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ALC1R LENHARO

I
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SACRALIZAÇÃO
DA
POLÍTICA
VO
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IU f i . C a p a : FFrancis
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Revisão'. V e ró n ic a M itik o S h ib a
tó/92
A n a E lisa d e A rru d a P e n te a d o
D ad o s d e C a ta lo g a ç ã o n a P u b lic a ç ã o (C IP ) In te rn a c io n a l
(C â m a r a B rasile ira d o L iv ro , SP, B ra sil)

L en h a ro , A lc ir, 1946 —
L 584s S a c ra liz a ç ã o d a p o lític a / A lc ir L e n h a ro . — C am p in a s
— 2 .a ed . — S P : P a p iru s, 1986.
B ib lio g rafia.
1. B rasil — H istó ria — E sta d o N o v o , 1937-1945 — 2.
B rasil — H istó ria — 1930 — 3 . B rasil — P o lític a e g overno
— 1930 — 4. Ig re ja e E s ta d o n o B rasil — 5. R elig ião e
p o lítica — B rasil I. T ítu lo .
C D D -9 8 1 .0 6
-261.80981
-320.98106
86-1159 -981.0624

Índices p a ra c a tá lo g o sistem ático:


1. B rasil : Ig re ja e E sta d o : T e o lo g ia social 261.70981
2. B rasil : Ig re ja e p o lític a : T e o lo g ia social 261.70981
3. B rasil co n te m p o râ n e o , 1930 — : H istó ria 981.06
4. B rasil c o n te m p o râ n e o , 1930 — : H istó ria p o lítica 320.98106
5. E stad o N o v o , 1937-1945 : B rasil : H istó ria 981.0624
IS B N 85-308-0096-6
D IR E IT O S R E S E R V A D O S P A R A A L ÍN G U A P O R T U G U E S A :
E D IT O R A D A U N IV E R S ID A D E
E S T A D U A L D E C A M P IN A S
U N IC A M P
R e ito r : P au lo R en a to C o sta S o u za
C oord en a d o r G era l d a U n iv e rsid a d e : C a rlo s V ogt
C o n selh o E ditorial: A écio P e re ira C h ag as, A lfre d o M iguei O z o n o de A lm eid a,
A ttílio José G ia ro la , Y a ra F ra te sc h i V ie ira ( P resid en te), E d u a rd o G u im a rã e s,
H erm ógenes de F re ita s L eitã o F ilh o , Ja y m e A n tu n e s M aciel Jú n io r, L uiz C e sa r
M arq u es F ilh o , U b ira ta n D ’A m b ro sio .
D ireto r E x ecu tivo : E d u a rd o G u im a rã e s
1989
E d ito ra d a U n icam p
R u a C ecílio F e ltrin , 253
C id ad e U n iv e rsitá ria — B arã o G e ra ld o
C E P 13081 - C am p in a s - S P - B rasil
T e l.: (0 1 9 2 ) 39-3157
para
© M . R. C o rn acch ia & C ia. L td a. adalberto,
carlinhos,
■ I P Q P , r u -r E D IT O R A
F o n e : (0 1 9 2 ) 32-7268 - C x. P o sta l 736
monteiro,
13.001 - C a m p in a s - SP - B rasil vilma.
p ro ib id a a rep ro d u ç ã o to ta l o u p a rc ia l p o r q u a lq u e r m eio de im p ressão , e m fo rm a
id êntica, re su m id a o u m o d ific a d a , em lín g u a p o rtu g u e sa ou q u a lq u e r o u tro id io m a.
I

esperança de se ocupar e colonizar a terra e de transformar a reali­


dade rural do país era depositada na irradiação da pequena proprie­
dade capitalista.
Nesse caso, se se explica a razão de ser do preconceito pela
finalidade com que é engendrado, ou se se quer dele objetivos políticos
a nortear a sua direção para alvos previamente escolhidos, é pre­ Capítulo 5
ciso apontar a falta de eficácia do preconceito que envolveu o ele­
mento nipônico, falhando decisivamente ao impedir que um potencial O CORPO TEOLÓGICO DO PODER
aliado fosse requisitado para lutar por um importante projeto, este
sim, alvo que poderia, aos olhos do próprio regime, mudar a fisio­
nomia do país. Por se perseguir a tranquilidade da alma brasileira, “C om o um só corpo tem o s m uitos m em bros e os
o possível aliado foi previamente demarcado no outro lado, como m em bros n ão tem todos a m esm a função, assim m u ito s
inimigo. som os um corpo de C risto, e todos e cada um m em bros
uns dos outros."
São P aulo

Aj e n tativa de conhecer e desvendar os segredos da organização


Has sociedades de seu tempr» tpm lgvado sucessivos pensadores a apro­
ximá-las, comparativamente, à forma e ao funcionamento do corpo
humano. O estudo do corpo atua como um recurso para diagnos­
ticar-^ medicar a sociedade; quase sempre visa-se a obtenção de mé­
todos políticos apropriados à preservação da estrutura social tal como
se encontra; poucas vezes tem-se em mira transformá-la '.
Em Hobbes, por exemplo, a aproximação se faz entre a socie­
dade e o corpo humano. O grande Leviatã, imagem da República
ou Estado, assim foi confeccionado: o poder soberano constitui sua
alma; os magistrados e oficiais de justiça e execução, as articulações;
a recompensa e os castigos, os nervos; a riqueza, a força física; a
segurança, o negócio; os conselheiros, a memória; a equidade e as
leis, a razão e a vontade; a concórdia, a saúde; a sedição, a doença;
a guerra civil, a morte *2. A construção dessa grande figura de forma
humana, cujo corpo e órgãos estão formados por uma multidão de
membros, atua para Hobbes como um recurso definitivo de conten­
ção dos conflitos desagregadores da ordem social. No corpo artificial
de Leviatã a sociedade se preserva e se expande disciplinadamente.

1 . Faz-se necessário ad ian tar a antecedência e n tre nós dos estudos de M aria
Sylvia de C arv alh o F ranco a respeito dos vínculos entre m edicina e socie­
dade e de cujas reflexões sobre a trad ição organicista do social m e ben e­
ficiei d iretam en te com o aluno de seu cu rso de pós-graduação.
2. L eviathan, Londres, G . R outledge and Sons, 1894, 4.a edição, p. 11.

138 139
Corpo político parecido com o corpo humano é a relação que Aquino apurasse a sua oferta teórica há pouco comentada, para a
Rousseau descreveu desta maneira: “O poder soberano representa a teologia, assegurando-lhe através da veia mística, os atributos insti­
cabeça; as leis e os costumes são o cérebro, princípio dos nervos e tucionais requeridos pela Igreja Católica. Sobrava, evidentemente, mu­
lugar do entendimento, da vontade e dos sentidos, cujos juízes e ma­ nição abundante para o poder temporal.
gistrados são os órgãos; o comércio, a indústria e a agricultura são
A instrumentalização política da imagem do corpo ganhará inten­
a boca e o estômago, que preparam a subsistência comum; o tesouro
sidade, segundo comentários de Gusdorf, à medida que os tempos
público é o sangue, ao que uma boa economia, fazendo as vezes de
modernos implementaram a dissociação da alma do corpo, de modo
coração, distribui a comida por todo o corpo; os cidadãos são o
a que cada indivíduo pudesse medir as distâncias do seu eu em relação
corpo e os membros que fazem mover, viver e trabalhar a máquina,
ao seu corpo. Até então, adianta Gusdorf, a totalidade sacralizada de
a qual, se ferida em alguma parte, em seguida esta impressão dolorosa
corpo/alm a mantinha-se una por vontade de Deus criador. Daí a in­
é registrada pelo cérebro se o animal está em boa saúde”. Rousseau
terdição da dissecação, responsável pelo atraso dos estudos da medi­
alude a esse todo como um “eu comum”, movido pela “sensibilidade
cina. A partir da obra De Corporis humani fabrica, do belga Vésale,
recíproca e pela correspondência interna de todas as partes”. Rompida
de 1543, rompe-se o véu da imagem do corpo sacralizado e “come­
esta intercomunicação, “o homem está morto ou o Estado dissol­
ça-se a fazer do corpo humano um objeto epistemológico entre os
vido” ;l.
outros objetos do conhecimento”. O corpo pode ser visto, a partir
A intelecção da sociedade como um organismo vivo atende às de então, separado da vida, como cadáver, tal qual aquele estendido na
intenções de justificar as receitas de poder requeridas. A unidade mesa de dissecação do quadro “Lição de Anatomia”, de Rembrandt *.
y /
e o equilíbrio que a imagem do corpo humano oferece é o que mais Também Galileu contribuíra decisivamente para uma visão ma­
seduz os pensadores, preocupados em justificar a fonte dn poder terializada dos corpos, ao destruir a crença na divindade dos astros,
desejado. Estamos a um passo do corpo uno regido por um órgão agora pedaços de matéria em movimento. Com a descoberta da cir­
condutor. Tomás de Aquino, por exemplo, chegou a explicitar essa culação do sangue, em 1628 por Harvey, o coração e outros órgãos
exigência: “O grupo se dissolveria se não houvesse alguém que cui­ do corpo humano passaram a ser vistos como máquinas; a teoria
dasse dele. Assim, o corpo do homem, como o de qualquer animal, do animal máquina e do homem máquina, divulgada por Descartes,
se desagregaria se não houvesse nesse corpo certa força diretiva apli­ entra então em grande voga. A medicina chegaria, no século seguinte,
cada ao bem comum de todos os membros(. . . ) Entre os membros a construir protótipos de corpos humanos, cujos órgãos eram figu­
do corpo há um principal que pode, seja a cabeça, seja o coração. rados por tubos e formas de ferro branco, ou então de borracha,
É preciso, pois que haja em toda a multidão um princípio de di­ para simular humanidade (Idem, pp. 126 a 129).
reção” 34*.
No terreno da abordagem política da imagem do corpo, é parti­
Em Santo Tomás de Aquino ganha realce a projeção de um cularmente conhecida a passagem em que Tomás de Aquino assegura
órgão condutor, especial entre outros órgãos, receituário tanto indi­ ser legítima a derrubada de uma autoridade tirânica, na medida em
cado para as soluções do poder temporal quanto indicado para as que ela não atendesse ao bem comum da sociedade. A cabeça diri­
soluções do “poder espiritual”. Tomás de Aquino, por sinal, cotejará gente, na doutrina do Corpo Místico de Cristo, é parte constitutiva
em seus estudos teológicos a doutrina do Corpo Místico de Cristo, do todo; não há totalidade se uma parte capital a contradiz”. Rous-
que requeria uma cabeça dirigente para a Igreja — no caso o papa
— especialmente iluminada pelo Espírito Santo. O intercâmbio entre 5 G u sd o rf, G eorges. A agonia da nossa civilização. São Paulo, Convívio,
o temporal e o espiritual atuaria provavelmente para que Tomás de 1978. p. 125.
6 . S anto T o m ás de A quino não é exatam ente nem representante da m oder­
nidade, nem um defensor da dessacralização do corpo. No entanto, intro­
3. E conom ia Política, artig o da Enciclopèdie, c itad o por Jouvenel, B ertrand duziu na teologia católica um a arq u itetu ra lógica, convertida em filosofia
de. D u Pouvoir, Paris, H achette, 1972, p. 103. oficial da Igreja que. no d izer de G usdorf, “faz, até certo ponto, da
4 . D e R egim ine Principum , I, 1 e 1, 2, citado p o r Jouvenel, B ertrand, pp religião a serva da razão". M ito e M etafísica, São Paulo. Convivio. 1980.
102.3. p. 243.

