com efeito, é mais do que a
religião do Estado: é a Igreja do Estado”. Com isso, as atribuições eclesiásticas agora
passam a ser necessariamente atribuições estatais, entre elas, a educação.
Lutero teve contato com assuntos pedagógicos durante praticamente toda
sua vida. Foi discente, docente, e, como teólogo de carreira, viveu no ambiente
universitário até a velhice. As próprias 95 teses foram estruturadas em forma de debate
acadêmico. Segundo Lindberg (2017), durante sua infância e juventude Lutero se
deparou com um sistema educacional pouco edificante, o conhecimento era imposto aos
alunos e eram usadas técnicas de coerção e escárnio. Alguns alunos eram forçados a
trajar uma imagem de jumento e apanhavam com vara se falassem alemão ao invés de

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latim. Às vésperas da Reforma estava fomentada a concepção de que a educação era
uma perda de tempo se você não quisesse seguir carreira eclesiástica. Lutero se opôs
firmemente a isso. Com a experiência negativa de sua própria educação e com a urgente
necessidade já afirmada, o reformador começou então a expor suas opiniões acerca da
educação.
A visão educacional de Lutero é encontrada em quatro ocasiões: num breve
trecho da célebre carta À nobreza cristã da nação alemã acerca da melhoria do
estamento cristão de 1520, que graças à prensa móvel de Gutenberg, outra grande aliada
de Lutero, que em três semanas já havia sido distribuído 4.000 exemplares e em dois
anos teve 13 edições, se tornando um texto clássico da Reforma (FEBVRE, MARTIN,
2000, p. 376); Aos conselhos de todas as cidades da Alemanha para que criem e
mantenham escolas cristãs de 1524, reeditado muitas vezes em Wittenberg, Erfurt,
Nuremberg, Estrasburgo e outras cidades da Alemanha; no Uma prédica par que se
mandem os filhos à escola de 1530, e em uma obra em conjunto com os reformadores
Filipe Melanchthon, João Bugenhagen e Jorge Espalatino, editada pela primeira vez em
1528 e reeditada em 1538 chamada Instrução dos visitadores aos párocos, também
conhecida como Artigos de Visitação, no qual contém um capítulo dedicado a educação,
chamado Das Escolas. Houve ainda uma terceira edição em 1545 e toda parte
envolvendo assuntos pedagógicos é atribuída a Melanchthon.

3.1.1 À nobreza cristã da nação alemã, acerca da melhoria do estamento cristão

Nesse clássico panfleto que circulou por toda Alemanha se tornando um


best-seller na Europa, Lutero inicia sua crítica pedagógica. O trecho em que trata do
tema já se inicia à melhor maneira literária de Lutero:

As universidades também precisam de uma boa e profunda reforma.


Tenho que dizê-lo, aborreça a quem quiser. Afinal, tudo o que o
papado instituiu e estabeleceu está voltado tão-somente para o
aumento de pecado e erro. (LUTERO, 2015, p. 328)

Ao que se segue, Lutero retoma suas críticas ao culto escolástico prestado a


Aristóteles, não um ataque direto ao filósofo, mas sim ao método exaustivo, que
segundo ele, nessa metodologia não se aprendia mais nem a falar nem a pregar, tendo
tudo virado disputa e fadiga (LUTERO, 2015). Lutero ainda propõe reformas nos cursos
de Medicina, Direito e Teologia. No campo do Direito ele tece várias críticas ao direito

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canônico e ao direito secular. Ele próprio se propõe a reformar essas áreas. A saber,
Lutero antes de se tornar monge, formou-se em Direito a desejo de seu pai.
O principal aspecto nessa primeira intenção educacional de Lutero, é ter em
mente que se trata de uma educação puramente cristã e proposta pelo Estado. Não
existia laicidade estatal, tampouco educacional. Essa visão é demonstrada e
aperfeiçoada durante toda sua tratativa acerca da educação. Nesse primeiro texto, Lutero
não dá bases de como seria feito essa Reforma, é apenas um “start” para que os
territórios luteranos se preparassem para essa reforma tendo a educação cristã
protestante como base. Este trecho demonstra claramente essa concepção pedagógica:

Nas escolas superiores e inferiores a lição mais importante e comum


deveria ser a Sagrada Escritura, antes de qualquer coisa, e, para os
meninos pequenos, o evangelho. Queira Deus que cada cidade tivesse
também uma escola de meninas, na qual elas ouvissem o evangelho
uma hora por dia, seja em alemão ou latim! (LUTERO, 2015, p. 332)

Ao fim dessa breve tratativa, Lutero ainda tece críticas às escolas superiores
que buscavam apenas uma quantidade numerosa de alunos que buscavam cada qual ter
seu doutorado e que não tinham a Escritura Sagrada como princípio. Segundo Lutero, as
escolas superiores deveriam formar pessoas altamente entendidas na Escritura.
Podemos perceber a gênese de vários assuntos pelo quais Lutero iria
discorrer de maneira mais aprofundada futuramente. Seus principais textos e
fundamentações mais objetivas acerca do tema estavam por vir.

3.1.2 Aos conselhos de todas as cidades da Alemanha para que criem e


mantenham escolas cristãs

Este texto de Lutero surge de dois fatores: fama e necessidade. No período


de quatro anos entre a carta À nobreza cristã da Alemanha e este texto, lançado em
fevereiro de 1524, Lutero havia passado pelo momento mais conturbado de sua vida.
Após sua excomunhão em 1521 na Dieta de Worms, seus textos haviam sido banidos e
ele passou por um exílio no Castelo de Wartburg sob os cuidados de Frederico, o Sábio.
O fato aqui é que Lutero havia se tornado a pessoa mais famosa da Alemanha; “tudo
gira à volta e Lutero nesta época” (FEBVRE, MARTIN, 2000, p. 376). Essa fama lhe
atribuía obrigações. Entre essas obrigações a mais urgente era colocar na prática a sua
reforma educacional, visto que o declínio das universidades e escolas na Alemanha
estava cada vez mais acentuado. Segundo Vieira (2008), citando Witte Jr (2002), o
número era assustador; a Universidade de Colônia passou de 370 alunos em 1516 para

14
54 em 1524; em Viena, de 661 em 1519 para 12 em 1532; em Erfurt, de 2.000 em 1501
para 20 em 1529; em Leipzig, de 175 para 93 entre 1526-30, e até mesmo em
Wittenberg dos 245 matriculados em 1521 restou apenas 173 em 1527. Nas escolas, a
situação também era delicada, “[...] recebendo um atendimento precário, em geral
permaneciam em reduzido número. A maioria das crianças da Europa nem chegava a
frequentar a escola” (FISCHER, 2006, p. 205).
Essa baixa adesão ao ensino se deve pelo fato de que guerras político-
religiosas e revoltas, como a dos camponeses de 1525, estavam ganhando cada vez mais
força, e a instabilidade sócio-política gera naturalmente uma baixa adesão à educação.
Lutero (2018, p. 303) sabia dessa drástica situação: “Em primeiro lugar, constatamos
hoje em todas as partes da Alemanha que as escolas estão em abandono. As
universidades são pouco frequentadas e os conventos estão em declínio.” Todavia, ele
seguia firme com suas críticas aos modelos vigentes e apontando sempre a
cristianização da educação como solução:

Afinal, que se aprendeu até agora nas universidades e conventos a não


ser tornar-se burro, tosco e estupido? Houve quem estudasse vinte,
quarenta anos e não sabe nem latim nem alemão. [...] É bem verdade:
se as universidades e conventos continuarem como estão, sem a
aplicação de novos métodos de ensino e modos de vida para os jovens,
preferiria que nenhum jovem aprendesse qualquer coisa e que
ficassem mudos. Pois é minha opinião séria, meu pedido e desejo que
essas cocheiras e escolas do diabo mergulhem no abismo ou sejam
transformadas em escolas cristãs. (LUTERO, 2018, p. 306)

