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O conflito é o estímulo do pensamento. Instiga-nos a apurar nossa observação e memória.

Demove-nos da
passividade de rebanho e impele-nos à criatividade.11 (James Anthony)

Freud,16 em 1938, ao descrever a relação do bebê com sua mãe:


[...] única, sem paralelo, que se estabelece de forma inalterada por toda a vida, como o primeiro e mais forte
amor objetal e como o protótipo de todas as demais relações amorosas.

https://brasil.elpais.com/smoda/2020-05-31/o-alivio-e-a-paz-
mental-de-nao-ter-de-opinar-sobre-tudo.html

O alívio (e a paz mental) de não ter de opinar sobre tudo


A opinião é um direito e uma necessidade psicológica. Sentir-se no dever de ter
posição a respeito de todos os assuntos, se transformando em guardião da
moralidade, é tóxico

Silvia López Rivas

Todos nós temos o direito de opinar? É claro que sim. Somos obrigados a fazer isso? Parece que
com mais força ainda, se nos basearmos na observação de qualquer publicação em uma rede
social ou veículo de comunicação. Não há (ou não deveria haver) nenhuma dúvida sobre o
quanto é positivo que os cidadãos tenham a possibilidade de se expressar. De fato, os números
do coronavírus confirmaram que as democracias administram melhor as crises. É saudável para
o indivíduo, para a sociedade e para o planeta que cada ser humano desenvolva seus próprios
critérios e tenha plena liberdade de expressá-los, ponto final. Mas duas coisas poderiam ser
deduzidas de fenômenos como os fiscais da vida alheia e os linchamentos virtuais: as novas
tecnologias deram origem a novos e numerosos inquisidores voluntários, e estes são capazes de
causar muito sofrimento. Também se poderia inferir que, quando alguém tem de expor com essa
veemência quase violenta seus julgamentos, provavelmente não se sente muito bem
internamente. “Apresentar e elaborar nossos argumentos não deveriam ser atos dolorosos.
Chama muito a atenção que alguém se sinta profundamente magoado por causas alheias à sua
vida. Quando alguém responde tão energicamente e de modo tão desproporcional, podemos
levantar a hipótese de que essa pessoa pode estar em contato, em um nível inconsciente, com
experiências anteriores de sua história de vida nas quais teve de se defender com força em
situações em que sentia que sua sobrevivência ou sua integridade dependia disso —por
exemplo, pessoas cuja opinião não foi levada em conta, ou que foram duramente criticadas,
humilhadas ou punidas, ou passou por muitas outras situações em que houve carências
relacionais”, explica ao EL PAÍS a psicóloga Leire Villaumbrales, diretora do centro de
psicologia Alcea, em Madri—. Um exemplo frequente de críticas desproporcionalmente
apaixonadas? Os atores linchados nas redes simplesmente por fazer seu trabalho ou por realizar
alguma ação solidária.

A caça à celebridade

Sheila Estévez, psicóloga especialista em conflitos emocionais, assinala que “a tendência de


culpar aquele que está mais longe de nós é arcaica e serve para sentirmos menos culpa ao
canalizar o próprio mal-estar para fora de nós, colocando sobre essa figura toda a frustração.
Não importa o que essa pessoa faça, o importante é que será canalizada através dessa
celebridade a frustração popular, de um jeito ou de outro. O fato de haver diferenças sociais,
culturais ou econômicas propicia a personificação do bom ou do mau nesse terceiro que é a
celebridade ou aquela pessoa distante”. Não se deve confundir esta caça às bruxas (baseada
apenas em emoções) com movimentos como o Me Too (baseados em fatos), embora a linha que
os separa possa ser difusa às vezes (tanto que já chegaram a ocorrer situações terríveis e
irreparáveis).

O fato de que a participação popular possa usar as mesmas ferramentas que as fofocas pode
levar a erros, e ninguém esclarece melhor isso do que Barack Obama. “Você precisa abandonar
rapidamente essa ideia de pureza, de que nunca estará em situações comprometedoras e de que
sempre estará politicamente alerta”, disse o ex-presidente em um encontro em Chicago
organizado por sua própria fundação, citando como exemplo que até mesmo as pessoas que
mais admiramos têm falhas —e nossos piores inimigos, virtudes. “Percebo um perigo
principalmente entre os jovens, e ele é ampliado pelas redes sociais. Eles têm a impressão de
que a forma de conseguir mudar as coisas é simplesmente ser o mais crítico possível com outras
pessoas. É como se pensassem que tuitando ou criando uma hashtag a respeito de como alguém
não fez algo bem ou não usou o verbo correto já poderão ficar tranquilos porque agiram. Isso
não é ativismo. Isso é a coisa fácil.”