140 141
seau preferiu conceber seu organismo social capaz de assimilar as taçao das diferenças económicas, mas principalmente conter e pre­
previsíveis disjunções entre as partes e o poder, resultado dos acordos venir a dispersão de sentimentos e interesses (Citado, p. 66).
obtidos do contrato social. Em Hegel, ao contrário, as partes devem Para Comte, pois, a função reguladora do conjunto sobre as
integrar a totalidade viva para poderem atuar. O Estado não pode partes tendia a tornar-se cada vez mais indispensável. O mesmo Jou­
ser um agregado atómico e sim um corpo. O indivíduo tem assegu­ venel discute a maneira como Spencer opõe-se à posição de Comte.
radas uma existência objetiva e uma vida ética somente se for membro O que está em questão é a possibilidade ou não da extensão do
do Estado 7. A noção de bem comum recebe um conteúdo novo em
poder. A evolução do organismo social de Spencer assegura uma
Hegel, comenta Jouvenel; os direitos subjetivos perdem prioridade
diminuição da capacidade de intervir do poder: “Na forma de sociedade
face a um bem-estar social, genérico. E, como agente dessa trans­ para a qual tendemos, creio que o governo estará reduzido a um mí­
formação, o poder do Estado poderá justificar qualquer crescimento
nimo e que a liberdade humana alcançará seu mais alto grau, pois a
de sua extensão (citado, p. 63).
natureza humana se achará de tal maneira modelada pelo hábito social
A introdução do conceito da divisão do trabalho viria a imple­ e tão acostumada à vida em comum que lhe bastará poucas forças
mentar, ainda mais, a utilização da metáfora do corpo como instru­ restritivas exteriores; será uma sociedade na qual o cidadão não tole­
mento de intelecção do social. A sociedade encontrava-se agora muito rará nenhuma restrição de sua livre atividade, salvo a indispensável
mais complexa; o progresso material e cultural acentuara a diferen­ para manter a mesma liberdade para os outros” *.
ciação no interior do organismo social; mas os estudos da biologia Spencer levou para a biologia o conceito da divisão do trabalho,,
também tinham avançado bastante e o conhecimento de novas arti­
para daí organizar o seu pensamento político. Não havia por que
culações fisiológicas ainda restava como um precioso recurso dc
não tomar as sociedades como organismos vivos, mesmo porque a
investigação.
própria biologia representava seus organismos como se fossem socie­
Os organicistas do século passado também se mantiveram preo­ dades. Em O Organismo Social, texto de 1860, Spencer demonstra
cupados com a manutenção da estrutura social existente e, em certos como as sociedades compostas de homens e os organismos formados
casos, como se portadores de um bisturi, intervinham teoricamente de células evoluem de uma estrutura simples para outras altamente
para desobstruir ou remover os elementos causadores das doenças complexas, promovendo a mútua dependência entre as partes com­
sociais. Assim como o corpo humano cresce para o amadurecimento ponentes. Cada uma das partes não consegue atuar sem a vida do
e o apogeu e requer cuidados especiais para não decair, o corpo social conjunto que se torna independente dos destinos particulares que a
requeria, para sua estabilização, a introdução de instituições integra­ compõem, perecíveis, mas necessários à organização do corpo total 89.
doras, novos conteúdos espirituais e, acima de tudo, a condensação Nesse vai-e-vem do emprego da noção de divisão social do trabalho
dc uma escala de poder que coordenasse e integrasse as diferenças na biologia, Spencer contribui para a legitimação da visão organicista
sociais num ponto ótimo. do social, emprestando-lhe o seu crivo de cientificidade, agora esco­
rada na dimensão “natural” que o retorno da biologia assegurava.
Comte, assegura Jouvenel, ao introduzir o conceito da divisão
do trabalho na política, também acreditava que, na ordem material,
8 . C onferir em Jouvenel. citado, p. 101. O texto de S pencer encontra-se no
a diferenciação das atividades levava ao progresso, através de uma I o tom o dos seus Essays. Scientific. political and speculative. L ondres,
maior cooperação. Somente que a acomodação das diferenças não 1868 a 1875, pp. 391-392.
se fazia mecanicamente, como queriam os liberais. Mais que isso, 9 . Um bom exem plo da aplicação do organicism o spenceriano entre nós são
além da diferenciação material, a de caráter moral exigia a interven­ as obras de A lb erto T orres. A d alb erto M arson, q ue o estudou, a n o ta :
ção do Estado para medicar as disjunções que podiam afetar o pro­ "A linguagem é satu rad a de analogias entre os fenôm enos n aturais e os
sociais, os d a vida individual, psíquicos e fisiológicos, e os da vida social,
gresso social. Cabia ao Estado, pois, não somente facilitar a adap- os órgãos fisiológicos e os órgãos políticos, as circulações sanguíneas e
as circulações sociais, a 'seiva de um a fórça cen tral’ a ação cen tralizad o ra
7. Romano, Roberto. C orpo e C ristal: Marx R om ântico?, In: História: Q ues­ do Estado e da nacionalidade, os estágios da evolução biológica e o d e­
tões & Debates, Curitiba, ju n h o de 1983, p. 11. senvolvim ento histórico da sociedade, os ciclos de desenvolvim ento indi­

142 143
Coube a Durkheim fazer o elogio mais aberto das possibilidades tuada fora e acima das contingências individuais e locais, ela não vê
trazidas pela divisão do trabalho. A diferenciação material, ou não, as coisas senão através do seu aspecto permanente e essencial,
leva a uma coesão mais forte que resulta da solidariedade que vinca as quais ela fixa em noções comunicáveis. Ao mesmo tempo que ela
as novas relações. “Com efeito, de um lado, cada um depende mais vê do alto, vê ao longe. . .” 13. Esse patamar a que Durkheim alçou
estreitamente da sociedade onde o trabalho é mais dividido e, de outro, a sociedade movida pela solidariedade orgânica fá-la portadora de
a atividade de cada um é tanto mais pessoal quanto mais especiali­ uma excelência própria da vida religiosa. “Se a religião engendrou
zada ela seja.” 1012 Durkheim, assim como Spencer, demonstra ter tudo o que há de essencial na sociedade, é que a idéia da sociedade
viva fé na cooperação espontânea desabrochada pelo sistema indus­ é a alma da religião.” “ . . . o fiel não se engana quando crê na exis­
trial. A discordância, anteriormente também sustentada por Comte, tência de um poder moral do qual depende e ao qual deve o melhor
procede da visão distinta que ambos tinham em relação à extensão de si mesmo; este poder existe; é a sociedade. .. Deus não é mais
de poder. Para Spencer, a cooperação espontânea “produzirá órgãos do que a expressão figurada da sociedade” (Ibidem, pp. 599 e 322).
para a realização de todas as funções sociais e não deixará ao órgão
Se para Durkheim, em nome das forças religiosas não temos feito
governamental mais do que a função isolada de manter as condições
nada mais do que adorar a sociedade, a relação indivíduo/Estado em
de ação livre. . . ”. Já para Durkheim, as dimensões e funções do
Hegel não aparenta ser imbuída de outro conteúdo. Segundo comen­
órgão político crescem acompanhando o desenvolvimento das socie­
tário de Roberto Romano, o desenho da imagem do “divino Estado”
dades; a autoridade cresce também em razão da força dos sentimentos
de Hegel assemelha-se ao corpo místico cristão; cada parte do corpo
comuns 11.
político “é um membro, por onde circula a vida do Todo”. No Estado
De um lado, em Durkheim temos um corpo físico cujas funções “nos movemos e existimos”; estes termos parafraseiam afirmações
são reguladas pelo sistema nervoso, explicitador do “estado de con­ de São Paulo, sublinha Romano (citado, p. 11). De fato, a configu­
centração que o organismo alcançou em consequência da divisão do ração de uma corporeidade religiosa do Estado é impecável em Hegel:
trabalho fisiológico”. De outro lado, o corpo social, “um sistema de “Ocorre com a idealidade ( . . . ) do Estado como na vida de um corpo
órgãos diferentes”, cada qual desempenhando um papel'especial, “co­ orgânico: ela está presente em toda parte, há uma só vida em todos
ordenados e subordinados uns aos outros em tomo de um mesmo os órgãos e ela não encontra nenhuma resistência. Separado desta
órgão central que exerce sobre o resto do organismo uma ação mo­ vida, um órgão morre. É este também o caso dos estados (Staende),
deradora” poderes ou corporações, mesmo que eles tenham uma tendência a
querer manter-se e subsistir por si próprios. Eles se encontram na
Face a esta modelação harmoniosa, a sociedade de Durkheim mesma situação do estômago num organismo vivo: se este procura
é portadora de uma consciência coletiva — “a forma mais elevada tornar-se independente, encontra-se no mesmo ato suprimido e re­
da vida psíquica, visto que é uma consciência das consciências. Si­ torna ao Todo.” M

vidual (in fân cia, adolescência, m aturidade, velhice) e os ciclos de ev o ­


Durkheim manteve parentesco em relação à religiosidade da so­
lução das sociedades e das c iv iliz a ç õ e s ... Os exem plos são incontáveis, ciedade e do Estado, com os românticos, mas não os acompanhou,
obedecendo ao m esm o critério". — A Ideologia N acionalista em A lb erto no entanto, ao emitir avaliações positivas sobre a divisão social do
Torres, São Paulo, D uas C idades, 1979, p. 122.
trabalho. A solidariedade orgânica de Durkheim, coordenadora do
O organicism o em T o rres atendia, é claro, a intenções políticas bem
explícitas: “A política de um a nação é um a política org ân ica, o que vale conjunto da sociedade, não fora antes percebida pelos românticos, que
dizer: um a política de conjunto, de h arm onia, de eq uilíbrio". A O rgani­ “nunca deixavam de reagir contra a opressão deste mecanismo sem
zação N acional, São Paulo, Ed. N acional, 1978. 3 .a edição, p. 158.
alma, onde o ser humano deve sofrer a lei das coisas, submetido a
10. D e la D ivision d u travaiI social. Paris, Félix A lcan, 1902, 2.a edição, p. 101.
11. Spencer. Essays, tom o III, pp. 72-73; D urkheim , D e la division du travail
social, pp. 201 e 213. A m bos os textos são citados p o r Jouvenel, pp. 107 13 Les fo rm e s elem entaires de la vie religieuse, Paris. Félix A lcan, 1937, 3.a
e 110. edição, p. 633.
12. D e la division d u travail social, pp. 98 e 157 14 F ilosofia d o D ireito, § 276, citado por R om ano, pp. 11 e 12.

J 44 145
uma exploração cada vez mais impiedosa ( . . . ) O maravilhoso meca­ sujeito histórico, seria o portador da sua própria redenção. A quebra
nismo, o mundo relógio e o autómato humano, que encantou durante da idéia do homem como essência de si mesmo fica, nesse caso,
dois séculos a imaginação pueril dos ocidentais, conduz diretamente reposta no sujeito operariado como o recurso da manutenção do
ao inferno industrial, deserto da humanidade” ls. Uno como sublimação do próprio homem. Por sinal, teoria socioló­
A solidariedade orgânica compreendida por Durkheim jamais po­ gica à parte, o marxismo fez uma aplicação terrestre sui generis das
deria ser antecipada e compartilhada pelos românticos, cujo olhar bem-aventuranças evangélicas ao colocar sobre os ombros dos (ope­
deparava com o desencanto do mundo — o homem fragmentado e rários) pobres e humildes a obra da sua própria redenção.
mecanizado, os vínculos de interdependência entre o homem e a natu­ Lefort, em um ensaio estimulante 19, chama a atenção para a
reza rompidos, como rompida se encontrava a solidariedade interna configuração da imagem do corpo enquanto representação do “povo-
à unidade viva do todo 1516178. Através do poder unificador do olhar, pro­ Uno”. O alvo de sua análise é o regime totalitário soviético; suas
põe Romano, podemos alinhar a análise que Marx dedica à passagem observações podem, no entanto, ser espraiadas para outras realiza­
dramática “do operário membro de um corpo coletivo para sua redu­ ções totalitárias. Tal construção do “povo-Uno” prescinde da diver­
ção à parte de um mecanismo, esta inversão do mecânico e do orgâ­
sidade como elemento constitutivo do social; a divisão, quando se
nico, a emergência produtiva e repressora desta “segunda natureza. . . ”
manifesta, o faz em função de uma rígida demarcação entre o “povo-
(pp. 36 e 37). Marx não apenas se alinhou com os românticos para Uno” e seus inimigos. Fica afastada qualquer possibilidade de divisão
denunciar a violência da fragmentação do trabalhador; acompanha-os interna. O alvo é o outro maléfico, a ameaça externa, o inimigo a
também na utilização da metáfora ótica, quando a deslocação do seu ser necessariamente produzido e combatido incansavelmente. Em fun­
olhar analítico apanha a fábrica-organismo, da qual cada trabalhador ção da preservação do “povo-Uno” como um corpo íntegro, pro­
constituía um membro
grama-se um ideal de profilaxia social, em condições de sustentar a
Não concerne apenas à utilização de recursos epistemológicos identidade totalitariamente concebida. A eliminação do inimigo fun­
próprios de seu tempo — como a metáfora do corpo — aproveitada ciona como termómetro da preservação da integridade social, ao
por Marx; à sua maneira, o procedimento freqiientemente comungado mesmo tempo em que assegura a imagem de uma nova sociedade
por outros pensadores de espiritualizar a matéria estudada também sã, porque produtiva, depurada dos parasitas: “A campanha contra
se faz presente em sua obra. Marx inspirara-se em Feuerbach, para o inimigo é febril: a febre é boa, é o sinal, na sociedade, do mal a
quem Deus era apenas a projeção sublimada do homem. É baseando- combater”.
se nesse enunciado, afirma um estudo recente, que Marx procurou
O partido único, continua Lefort, não põe em causa a repre­
transformar o homem, “por meio da emancipação, no Ser supremo
sentação do “povo-Uno”, pois se apresenta como a sua quintessência.
para o homem” ,8. Claro está que o operariado, na qualidade de
“O partido é o proletariado no sentido da identidade”. Ele se apre­
senta como guia, cabeça e consciência da sociedade. Na escala final
15. G usdorf, G . F ondem ents du sa vo ir rom antique, Paris, Payot, 1982, p.
183; citado por R om ano, p. 27. dessa estrutura de poder encontra-se o Egocrata, que tem nas mãos
16. Essa abordagem teórica desenvolvida p o r R o m an o é m ais am pla e m a ti­ o encadeamento das representações articuladas entre o povo e o pro­
zada e norteia o conjunto do seu artig o v árias vezes citado. letariado; entre o proletariado e o partido; do partido com a direção;
17. D urkheim fala em solidariedade m ecânica, m as isto não se refere a um da direção com o Egocrata. “A todo momento um órgão é, ao mesmo
diagnóstico de seu tem po e nem tem a ver com as apreciações pessim istas
dos rom ânticos sobre a m ecanização do m undo. A solidariedade m e c â ­
tempo, o todo e a parte destacada que faz o todo, que o institui”
nica de D urkheim refere-se a u m estág io social an terio r à divisão d o tr a ­ ( Idem, p. 114).
balho que perm itiu a form ação d a so lid aried ad e orgânica. Q uando vigora
a solidariedade mecânica, a divisão d o tra b a lh o ainda não se acha d esen ­ Um traço fundamental impresso nessa nova sociedade é a sua
volvida e a sociedade não passa de um c o n ju n to de “sistem as hom ogéneos feição de corpo que combina com a imagem da máquina. Apesar de
e sem elhantes entre si”. De la division d u travail social, citado, p. 159.
18. M affesoli, Michel. Violência T otalitária, R io de Janeiro, Z ahar, 1981,
19 A im agem d o corpo e o totalitarism o, In : A invenção D em ocrática. São
p. 186.
P aulo, Brasiliense, 1983, pp. 107 a 121.