O clamor de Lutero para que as cidades alemãs criem e mantenham escolas


passava primeiramente pela necessidade de demonstrar a importância da própria
educação, já que existia no senso comum a ideia de que caso a pessoa não tivesse a
intenção de se tornar médico, jurista ou teólogo, não necessitava de educação. Lutero
responde a isso com um tom sarcástico: “Somos tocos e animais a tal ponto que
ousamos dizer: Para que escolas quando não se quer ser padre?” (LUTERO, 2018, p.
318), e ainda segue dizendo que “nenhum pecado exterior pesa tanto sobre o mundo
perante Deus e nenhum merece maior castigo do que justamente o pecado que
cometemos contra as crianças, quando não as educamos” (LUTERO, 2018, p. 307).
Na escalada para demonstrar a importância da educação, Lutero afirma
ainda que o progresso de uma cidade não depende apenas de riquezas, de fortificações,
de casas bonitas e de armamentos, mas antes, o melhor e mais rico progresso é quando a

15
cidade possuiu muitos homens bem instruídos, cidadãos ajuizados, honestos e bem
educados (LUTERO, 2018).
Outro interessante fator na visão educacional de Lutero, do qual ele já havia
indicado brevemente no À nobreza cristã da Alemanha era a questão da educação
feminina. Para Lutero, a mulher, assim como homem, estava em igualdade perante
Deus, ambos não necessitavam de intermediação para acessá-lo. Durante sua obra,
Lutero se mostrou preocupado com a posição da mulher na sociedade, advogou para o
fechamento de bordéis e escreveu tratados acerca do matrimônio. Segundo Jardilino
(2009, p. 55) “De certa maneira, a mulher é uma preocupação singular no pensamento
do reformador. Talvez por isso advogue a criação de escolas para mulheres em todas as
cidades”. No trecho em que Lutero expõe sua opinião ele diz que deve-se

instituir as melhores escolas tanto para meninos como para meninas


em toda parte, visto que também o mundo precisa de homens e
mulheres excelentes e aptos para manter seu estado secular
exteriormente, para que então os homens governem o povo e o país, e
as mulheres possam governar bem a casa e educar bem os filhos e a
criadagem. Ora, tais pessoas devem surgir dentre os meninos, e tais
mulheres devem surgir dentre as meninas. Por isso urge que se
eduquem meninos e meninas para isso (LUTERO, 2018, p. 318).

Fica claro o fato de que não se trata de uma revolução social ou de uma luta
pela igualdade de gênero, mas sim de fazer valer sua coerência em relação à educação
universal. Segundo Jardilino (2009), não podemos afirmar que se tratava de uma
compreensão moderna de igualdade entre gêneros, mas a consistência teológica da
doutrina do sacerdócio universal que abrange também a mulher, por isso em relação aos
direitos educacionais, são iguais. De certa maneira, no sentido educacional, essa
concepção de Lutero foi inédita.
Ao longo do texto, outro fator interessante merece ser destacado: a ideia de
Lutero de educar de maneira dinâmica envolvendo uma de suas artes preferidas, a
música:

Ora, a juventude tem que dançar e pular e está sempre à procura de


algo que cause prazer. Nisto não se pode impedi-la e nem seria bom
proibir tudo. Por que então não criar para ela escolas deste tipo e
oferecer-lhe estas disciplinas? [...] se eu tivesse filhos e tivesse
condições, não deveriam aprender apenas as línguas e história, mas
também deveriam aprender a cantar e estudar música [...] (LUTERO,
2018, p. 319).

A música ocupava um lugar especial na vida de Lutero, ele mesmo compôs


vários hinos que são entoados até os dias atuais nas igrejas protestantes. Até mesmo no

16
âmbito evangelístico ele utilizava dela, segundo Oettinger (2001) citado por Lindberg
(2017), Lutero evangelizava por meio de canções, pois elas incluíam todas as pessoas,
mesmo aquelas que tinham pouca formação. A música não exigia qualquer investimento
monetário de sua audiência e uma vez aprendidas não poderiam ser perdidas ou
confiscadas. Por isso Lutero se posiciona a favor de uma dinâmica educacional e ainda
chega a citar que era assim que os gregos educavam suas crianças e que dessa educação
“resultaram pessoas excelentes, preparadas para toda sorte de atividades” (LUTERO,
2018, p. 319).
Após destacar a importância da educação e expor algumas de suas ideias,
Lutero encerra o texto focando agora nas autoridades, para que elas se atentem a
reforma educacional e não se poupem de investir nas escolas:

Por último, recomenda-se a todos aqueles que se interessam pela


criação e manutenção de tais escolas e do estudo das línguas na
Alemanha, que não se poupem esforços nem dinheiro para a
instalação de livrarias ou bibliotecas, especialmente nas grandes
cidades que tenham condições para tanto (LUTERO, 2018, p. 322).

Com esse texto sendo reeditado e se espalhando pela Alemanha, várias


escolas e universidades foram fundadas ou reformadas. A “promessa” de Lutero de que
a educação melhoraria uma cidade ganhava fama. Todavia, Lutero acabou se deparando
com um problema ainda maior: de nada adiantava escolas e universidades se os pais não
incentivassem e mandassem seus filhos para elas.

3.1.3 Uma prédica para que se mandem os filhos à escola

Este sermão foi publicado em agosto de 1530 em forma de exortação. Nos


seis anos que se passaram entre o Aos conselhos de todas as cidades da Alemanha e este
texto, várias escolas e universidades na Alemanha foram fundadas ou estavam passando
pelo processo de reforma indicado por Lutero e com a orientação de Melanchthon e
Bugenhagen. As universidades de Wittenberg e Tubingen e as escolas da Turíngia e
Saxônia foram reformadas, a escola de Nuremberg fundada em 1526 e a universidade de
Marburgo em 1527 (NUNES, 1980; SCHEIBLE, 2013). A reforma educacional surtia
efeito, mas a mentalidade medieval se mostrou como um empecilho.
No texto anterior, Lutero já alertava para objeções como “para que escolas
quando não se quer ser padre?”, ou objeções mais práticas como a preocupação das
famílias em conciliar mandar os filhos para escola e eles fazerem o serviço doméstico:

17
“Quem pode dispensar seus filhos deste modo? Eles têm que cuidar do serviço em
casa”. Lutero (2018) respondeu a isso dizendo que os meninos devem ser enviados à
escola diariamente por uma ou duas horas e, não obstante, fazer o serviço de casa, para
que as duas coisas andem juntas, e uma menina pode dispender diariamente de uma
hora para ir à escola e, ao mesmo tempo, cumprir perfeitamente as tarefas domésticas.
Todavia, o povo parece não ter dado ouvidos a Lutero e muitas famílias
insistiam em não enxergar valor na educação. Começou a surgir então o pragmatismo,
do tipo: “Ora, desde que meu filho saiba escrever em alemão, ler e calcular, isso basta.
Ele será comerciante”. Por essas e outras, neste sermão, Lutero direciona seus
“canhões” aos pais, os responsáveis por “tamanha blasfêmia”. Sem perder sua finesse
literária, Lutero (2018, p. 331) diz que “entre as artimanhas do diabo uma das mais
importantes (se é que não é a mais importante) consiste em aturdir e enganar as pessoas
simples de tal maneira que não queiram mandar seus filhos à escola nem para o estudo”.
Pode-se observar que a resistência dos pais em mandarem os filhos para a
escola passava diretamente pela visão prática das pessoas comuns. Os filhos precisavam
trabalhar e ajudar em casa, e o tempo gasto na escola atrapalharia no trabalho e em casa.
Quanto a isso, Lutero (2018, p. 342) argumenta que: “O estudo não prejudica no
trabalho pelo sustento; pelo contrário, sabe administrar tanto melhor sua casa e, além do
mais, está preparado e apto para o ministério da pregação [...] caso se precisar dele”.
Por se tratar de um sermão, Lutero utiliza ainda várias passagens bíblicas
relacionadas à responsabilidade dos pais quanto aos filhos e sobre a confiança em Deus
para acreditar que se pode enviar o filho a escola e não morrer de fome. Sutilmente,
Lutero também responde a uma possível objeção intrínseca ao povo comum, que era em
relação à confiança na educação estatal, pois nem todas as famílias viam o Estado com
bons olhos. Advogando por motivos óbvios a favor do Estado, Lutero (2018, p. 346) diz
que “o regime secular é uma maravilhosa ordem divina e uma excelente dádiva de
Deus. Ele o instituiu e estabeleceu e quer vê-lo preservado, visto que dele não se pode
prescindir”. Isso não significa que as autoridades não tivessem deveres, na verdade,
desde o À nobreza cristã da Alemanha, Lutero atribui responsabilidades indispensáveis
ao Estado, e após exortar os pais, ele encerra a prédica exortando também as
autoridades:

Em minha opinião, porém, também as autoridades têm o dever de


obrigar os súditos a mandarem seus filhos à escola [...] As autoridades
se descobrirem um menino capacitado, procurem manda-lo à escola.

18
Se o pai for pobre, usem-se para isso os recursos da Igreja. Os ricos
deveriam destinar valores para essa finalidade em seus testamentos,
como fizeram alguns que instituíram bolsas de estudos (LUTERO,
2018, p. 362).
Com isso, é possível observar que a filosofia educacional de Lutero passa
diretamente pela universalização do ensino, pela gratuidade, obrigatoriedade, pelo dever
do Estado em garantir boas escolas e universidades, bons professores, uma boa
formação, e, sobretudo, uma educação puramente cristã protestante, pois apesar de
todos os esforços, Lutero não era um salvador da pedagogia alemã ou um revolucionário
educacional. No fundo, “não se pode negar que Lutero estava pensando no
desenvolvimento de sua reforma religiosa e, portanto, na preparação do clero
protestante” (JARDILINO, 2009, p. 49).
Lutero via na educação a base para o protestantismo. Atribuía ao Estado a
tarefa de executar suas demandas, e sabia que com uma educação de qualidade e
puramente cristã a capacidade intelectual do povo aumentaria e consequentemente a
qualidade do clero, dos governantes e da cidade como um todo. Mas deve-se ter em
mente que o público alvo e o ponto de partida dos reformadores para pensar a
universalização da educação, eram as grandes massas. À vista disso, outro fator
essencial veio à tona: a Bíblia e os grandes textos circulavam apenas em latim, língua
completamente desconhecida pelas massas iletradas (era comum apenas nos meios
intelectuais e universitários). Lutero em suas tratativas exigia o ensino do latim nas
escolas, mas pela urgência da demanda, o caminho mais rápido seria então traduzir a
Bíblia e os textos mais importantes para as línguas vernáculas, “por isso a ênfase nos
escritos em línguas vernáculas foi uma importante prática dos reformadores” (VIEIRA,
2008, p. 125).

3.1.4 A Bíblia de Lutero

Lutero iniciou sua tradução da Bíblia do latim para o alemão durante seu
exílio após a Dieta de Worms em 1521. Diferente das traduções anteriores à dele,
Lutero sempre se mostrou preocupado em chegar o mais perto possível do texto
original; “Lutero explicou que queria comunicar um alemão claro e vigoroso, não latim
ou grego. Assim, sua tradução foi guiada pelo uso linguístico das pessoas em casa, na
rua e no mercado [...]” (LINDBERG, 2017, p. 120).
Com a ajuda de uma aliada mais do que especial (a imprensa), os textos de
Lutero se espalhavam calorosamente pela Europa e ele fazia a fortuna de seus

19
impressores. Sua tradução do Novo Testamento ficou pronta em menos de três meses e
foi publicada em setembro de 1522. Em Wittenberg, ficou conhecida como
Septembertestament e foi reimpressa outras 14 vezes somente ainda em Wittenberg
entre 1522 e 1524. O Septembertestament ainda contou com mais outras 66
reimpressões em Augsburg, Basiléia, Estrasburgo e Leipzig. Em pouco tempo já
atingira 87 edições em alto-alemão e 19 em baixo-alemão. (FEBVRE, MARTIN, 2000;
FISCHER, 2006).
O Antigo Testamento, por sua vez, foi publicado plenamente somente em
1534 e também contou com centenas de edições pela Alemanha. Segundo Lindberg
(2017, p. 120), “no decorrer de sua vida, Lutero trabalhou continuamente para tornar a
Bíblia mais acessível a leigos por meio de traduções, prefácio explicativos e até mesmo
planos para uma versão “letra grande”, destinada a pessoas com visão debilitada”. Isso
demonstra a preocupação de Lutero com a acessibilidade da Bíblia e com a língua
vernácula.
A Bíblia seguia sendo traduzida e até o fim do século XVI já existia versões
do Antigo e do Novo Testamento em inglês, holandês, francês, polonês, tcheco, dentre
outros. A Bíblia se tornara o livro da moda. Sobre a obra de Lutero, de acordo com
Febvre e Martin (2000, p. 379):

Se considerarmos que a Bíblia constitui apenas uma parte da obra de


Lutero, juntando-lhe os sermões, as obras polêmicas (como, por
exemplo, À nobreza cristã da Alemanha) e ainda os catecismos, que,
manuseáveis e acessíveis, são mais procurados ainda, verifica-se que,
pela primeira vez, toma corpo uma literatura de massas, acessível a
todos.

Por se preocupar com a acessibilidade tanto da língua na Alta como na


Baixa Alemanha, Lutero “tentou impor à língua que forjava, regras que permitissem
realizar esse programa, e a difusão das suas obras, sobretudo da sua Bíblia, fez com que
ele se tomasse o legislador da língua alemã” (FEBVRE, MARTIN, 2000, p. 409). Pelo
trabalho desenvolvido em sua tradução da Bíblia, Lutero é considerado o legislador da
língua alemã, e “algumas das luzes literárias mais proeminente da Alemanha, tais como
Herder, Goethe e Nietzsche, elogiaram ao máximo a Bíblia de Lutero” (LINDBERG,
2017, p. 120 apud BLUHM, 1983, p. 178). Em termos educacionais, “a provisão de
Lutero de uma tradução legível e precisa da Bíblia foi um estímulo em relação à
educação universal [...]” (LINDBERG, 2017. p. 119).

20
Pode-se observar que Lutero sempre se mostrou um homem da prática. Sua
preocupação com a educação e com o projeto reformista como um todo, era uma
preocupação de ordem prática. De acordo com Vieira (2009, p. 135 apud ZULUAGA,
1972, p. 196), “Lutero deve ser lembrado como aquele que deu impulso prático e força
política à programação de um novo sistema escolar”. Todavia, quanto se trata de
pedagogia, as aplicações práticas de nada valem sem as fundamentações teóricas, e
quando se tratava de teoria, tornava-se assunto para o principal discípulo e herdeiro de
Lutero, seu ministro da educação: Filipe Melanchthon.