No entanto, parece que há quem se sinta um Martin Luther King depois de criticar o


comportamento de outra pessoa (não necessariamente uma celebridade, basta ser um conhecido
no Facebook). A psicóloga Leire Villaumbrales acredita que isso se deva a três fatores: “As
redes sociais e o WhatsApp podem ter grande alcance e atingir grandes audiências, e com isso
saciam a fome de reconhecimento, de que minha opinião seja valorizada, levada em conta e
tenha impacto em um grande público. Também oferecem a proteção de estar por trás da tela, às
vezes protegido pelo anonimato, diminuindo o medo que às vezes surge na hora de expressar
uma opinião. Por último, essa distância também nos impossibilita de ver a reação que nossas
palavras provocam na outra pessoa, de ver toda essa linguagem não verbal que nos dá muitas
informações sobre o que sente quem está na nossa frente e modula nossas respostas”.

Fatos x opiniões

Embora muitos defendam argumentos como se fossem teoremas irrefutáveis, o próprio Marco
Aurélio escrevia em suas Meditações que “a vida é uma opinião”. E sem necessidade de
recorrer à filosofia, em uma cena do filme Divertida Mente os personagens (que eram duas
emoções e um amigo imaginário que viviam na mente de uma menina) falavam da diferença
entre fatos e opiniões quando, de repente, ambos (que eram umas caixinhas) se misturavam e
um dos personagens comentava que isso ocorria constantemente. Poucos interiorizaram a
mensagem dessa fábula sobre a inteligência emocional. “É importante ter em mente que opinar
implica compartilhar um pensamento sobre um assunto, e nisso deve estar implícito que cada
opinião é a soma de experiências, crenças, informações e a interpretação a partir de si mesmo.
Se eu quiser que aceitem meu ponto de vista, terei de aplicar em mim a mesma fórmula: aceitar
não significa concordar, mas levar em conta uma realidade mais global, a opinião de todos.
Caso contrário, em vez de aceitar a realidade, nós a envenenamos e, ao mesmo tempo, nos
resignamos diante dela, e isso gera maior frustração e mal-estar do que o que tínhamos no
início”, explica Sheila Estévez.
As redes sociais e o WhatsApp podem ter grande alcance e atingir grandes audiências, e com
isso saciam a fome de reconhecimento. Também oferecem a proteção de estar por trás da
tela, diminuindo o medo que às vezes surge na hora de expressar uma opinião
LEIRE VILLAUMBRALES, PSICÓLOGA

O que há por trás daqueles que custam tanto a entender que suas crenças não têm por que ser as
mesma dos demais? Frequentemente, imaturidade emocional e pouca tolerância à frustração.
“Ao ligar a televisão, não é incomum ver condutas infantis: birras, brigas do tipo ‘é você que é’,
raiva porque me disseram que tenho de fazer alguma coisa que não quero fazer, insultos etc.”,
explica a psicóloga Leire Villaumbrales. Sheila Estévez acrescenta que “a forma como
respondemos a um argumento oposto ao nosso revela se temos baixa tendência à frustração ou
se temos a capacidade de transcender a necessidade de ter a razão ou de encontrar o que se
ajusta melhor à verdade, coisa que é fruto da maturidade intelectual e emocional. Quem fica
bloqueado no próprio argumento age como criança. Querer ter razão é enfatizar o próprio ego,
coisa que a maturidade emocional, psicológica e de pensamento transcende em prol da verdade
ou razão em si”. Nas redes sociais e grupos de WhatsApp somos testemunhas de discussões tão
acaloradas como estéreis: “Muitas vezes, essas conversas estimulam lutas por poder nas quais
ganha quem consegue convencer. Parece que respondemos a uma necessidade de que o outro
escute e assuma nossa posição como certa —e, portanto, corrija a dele, que é a errada. Quando
isso ocorre, estamos descontando a capacidade de análise e de tomada de decisões da outra
pessoa. É uma posição muito pouco respeitosa com o fato de que o outro também pode ter
verdades igualmente válidas, embora sejam diferentes das nossas, e de certa forma também é
uma atitude egocêntrica”, aponta a psicóloga.