146 147
compreender uma rede de microorganizações, a sociedade é repre­ “O mais perfeito typo de organização que temos para es­
sentada como uma grande organização, um grande autómato movido tudar e copiar é o homem. Toda organização racional se
por um modelo técnico de empresa de produção, depurado das expe­ assemelha ao corpo humano ou as suas partes componen­
riências capitalistas de racionalização do trabalho, aqui se estendendo tes. Ella deve possuir o orgão de “direcção”, como o ce-
para o conjunto do tecido social. As duas imagens, a do corpo e a rehro, capaz de receber as sensações exteriores, definil-as,
da máquina, avança Lefort, são convergentes mas não se confundem: conjugal-as e resolvel-as, determinando a “reacção” ade­
de um lado, a figuração de um corpo político, compreensivo da dilui­ quada. Deve possuir igualmente apparelhos transmissores,
ção do indivíduo político no coletivo que fala, ouve, lê e interpreta não só das sensações, como das determinações do coman­
o real, e através do qual identifica-se com o “povo-Uno”, com o do central, como os nossos nervos. Ella deve ser dotada
partido, com a cabeça dirigente. Já a imagem da máquina/organiza- de agentes executores que obedecem, (sem discutir) as or­
dens e determinações do centro director, tal qual os nossos
ção dispõe o indivíduo político como peça da máquina ou um de
músculos, Tem de ter também orgãos de rotina, que agem
seus órgãos — correia de transmissão, uma imagem ameaçadora para
per si mesmos, de accordo com as circunstancias, sem in­
a identificação do coletivo comunista — ameaça de dissolução da terferência do cerebro, como o fígado, glandulas, etc. Deve
substância do corpo político, “fazendo aparecer o social no limite ainda possuir uma “estructura” que lhe dê uma forma
do inorgânico”. estável e que resista às deformações, dotada, porém, de
Chega a ser impressionante verificar como o registro da socie­ certa mobilidade, como o nosso esqueleto. Finalmente, de­
ve ser apparelhada com um systema de agentes de conser­
dade-máquina de Lefort neste seu estudo sobre o totalitarismo está
vação, que cuidam de conservar, limpar o organismo, como
projetado na sociedade/fábrica realizada por um colaborador da Re­
nosso sangue e o nosso systema de secreções.
vista do IDORT, de 1932 20*. Aliás, esta visão da sociedade mecani­
zada é bem representativa do que se passava nos porões intelectuais Que é um systema de telephones senão uma copia gros­
da burguesia paulista. Aqui a metáfora do corpo é aplicada à fábrica, seira do cerebro (centro) dos nervos (fios) e cellulas recep-
é notável, no entanto, que as articulações pinçadas por Lefort no toras (apparelhos)?
corpo totalitário sejam trabalhadas também aqui, significação pro­ Que é um systema de transporte senão uma copia rudi­
funda de imagens carregadas em circulação, espectros de gulags em mentar do nosso perfeito systema circulatório?
mutação.
Que é uma fabrica senão uma caricatura de um organismo
Aqui, como no estudo de Lefort, a metáfora do corpo é humano? De facto a directoria é a cabeça. Os impressos,
racionalmente utilizada como instrumento justificador da subjugação as ordens, são os nervos e as determinações que transmit-
das partes em relação ao todo. A organização também se manifesta tem. Os musculos são os operários. A contabilidade, o al-
como totalidade negadora da autonomia das partes. Estas são órgãos, moxarifado, etc., formam os orgãos de rotina que devem
carreias de transmissão, compreendidos hierarquicamente em posição executar seu papel no conjuncto, independentemente de
de extrema rigidez. Em Lefort, a grande organização e o grande ordens expressas da directoria, tal como o fígado ou o
pancreas actúa em nosso organismo.
autómato ameaçavam o potencial da representatividade do “povo-
Uno”, aproximando o social do limite do inorgânico; aqui a engre­ Como no corpo humano, cada orgão, cada elemento de
nagem mecânica tritura o indivíduo político, ficando a representação uma organização qualquer deve ter posição e sua funeção
ausente, possivelmente no ato infindável de produzir: definida (. . .) No corpo humano, até as cellulas são "es­
pecializadas" e uma cellula de tecido cerebral não póde
20. A zevedo, A ldo M. O rganizar, R evista d o ID O R T , São Paulo, n .° 3, m arço
pretender funccionar com o cellula de tecido muscular ou
de 1932, pp. 5 a 7. como cellula de osso ou vice-versa.

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No corpo humano, não se dá o caso do estomago ou do executadores de ordens, nunca sair do lugar que lhes foi dado nesse
fígado querer funccionar como cérebro, ou os pés quere­ corpo hierárquica e imutavelmente disposto. Resta sublinhar que esta
rem substituir os clhos ou ouvidos.. . Se isto se désse, construção natural é também informada por referências cristãs en­
seria uma anarchia completa. Entretanto, no organismo volventes, manifestos em diferentes espaços da revista. Em outras
social esse absurdo é tentado de várias formas e as cha­ palavras, essa condição do trabalhador, fragmentado e mecanizado,
madas lutas de classes não são mais do que uma luta de reduzido a músculos operadores de funções, atende à vontade do
crgãos que pretendem dirigir o organismo, isto é, fígados Criador. . .
e estômagos que pretendem ser cérebros, de vez em quan­
do. . . ”
Não deixa de ser espantoso deparar com essa descrição organi- Na introdução do seu livro O Estado Nacional, que denominou
cista e totalitária do espaço da fábrica, uma instância altamente “Aspecto trágico das épocas de transição”, Francisco Campos mos­
representativa da vida social. Pensada como protótipo da sociedade, tra-se especialmente preocupado e impaciente com o momento pre­
qual a distância essencial que separa essa construção daquela captada sente, devido a um problema capital: o mundo estava mudando e
por Lefort? Não chega a impressionar o fato de que, por essa época, ainda não haviam sido encontradas as novas “formas espirituais” que
o próprio Roberto Simonsen desfiasse elogios à ordem corporativa substituíssem as obsoletas. “Nunca se poz em questão, de uma vez,
fascista italiana e à experiência da racionalização do trabalho na Ale­ tão grande número de pontos de fé. Nunca falhou em tão grande
manha nazista 21. Este é o resultado mais esclarecedor de uma síntese escala a confiança humana na coeherencia do universo do pensamento
forçada entre os mestres da racionalização do trabalho lidos e aplica­ e do universo da acção” 22.
dos pelos teóricos do IDORT e as lições da política social do trabalho
da Igreja Católica, principalmente as retiradas da encíclica Rerum A preocupação do autor deriva, a seguir, para definir qual a
Novarum, de Leão XIII, amplamente divulgadas entre eles. orientação política que melhor apontava para a direção correta. O
liberalismo dizia respeito à “theologia política” em crise, portanto fora
A face mais brutal dessa exposição reside no ato de tomar a de cogitação; já do marxismo, via Sorel, o autor recolhe uma pro­
construção integralmente mecanizada — o grande autómato de que posta mítica, que investe no novo. É mítica porque, em não sendo
fala Lefort — como um órgão naturalmente constituído, copiado da teoricamente verdadeira, se acredita como verdade, na medida em
natureza. Choca porque este tipo de organismo não passa pela crítica que cultiva a luta de classes — “uma imagem dotada de grande carga
da mecanização e fragmentação do trabalhador; pelo contrário, a me­ emocional” e que constitui o único instrumento apto de se alcançar
canização é vista como o próprio ato de conversão à natureza, mas a revolução. O mito soreliano, apoiado sobre a “technica espiritual da
não a segunda natureza. A mecanização é um seu sucedâneo natu­ violência” barrava-se, no entanto, numa outra oferta mítica muito
ral. . mais superior. Ao “polytheismo político de Sorel” — e pelos mesmos
Essa ordem totalitária, naturalmente disposta, atende às intenções processos intelectuais de que ela se servira — “oppunha-se, de ma­
de disciplinar mecanicamente o exercício da política, enquanto desdo­ neira victoriosa, a theologia monista do nacionalismo”.
bramento da condição de trabalhar. Visa afastar, por meio da rotina “Criamos o nosso mytho. O mytho é uma crença, uma
mecânica, a possibilidade de qualquer alteração no movimento previ­ paixão. Não é necessário que seja uma realidade. E rea­
sível da grande organização. A individualidade encontra-se triturada lidade effectiva, por que estímulo, esperança, fé, animo.
por essa engrenagem; os trabalhadores aparecem desfigurados de sua Nosso mytho é a nação; nossa fé, a grandeza da nação”
pessoalidade; não podem reclamar e só lhes resta, enquanto músculos
Fora em 1922 que Mussolini proferira estas palavras, pouco
21. A s finanças e a indústria, São P aulo, São Paulo E ditora, 1931, pp. 25, 31,
antes da marcha sobre Roma. Entretanto, para Francisco Campos,
37: citado por De D ecca, E. S.. O Silêncio dos Vencidos, São P aulo, Bra-
siliense. 1981, p. 73. 22. R io de Janeiro, L. José O lym pio Ed., 1940, pp. 3 a 7.

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Mussoltni não estava apresentando nenhum conteúdo espiritual inédito; O que havia de novo no fascismo era a instrumentalização das
bebera o ethos e o pathos mítico da Nação elaborado por Fichte, “constellações românticas”, a aliança do cinismo ao romantismo, que
nos seus Discursos à Nação: permitia a utilização do conteúdo espiritual dos românticos “como
técnica de controle político”. Encontramo-nos na confluência dos
“A aspiração natural do homem é realizar, no temporal,
domínios do irracional — “instrumento da integração da política total”
o eterno. O homem de coração nobre possue uma vida — e do mito — “a technica intellectualista de utilização do incons­
eterna sobre a terra. A fé na duração eterna do povo que ciente collectivo para o controle político da nação”. A nova “subs­
lhe deu a existência. O carater racial do seu povo é o
tancia espiritual” está posta sob o reinado do irracional; sob a ação
elemento eterno ao qual o homem liga a sua própria eter­
da sugestão coletiva, da propagação e contágio das emoções será
nidade e a de toda a sua obra. É a ordem de cousas
alcançado “o quadro dessa evocação fáustica dos elementos archaicos
eternas na qual o homem põe o que elle mesmo tem de
da alma humana”. Mesmo porque as massas predispõem-se intelec­
eterno”.
tualmente ao mergulho irracional; elas não pensam “discursivamente”
O autor refere-se apaixonadamente às palavras de Fichte sobre e sim através de “imagens e mitos”, intérpretes dos seus desejos e
a “unidade e a eternidade da nação”. Mesmo a declaração da Carta libertadores das forças elementares da alma humana.
del Lavoro não conseguira sair dos contornos jurídicos do discurso
para alcançar o sentimento de que “a nação é o envoltório do eterno”. A nova teologia política não se pauta por processos racionais
Se rastreasse os teóricos totalitários alemães, Francisco Campos não de integração. A vida moral, assim como a vida política encontram-se
teria se decepcionado com eles. Segundo Marcuse, a mitificação natu­ determinadas pela irracionalidade e pela ininteligibilidade. O indivíduo
ralista qualifica “o natural de eterno e produto da vontade de Deus”, despoja-se de sua personalidade e passa a pertencer, de corpo e alma,
e a nação é a “eterna substância, o imutável através da mudança à nação, ao estado, ao partido e sentir, como nas palavras de Gentile,
constante das revoluções económicas e sociais, que são acidentais, "o interesse geral como o seu próprio” ao mesmo tempo que converte
fugazes, insignificantes, diante dela”. A nação não se constituía numa a sua vontade na “vontade do todo”. “A integração política pelas
criação do poder humano. Por ser naturalmente orgânica, era de forças irracionaes é uma integração total, porque o absoluto é uma
origem divina e eterna, em contraposição à inorganicidade e artificia­ categoria archaica do espírito humano. A política transforma-se dessa
lidade da sociedade 23*2S. maneira em theologia.” 24
Os românticos alemães — continua Campos — , já tinham gerado Este longo percurso pelo texto de Francisco Campos permitiu,
o conteúdo espiritual do novo tempo. É de Fichte e Hegel a noção entre outros procedimentos, acompanhar o ideário do organicismo
de um “Estado racionalista, racista, totalitário, a submersão dos indi­ irracionalista, traduzido pela mão de um intérprete relevante do pen­
víduos no seio totemico do povo e da raça” assim como o “pathos samento totalitário brasileiro. Constitui, antes de mais nada, um exem­
romântico do inconsciente colletivo, seio materno dos desejos e dos plar acabado de um modo de pensar sacralizador da política. Não se
pensamentos humanos”. Jamais o Estado totalitário havia encontrado trata de um mero plano discursivo sacralizado. O primado do irra­
palavras mais apropriadas que o interpretassem, como as de Fichte: cional operacionaliza com a “substancia nebulosa e indefinida ( . . . )
“O estado, alto administrador dos negócios humanos, autor dos elementos archaicos da alma humana”, para atender ao pronun­
responsável, diante de Deus e perante a sua consciência, ciamento político das massas, evidenciar ainda mais a irracionalidade
de todos os seres menores, tem plenamente o direito de do processo político e deslocar “o centro das decisões políticas da
constranger estes últimos à sua própria salvação. O valor esphera intellectual da discussão para o plano irracional ou dictatorial
supremo não é o homem, mas a nação e o Estado, aos da vontade” (Idem, pp. 21 a 23).
quaes o homem deve o sacrifício do corpo e da alma”
A sacralização da política não atende apenas ao intento de se
23. M arcuse, H. La L ucha del liberalism o en la concepcion to talitária del
obter uma nova “substancia espiritual” para a “theologia política".
E stado, In : F ascism o y C apitalism o, B arcelona, E. M artinez R oca S.A..
s /d , pp. 61 e 63. 24 F rancisco C am pos, citado, pp. 7 a 11.