3.2 Melanchthon e a Educação

Filipe Melanchthon é um daqueles personagens que parecem estar


destinados a executar a tarefa que o destino lhe propusera. Era sobrinho-neto do famoso
humanista Johannes Reuchlin. Durante toda sua infância e juventude recebeu uma
educação humanística, vindo a se tornar um dos maiores grecistas da Alemanha.
Reconhecimento esse que, por indicação de seu tio, levou-o a se tornar o primeiro
professor de grego na Universidade de Wittenberg com apenas 21 anos em 1518.
No seu discurso de posse em 28 de agosto daquele mesmo ano,
Melanchthon se apresentou como um homem da renascença, e já propunha reformas
escolares. Segundo ele, em Scheible (2013, p. 31), “o desprezo pela língua grega, a
ignorância da matemática e o estado de abandono da teologia andam de mãos dadas”.
Todavia, “o programa reformador de Melanchthon não procurava eliminar as disciplinas
tradicionais; o que ele quer é conduzir os estudantes através do nevoeiro de informações
secundárias para aquilo que interessa, tal como é apresentado nas fontes” (SCHEIBLE,
2013, p. 31). Ainda em 1518, Melanchthon já publicaria sua Gramática Grega
(Institutiones Grammaticae Graecae) e o De corrigendis adolescentiae studiis (Sobre a
correção dos estudos dos jovens), no qual defende suas reformas humanísticas para a
restauração da cultura e uma melhor interpretação da Bíblia.
Observando atenciosamente a tudo isso, estava Lutero. Ele e Melanchthon
se tornariam amigos íntimos, e se Lutero não conseguiu a amizade que ele esperava com
os humanistas, Melanchthon o fez. Adepto fervoroso da Reforma, Melanchthon
mostrara que seria um homem essencial à causa reformista; desde os primeiros debates
sobre as 95 teses quando ele passava bilhetes e trocava informações com Lutero. Foi ele
também que redigiu o cartaz que convidava toda Wittenberg para o portão da cidade
para assistir a queima da bula papal Exsurge Domine, que ameaçava Lutero de

21
excomunhão caso não se retratasse sobre as 95 teses e após a Dieta de Worms apenas
ele sabia que Lutero estava vivo e exilado. Melanchthon redigiu as principais confissões
de fé luteranas e foi ele quem discursou no funeral de Lutero em 1546. Mas a
importância de Melanchthon seria ainda estrondosamente maior para Lutero e para a
Reforma.
Sempre sendo o especialista nas reformas pedagógicas, suas ideias
ganhavam força e em 1523 foi eleito o reitor da Universidade de Wittenberg. De acordo
com Scheible (2013, p. 38), durante sua gestão ele aproveitou para implantar um
regulamento que passava diretamente por duas de suas preocupações fundamentais
acerca da pedagogia:

O desenvolvimento das habilidades linguísticas por meio de


declamações e a implementação de um currículo estruturado de modo
a ajustar-se às necessidades individuais dos alunos mediante controle
por instrutores. Segundo esse regulamento, cada estudante precisa
comparecer pessoalmente perante o reitor, o qual então encaminha um
dos dois “pedagogos” do colégio, que elabora seu plano de estudos
pessoal. No regulamento de Melanchthon consta que nada é pior do
que aprender sem planejamento. O pedagogo decide quais preleções
serão assistidas e como o estudante deve treinar seu estilo e sua
linguagem.

Para Melanchthon o planejamento era o essencial para a educação, em sua


concepção, cada aluno deveria contar com um instrutor próprio para que cada instrutor
saiba planejar individualmente os estudos do discente. Porém, na prática, essa tese não
funcionou pela falta de professores e pela falta de disposição de ambas as partes. Ficou
estabelecido que apenas os iniciantes contassem com um instrutor exclusivo
(SCHEIBLE, 2013).
Ainda sobre a reforma universitária, o regulamento contava também com
regras gerais para os estudantes e professores, regras em relação à vestimenta, a
conduta, e também regras curriculares e em relação à rotina: discursos duas vezes por
mês, uma entre alunos e outra entre professores; debates uma vez por mês sobre física e
matemática; principiantes não poderiam frequentar preleções gerais antes que
comprovassem erudição, e entre outras. As disciplinas passavam por Física,
Matemática, Retórica, Dialética, Gramática, Filosofia e Teologia. Muitas dessas
matérias eram baseadas em escritos do próprio Melanchthon, que em 1521 já havia
publicado a primeira Teologia Sistemática da Reforma, O Loci communes rerum
theologicarum (Temas fundamentais de teologia) e em 1525 sua gramática latina
(Grammatica Latina).

22
Com a morte de Frederico, o Sábio, em 1525, seu irmão João, o Constante,
assumiu o governo e logo se atentou para a situação das universidades e escolas da
região. Com as pautas alinhadas, visto que os reformadores também estavam na missão
da reforma educacional, Melanchthon, Lutero e Bugenhagen saíram em visitas e
inspeções às escolas da Turíngia e da Saxônia nos anos de 1527 e 1528. Nessa altura,
sob a tutoria de Melanchthon, os reformadores juntamente com os prefeitos das
respectivas cidades já haviam fundado a Escola de Nuremberg em 23 de maio de 1526 e
a Universidade de Marburgo em 1º de julho de 1527. Os currículos e planos de estudo
tanto da escola como da universidade eram todos ditados por Melanchthon. Quando os
três voltaram das visitações na Turíngia e Saxônia, Melanchthon decidiu redigir um
manual de regras acerca do método pedagógico para os que se interessassem na reforma
educacional. Esse manual começou a figurar na obra de Lutero chamada Instrução dos
visitadores aos párocos, ou somente Artigos de visitação, que contava com várias
instruções relacionadas a teologia e a administração geral da igreja, e com um capítulo
chamado Das Escolas e suas três classes, é esse o capítulo que fez a influência de
Melanchthon se espalhar por toda a Alemanha.

3.2.1 Artigos de visitação: das escolas e suas três classes

De acordo com Cambi (1999), para Melanchthon, a ignorância é a maior


adversária da fé, por isso deve ser combatida (e não só no nível da infância) mediante
uma radical reforma das escolas. As bases teóricas dessa reforma estão expostas nesse
texto, que começa com Melanchthon (2000, p. 306) indicando os pregadores para que
exortem os pais a enviarem seus filhos às escolas: “Os pregadores também devem
exortar as pessoas a enviarem seus filhos às escolas, para se criarem pessoas aptas para
ensinar na Igreja e gerir outros negócios”. Observa-se que o próprio Lutero acatou essa
indicação ao escrever a prédica de 1530.
Em seguida, Melanchton (2000, p. 307) estabelece três tópicos sobre a
correta instrução dos jovens:

Ora, as escolas dos meninos têm muitas falhas. Para que a juventude
seja instruída corretamente, estabelecemos a seguinte ordem: Em
primeiro lugar, os professores devem empenhar-se a ensinar somente
o latim aos alunos, não o alemão, o grego ou o hebraico, como alguns
vinham fazendo até agora, sobrecarregando as pobres crianças com
tanta variedade [de línguas]. Isso não só é infrutífero, mas inclusive
prejudicial [...]. Em segundo lugar, não devem sobrecarregar os alunos

23
com muitos livros, mas evitar, de todas as formas, a multiplicidade.
Em terceiro lugar, é necessário dividir os alunos em classes.