Formados com louvor no Google

Se um extraterrestre ou uma Inteligência Artificial sem informações prévias analisasse nossas


redes sociais hoje, poderia inferir que só na Espanha há milhões de pessoas doutoradas em
doenças infecciosas, gestão de emergências sanitárias e ciências econômicas (e, o que é mais
admirável, que muitas vezes a mesma pessoa tem formação e experiência nas três
especialidades ao mesmo tempo). O fenômeno que permite que alguns se sintam capacitados a
questionar de igual para igual um especialista após uma pesquisa superficial e parcial do assunto
que esse especialista estuda há anos não é novo, mas decolou com a Internet e, graças às fake
news, entrou em órbita. “Hoje em dia temos muitas informações a um clique de distância”,
prossegue Villaumbrales. “É verdade que lemos muito e que podemos formar uma opinião
sobre muitos assuntos, e isso nos dá a sensação de ser pequenos especialistas em muitos
âmbitos, esquecendo que um especialista tem uma trajetória de anos de estudo que, entre outras
coisas, permite que ele contraste a informação fictícia com a real. Nesse sentido, podemos criar
uma falsa sensação de controle e de conhecimento.” Estévez assinala que “o grande problema é
que todo dia temos mais informações, mas menos conhecimento: misturamos os dados e nesse
coquetel cada um capta um sabor, que nem sempre é o mesmo. Como costumo dizer, cada um
tem sua leitura do conto, o vilão para alguns é o herói para outros, e assim inflamamos o debate.
Ter uma atitude crítica em vez de se posicionar acima dos demais é a melhor fórmula de ficar
informado e poder dar uma opinião sustentada pelo conhecimento”.
Sobre a necessidade de julgar

Avaliar o outro é humano e traz benefícios para o grupo. “Desde os nossos pais, que têm
um trabalho de vigilância e de ensino de limites e valores, até os professores, que são os
encarregados de transmitir ensinamentos regrados e fruto do consenso social, crescemos sendo
tutelados ou supervisionados por nosso entorno. Daí vem o fato de que em algum momento
todos nos preocupemos com o que os outros opinam de nós e que tenhamos referentes ou
modelos a seguir”, explica Sheila Estévez. A vigilância social é fundamental para manter
comportamentos civilizados, mas às vezes essa força de grupo provoca exatamente o contrário,
como no caso dos profissionais de saúde, funcionários de supermercados e
contagiados hostilizados por seus vizinhos. “Nessas ocasiões, vimos ações que tinham a
intenção de impor as normas e apelar à moralidade”, observa Villaumbrales. “E faziam isso de
um modo muito agressivo, exigente e intransigente. Talvez seja a forma como essas próprias
pessoas conseguem acatar as normas, aferrando-se rigidamente à moral e sendo exigentes
consigo mesmas.”

Ter uma atitude crítica em vez de se posicionar acima dos demais é a melhor fórmula de ficar
informado e poder dar uma opinião sustentada pelo conhecimento
IDEM

Essa hostilidade realmente dói tanto? Muitos dos hostilizados nem se afetam com ela, mas é
indiscutível a inquietação do hostilizador, como no caso de quem critica ferozmente atores e
esportistas com carreiras de sucesso. Um aspecto bastante paradoxal dessa observação em alerta
constante que causa tanta frustração em quem a faz é que, na maioria das vezes, ninguém as
obriga a fazê-la. “Algumas pessoas veem as opiniões dos outros como um convite ao confronto,
como se escutassem com um filtro que transforma o que ouvem em ‘eu estou atacando, agora se
defenda’, e reagem impulsivamente. Para outras, pode ser um desejo de ser valorizadas como
pessoas sábias ou inteligentes. E outras ainda podem sentir a necessidade de demonstrar que o
outro está errado. As pessoas que dão sua opinião respondendo a uma sensação de ‘obrigação’
estão, muito provavelmente, reagindo a conflitos internos individuais”, acrescenta Leire
Villaumbrales.

Devemos parar de opinar?

A liberdade de expressar nossa opinião não é apenas um direito fundamental reconhecido