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\
Esta recondução à “comunhão totêmica” tem objetivo político claro, lento que rememora a violência fundadora e sustenta por isso a po­
pois leva à formação de novas categorias de pensamento e ação e de tência do Partido” (Idem, p. 196).
“processos espirituais, de integração política”. Fora por acaso que o A mística da grande indústria stalinista tem raízes na matriz
regime nazista elaborara lentamente uma nova religião de caráter marxista do culto do trabalho, da técnica e do progresso. Poucos
secular, para o império dos 1000 anos, a ponto de espantar e causar como Marx deram crédito à ciência, ao progresso, sem os quais não
a repulsa do Vaticano? Desde o programa de 1920 do NSDAP, os seria viabilizada a instalação da futura comunidade comunista. O
nazistas dão início à pregação do Cristianismo Positivo; nas palavras desejo de progresso, propõe Maffesoli, associa-se necessariamente ao
do ministro dos negócios da Igreja, de 1937, não mais o cristianismo desejo da imortalidade, um recurso para se proteger contra a labili-
da fé em Cristo, filho de Deus e sim o cristianismo convocado pelo dade de uma história linear. O culto irrestrito do progresso atua como
partido e pelo Fuhrer, “o precursor de uma nova revelação” 25, o lenitivo espiritual contra a angústia gerada por fruir do tempo que
“novo redentor”, na apreciação de Roehm 26. Na escalada de repressão passa (Ibidem, pp. 156-157).
às igrejas cristãs, o momento talvez mais intenso pode ser apanhado Ao contrário de se pensar que o Estado burguês tenha banido
do programa de 30 pontos, para a criação da Igreja Nacional do a religiosidade cristã, parece-nos mais procedente falar num afasta­
Reich. Esse documento fora redigido por Rosenberg e apresentado mento da visualidade imediata do Estado dos sinais cristãos. Eles
durante a guerra: nele pregava abertamente a nacionalização das continuam a existir e com eles os conteúdos cristãos de uma dimensão
igrejas, o extermínio das crenças cristãs, o fim dos padres e pastores, sacralizada do poder, mas operando nos poros do corpo político do
a cessação de publicação da Bíblia, substituída pelo novo livro sa­ Estado. Ainda teremos oportunidade de conferir como uma doutrina
grado, Minha Luta, a retirada dos crucifixos, bíblias e imagens das formulada pela teologia católica teve seus registros adaptados para a
igrejas e a substituição da cruz cristã pela suástica 27. prática política de Estados recentes. Acrescente-se agora que o pro­
E o que dizer da “teologia comunista”, com seu receituário de cesso de secularização do Estado não acarretou uma situação de pura
uma nova fraternidade entre os homens e da criação do paraíso na irreligiosidade; os valores espirituais cristãos têm-se mantido atuan-
terra, sua “moralidade política” escorada no maniqueísmo do “outro tes, como tem, aliás, acontecido no seio da sociedade.
maléfico” (o inimigo) contraposto à figura do “outro benéfico”, onis­ Alega-se que os temas, as imagens, as verdades cristãs foram
ciente, todo poderoso, militante, dirigente — o Egocrata? Em que despojadas do seu conteúdo, restando-lhes apenas as formas. Seria
se apóia o culto stalinista da personalidade, se não no fazer as vezes o caso de se apurar pelo imaginário popular a quantas anda essa
de uma nova divindade, travestida de um “corpo mortal que é per­ afirmação; o imaginário constitui uma faceta fundamental da dimensão
cebido como invulnerável, que condensa nele todas as forças, todos social do próprio Estado. Esquecer esse lado é contar apenas com
os talentos, desafia as leis da natureza com sua energia de super-ma- uma visão juridicista e burocrática do próprio Estado.
cho?” 2829Os grandes expurgos stalinistas, por sua vez, atualizam sim­ De outro lado, sugere-se que o Estado tenha invadido esferas
bolicamente, através de um ritual de violência, a comunhão de um próprias da tradição eclesial. Popularizou-se uma visão mítica de um
culto místico, espécie de “suicídio altruísta”, através do qual o sacri­ Estado sábio, poderoso, previdente e duro com seus opositores. O
fício de alguns assegura a vitalidade e a regeneração do partido Estado cria os próprios símbolos litúrgicos de seu caráter soberano
(Maffesoli, p. 196). De modo semelhante, o episódio do massacre e transcendente, assim como um culto especial passa a ser dirigido
dos pioneiros do partido nazista, o grupo dirigente das S.A., atuou aos governantes. Acima de tudo, comenta um teólogo católico, arraiga
liturgicamente como um batismo de sangue, “um sacrifício sanguino­ no social a imagem do Estado salvador, providencial, portador de
uma força superior em autoridade e eficiência, assim como elaborador
25. Shirer, W. L.. Ascensão e queda d o III R eich, Rio de Jan eiro , C ivilização de uma “ciência que conhece as forças transcendentes, as vontades e
Brasileira, volume 1, p. 356.
26. G uerin, D aniel. Fascysm o y gran capital, M adrid, E ditorial F u n d am en to s. decisões do destino e trata de agir sôbre estas forças” 2!l. Resta per­
1972, p. 103.
27. Shirer, W . JL., citado, p. 358. 29. C o m b lin , José. N ação e N acionalism o, São Paulo, D u as Cidades, 1965,
28. Lefort, C., citado, p. 115. p. 212.

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guntar se essa ofensiva, que é real, esvazia o legado cristào da imor­ sugestão encaminhada por Roberto Simonsen a autoridades religiosas,
talidade da alma e o poder cristão de se ganhar a vida eterna e con­ no sentido de que a Igreja apaziguasse os humildes, para que não
siga substituir o conteúdo original de uma religião típica de lamen­ se revoltassem contra os patrões e reconhecessem a sua impossibili­
tação 30312. dade de melhorar as condições de ganho dos trabalhadores33. Esta
função mediadora no social, requerida por Simonsen e por muitos,
De resto, o processo sacralizador do poder pautou-se por copiar
é da mesma natureza das mediações que o clero estabelece entre o
os movimentos e a organização da Igreja. No comentário de um
fiel e Deus. É típico do poder garantir o monopólio da mediação para
ex-burocrata francês o caráter sagrado foi sendo calcado na lei
o clero a fim de que garanta a “função de atomizar o corpo social
e na gestão que faz dos funcionários da burocracia novos “doutores
ou mais exatamente ser o ponto de passagem para as relações sociais”,
da lei”. Nesse sentido — traduz Maffesoli — “O Estado é estruturado
comenta Maffesoli (citado, p. 30). Essa minoria selecionada de padres
como uma Igreja cuja função essencial é garantir o depósito da fé,
exegetas do corpo doutrinal da Igreja, intérpretes e administradores
sua intangibilidade e sua transmissão por meio de dogmas, decretos
dos signos teológicos34, constitui solução mediadora similar à dos
e prescrições políticas” (Citado, p. 194).
selecionados militantes — vanguarda das massas “atrazadas” e dos
Também Manoilesco, o clássico teórico do corporativismo, acen­ técnicos especializados na questão do poder, que tomam conta do
tua o caráter precedente da Igreja em relação ao Estado. Sua preo­ aparato administrativo do racionalizado Estado Moderno. Talvez o
cupação maior, no entanto, centra-se em tomar a Igreja como pro­ fascínio pela condução espiritual das massas impressionasse particular­
tótipo da corporação. Ressalta-lhe a organização peculiar que engloba mente os pensadores das primeiras décadas do século, inseguros ante
uma estrutura hierárquica e disciplinar específicas, no topo da qual a “periculosidade dos estalos súbitos, sua rapidez e imprevisibilidade,
está posta a autoridade supranacional do papa. O quadro organiza­ e principalmente a supressão das distâncias obrigatórias”, que mati­
cional completa-se com a disposição da justiça e da rede educacional zavam os fluxos e contra-fluxos das massas. As distâncias obrigató­
também próprias. O protótipo da organização não é, no entanto, mais rias, a que se refere Canetti, dizem respeito à distância que vai da
ressaltado que o exemplo do “espírito corporativo”; o autor vê a massa à hierarquia eclesiástica; não sem razão, a Igreja há muito
Igreja como reserva privilegiada de idealismo, alimentadora das forças que divisionara a “massa aberta” como seu inimigo capital. Não sem
espirituais no embate contra o materialismo. Dotada de organização razão, os homens públicos devem ter se apercebido da capacidade
e de “espírito corporativo tão acentuado ( . . . ) serve de padrão a do “Estado/Igreja” de forjar mecanismos para moldar a sua massa,
todas as instituições, corporações e partidos políticos” :l-. “mansa e menos danosa", com movimentos orientados para escoar
e fluir lentamente (Citado, p. 170).
Dois atributos são fundamentais para o Estado moderno, diz o
economista romeno: idealismo e unidade de alma, dois atributos dos Para Canetti, o cotidiano católico é marcado por um clima de
quais a Igreja é especiaimente portadora (Idem, p. 169). É esse lentidão e calma, associados a amplitude; os movimentos litúrgicos
fascínio que percorre diferentes pronunciamentos de pensadores e atuam para enfraquecer e frear a possibilidade de evolução da massa:
políticos — o da faculdade da Igreja de lidar com o mundo da fé, a comunhão individualizada, a palavra somente pregada pelo padre,
da vontade, da consciência. Lembremo-nos, de passagem, de uma já mastigada e dosada; os pecados confessados individualmente e per­
tencentes aos sacerdotes; as procissões organizadas, a fluir lentamente,
30. C onform e a caracterização de Elias C anetti, M assas e Poder, São Paulo,
M elh o ram en to s/E U B , pp. 157 a 160. A m alta de lam entação c h o ra por 3 3 . C f. a página 114 do cap ítu lo 3.
“um hom em que m orreu por am or dos hom ens que o choram . Ele era o 3 4 . N ietzsche refere-se, com p alav ras sem elhantes, à projeção sacerdotal a
salvador deles. . ele é justam ente aquele que não deveria estar m orto" que certo tipo de filósofo se in v estira: “Q uando se é o porta-voz dos im ­
(p. 158). perativos supraterrestres, se e n c o n tra alguém com sem elhante missão fora
31. Peyrefitte, A., Le m al français, Paris. Plon. 1976. p. 384; citado por de todas as avaliações p u ram en te conform es à razão — a pessoa se salva
M affesoli, citado, p. 194. por sem elhante tarefa! tipo de um a hierarquia s u p e r io r ! ..." — O anti-
32. M anoilesco, M ihail. O século do corporativism o, Rio de Jan eiro , C. lose C risto, Rio de J a n e iro /L isb o a , L. C am ões/G uim arães & Cia. Editores,
O lym pio Ed., 1938, p. 168, tradução de A zevedo A m aral. 1978, 5.a edição, p. 25.