Percebe-se que Melanchthon e Lutero estavam alinhados no discurso,


Lutero também recomendava com urgência o ensino do latim e alertava para a não
sobrecarga dos alunos, ambos defendiam a dinâmica do ensino, o diferencial está na
divisão das três classes propostas por Melanchthon.
A primeira classe é formada pelos alunos que estão aprendendo a ler.
Inicialmente deve ser usado o “Manualzinho das Crianças”, que continha o Pai-Nosso, o
Credo, o Ave-Maria, os Dez Mandamentos, as passagens bíblicas de Salmos 66, Mateus
5-7 (o Sermão da Montanha), João 13, Romanos 12, e com algumas outras orações e
ditos. Após dominarem o manualzinho, se aplicaria a Ars grammatica, gramática do
linguista romano Donato e a Dicta Catonis, livro sobre ética popular de Catão. O
professor deve expor um ou dois versos, que os alunos deverão recitar na próxima vez,
para que, dessa maneira, aprendam uma grande quantidade de palavras latinas e
adquiram um vocabulário para se expressarem (MELANCHTHON, 2000). Visando a
fluência no latim, ainda na primeira classe recomendava-se a memorização de
vocábulos e a mostra da lição de casa todos os dias.
A segunda classe consiste nos alunos que sabem ler e agora irão aprender a
gramática. Nessa classe, todos os alunos devem estudar e exercitar música (outra vez se
percebe a influência de Lutero). Em seguida, é aplicado as fábulas do poeta Esopo, a
pedagogia do professor Pedro Mosellano, e os Colóquios de Erasmo. Na próxima fase
se aplica as comédias de Terêncio e depois as de Plauto. Para Melanchthon (2000, p.
309), “os alunos devem recitar de memória as regras gramaticais, para que sejam
compelidos e incitados a aprenderem bem a gramática”. Melanchthon adverte que um
dia da semana deve ser ensinado somente as escrituras, e para o avanço do
entendimento os alunos devem recitar alguns salmos, e com o desenvolvimento da
classe, pode-se começar expor gramaticalmente o evangelho de Mateus, as cartas de
Paulo a Timóteo, a primeira epístola de João e os Provérbios de Salomão.
Na terceira e última classe, após estarem bem exercitados na gramática,
deve-se aplicar os poetas clássicos Virgílio, Ovídio e Cícero. Após isso, deve-se estudar
etimologia, sintaxe, dialética e retórica. É exigido do aluno que toda semana se elabore
uma carta ou poema. Melanchthon encerra a instrução alertando os professores para
que, se possível, falem somente em latim com os alunos.
Cambi (1999, p. 251), comentando sobre os Artigos de visitação diz:

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Além de elencar de maneira muito detalhada as matérias de estudo e
até mesmo as suas horas de ensino, o plano fornece indicações úteis
sobre o método de aprendizagem que dá muito espaço à leitura e à
conversação, mais que à gramática e à sintaxe, cuja utilidade não é,
todavia, posta em dúvida para um melhor aprendizado e uso da língua.
No mesmo plano, Melanchton atribui às autoridades civis a tarefa de
instituir e financiar as escolas e de nomear professores dotados de boa
cultura clássica.

Essa divisão em classes se parece muito com as divisões tradicionais do


ensino de hoje (básico, fundamental e médio). O fato é que Melanchthon conseguiu
aliar a renovação educacional humanística com a ortodoxia protestante, fundindo a
cultura clássica com a piedade cristã. Sua genialidade e erudição foram reconhecidas e
os frutos de sua reforma educacional foram de suma importância para a nação alemã.
Sob sua vistoria, muitas universidades e escolas foram fundadas ou reformadas,
inicialmente em Wittenberg, que se tornou a mais popular universidade da Alemanha,
em seguida, as universidades de Marburgo, Jena, Koenigsberg, Greifswald, Colônia,
Dorpat, Leipzig, Tubingen, Halmstad e Heidelberg, além das escolas de Nuremberg,
Meissen. Grimma e Pforta (NUNES, 1980; SCHEIBLE, 2013; FERREIRA, 2014).
Segundo Lopes (2003, p. 49):

Não havia uma cidade, em toda a Alemanha, que não tivesse


modificado as suas escolas, de acordo com o conselho direto do nobre
cristão, e não havia quase nenhuma escola importante que não
contasse com alguns de seus antigos alunos entre os professores. O
prestígio de Melanchthon era notório, pois, quando algum príncipe
necessitava de um professor para sua universidade ou para uma
cidade, um reitor para suas escolas, ele era consultado e geralmente
um dos seus alunos era o escolhido.

Scheible (2013, p. 57), nesse mesmo sentido, afirma que “a influência de


Melanchthon não se limitava à sua presença pessoal, mas suas ideias surtiram efeito em
muitos lugares por meio de seus alunos e também de seus escritos”. Entre esses
influenciados por Melanchthon estão alguns importantes nomes da pedagogia na região
germânica, como o de Valentin Friedland Trotzendorf, Johann Sturm, Miguel de
Neander e Nicolaus Hemmingius.
Nas palavras de Nunes (1980, p. 181), “O pequeno e feioso Melanchthon
introduziu a educação humanística no sistema de ensino protestante e foi chamado de
Preceptor Germanieae”. O título de preceptor da Alemanha se faz justo mediante a
contribuição do “pequeno feioso” erudito e sempre cauteloso Melanchthon. O próprio
Lutero reconheceu a erudição de Melanchthon ao dizer que “prefiro os livros do

25
Magister Filipe aos meus, também prefiro que eles estejam sendo usados, em latim e em
alemão, mais do que os meus” (SCHEIBLE, 2013, p. 171). Com as ações de Lutero,
Melanchthon, Bugenhagen e outros reformadores alemães, “[...] a Alemanha liderou a
alfabetização europeia no século XVI” (FISCHER, 2006, p. 206). Porém, essa liderança
não foi incontestável, seus vizinhos suíços também estavam na disputa após aderiram a
Reforma.

3.3 Calvino e a Educação

João Calvino é considerado o sistematizador da Reforma e o principal nome


da segunda geração de reformadores. Na sua infância e juventude foi educado nos
moldes humanísticos e acabou se tornando um deles. Seu primeiro trabalho acadêmico,
o Comentário sobre o De Clementia de Sêneca, de 1532, quando ainda era um estudante
de Direito, já mostrava suas habilidades humanísticas. Quando se converteu ao
protestantismo, as ideias reformistas já haviam alcançado grande parte da Europa, como
a Boêmia, Inglaterra, Países Baixos e especialmente na Suíça, onde Calvino, fugindo da
perseguição religiosa na França, encontrou refúgio, especificamente na cidade de
Genebra, lugar onde fez carreira como reformador religioso e social.
Uma das principais características da Reforma é sua não homogeneidade.
Na altura de 1530, a Reforma já tinha se tornado Reformas. Havia muitas discordâncias
entre os reformadores, não somente teológicas como também políticas e sociais,
especialmente entre as tradições suíça e alemã. Pela enorme diferença contextual de
Lutero e Melanchthon, Calvino não concordava com a submissão ao Estado ensinada
por eles. Segundo Beauvais (1976, p. 47) citado por Biéler (2017, p. 35):

Se o ramo luterano conservador estimula submeter-se às leis de um


mundo criado por Deus, as tendências individualistas e liberais do
espírito democrático agitam o calvinismo desde a Reforma: os
pastores genebreses haviam adquirido muito cedo o hábito de criticar,
do púlpito, os homens do poder e de apelar para o povo contra eles.

Sem a submissão plena ao Estado, a visão de Calvino reforça que algumas


tarefas deveriam ser, indispensavelmente, tarefas da própria igreja, e não do Estado.
Com isso, a educação, que em Lutero e Melanchthon era atribuição estatal, em Calvino
é uma atribuição e um dever eclesiástico. “Na visão de Calvino, a igreja não era apenas
mãe, mas também escola. De fato, ele frequentemente combinava as duas metáforas”
(GEORGE, 1993, p. 238).