na Declaração Universal de Direitos Humanos, é também uma nutritiva necessidade
psicológica. “Quando opinamos livremente e estando em paz, tendemos a aceitar os argumentos
dos outros sem nos sentirmos invadidos por eles. A finalidade de conversar sobre um assunto e
deixar que todos opinem nos permite crescer. A informação fundamentada toma corpo e, ao ser
elaborada, transforma-se em conhecimento, que é algo maior, mais construído, vai além da ideia
inicial, alimentando-se com os argumentos dados por todas as partes”, assinala Estévez. “No
entanto, quando a finalidade de opinar é que nos deem a razão, está em jogo o valor subjetivo da
justiça, da lealdade, da bondade, da verdade, da generosidade e tantos outros dos quais
acreditamos realmente ser donos, ou que pensamos ter por estarmos firmemente convencidos.
Nesse caso, trata-se de uma espécie de cegueira ou surdez ao que nos chega de fora, a fim de
retroalimentar nosso ego, ou nossa razão, o que, tendo essa finalidade, costuma acabar mal,
causando conflitos interpessoais, gerando distância em vez de aproximação.”
As pessoas que dão sua opinião respondendo a uma sensação de ‘obrigação’ estão, muito
provavelmente, reagindo a conflitos internos individuais
IDEM

Especialmente em momentos complicados como o atual, é natural que aflorem emoções como


raiva, tristeza, culpa, vergonha e medo. A chave estaria na forma de administrá-las e em ouvir o
outro. “É normal reagir emocionalmente a algo que interfere em nosso modo de vida. A chave,
do meu ponto de vista, está na intensidade e na forma dessas reações. O limite entre a saudável
participação popular e a necessidade patológica de impor opiniões está na capacidade de ouvir,
respeitar e negociar. E na capacidade de poder colocar minhas emoções a serviço de uma
relação respeitosa com o outro. Até mesmo a irritação e a raiva”, conclui Villaumbrales.

https://brasil.elpais.com/opiniao/2020-03-27/a-volta-do-conhecimento.html

A volta do conhecimento
Tínhamos nos acostumado a viver na névoa da opinião;
mas hoje, pela primeira vez desde que temos memória,
prevalecem as vozes de pessoas que sabem e de
profissionais qualificados e corajosos

ANTONIO MUÑOZ MOLINA

27 MAR 2020 - 16:10 BRT

Pela primeira vez desde que temos memória, as vozes que prevalecem na vida pública espanhola são as de pessoas que sabem. Pela primeira
vez assistimos à aberta celebração do conhecimento e da experiência, e ao protagonismo merecido e até então inédito de profissionais de
diversas áreas cuja mistura de máxima qualificação e coragem civil sustenta sempre o mecanismo complicado de toda a vida social. Nos
programas de televisão em que, até recentemente, reinavam exclusivamente dissertadores especializados em opinar sobre qualquer coisa a
qualquer momento, agora aparecem médicos de família, epidemiologistas, funcionários públicos que enfrentam diariamente uma doença que
perturbou tudo e que a qualquer momento pode atacá-los. Todas as noites, às oito, nas ruas vazias, eclodem aplausos como uma tempestade
repentina, dirigidos não a demagogos embusteiros, mas a trabalhadores da saúde, que até ontem cumpriam sua tarefa acossados por cortes
contínuos, pela falta de meios, pelo desdém às vezes agressivo de usuários caprichosos ou resmungões. Agora, exceto nos redutos habituais,
não ouvimos slogans, nem lemas de campanha criados por publicitários, nem banalidades cunhadas por essa espécie de gurus ou de
aprendizes de feiticeiro que inventam estratégias de “comunicação” e que aqui também, que remédio, já são chamados de spin doctors:
charlatães, trapaceiros, vendedores de fumaça.

A realidade nos obrigou a nos colocarmos no terreno até agora muito negligenciados dos fatos: os fatos que podem e devem ser verificados e
confirmados, para não serem confundidos com delírios ou mentiras; os fenômenos que podem ser medidos quantitativamente, com o mais
alto grau de precisão possível. Tínhamos nos acostumado a viver na névoa da opinião, da diatribe sobre as palavras, do descrédito do
concreto e do comprovável, inclusive do aberto desdém pelo conhecimento. O espaço público e compartilhado do real havia desaparecido em
um turbilhão de bolhas privadas, dentro das quais cada um, com a ajuda de uma tela de celular, elaborava sua própria realidade sob medida,
seu próprio universo cujo protagonista e centro era ele mesmo, ela mesma.

Estava andando pela rua e notava que quase todo mundo ao meu redor se virava para viver dentro de seu espaço privado, exatamente igual
que se estivesse na sala de estar de sua casa, em seu quarto, até mesmo em seu banheiro: o diadema dos capacetes gigantes para não ouvir o
mundo exterior e ser alimentado a cada momento por um fio sonoro ajustado às suas preferências; o olhar não nas pessoas com que você
cruza, mas na tela à qual olha; a voz que fala no mesmo tom que em um quarto fechado, tão descuidada dos outros que era habitual assistir
involuntariamente a conversas íntimas embaraçosas, brigas, explosões de lágrimas.