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i
retrato público da imagem da hierarquia eclesiástica; a massa per­ Deparamo-nos com um espetáculo tipicamente evangélico de
mitida dos anjos e bem-aventurados, de quem nunca se imagina redenção das massas pelo Messias esperado. “As massas encontram-se
serem muito ativos: “Eles perambulam lentamente e cantam, entoam sob a fascinação da personalidade charismática”, afirma Francisco
hinos e sentem sua própria felicidade ( . . . ) • Eles são muitos, estão Campos. Os desimportantes, os desesperançados assistem à “ascensão
juntos e muito próximos e se encontram tomados pela mesma bem- do mytho solar da personalidade”, que virá imprimir “a unidade de
aventurança (. . .). Eles também não têm direção. A situação deles uma vontade dura e poderosa ao chãos de angústia e de medo de
é definitiva. A corte que eles formam é imutável. Eles já não querem que se compõe o pathos ou a demonia das representações collectivas”
ir para lugar algum; já não existe algo que possam esperar.” (Idem, (Citado, pp. 16 e 17). Veja-se como é profundamente expressiva
pp. 170 a 173). esta interpelação ao predestinado Messias pelo seu teor e por sua
No outro extremo do temor da massa, a atração irresistível pelos fonte de origem:
seus movimentos. Sem a irrupção das massas, sem sua energia, como “Em nossa profunda desesperação temos encontrado em
formar a totalidade espiritual do “povo-Uno”? “O clima das massas vós o que mostra o caminho da verdadeira fé ( . . . ) . 1endes
é o das grandes tensões políticas ( . . . ) . Com o advento político sido para nós a realização de um misterioso desejo. Tendes
das massas”, diz Francisco Campos, “a irracionalidade do processo curado nossa angústia com palavras de liberação. Tendes
político, que o liberalismo tentara dissimular com os seus postulados forjado nossa confiança no milagre que virá.” :,,i
cptimistas, torna-se uma evidência tão lapidar.. . ” (Citado, p. 21).
É muito perturbador, comenta Hannah Arendt referindo-se ao nazismo,
enfrentar a realidade de que o regime totalitário contasse com o apoio
das massas, “malgrado o seu caráter evidentemente criminoso”. A Até aqui temos evoluído na perspectiva de desbravar as fronteiras
principal característica do homem de massa é o seu isolamento: "A nebulosas dos conteúdos do poder, na tentativa de perceber a maneira
consciência da desimportância e da dispensabilidade deixava de ser pela qual ele se sacraliza, assim como acompanhar os impulsos sociais
a expressão da frustração individual e tornava-se um fenômeno de que indicam essa tendência. Daqui para frente manteremos essa dire­
massa” 35*. ção, sempre preocupados com a substancialização do poder, mas
invertendo o enfoque: visaremos captar o movimento nascido de
O nazismo, pondera Arendt, significou o fim da ilusão de que conteúdos originalmente teológicos que são intercambiados para o
as massas se resignassem à neutralidade de um silencioso pano de lugar próprio da política.
fundo para a política principal. Na Alemanha, comenta com entu­ Nessa direção, nos circunscreveremos à doutrina do Corpo Mís­
siasmo Francisco Campos, enquanto o parlamento se debatia discur­ tico de Cristo. Através dela exercitaremos a busca do espaço fron­
sivamente, Hitler, nas ruas, subtraía “da nebulosa mental das massas, teiriço tênue e indeterminado entre os domínios do secular e do
uma fria, dura e lúcida substância política, o controle do poder e da sagrado. Claro que o objetivo visado diz respeito não somente a
nação”. O nazismo não somente partia de uma confiança positiva captar a eficácia do poder, como configurar as novas cristalizações
no valor político das massas; trabalhava-a tecnicamente, explorando que ele vai assumindo, mutante. Tal doutrina se confunde com as
o seu desespero e o sentimento de superfluidade: “Quem quizer saber origens do próprio cristianismo e ocupa um lugar singular no interior
qual o processo pelo qual se formam effectivamente, hoje em dia, as do seu corpo teológico; expressa aspectos ao mesmo tempo teológicos
decisões políticas, contemple a massa allemã, medusada sob a ação e institucionais da organização da Igreja católica. Mais que isso, em
charismatica do Fiieher, e em cuja mascara os traços de tensão, de certas conjunturas históricas, esse conteúdo teológico vasa para o
ansiedade e de angústia traem o estado de fascinação e de hypnose” social e passa a ser reinterpretado, materializado de maneira especial.
(Citado, p. 29).
Tal como tem sido descrita, analisada e interiorizada, essa dou­
trina formaliza a criação da imagem mais acabada de um corpo-tota-
35. C onferir em Totalitarismo, o p aroxism o do poder. Rio de Janeiro. Ed.
D ocum entário, 1979. pp. 27 a 55. 36 C arta de G oebbels a H itler de 1933, citada por G uérin, citado, p. 103.

158 159
lidadc a funcionar como um todo perfeito e harmonioso; ele guarda Foi São Paulo, o apóstolo, portanto, o primeiro a lançar as
duas vantagens comparativas em relação às imagens organicistas que bases místicas da doutrina em formação. A dimensão universal re­
conhecemos: este corpo, além de universal, supranacional, é místico, querida atendia ao imperativo de se desgarrar da condição étnica
religioso, e, enquanto tal, não se expõe como passível de objeções judaica, no bojo da qual tivera origem o cristianismo. O caráter
críticas à sua construção assim como dificulta a aproximação dessas essencialmente místico deve ter atuado nos primórdios como fator
objeções aos possíveis desdobramentos imagéticos, inclusive os polí­ de composição de uma identidade religiosa, mas também social e
ticos que a doutrina enseja. política para a comunidade cristã.
Foi o apóstolo Paulo o primeiro a articular essa imagem, con­
Seu caráter universal facilitaria a seguir que o cristianismo fosse
vertendo-se uma referência obrigatória nos tratamentos posteriores:
assumido pelo império romano como religião oficial, a ponto de o
“Com efeito, como o corpo é um só tendo muitos mem­ Estado se teocratizar, pelo menos na versão bizantina. Assim como
bros e todos os membros do corpo, sendo embora muitos, nos primeiros séculos de cristianismo, o texto doutrinal recebeu suces­
não formam senão um só corpo, assim é com Cristo. Pois, sivos cuidados dos teólogos e autoridades eclesiásticas — como se
num só Espírito nós todos fomos batizados para formar pode notar pelas citações da encíclica de Pio X II3738. Na época me­
um só corpo, quer judeus ou gregos, quer escravos ou dieval também Tomás de Aquino se ocupou do seu tratamento textual.
livres, e a todos nós foi dado a beber de um só Espírito. Até então, o universalismo da Igreja e da doutrina do Corpo Místico
Também o corpo não se compõe de um só membro, mas caminhavam juntos, assim como a proximidade entre os domínios
de muitos. Se o pé dissesse: ‘porque não sou mão, não secular e religioso não tinham ainda sofrido os abalos que os acome­
pertenço ao corpo', deixaria por isso de ser do corpo? L teriam.
se a orelha dissesse: ‘porque não sou ôlho, não pertenço
ao corpo’, deixaria por isso de ser parte do corpo? Sc A falta de retomadas da doutrina e o silêncio presumível que a
todo o corpo fôsse ôlho, onde estaria o ouvido? Se todo circundou podem ser explicados pelas circunstâncias críticas que os
fôsse ouvido, onde estaria o olfato? Mas Deus colocou a novos tempos trouxeram. A tendência para a sacralização do poder
cada um dos membros no corpo, como quis. E se o todo nacional e a explicitação da diferenciação social, através da emer­
fôsse um só membro, onde estaria o corpo? Mas há mui­ gência das classes sociais tumultuavam a visão de uma relação har­
tos membros e um só corpo. Não pode o ôlho dizer à mónica entre uma só cabeça e um só corpo social. De qualquer modo,
mão: não preciso de ti’; nem a cabeça pode dizer aos como comenta Lefort, a sociedade do antigo regime ainda mantinha
pés: ‘não preciso de vós’. Os membros do corpo que para si mesma a representação da corporeidade, ao se ver como
aparecem como os mais fracos são os mais necessários: corpo atrelado à cabeça do rei. Kantorowicz, citado por Lefort, de­
e os membros do corpo que nos parecem menos honrados, monstrou a origem medieval dessa simbologia teológico-política. Fora
são os que cercamos de maior honra; assim, os nossos sobre a imagem de Cristo que a imagem do rei como “corpo duplo,
membros indecentes são tratados com a maior decência; ao mesmo tempo mortal e imortal, individual e coletivo” tinha se
nossos membros decentes não precisam disso. Mas Deus escorado (Citado, p. 117). Mais: na imagem de Cristo “se tinha
dispôs o corpo de maneira a dar maior honra ao que dela investido o pensamento da divisão do visível e do invisível, o pensa­
carece, a fim de que não houvesse divisão no corpo, mas mento do desdobramento do mortal e do imortal, o pensamento da
os membros fossem solícitos uns para com os outros. E mediação, o pensamento de um engendramento que ao mesmo tempo
se um membro sofre, todos os membros sofrem com êle; apagava e restabelecia a diferença entre o engendrado e o engendrante,
se um membro é honrado, todos os membros se alegram o pensamento da unidade do corpo e da distinção da cabeça e dos
com êle.’’ membros” ( ldcm, p. 120).

37. I.a C arta aos C orínlios, 12, 12-16; N o v o T estam ento. São Paulo, Bditoru 3X M y stie i C o rporis C hristi (Sobre o C o rp o M ístico dc Cristo). Petrópolis.
H erder, 1970, p. 217. Vozes. 1950. 6.a edição. O texto o rig in al é de 1943.