26
Isso não significa que Calvino discordava da tradição pedagógica proposta
por Lutero e Melanchthon, exceto a discordância sobre o meio que fornece a educação.
As outras concepções eram totalmente aceitas: a ideia de que a ignorância é inimiga da
fé; a tese da educação como instrumento para o aumento da piedade cristã; a junção do
humanismo com a ortodoxia protestante; a universalização e gratuidade da educação;
colégios femininos, e educação simples e bem dividida. Todas essas concepções
fizeram-se presentes da visão educacional de Calvino.
Convém pautar que, diferente de Lutero e Melanchthon, Calvino não
escreveu textos diretamente relacionados à educação, seja em forma de metodologias ou
focado em teorias pedagógicas. A questão da educação em Calvino está internalizada
em sua concepção antropológica do que é o homem. Calvino aceitava vigorosamente a
tese reformada da depravação total. Para ele, o pecado obscurecia a alma humana, por
isso, educar o ser humano, segundo ele, é dá-lo a chance de encontrar-se com Deus, e o
objetivo último da educação é mostrar ao ser humano, por meio dos textos sagrados, sua
essência divina e sua relação com Deus (VIEIRA, 2008). Portanto, para Calvino, “a
educação não é um fim em si mesmo, mas uma ferramenta imprescindível e útil a sua
teologia. A educação é, pois, a base para o conhecimento da verdade que liberta”
(VIEIRA, 2008, p. 149).
Calvino escreveu em 1536, na época com apenas 27 anos, a primeira edição
daquele que viria a ser o livro mais importante de toda a Reforma Protestante, a
Instituição da Religião Cristã (Christianae Religionis Institutio), também conhecido
como Institutas. De acordo com George, (1993, p. 178, grifo nosso):

O propósito básico das Institutas, porém, era catequético. Desde a


época de sua conversão, Calvino fora pressionado a atuar como
professor daqueles que estavam famintos pela fé verdadeira. [...] Ele
sabia, de primeira mão, a necessidade urgente de um manual de
instrução claramente escrito, que apresentasse os rudimentos de uma
teologia bíblica e levasse os jovens cristãos a uma maior compreensão
da fé.

A edição definitiva das Institutas sairia somente em 1559, nessa primeira


edição de 1536 e na próxima em 1539, Calvino mostrou-se preocupado em ensinar com
uma linguagem clara e convincente. De acordo com Muller (2004, p 132 apud
LINDBERG, 2017, p. 284), “o método de Melanchthon é particularmente evidente nas
Institutas de Calvino”.

27
Apesar dessas primeiras edições das Institutas carregarem essa preocupação
com uma educação clara e convincente, a primeira afirmação nítida da importância da
educação nos textos de Calvino, aparece somente em suas Ordenanças Eclesiásticas de
1541, direcionadas a Igreja de Genebra, onde ele afirma que:

[...] tendo em vista que somente é possível tirar proveito das aulas se
houver, em primeiro lugar, o ensino de línguas e humanidades, e
também porque é necessário educar as próximas gerações para que
não se deixe a igreja deserta para nossos filhos, um colégio deve ser
instituído para instruir as crianças. Preparando-as para o ministério e
para o governo civil (GREGGERSEN, 2003 apud LEITH, 1996).

Calvino deixa claro sua influência humanística ao advogar o ensino das


“línguas e humanidades”. A influência dos textos pedagógicos de Lutero e Melanchthon
também se faz presente quando ele afirma que a educação serve tanto para o ministério
como para o governo civil. Assim como Lutero e Melanchthon instruía seus
governantes a fundarem escolas, Calvino também o fez, porém instruiu a Igreja, para
que fundasse uma escola em Genebra. Esse desejo de Calvino se concretizou somente
em 1559, a fundação da Academia de Genebra foi principal medida tomada por ele em
relação à educação e a oportunidade que ele esperava para ampliar suas reformas.

3.3.1 A Academia de Genebra

É inevitável que a intenção de Calvino em fundar uma escola em Genebra


sempre fora a mesma de toda filosofia educacional protestante: preparar os jovens
vocacionados para o ministério e os cidadãos comuns para a administração da cidade e
para outros ofícios. A Igreja deveria ser a mãe condutora de todo esse processo
educacional e o estudo das sagradas escrituras na base de toda pedagogia. Sem a
possibilidade do apoio financeiro do Estado, o próprio Calvino foi quem começou a
angariar recursos para a compra do terreno e para construção da escola. Segundo
Campos (2000), Calvino arrecadou 10.024 guilders e mais 3.526 por doações
espontâneas, somando ao todo 13.550 guilders, o que seria equivalente a
aproximadamente 40 mil reais hoje. Com esse valor, o prédio começou a ser construído.
A Academia de Genebra foi inaugurada no dia cinco de junho de 1559, com
Teodoro de Beza, amigo e sucessor de Calvino, como reitor. Os estatutos da Academia
foram todos escritos por Calvino e o plano pedagógico se dividia em duas partes: schola
privata, que seria uma espécie de ensino básico para adolescentes até os dezesseis anos,
e a schola publica, correspondente a universidade.

28
Na schola privata, o conteúdo era dividido em sete classes, começando pela
classe 7, que seria a inicial. Nessa classe as crianças começariam a conhecer as letras e a
composição das palavras no latim e no francês. Na classe 6 desenvolveriam as
conjugações de verbos e começariam a adentrar nos catecismos. Na classe 5 teriam o
primeiro contato com a escrita lógica e com a construção de sentenças. Na classe 4 as
crianças concluiriam a gramática latina, com textos de Cícero e Ovídio. Na classe 3
adentrariam ao mundo da gramática grega, com Virgílio e outros. Na classe 2
estudariam história com os clássicos Tito Lívio, Xenofonte, Heródoto e Homero, e
claro, a história dos evangelhos. Na classe 1 começava os estudos avançados de lógica e
retórica (VIEIRA, 2008).
Percebe-se que a maior preocupação na schola privata é com a leitura, com
a escrita e com o desenvolvimento da fala. De acordo com Campos (2000), “em cada
ano, ao final de abril, o aluno tinha de apresentar um ensaio em francês e, se aprovado,
traduzi-lo para o latim”. Essa ênfase na gramática, na leitura e na fala, aproxima a
schola privata do Trivium mais do que do Quadrivium, pois matérias como a
matemática e a música estavam ausentes na schola privata, sendo estudadas a partir da
schola publica.
Após concluírem a schola privata, o aluno se ingressaria na schola publica,
correspondente a universidade. Nessa fase, o aluno se adentraria ao mundo do hebraico,
do grego e das artes, e, sobretudo, ao mundo da teologia. Apesar do foco na teologia, o
método humanístico sempre se fizera presente, pois os alunos liam também a Platão,
Aristóteles, Plutarco e Cícero. Na schola publica os alunos também mantinham maior
contato com a física e com a matemática, e eles deviam “defender publicamente suas
teses, enquanto outro aluno era preparado para questioná-las” (VIEIRA, 2008, p. 166).
Apesar do teor universitário da schola publica, ela se diferenciava das
universidades tradicionais, pois não cobrava taxas, não concedia graus, e nem possuía
associações de estudantes. Por Genebra ter se tornado um refúgio para os protestantes
de toda Europa, a Academia crescia e até a morte de Calvino em 1564 já contava com
1600 alunos. Calvino insistiu que a Academia ficasse sob o controle da Igreja e que
todas as indicações partissem dela. Ele exigia também a responsabilidade dos alunos
que deveriam ter frequência às reuniões públicas de instrução, nas quais havia o ensino
do catecismo; ter diligência no seu estudo, pessoal das escrituras; ter responsabilidade
de exercer vigilância sobre a sua própria vida. Dessa forma, eles aprendiam a ser
responsáveis em matéria de obediência (CAMPOS, 2000).

29
A Academia, juntamente com o brilhantismo dos escritos de Calvino, fez
com que Genebra se tornasse o centro da Reforma Protestante, de acordo com Campos
(2000):
Não somente Genebra, mas outras regiões da Europa foram
diretamente afetadas pela criação da Academia [...]. Os lideres das
igrejas reformadas do continente e da Grã-Bretanha foram fortemente
influenciados pelas aulas de Genebra [...]. É perfeitamente justo dizer
que não somente a Academia, mas todo o contexto da cidade de
Genebra, ou seja, o contexto académico, politico, litúrgico e teológico
afetaram positivamente toda a Europa e, posteriormente, o continente
americano. O sucesso da Academia foi extraordinário. Ela foi o berço
de grande parte do ministério protestante da Europa naquela época.
Ali surgiram os pregadores e mestres mais importantes do
protestantismo europeu. Todas as igrejas enviavam os seus jovens
para serem preparados em Genebra [...].