“O senhor tem todo o direito do mundo às suas próprias opiniões, mas não aos seus próprios fatos”, escreveu o grande senador democrata e
ativista cívico Patrick Moynihan. Disse isso antes de um porta-voz de Donald Trump cunhar o termo “fatos alternativos”, e de que a penúria
financeira dos meios de comunicação os levasse a se alimentar de opiniões mais do que de fatos, uma vez que sempre será muito mais caro,
mais trabalhoso e até mais arriscado investigar um fato do que expressar uma opinião. Soma-se a isso uma difusa hostilidade coletiva, que os
meios de comunicação incentivam, em relação a tudo que pareça demasiado sério, pesado, pouco lúdico. O entrevistador não esconde sua
impaciência diante do convidado que soa lento enquanto se esforça em uma explicação. Ele o interrompe: “Me dê uma manchete”. Investigar
com rigor e explicar com clareza requer conhecimento e experiência, que é o conhecimento mais profundo que só pode ser obtido com o
tempo e a prática: são as qualidades necessárias para exercer uma tarefa pública comprometida, desde assistir a um doente em uma sala de
emergência a mantê-la limpa, ou dirigir uma ambulância, ou montar um hospital de campanha da noite para o dia.

Mas entre nós a experiência havia perdido qualquer valor e todo o seu prestígio, e o conhecimento provocava receio e até zombaria. Quando
tudo tem de parecer ostensivamente jovem e associado à última novidade tecnológica, a experiência não serve para nada e até se torna uma
desvantagem para quem a possui; quando alguém acredita que pode viver instalado na bolha de seu narcisismo particular ou daquele outro
narcisismo coletivo que são as fantasias identitárias, o conhecimento é uma substância maleável que assume a forma que se deseja dar a ele,
assim como sua presença pessoal é moldada pelos filtros virtuais apropriados. E a política deixa de ser o debate sobre as formas possíveis e
sempre limitadas de melhorar o mundo em benefício da maioria para se tornar um teatro perpétuo, um espetáculo de realidade virtual, não
submetido ao pragmatismo nem à cordura, uma fantasmagoria que se fortalece graças à ignorância e que encobre com eficácia a crua
ambição pelo poder, o abuso dos fortes sobre os fracos, a propagação da injustiça, o desperdício, o roubo do dinheiro público.

Na Espanha, a guerra da direita contra o conhecimento é imemorial e também é muito moderna: combina obscurantismo arcaico com a
proteção de interesses venais perfeitamente contemporâneos, os mesmos que impulsionam nos Estados Unidos a guerra aberta do Partido
Republicano contra o conhecimento científico, financiada pelas grandes empresas petrolíferas. A direita prefere esconder os fatos que
prejudicam seus interesses e privilégios. A esquerda desconfia dos que parecem não se adequar aos seus ideais ou aos interesses dos
aproveitadores que se disfarçam com eles. A esquerda cultural se filiou há muitos anos a um relativismo pós-moderno que considera
qualquer forma de conhecimento objetivo suspeita de autoritarismo e elitismo. Nem a esquerda nem a direita têm o menor inconveniente em
substituir o conhecimento histórico por fábulas patrióticas ou lendas retrospectivas de vitimismo e emancipação.

Curiosamente, na Espanha, a esquerda e a direita sempre concordaram em deixar de lado ou encurralar as pessoas dotadas de conhecimento e
experiência na esfera pública e submetê-las ao controle de pseudoespecialistas e apaninguados. Professores do ensino fundamental e médio
estão sujeitos ao flagelo de psicopedagogos e comissários políticos há décadas; os médicos e enfermeiros da saúde pública estão sujeitos ao
capricho e à inexperiência de supostos especialistas em gestão ou em recursos humanos, cujo único talento é medrar no emaranhado dos
cargos políticos.

Foi necessária uma calamidade como a que estamos sofrendo agora para que descobríssemos bruscamente o valor, a urgência, a importância
suprema do conhecimento sólido e preciso, para nos esforçarmos em separar os fatos dos boatos e da fantasmagoria e distinguir com nitidez
imediata as vozes das pessoas que sabem de verdade, aquelas que merecem nossa admiração e nossa gratidão por seu heroísmo de servidores
públicos. Agora ficamos com um pouco de vergonha de termos nos acostumado ou resignado durante tanto tempo ao descrédito do saber, à
celebração da impostura e da ignorância.

Antonio Muñoz Molina é escritor

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