160
161
A presença do indivíduo-fragmento, a projeção administrativa frente a um modelo económico. Nesse momento, o texto deslinda as
do Estado, a sensação de ameaça de dissolução do social apressavam inconveniências do liberalismo, assim como em outros momentos ca­
os cientistas sociais a se abrigarem teoricamente sob a imagem recon­ pitais a exclusão do comunismo é posta cristalinamente. O caminho
fortante do corpo; por meio dela, o lugar do indivíduo, do Estado, encontra-se aberto, pois, para experiências novas; entre elas, a do
suas relações com a sociedade foram então recolocadas. Por meio corporativismo. Antes de passarmos às referências ao Estado corpo­
da imagem do corpo mais uma vez tentava-se recuperar a integridade
rativo fascista, vejamos este texto:
do todo através da neutralização da diferença e da reinstituição da
totalidade harmoniosa. Torna-se imperioso assinalar que, após ter o 90. Se dêste modo se restaurarem os membros do corpo
fascismo decidido corporativizar a sociedade, a Igreja Católica sen­ social e se restabelecer o princípio regulador da economia,
tiu-se à vontade para voltar a campo e a doutrina do Corpo Místico poderá aplicar-se-lhes, de alguma forma, o que o Apóstolo
também voltou à cena. dizia do Corpo Místico de Cristo: “todo o corpo organi­
zado e unido pelas articulações de um mútuo obséquio,
Antes da encíclica Mystici Corporis Christi de Pio XII, a dou­ segundo a medida de atividade de cada membro, cresce e
trina já fora recuperada, agora com novas intenções políticas, aten­ se desenvolve na caridade" (Ef. 4,16) — (Citado, p. 31).
dendo aos imperativos do presente. Tratava-se então de não somente
tomar o bonde da história e enfrentar a questão social, como também É simplesmente notável a ponte estabelecida entre economia e
de explicitar o modo de fazê-lo. Leão XIII, na Rerum Novarum, o caridade cristã, entre restauração social e instauração do religioso.
fez com clareza e maestria: Quanto ao fascismo, o texto já levanta pontos positivos que podem
ser associados à experiência fascista, quais sejam, a restauração dos
" . . . assim como no corpo humano os membros, apesar membros do corpo social e o princípio regulador da economia. As
da sua diversidade, se adaptam maravilhosamente uns aos virtudes do corpo místico ficam à disposição do complemento da obra
outros, de modo que formam um todo exatamente pro­ renovadora; esta é a contribuição específica que a Igreja pode oferecer.
porcionado e que se poderá chamar simétrico, assim tam­ Na sequência, os itens 91, 92, 93 comentam a organização corporativa
bém, na sociedade, as duas classes estão destinadas pela fascista. O item 94 é especial, pois se refere à proibição da greve:
natureza a unirem-se harmoniosamente e a conservarem-se “se as partes não podem chegar a um acordo, intervem a autoridade”
mutuamente em perfeito equilíbrio :l!l. (p. 32). O item 95 é bem mais conhecido: elogia abertamente as
Da mesma forma, no pontificado de Píc XI, a recuperação da vantagens repressivas e emite ressalvas para o excesso burocrático
doutrina tornou-se estratégica em sua encíclica Quadragésimo Anno 4f\ do fascismo:
agora não mais para apenas fazer parte do rolo compressor do con­ 95 “Basta refletir um pouco, para ver as vantagens
servadorismo político e sim para tomar a dianteira nas propostas desta organização, embora apenas sumariamente indicada:
contra-revolucionárias concretizadas no projeto fascista do corpora­ a pacífica colaboração das classes, repressão das organi­
tivismo. O espaço ocupado por essa discussão encontra-se entre a zações e violências socialistas, a ação moderada de uma
sua exposição de como desejaria que a economia fosse subordinada magistratura especial, e em harmonia com os princípios
a princípios diretivos da justiça social e os seus comentários sobre o gerais acima recordados e com o que em breve acrescen­
Estado corporativo fascista. Não sem razão, pois, as diretrizes da taremos, devemos contudo dizer que não falta quem receie
justiça social são suficientemente genéricas para exigir uma definição3940 que o Estado se substitua às livres atividades, em vez de
se limitar à necessária e suficiente assistência e auxílio;
39. C ondição dos Operários, P etrópolis, Vozes, 1980, 13.a edição, p. 13. que a nova organização sindical e corporativa tem caráter
As encíclicas Sapientiae C hristianae e Satis C ognitum . tam bém de L eão
X III, voltaram ao tem a, confira-se, para tanto, as páginas 32 e 33 d a
excessivamente burocrático e político; e que, não obstante
M ystici Corporis Clirisli. as vantagens gerais apontadas, pode servir a particulares
40. C o n ferir: Pio XI. Sobre a R estauração e A p erfeiço a m en to d a O rd em intentos políticos mais que à preparação e início de uma
Social, Petrópolis. Vozes. 1962, 6 .a edição. A no de lançam ento: 1931 ordem social melhor” (p. 32).
162 163
Fica claro a maneira como o texto escolhe aliado e inimigo. “Somente espíritos superficiais, podem cair no êrro de
As ressalvas ao fascismo são fortes mas não definitivas; escrita em falar de um Deus nacional, de uma religião nacional, e de
1931, esta encíclica poderia, se quisesse, definir-se mais claramente compreender a tola tentativa de captar nos limites de um
diante do perigo dos “particulares intentos políticos”, quais sejam só povo, na estreiteza de uma só raça, Deus, criador do
a possibilidade de desvio totalitário. Aliás, nesse mesmo ano Pio XI mundo, rei e legislador dos povos, diante de cuja grandeza
redigiu Non abbiamo bisogno, na qual teceu críticas ao fascismo ita­ as nações são pequenas como gotas de água que caem
liano devido à repressão à ação católica e à restrição ao ensino reli­ dum balde” (Is. 40,15) *2.
gioso, garantidos pelo Tratado de L adrão4’. O documento não parte O discurso é agressivo e destemido; retira do baú da história
para a condenação do agressor como em outras situações parecidas: católica suas imagens mais gloriosas, pois o inimigo é de respeito.
“ . • . não é intenção Nossa condenar o partido e o regime Rememora-se “a via dolorosa da Igreja”, “a opressão dos fiéis” e
como tal. Quisemos assinalar e condenar quanto, no pro­ desafia-se abertamente o inimigo que ousou atacá-la nos seus con­
grama e ação do partido, temos visto e comprovado de teúdos essenciais e ridicularizá-la enquanto poder:
contrário à doutrina e práticas católicas e, portanto in­ “Nenhum poder corretivo do estado, nenhum ideal pura­
compatível com o nome e profissão de católicos” (p. 27). mente terreno, porquanto culto e nobre, poderá substituir,
Veja-se bem: o problema é de programa/doutrina política, que por muito tempo, os mais profundos e decisivos estímulos
não coincide com as expectativas da Igreja. Para ela, era inaceitável que provêm da fé em Deus e Jesus Cristo.
que católicos fascistas recusassem a sua oferta doutrinária. Estariam ( . . . )
em campos divergentes, ou haveria incompatibilidade de doutrina entre É um característico nefasto do tempo presente separar,
o corpo teológico-político cristão e o corpo político-teológico fascista? não só a doutrina moral mas ainda os fundamentos do
Sabemos das divergências entre fascistas e o Vaticano, que nunca se direito e de sua administração, da verdadeira fé em Deus
tornaram oficiais. O problema reside no modo positivo como a Igreja e das normas da revelação divina” (pp. 18 e 19).
considerava a experiência corporativa modelar e que precisaria tão
somente do conteúdo religioso cristão para seu acabamento. Teria a Repele-se, portanto, toda ingerência de qualquer forma de poder
Igreja razão suficiente para romper com o fascismo? E seu envolvi­ sobre a orientação das “questões morais” prescrita pela Igreja (a
mento na Espanha, ou mesmo suas ligações com os fascistas portu­ questão social está por exemplo cravejada de problemas m o ra is...
gueses? Um amplo campo de possibilidades estava em aberto. Por — Quadragésimo Anno, p. 32). Condena-se, quer a substituição quer
isso, ao invés de condenação e decisão, o documento exala muito a separação dos ensinamentos normativos da fé revelada em relação
mais frustração e ressentimento, um desabafo diante de uma situação a questões puramente seculares. A repulsa ao nazismo é total; o que
imprevista: “Tentou-se ferir de morte tudo o que era e que será é possível e desejado de ser intercambiado com o fascismo é inteira­
sempre de mais grato ao nosso coração de Pai e Pastor de almas, mente rejeitado como possibilidade com o totalitarismo nazista. A
e nós podemos e devemos mesmo acrescentar: “o modo mesmo Nos aplicação do legado místico paulino ao “princípio regulador da eco­
ofende” (p. 3). nomia" (e da sociedade) poderia ser levado adiante com o corpora­
tivismo fascista. Esse o caminho efetivo da terceira via católica, na­
Entretanto, ao enfrentar situação semelhante na Alemanha, o quele preciso momento histórico. Terceira via, nem liberalismo, nem
papa Pio XI foi contundente. O texto de Mit Brennender Gorge, de comunismo.
1937, ataca diretamente o Estado nazista porque a Igreja sabia que
ele decididamente não a considerava sua aliada e que abandonara a É notável como desde Pio IX a Igreja participa da orquestração
“Lei de Deus", de quem a Igreja se julgava representante na terra: ideológica contra o liberalismo. Pio XI aprofundará o teor retórico
dessa ofensiva crítica: “a livre concorrência matou-se a si própria;
41 Sobre a necessidade e os caracteres da A çã o Católica. P etrópolis. Vozes.
1947 42 A Igreja fren te ao R a cism o N azista, Petrópolis, Vozes, 1961, p. 8.

164 165
à liberdade do mercado sucedeu a ditadura económica; à avidez do “unidade de origem divina”. A Igreja é parte da sociedade, mas “não
lucro seguiu-a desenfreada ambição de predomínio; toda a economia está toda em realidades dessa ordem como o homem todo não é só
se tornou horrendamente dura, cruel, atroz” (p. 35). Sabemos, no corpo mortal” (Idem, pp. 32 e 33). Perfeita em si, até mesmo nos
entanto, que a Igreja mantinha-se de acordo com a estrutura básica elementos jurídicos em que se ancora, não é de admirar que o discurso
do capitalismo. Porque então reduzia sua luta contra o liberalismo eclesiástico atribua para a religião ser o “fundamento de todas as leis
fundamentalmente como uma luta ideológica? Acontece que o capi­ sociais” (Quadragésimo Anno, p. 12).
talismo liberal não ameaçava fisicamente a Igreja; a ameaça percebida
era mais sorrateira. O materialismo liberal causava a “desordem das O “mistério recôndito” desse Corpo místico que também é Corpo
paixões, triste efeito do pecado original” (Quadragésimo Anno, p. 43). social de Cristo ganha visibilidade por força da “conspiração de
A terceira via contava necessariamente com essa obra regeneradora todos os membros ( . . . ) , pela profissão da mesma fé, pela recepção
sobre o liberal, obviamente a cargo da Igreja. dos mesmos Sacramentos, pela participação ao mesmo sacrifício, pela
observância prática das mesmas leis”. Vê-se, portanto, como é rei-
Uma outra ameaça não parece ter sido percebida: a revolução terativa a ascendência do sobrenatural sobre o social. Na justificação
liberal desincorporara o indivíduo, como disse Lefort, e estilhaçara do exercício da autoridade, a relação se mantém; por exemplo, nas
a imagem do corpo-Uno que a Igreja milenarmente veiculava. Entre­ palavras de Santo Agostinho, Cristo, “a nossa cabeça”, exerce as
tanto, o liberalismo produzira nova ameaça à medida que a expansão atribuições do poder místico: “ora por nós, acolhe uns membros,
do capital avançara pelo mundo, provocando a concentração mono­ castiga outros, a outros purifica, a outros consola, a outros cria, a
polista, com as sequelas imagéticas ou não de uma unificação da outros chama, a outros torna a chamar, a outros corrige, a outros
sociedade. O que importa é que tal unificação fazia-se em escala reintegra”. O próprio discurso se encarrega de explicitar como a
internacional e por via material, não mística, interpondo-se sorratei­ prática do poder místico resvala para um poder tipicamente social,
ramente no lugar ocupado pela imagem do corpo místico da tradição semelhante a qualquer tipo de poder constituído. Travejado pelo
cristã. Em outras palavras, essa ameaça não captada conscientemente, mistério, o corpo social requer um “chefe supremo visível a todos,
neutralizaria um núcleo teológico básico através do qual a Igreja fazia que coordene e dirija eficazmente para a consecução do fim proposto
a ponte entre as duas ordens constitucionais, a sua e a do mundo à atividade comum; e este é o vigário de Cristo na terra” (Mystici
secular. Corporis Christi, pp. 31 e 37).
Os expedientes teológicos que a Igreja apresenta para fincar pé A Cabeça do corpo místico e, portanto, a cabeça do corpo
no espaço público do poder lhe são caros e definitivos. Quaiquer social, possui todos os cinco sentidos, ao passo que o resto do corpo
obstrução desses canais obrigaria a Igreja a uma remodelação total apenas possui o tato; “assim todas as virtudes, dons e carismas que
na sua maneira de se colocar no “mundo”. O asseguramento desses há na sociedade cristã, resplandecem de modo singularíssimo na
vínculos resulta do próprio interesse que os poderes constituídos apre­ Cabeça, Cristo” (Idem, p. 25). A doutrina do Corpo místico de
sentam em carrear para o seu corpo teológico de poder os conteúdos Cristo afirma princípio de igualdade entre os membros, em função
teológicos de poder originalmente eclesiásticos. O fundamento desse da circulação capilar que redistribui as propriedades de cada membro
intercâmbio consiste em respeitar a dualidade institucional da Igreja, por todo o corpo místico. Há até mesmo preocupação em mostrar
ancorada na sua dupla natureza: a humana visível e a divina invisível, que a integridade de cada membro se mantém: “enquanto no corpo
originárias da pessoa física e mística do seu criador Jesus Cristo natural o princípio de unidade junta de tal maneira as partes que
(Mystici Corporis Christi, p. 33). cada uma fica sem própria subsistência, ao contrário no Corpo Místico
Tal dualidade assegura para o “corpo social” da Igreja a cons­ a força de mútua coesão, por mais íntima que seja, une os membros
tituição de uma “sociedade perfeita no seu gênero”. “Ela é muito de modo que conservam perfeita e própria personalidade” (Ibidem,
mais excelente que quaisquer outras sociedades humanas” porque p. 31 ).
não se vale apenas de elementos sociais e jurídicos para sua consti­ Entretanto, a diferença da Cabeça em relação aos membros
tuição, mas principalmente do espírito divino, princípio formador da subsiste e, tal como vimos nas palavras de Santo Agostinho, as suas

166 167
I
propriedades plenas facultam o exercício do poder nos planos místico
e social. Mesmo porque a totalidade mística amparada sobre a auto­
ridade de “Um só senhor” e substancializada de “uma só fé”, asfixia
misticamente os membros a ponto de denegarem sua própria perso­
nalidade em função da Cabeça que os dirige: “Vivo; já não eu; mas
vive Cristo em mim” 4:f.
Capítulo 6
Em tempo: em que lugar místico fincam raízes estas palavras de
Hitler, dirigida aos soldados da SA: “Tudo o que vocês são, o são SACRALIZAÇÃO DA POLÍTICA
através de mim; tudo o que eu sou, sou através de vocês”? 41.

“C reio em N osso Santo Pai o Fascism o"


Credo dcl Balilla

Viemos até aqui apontando a utilização discursiva de imagens


enquanto recurso de auto-representação, nem sempre percebida pelos
leitores do discurso teológico. O apelo imagético nesse tipo de dis­
curso visa demarcar uma identidade cultural própria, manter uma
distância preventiva e guarnecer a aura de mistério. As imagens apa­
recem encadeadas, ordenadas racionalmente e mantém uma perma­
nente tensão entre a figura e a razão. Para Romano, a “imagem reli­
giosa ‘diz’ uma proposição que remete a situações mais complexas
que um pretenso desejo direto de poder secular” '.
Ao mesmo tempo em que guardou para si seu depósito de sím­
bolos, a Igreja não descuidou de se apropriar da racionalidade e dos
avanços científicos. Tem-se atribuído aos jesuítas manter essa ini­
ciativa de pesquisa e rastreamento nos domínios estranhos à fé; por
meio deles a Igreja aproximou-se das “idéias de progresso pela ciên­
cia, indústria, democracia” -. Reportando-se a essa capacidade de
adaptação através dos jesuítas, Romano anotou: “Entre o jesuíta, frio
calculador a serviço da razão da Igreja, e o filósofo, sacerdote da
Razão, desvela-se uma cumplicidade insuspeitada, mas ao mesmo
tempo traidora: cada adversário já teria sido tomado pelos princípios
do seu oponente e não poderia defender-se sem emprestar as armas
do outro” (Igreja contra Estado, pp. 245-6).
Claro está que boa parte dos símbolos e imagens próprios do
discurso teológico foram contrabandeados e secularizados, conver­
tendo-se em matéria de domínio público. À Igreja coube tentar man-
43. Ibidem , pp. 37 e 30; am bas as citações fo ram ex traíd as pela encíclica das
cartas de São Paulo aos Efésios, 4, 5 e G tila tas. 2, 20. I R om ano. R oberto. Igreja contra E stado. São Paulo, Kairós, 1979, p. 42.
4 4 . E rnst Bayer, Die S A , Berlim, 1938. T ra d u z id o do N a zi conspiracy, IV, 2. F ried m an n , G . La crise dn progrès. Paris, G allim ard. 1936. p. 31. C itado
783. citado por A rendt, H annah, to ta lita r is m o . .. p. 54 por M affesoli, M.. citado, p. 141.