A influência de Genebra se espalhava por todo o continente. Outros


reformadores companheiros de Calvino difundiam a pedagogia reformada; Guilherme
Farel escreveu sobre a educação das crianças; Pierre Viret fundou a Academia de
Lausanne em 1537; Antonio Froment fundou uma escola em Molard; John Knox,
fundador do presbiterianismo, atuando na Escócia, escreveu sobre a educação e instruiu
que ao lado de cada igreja houvesse também uma escola. Na França, segundo Giles
(1987, p. 198 apud VIEIRA, 2008, p. 168), os calvinistas, chamados de huguenotes,
fundaram oito universidades e 32 colégios, além de várias escolas primárias (NUNES,
1980; VIEIRA, 2008).
Em termos pedagógicos, pode-se afirmar que havia uma “filosofia
educacional” protestante, iniciada por Lutero, teorizada por Melanchthon, ampliada por
Calvino, e aplicada por vários outros reformadores. Os melhores resultados certamente
saíram de Genebra, pois de lá, essa filosofia se espalhava através dos alunos e
professores. “Do ponto de vista educacional, o movimento calvinistas foi quiçá mais
eficiente que o próprio movimento luterano” (VIEIRA, 2008, p. 169 apud
LUZURIAGA, 2001, p. 112).
O fato é, que, aonde quer que a Reforma Protestante chegasse, essa filosofia
educacional ia junto. Na grande maioria dos países protestantes isso é perceptível, pois
os efeitos dessa filosofia não se limitaram apenas ao período da Reforma, se estenderam
adiante, fundando escolas e universidades de altíssimo valor para a sociedade.

4. SÍNTESE DAS CONTRIBUIÇÕES

30
As contribuições da filosofia educacional protestante podem ser destacadas
não somente em níveis pedagógicos, mas também em níveis sócio-políticos, pois, a
ampliação do ensino afeta consequentemente a sociedade como um todo. A base por
trás da democratização da educação idealizada pelos reformadores é a ideia do
sacerdócio universal de cada crente, pelo qual, sem mediação alguma, tem a liberdade
de alcançar Deus e de ler as escrituras sagradas, sendo cada indivíduo responsável por si
e pelos seus atos. Essa “individualização” alavancada pela Reforma fez surgir novos
ideais políticos e científicos, que de maneira irredutível, passam pela valorização da
educação universal e da ampliação das instituições de ensino.
Após o período da Reforma continuaram a surgir novas universidades de
cunho protestante. Na Alemanha, é fundada a Universidade de Altdorf em 1622,
Estrasburgo em 1621, Kiel em 1665, Giessen em 1607, Rinteln em 1621 e Duisburg em
1655. Na região dos países baixos, recém-independente da Espanha e de grande
influência calvinista, foi fundada a Universidade de Leiden em 1575, de onde saíram
nomes como o de Descartes, Spinoza e Rembrandt, além de Groningen em 1614,
Amsterdam em 1632 e Utrecht em 1636. Na Inglaterra, as guerras religiosas sempre
atrasaram o processo de implantação da filosofia educacional protestante, todavia,
observa-se que figuras protestantes como John Dury e o poeta John Milton escreveram
tratados acerca da educação e eram favoráveis a uma educação pública oferecida pelo
Estado. Nos EUA, terra de muitos puritanos refugiados, é fundada a Universidade de
Harvard em 1636, o nome se deve ao pastor puritano John Harvard, que doou 780 libras
e 400 livros para o que viria a ser uma das maiores universidade dos EUA e do mundo;
Yale, fundada em 1701, Princeton em 1746, Columbia em 1754 e várias outras, todas
por iniciativas religiosas de cunho protestante (VIEIRA, 2008; NUNES, 1981).
Lutero, Melanchthon e Calvino não encaixam no quadro de filósofos da
educação como conhecemos hoje, talvez Melanchthon seja o que mais se aproxima,
mas, certamente, uma das principais contribuições da filosofia educacional reformada é
exposta na obra de João Amós Comenius, esse sim é filósofo da educação e pode ser
considerado o principal sistematizador da pedagogia protestante.
Na Didática Magna, a influência da pedagogia protestante pode ser
observada em várias passagens: “as crianças devem aprender desde o princípio da vida a
ocupar-se principalmente com as coisas que conduzem diretamente a Deus, como o
estudo das Sagradas Escrituras, os exercícios de culto divino e as boas ações”
(COMENIUS, 1997, p. 277 apud LOPES, 2003, p. 180). A máxima “ensinar tudo a

31
todos”, sem dúvida, é baseada nos pressupostos teológicos de Comenius, que, de acordo
com Lopes (2003, p. 187, grifo o autor):

[...] o pressuposto teológico de Comenius a respeito do homem


conduziu-o a defender a democratização escolar – Se o homem é
“imagem e semelhança de Deus” e necessita ser formado para que seja
homem perfeitamente, todos devem ter as mesmas oportunidades
quanto aos estudos: ricos, pobres, homens e mulheres.

Comenius é visto por muitos como o pai da pedagogia moderna, como o


difusor do livro didático e do método de aula expositivo. Ajuntando e somando a
filosofia educacional protestante, “assim, da mesma forma que a Reforma Protestante
deve a Calvino sua sistematização, os estudos pedagógicos devem-na a Comenius e à
sua Didática Magna” (LOPES, 2003, p. 190).
A filosofia educacional protestante também se fez presente no Brasil durante
e após o estabelecimento da religião no país. O missionário pioneiro do
presbiterianismo no Brasil, Ashbel Green Simonton, em 1867, afirmou que um “meio
indispensável para assegurar o futuro da igreja evangélica no Brasil é o estabelecimento
de escolas para os filhos de seus membros” (HACK, 2000, p. 59 apud SIMONTON,
1867). James Cooley Fletcher, também missionário presbiteriano e amigo de Dom
Pedro II, “escreveu ao Imperador que gostaria de falar-lhe sobre a educação pública e a
educação da escola comum no Brasil” (HACK, 2000, p. 60 apud FLETCHER, 1866).
Na prática, dois colégios foram abertos por protestantes no início do protestantismo no
Brasil; a Escola Americana, fundada em São Paulo no ano de 1870 pelo missionário
George Whitehill Chamberlain, da Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos do Norte
(PCUSA), e o Colégio Internacional, fundado em Campinas no ano de 1869 pelo
missionário George Nash Morton, da Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos do Sul
(PCUS). Os colégios protestantes não eram exclusivistas e nem paroquiais, eram abertos
a todo tipo de forma confessional e serviam como uma forma de evangelização e de
propaganda indireta, buscando trazer as elites nacionais em prol da causa protestante
(LÉONARD, 1981).
A Escola Americana obteve maior sucesso, crescia em número de alunos e
de reconhecimento, até 1885 já contava com um Jardim de Infância, um curso Normal,
um Instituto Teológico e um Instituto Literário. A fama da Escola Americana fez com
que ela recebesse uma visita do imperador Dom Pedro II em setembro de 1878. Em
1885 foi inaugurado o primeiro prédio da Escola e Rui Barbosa foi convidado para ser
orador, que por ocasião de enfermidade não pode comparecer. Um ano depois, em 1886,

32
a Igreja Presbiteriana anexou a Escola Americana ao Protestant College at São Paulo,
em 1897 mudaram o nome para Mackenzie College at São Paulo, que se tornaria a
Universidade Presbiteriana Mackenzie, atuante até os dias atuais.
O Colégio Internacional, por sua vez, havia contraído muitas dívidas e seu
fundador George Nash Morton encerrou suas atividades no colégio em 1879. O Colégio
passou por novas administrações e após um surto de febre amarela em Campinas
mudou-se para a cidade de Lavras em 1893, assumindo o nome de Instituto Evangélico.
Sob a direção do missionário Samuel Rhea Gammon, o Instituto até 1908 já contava
com 195 alunos e com uma variedade de cursos e setores; Ginásio e curso Normal,
Escola Técnica de Comércio, Colégio Evangélico, Escola de Agricultura e cursos de
música (HACK, 2000).
Foi ao cursar o Ginásio em Lavras que o patense Antônio Dias Maciel,
sobrinho do Dr. Olegário Dias Maciel e filho do Cel. Farnese Dias Maciel se converteu
ao protestantismo e levou as ideias protestantes para Patos de Minas. O protestantismo
já marcava presença em Patos desde 1889 com o casal John Thomas Smith e Eliza Jane
Smith. Eliza já mostrava as inclinações protestantes à educação e foi a primeira
orientadora de uma escola feminina na cidade (FONSECA, 1974). Antônio Dias Maciel
impulsionou e deu maior visibilidade ao ainda embrionário protestantismo em Patos.
Entre 1929 e 1931, ele fundou o Colégio Sul-Americano, de orientação presbiteriana.
Esse colégio veio a se tornar a Escola Normal de Patos em 1933, sendo o Dr. Antônio
Dias Maciel o primeiro Diretor da escola. Em 1968 a Escola receberia o nome de Escola
Estadual Professor Antônio Dias Maciel, em homenagem ao seu fundador. A Escola é
atuante em Patos de Minas até os dias atuais.
Em termos gerais, acerca da filosofia educacional protestante no Brasil, de
acordo com Mendonça (2008, p. 145):

Podemos avaliar a importância do sistema educacional protestante,


considerando que o protestantismo é minoria religiosa no Brasil, ao
verificarmos que hoje, depois de cessada ou quase cessada a atividade
das missões americanas, conta o protestantismo com mais de trinta
colégios, quase todos eles de significativa expressão [...]. Apesar do
aparente desinteresse inicial das missões pelos cursos superiores, há
hoje pelo menos três universidades protestantes e diversas faculdades
isoladas ou federadas em funcionamento. Tais escolas superiores, em
sua maioria, evoluíram de colégios fundados no século XIX.

33
Percebe-se que os países de maior influência protestante lideraram o
desenvolvimento dos sistemas educacionais e de índices de alfabetização pelo mundo.
De acordo com Giddens (2012, p. 611):

A maioria dos sistemas educacionais modernos tomou forma nas


principais sociedades ocidentais na primeira parte do século XIX,
embora a Inglaterra tenha sido mais relutante que a maioria dos outros
países para estabelecer um sistema nacional integrado. Na metade do
século XIX, os Estados da Holanda, Suíça e Alemanha tinham
matrículas mais ou menos universalizadas nas escolas fundamentais,
mas a Inglaterra e o País de Gales estavam muito longe dessa meta; a
educação na Escócia estava um pouco mais desenvolvida já em um
estágio anterior. Os Estados Unidos, por outro lado, já tinham por
volta de 50% dos indivíduos de 5 a 19 anos na escola em 1850.

Em contrapartida, de acordo com os dados levantados pela Enciclopédia


Britânica de 1940 e na Encyclopedia Social Sciences, países que não receberam
influência protestante em níveis educacionais lideravam os índices de analfabetismo até
a década de 1940. Portugal com 65%, Espanha com 44%, Polônia com 32%, Itália com
26%, Áustria com 16%, Bélgica e França com 11%. Os países de influência protestante,
por sua vez, já contava com números de analfabetismo ínfimos em comparação aos
demais, a Alemanha com 0,9%, Suíça com 0,4%, Holanda com 0,3% e Inglaterra com
0,3% (GOMES, 2000, p. 101).
Obviamente, não pode-se contar apenas com fatores religiosos para a
determinação desses números, fatores econômicos e políticos também são
determinantes. Todavia, é inegável que as origens religiosas protestantes e sua visão
educacional contribuíram para esse desenvolvimento, pois, muito do que ocorre na
economia e na política, começa na educação.
Max Weber percebeu que altos níveis educacionais consequentemente
corroboram para um maior avanço econômico. Como nos países protestantes a educação
sempre se mostrara avançada, Weber percebeu também que os protestantes não só
valorizavam a educação, mas que com a passar do tempo valorizavam também o tipo de
educação. Sempre voltado para as áreas comerciais e administrativas, a escolha
educacional protestante certamente colaborou para o avanço do capitalismo nos países
de cunho protestante:

[...] entre os próprios formados católicos, a porcentagem dos que


receberam formação em instituições que preparam especialmente para
os estudos técnicos e ocupações comerciais e industriais, e em geral
para vida de negócios de classe média, é muito inferior à dos
protestantes. [...] os protestantes são fortemente atraídos para as

34
fábricas, para nelas ocuparem, cargos superiores de mão-de-obra
especializada e posições administrativas. A explicação desses casos é,
sem dúvidas que as peculiaridades mentais e espirituais adquiridas do
meio ambiente, especialmente do tipo de educação favorecido pela
atmosfera religiosa da família e do lar, determinaram a escolha da
ocupação e, por isso, da carreira (WEBER, 2001, p. 37).

Refletido essas tendências em termos de IDH, percebe-se que países de forte


tradição originária no protestantismo figuram sempre entre primeiros, como Suíça,
Noruega, Islândia, Suécia, Alemanha, Holanda, Dinamarca e Finlândia (BIÉLER, 2017;
SOUZA, 2007).
Outro interessante número que destaca a importância dos protestantes ao
desenvolvimento da educação e dos estudos pode ser observado na religião dos
laureados ao prêmio Nobel. De acordo com a socióloga americana Harriet Zuckerman
(1977), dos laureados ao prêmio Nobel entre 1901 e 1972, na área das Ciências
Biológicas, 53,6% eram protestantes; na área de Ciências Biológicas incluindo
Medicina, 60,9%; na área da Química, 84,2 % e na área da Física, 58,6%.
Em termos de teoria pedagógica, além do já mencionado Comenius, nomes
como Johann Pestalozzi e Friedrich Frobel eram protestantes e desenvolveram suas
teorias baseado nos pressupostos estabelecidos pelo protestantismo. Percebe-se que as
preocupações com a educação espiritual se faz presente e ocupa lugar central na obra de
ambos.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Findada essa pesquisa, conclui-se que a educação ocupou lugar central na


Reforma Protestante. Alister McGrath (2007, p. 104) argumenta que, até mais do que a
própria Teologia, o que indicava para os reformadores “a dificuldade mais séria era a
ignorância e indiferença religiosa, exigindo, portanto, uma resposta pedagógica”.
Localizada em uma época de mudanças sociais, a Reforma Protestante acabou por
alavancar ideias que marcaram o período moderno. A importância dada à educação
pelos reformadores fez surgir escolas, universidades e grandes teóricos da pedagogia.
Deve-se ter em mente que, a educação servia como condutora das novas ideias, por isso
era usada por fins evangelísticos, o que não diminui ou desvaloriza o impacto causado
pela Reforma na área. Certamente ideias como a educação pública, universal e gratuita,
a educação feminina, a divisão de classes e a didática, foram alavancadas pela Reforma.

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É pretensioso afirmar que a Reforma foi a causa primeira de toda a
pedagogia moderna. Porém, a grande maioria dos historiadores, até mesmo os católicos,
concorda que a Reforma, em termos de popularização da educação, foi um dos
principais, se não o principal fator.
Todas essas contribuições devem ser analisadas a luz de que, a Reforma
produziu, graças à ideia do sacerdócio universal, um senso de individualidade e de
responsabilidade individual de cada crente, e, de acordo com Dooyeweerd (2018, p.
150), “toda contribuição individual à abertura do aspecto cultural da sociedade humana
torna-se, no curso do tempo, uma contribuição ao desenvolvimento cultural da
humanidade, a qual tem uma perspectiva global”. Por isso, as contribuições da Reforma
Protestante para a pedagogia se tornaram contribuições globais e indispensáveis. O fato
de a reforma ter lugar garantido nas obras de história da educação, história da leitura ou
história do livro, prova isso.

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