168 169
ter o significado religioso original e, reverso da medalha, aproveitar Vé-se, pelas últimas palavras, como o discurso toma-se elás­
o intercâmbio para melhor agir/interagir no “mundo”. Vimos como tico e muda de tom. O Cristo que vela, passa a ser visto como o
a metáfora do corpo prestou-se a esse movimento de ensarilhar inte­ Cristo que vigia, admoesta, policia. Através dessa imagem, a Igreja
lectual; falta ainda apreciar determinados desdobramentos desse jogo não somente explicita o que pensa das relações de trabalho; ela faz
de oposição e complemento, assim como registrar aplicações políticas da imagem o seu recurso de intervenção nas mesmas relações. O dis­
dessas imagens. curso da atividade eclesiástica amplia um pouco mais a sua signifi­
Não nos iludamos com a possibilidade de que as imagens pos­ cação quando a imagem da cruz é projetada no espaço da nação,
sam ser destruídas; nas religiões de lamentação, como a católica, a o lugar definitivo do trabalho: afinal no céu do país cintila o cruzeiro
iconoclastia funciona como instrumento de arraigamento ainda maior do sul, assim como o seu primeiro nome, dado pelos descobridores,
do valor simbólico da imagem, aprofundando o alcance da finalidade foi de Santa Cruz: “Foi o primeiro marco a indicar-nos o caminho
social de sua utilização. No mundo do trabalho, a despeito de ser certo da prosperidade e bonança, pela fé e pela doutrina de Cristo ’
atacada como símbolo de consolo e alienação pelos anarquistas e (Ibidem, p. 19).
agnósticos em geral, que razão teria levado autoridades a entroniza­ Já o discurso empresarial parte dos mesmos lineamentos, mas
rem a imagem de Cristo crucificado nas fábricas paulistas, senão a tende a particularizar a sua leitura da instrumentação social e polí­
de atrair a ira dos opositores, exorcizá-la, aprofundando o sentimento tica da cruz. Nessa mesma oportunidade, Roberto Simonsen lembrou
de identificação com a imagem do crucificado? a. que desde os tempos do CIESP os empresários tinham consagrado
Atende a finalidades políticas, não há dúvida; resta ver como princípios de orientação tipicamente cristã, determinando à entidade
se matiza essa utilização. Para um representante da Igreja em São “a obrigação de promover o bem-estar físico e moral do operariado,
Paulo, a imagem serena de Jesus Cristo entronizada nas fábricas ser­ procurando, ainda, estreitar os laços que prendem patrões e empre­
viria de “guia e consolo”. Essa abordagem típica de veneração cristã, gados” (Ibidem, p. 7). Numa outra cerimónia semelhante34, quando
com relação à imagem, aparece ainda mais reforçada quando Cristo foi entronizada a imagem de Cristo no salão nobre da FIESP, ainda
é apresentado como aquele que vela pelo cristão em todos os mo­ no ano de 1942, o mesmo Simonsen também se referiu à presença
mentos da sua vida; mas na fábrica, a presença figurada de Cristo de Cristo como consoladora e “abrigo para os espíritos”; da mesma
atende a um propósito especial: forma recuperou a função conciliadora entre as classes: “sob sua
égide, podemos, unidos, em sereno ambiente de paz social, trabalhar
“À cabeceira dos enfermos, conforta e encoraja No patrões e operários, pelo progresso e pela grandeza moral e material
lar, ensina a mãe a conduzir o filho, com amor e pa­ da nossa Pátria” (Idem, p. 261 ).
ciência; o pai a dirigir a família. Nos tribunais, é a Cruz
uma advertência aos juízes de que, acima da justiça dos A particularização do seu discurso principia quando sc refere
homens, existe a justiça de Deus, que nunca falha. Nos à presença do Cristo como meio de introdução da “trilogia sagrada”
sertões invios, dá força aos missionários para vencer as do cristianismo — a fé, a esperança, a caridade — no espaço social
ásperas vicissitudes. A cruz é uma bênção para os corações, daquela instituição. A fé cristã, para Simonsen, constitui “virtude
para as consciências. E uma bênção para o trabalho. Nas geradora de todos os atos” e, portanto, “objetiva o aperfeiçoamento
fábricas e nas oficinas, há-de-ser, sempre, um lembrete humano”; já a esperança é tomada como “germe da ação” e, como
de que patrões e operários conhecem o preceito de Cristo a fé, é também portadora do “espírito criador”. Por fim, a caridade
— “Amai-vos uns aos outros, como eu vos amei" (Idem, “propiciará a graça e a alegria de viver para outrem, na renúncia
p. 19). do que nos sobre e no amparo que nos for possível à sorte dos de­
serdados” (Ibidem, pp. 261-2).
3. Em 1942, o arcebispo de São P au lo sugeriu à Fiesp que prom ovesse a
introdução da imagem do C risto crucificado nas fábricas, no que foi p ro n ­
tam ente atendido pelas indústrias. O Congresso E ucarístico N acional de 4 C f: Sim onsen, R oberto C. A im agem de C risto, ln : Ensaios Sociais, Polí­
1942 e a Entronização da C ruz nas fábricas. São Paulo, Fiesp, 1942, p. 18. ticos e E conóm icos. São Paulo, Fiesp. 1943.

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Simonsen comunga, portanto, da visão eclesiástica da imagem Na escalada a ser descrita, a fábrica constituiu o último reduto dessa
da cruz irradiando-se pelo social e não escapa mesmo de acatar a estratégia da espiritualização do espaço social. De fato, já em 30,
ascendência do discurso católico pela sua origem divina: “ . . . toda Pio XI declarou Nossa Senhora Aparecida Padroeira do Brasil. No
a magnitude e pureza de sua doutrina, toda a superioridade dos seus ano seguinte, sua imagem foi carregada festivamente à cidade do
dogmas, todo o supremo esplendor das suas leis morais!” (Ibidem, Rio de Janeiro, por onde circulou pelas ruas centrais, acompanhada
p. 261). Isto não o impede, entretanto, de forçar uma direção inter- de grande massa popular. Os signos sociais desta santa — virgem,
pretativa no sentido de tomar os ensinamentos da Igreja como “fun­ negra e pobre — anota Beozzo, exerciam enorme apelo popular; seu
damento supremo do progresso e da civilização”, o que, no mínimo, caráter nacional de padroeira do Brasil ficava ainda mais acentuado
incomodaria Max Weber, se tomasse conhecimento dessas palavras. E pela “condição social” da imagem, popular na sua expressão, mas
justamente através da fé, da esperança e da caridade cristãs com­ não identificada com traços de uma classe social especial '. Se um
preendida esta última como renúncia da sobra daquilo que foi apro­ traço geral pode ser levantado sobre o arraigamento e o peso da
priado. . formação cristã no pensamento brasileiro seria o seu desempenho
Jung considera o símbolo da cruz um dos mais primitivos sim- como instrumento ideológico nas disputas de interesse político. As
bolos da ordem; “a cruz significa a ordem em oposição ao desordenado referências teológicas se apresentam sempre suficientemente genéricas,
ou ao caótico da multidão amorfa”; ela é uma forma que determina o diluídas, vulgarizadas, interpretadas muito próximas do senso comum.
ponto central do cruzamento de duas retas. Do ponto de vista psico­ O tema do cooperativismo se presta bem para tanto; nele o espírito
lógico, a cruz exerce a função de “centro gerador da ordem”. Se de cristão da caridade constituía sua medula e sua razão histórica de
um lado, a imagem da Cruz associa-se à dor e à tortura, de outro, ser. Enquanto delineamento geral esse ponto de partida persiste; à
ela também se manifesta como símbolo de iluminação \ A tradição medida que requer evolução teórica, o caráter eminentemente político
católica tem cultivado a passagem da dor e da morte, superadas do tema exige outros desdobramentos teóricos e as diferenças acabam
pelas luzes da ressurreição. E a ressurreição é, por excelência, a espe­ então por serem explicitadas.
rança confirmada da salvação eterna e da paz entre os homens. Pelo É bem verdade que em certos casos a função administrativa
sofrimento da cruz, “foi sancionada para todo mundo a lei de Cristo ocupada determina de tal modo o alcance das elocubrações que elas
com seus mistérios, leis, instituições e ritos sagrados”; pelo sofri­ acabam por não sair dos contornos do genérico. Assim se dá com
mento da cruz, ficava estabelecida, “com o sangue derramado por um texto do presidente da Comissão de Eficiência do Ministério da
todo o gênero humano, a nova Aliança” H. Fazenda \ O mundo do pós-guerra sofrera o impacto positivo do
De outro lado, a cruz tem servido no discurso católico para ideal cristão da cooperação, uma conquista superior às grandes des­
explicitar a localização política da religião em relação às posições cobertas científicas aplicadas ao mundo do trabalho. A racionalização
políticas que se encontram à sua direita e à sua esquerda. Antes de por si só não resolvia os problemas da produção enquanto não con­
agonizar, Cristo dialogou com o “bom” ladrão, crucificado à sua tasse com o interesse e envolvimento do trabalhador. As conquistas
direita, que o ouviu e aceitou sua palavra mas o “mau" ladrão da da racionalização do trabalho haviam sido assimiladas pelo aparato
esquerda recusou-se ao diálogo e ao perdão oferecido. De modo da administração estatal; mas também nesse caso de nada adiantaria
geral, as reações do ladrão da direita e do ladrão da esquerda têm essa modernização sem a recristianização do mundo. Cooperação é
sido generalizadas para se explicar a situação da Igreja em relação aqui lida estritamente em função de um crivo limitado da burocracia.*8
às posições políticas vigentes.
O que se passou no interior das fábricas paulistas foi antecedido 7 Beozzo. J Oscar. A Igreja e n tre a Revolução de 1930, o Hstado Novo
no espaço externo de grandes cidades brasileiras na década de 30. e a R edem ocratização. In: F austo, Boris, História G eral da Civilização
Brasileira, II , São Paulo, D ifel. 1984. pp. 294 6.
5 Jung, C. G ., O sím bolo da transform ação na m issa, Petrópolis, Vozes, 8. G entile, A lberto. A força social da C ooperação, ln: Brasil, D epartam ento
1979, pp. 8 3 .4 . A dm in istrativo do Serviço P úblico, R io de Janeiro, Im prensa N acional,
6. Pio X II. M ystici C orporis C hristi, citado, p. 15. 1944.

172 173
Fruto da moral cristã, ela não passaria de um recurso necessário caráter de classe ao cooperativismo. Por seu intermédio os trabalha­
ao bom funcionamento da máquina administrativa (pp. 5 a 12). dores reduziriam a força dos trusts e, num processo gradual, sem vio­
Essa compreensão genérica do cooperativismo pode também lência revolucionária, conquistariam os bens de produção das mãos
assumir uma postura mística e retórica; ela absolutiza não somente dos capitalistas11. Reversivamente, todos, agora com exceção de
a capacidade transformadora do cooperativismo como a força espi­ Frola, podem ser compreendidos como defensores de uma solução
ritual da Igreja, responsável pela irradiação da maré cooperativista. tipo terceira via, inclusive Luz, que demonstra notória simpatia para
A força transformadora do cooperativismo é freqiientemente invocada com o fascismo italiano.
como possibilidade. No caso da obra de Saturnino dc Britto", um
dos seus principais teóricos, a repartição democrática e igualitária Um decisivo elemento do encontro entre eles dá-se através da
promovida pelo cooperativismo inaugura uma nova era superadora aversão comum pelo atrelamento das cooperativas aos sindicatos. No
do egoísmo humano, retratado no liberalismo; a nova ordem também caso de Frola, possivelmente por temer que a união sedimentasse
passa incólume pelo programa socialista propriamente dito, absorvido um regime fascista no Brasil*12. Luiz Amaral vê esse atrelamento
pelo humanismo cooperativista. Pelo que prega e executa, a Igreja como tática de infiltração comunista no Estado 13. Luz corrobora o
é a grande força da irradiação cooperativista; sua missão é a de criar teor das palavras de Amaral e localiza a estratégia do atrelamento
o “santo comunismo”, apoiado na ajuda mútua. a plano agresso do Club 3 de Outubro, afastado pela “clarividência
Aparentemente, os dois autores citados não engajam politica­ do Dr. Getúlio Vargas” 1415*. Essa tomada de posição diz respeito a
mente a sua noção de cooperativismo; na realidade, Gentile serviu um problema mais imediato que esses teóricos enfrentaram diante
ao Estado Novo e esta sua prática é suficiente para a delimitação do da legislação de 1932, que conferia aos sindicatos o direito de legis­
seu pensamento. Com relação a Saturnino de Britto, seu misticismo lar c administrar cooperativas. Brito e Luz serviam como acessores
quase sempre delirante lhe permite invocar o aparecimento de “um do governo e conseguiram dois anos depois revogar a legislação con­
punho de ferro” para impedir “os abusos das classes desfrutadoras” testada O anticomunismo associado à luta contra a ligação sindi-
e obrigar “a sistematização cooperacionista entre os explorados por
cato/cooperativa expõe uma face das disputas internas ao Estado
essas classes!” Escrito nos anos 20, esse desejo de contenção social
e explicita um pouco mais a relação terceira via e cooperativismo
e sistematização compulsória não tardaria em encontrar num “punho
de ferro” pouco tempo depois, à altura de suas expectativas. livre.

O lunilamento do genérico do espírito cristão cooperativo para Uma cerrada argumentação vem à luz contra a subordinação das
ramificações políticas comparece ricamente matizado no pensamento cooperativas aos sindicatos. Luis Amaral irá buscar nos clássicos euro­
de outros teóricos cooperativistas. Todos, inclusive Saturnino de peus a sua munição:
Britto, advogam o cooperativismo livre, entendido como a organi­
zação expontânea dos indivíduos, sem subordinação a sindicatos, 3 II F rola, Francisco. A cooperação livre. R io de Janeiro, A thenea E ditora,
partidos ou dependência ao Estado. Todos se posicionam contra o 1937, p. 127. O prefácio é de E varisto de M orais. F ro la, ex-deputado do
individualismo capitalista e contra a monopolização das atividades PSI italiano, oferece o livro aos trab alh ad o res brasileiros p a ra que ap ren ­
económicas. Deles todos, somente Fábio Luz Filho e Francisco Frola dessem a ver a cooperação livre com o a “legítim a defesa do consum idor
c o n tra a exploração capitalista".
não associam a emergência do cooperatismo ao revivescimento do
12. F rola teria sido solicitado por V argas p a ra co lab o rar com a organização
espírito cristão. Frola é de formação socialista; Luz parece ser mar­ do cooperativism o no Brasil. — L uizetto, F lávio V. Os constituintes em
cado por raízes secularizadas. Frola distingue-se por imprimir um face da im igração, São Paulo, USP, 1975, p. 111.
13. A m aral, Luis. O cooperativism o, São Paulo, E d ito ra O deon, 1934, p. 122.
14. Luz Filho, Fábio. O cooperativism o no B rasil e sua evolução, R io de J a ­
9. Ver principalnienle O d o m ínio universal da Cooperação, São Paulo. Tvpo- neiro, A. C oelho B ranco Filho, 1939, p. 21.
graphia Revista dos T ribunaes, 1926. 15. Pinho. D iva Benevides. Sindicalism o e C ooperativism o, São Paulo, 1CT,
10. Diãlopo com o Povo. Rio de Jan eiro . Benedito de Souza. 1927. p. 2.V 1964, pp. 99 e 100.

174 175
“O lucro, de que ella (a cooperação) aspira a suppressão, Observação semelhante cabe à obra de Fábio Luz Filho. De­
não é o percebido pelo patrão à custa do operário, mas fensor do cooperativismo livre, opôs-se tenazmente à subordinação
o que percebe o negociante ou fabricante à custa do com­ do cooperativismo à organização sindical. Tal fato, tanto para ele
prador (. . .) a cooperação não se preocupa com a luta como para Luís Amaral, significaria que o cooperativismo “puro”
de classes. Ignora-a. porque o consumidor não é uma clas­ teria sido absorvido pela ideologia comunúta; não há menções que
se especial, mas todo o mundo, sem distinção de profis­ tal subordinação pudesse ser interpretada por eles como um mo­
são, de idade ou de sexo. O seu interesse, pois, se con­ mento importante de consolidação da ordem corporativa no país.
funde completamente com o interesse público." ni Não sentem, pois, a junção como uma ameaça de fascistização do
Ignora-se não só a luta de classes como também — e por causa país. Sintomaticamente, a obra do autor contém elogios rasgados ao
disso mesmo — todo o mecanismo oculto da exploração do trabalho fascismo italiano. É verdade que os elogios gravitam ao redor da
através da extração da mais-valia. O objetivo político é claro: ao informação de que a Itália fascista legislava a favor do cooperativismo
deslocar a condição social do trabalhador de “força de trabalho” para desatrelado da organização sindical lu. Tudo poderia ser tomado como
“força de consumo” retira-se toda a razão coletiva da luta classista um desagradável engano, se não lembrássemos da presença de Frola,
dos trabalhadores. A argumentação corre no sentido de fazer explodir vítima do fascismo, uma presença incómoda a esclarecer os reais
a condição de classe do trabalhador, a fim de que ele se dilua na propósitos do fascismo em relação à cooperação.
condição de consumidor. Oliveira Viana trabalha com o mesmo tipo E mais: Luz inclina-se para um cooperativismo civilizador, que
de argumento, somente que o explicita sem mais delongas. Conside­ não atenderia apenas aos problemas de produtividade, comercializa­
rava necessário retirar o trabalhador da sua “insularidade” social ção e distribuição dos produtos; a higienização, a alfabetização, a
para que fosse instaurado um regime de permeabilidade entre as dife­ assistência hospitalar deveriam contar entre as preocupações de uma
rentes camadas sociais ,7. A classe social, afirma um outro comen­ “nova ordem de cousas, mais luminosa, mais alta, mais digna”, para
tarista do regime, é egoísta e desintegradora da sociedade Neste a criação de “um elevado bem-estar collectivo” (Idem, p. 91). Ainda
caso, como em Oliveira Viana, abria-se caminho para a justificação que timidamente, o autor discute a questão da utilidade social da
do cooperativismo como a via real de instalação da harmonia social. terra e as possibilidades de seu desmembramento, o que permitiria
Pelo conjunto da obra de Luís Amaral, poder-se-ia dizer, como configurar a associação básica de Fourier entre associado e proprie­
dele se diz, tratar-se de um pensador liberal, nacionalista, contrário tário. No plano prático refere-se apenas ao aluguel de propriedades
à ação imperialista das “ditaduras económicas" dos trusts, à concor­ improdutivas efetivadas pela's cooperativas italianas, sob os auspícios
rência desenfreada; postulava-se defensor da existência de um Estado do governo fascista 1920.
apenas supervisor e do cooperativismo livre como a real solução Poderia o autoi ser tão somente tomado como ingénuo diante
para os problemas do mundo moderno. O vínculo que estabelecemos de uma das inumeráveis informações que extraiu de publicistas fas­
entre seu pensamento com o de Oliveira Viana expressa bem, no cistas italianos; ela se refere à formação pelo Estado de cooperativas
entanto, a maleabilidade de seu pensamento e suas reais intenções de trabalho, especialmente de “braceiros” 2l. Apesar de que tais tra­
de alcance político. Isto não o impede de fundamentar o seu coope­ balhadores fossem obrigados a executar obras públicas de construção
rativismo livre em bases evangélicas de amor ao próximo (Citado, e manutenção de estradas, pontes e canais, não lhe ocorreu associar
p. 12). a formação de cooperativas inteiramente subjugadas pelo Estado, ser­
vindo para a execução de trabalhos forçados em massa. Isso num
16. O texto origina! é de Ernest Poisson, um discípulo de C harles Ciide. C itad o momento em que, no Brasil, um ideólogo como Miguel Reale for­
por Luis A m aral em O C ooperativism o, citado, p. 128.
17. As N ovas D iretrizes da Política Social, B oletim d o M inistério do tra b a lh o . 19 Ver p rincipalm ente C ooperativism p, C orporativism o, Colonização, Rio de
Indústria e C om ércio, 6 (6 2 ): outu b ro 1939. p. 105. Janeiro. A. C oelho B ranco F ilh o , 1935, 2.a edição, pp. 109 a 112.
18. C unha, Ovídio da. Em torn o do direito corporativo. Boletim do M in isté ­ 20 O cooperativism o. Rio de Janeiro, T yp. São Benedicto, s/d , pp. 31, 35 e 56.
rio do Trabalho, Indústria e Com ércio, 2 (1 5 ) : novem bro 1935, p. 116 21 C ooperativism o. C orporativism o e C olonização, citado, p. 118.

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mulava um projeto corporativo no qual “uma vasta organização de Laski reporta-se comparativamente ao quadro de decadência do
cooperativas de produção e de consumo” serviria tão somente para Império Romano, no qual o cristianismo não permitira que o homem
“completar os organismos sindicais” ~2. A impressão que fica da ad­ perdesse a confiança em si mesmo. O cristianismo preparou os ho­
miração de Luz pela obra do fascismo é por esta lhe parecer uma mens para olhar decisivamente para o futuro: “Proporcionou-lhes a
realização efetiva do cooperativismo, uma consumação real de um convicção de que, não obstante a luta que é preciso sustentar, teriam
projeto de terceira via, nem capitalista liberal, nem comunista. Além com certeza a salvação afinal” (p. 41). Laski refere-se ao que
de se constituir num “instrumento pacífico de renovação”, o fascismo Hannah Arendt pouco tempo depois denominaria de “a esperança
parecia-lhe um eficiente depurador das oscilações ideológicas; o fas­ além de toda a esperança”, visto que a imortalidade da vida prome­
cismo reportara o cooperativismo aos seus justos termos e expurgara tida pelo cristianismo promovia aquilo que era seguramente tomado
dele “as falsas ideologias” e as “miragens milagrosas”, contrapondo- como o mais mortal — a vida — algo que jamais se ousara antes
se a “doutrinas intransigentemente materialistas, políticas e classis- esperar 25.
tas” ri. Como em Luís Amaral, o cooperativismo é apreendido como
um produto puro, a ser preservado da contaminação ideológica para O problema, para Laski, é que depois de Stalingrado, o “espe­
poder servir de lastro a uma experiência política e social inteiramente táculo do heroísmo da Rússia” convencera o homem comum de que
nova. Em Luís Amaral, o cooperativismo poderia atuar como órgão na experiência comunista existiam “virtudes estranhas” que, de algum
de substituição da sociedade capitalista através do seu conteúdo de modo, mantinham “analogia com o segredo do Cristianismo”. O co­
“inspiração nitidamente cristã”; em Fábio Luz Filho, a possibilidade munismo dera fim a uma ordem social regida por poucos, cuja riqueza
do novo materializa-se mais convincentemente no fascismo. Não são lhes facultava os meios de exercer a autoridade sobre muitos. À
ambas as possibilidades ramificações da mesma árvore frondosa da certeza do que fora colocado abaixo, somava-se a fé em que o êxito
terceira via? individual do cidadão redundava necessariamente no bem-estar da
comunidade. Dignificada a contribuição individual, o indivíduo não
se sentia ameaçado pelos avanços coletivos; “o sistema russo pres­
creveu a ‘priori’ a frustração tecnológica que se tornou endémica
Harold Laski, em seu livro Fé, Razão e Civilização'-', fala sobre
em qualquer sistema baseado, como o nosso, na propriedade privada
o sentimento de insegurança que tomava conta das pessoas no período
dos meios de produção” (pp. 63-4).
final da segunda grande guerra e traduz boa parte das expectativas
que os intelectuais de seu tempo alimentavam. Depois do atenuar Em outras palavras, uma outra agência de fé aparecera e a
do primeiro desafogo do fim da guerra, diz Laski, o mundo que reserva espiritual do ocidente encontrava-se irremediavelmente cindida.
restar não passará de um mundo triste, carregado de recordações A saída incidia na luta pela descaracterização da oferta de fé rival
trágicas e amargas, de milhões de refugiados, de pessoas que não e no resgate da fé original do cristianismo. O tema do “revivesci-
saberão o que fazer de suas expectativas. Fazia-se necessário achar mento do espírito cristão” insere-se neste quadro polêmico, como é
uma fé, ou então recuperá-la, de modo a que as pessoas pudessem nele também que se ancora a gestação da religião secularizada do
se agrupar ao seu redor. A fé na nação estava fora de cogitação, nazismo. Era particularmente na doutrina social da Igreja que a fé
pelos resultados desastrosos a que levara a humanidade. A fé por cristã retirara a sua principal fonte de energia; da doutrina social
ele procurada tinha a ver com uma “afirmativa fervorosa do direito também os apologistas da terceira saída sacavam a sua cartada deci­
de cada ser humano a integrar a própria individualidade”. Em suas siva para fazer “brecar a torrente socialista”. É através do próprio
palavras, essa tinha sido a mais importante contribuição do cristia­ espírito cristão que se entrevê a possibilidade de retirar a bandeira
nismo para o progresso social e fazia-se premente recuperá-la (p. 53 ).234 da fé das mãos do comunismo. A batalha não é pressentida como
fácil, a julgar pelo testemunho de um desses apologistas:
22. O Estado M oderno. Rio de Jan eiro , L. José Olym pio. Ed.. 1935. 3 a edi­
ção, p. 189.
23. C ooperativism o, Corporativism o e C olonização, citado, p. 109 e 123. 25 A condição hum ana. Rio de Ja n e iro /S ã o Paulo, F o re n s e /S a la m a n d ra /
24. Rio de Janeiro, J. O lym pio Ed.. 1946. E dusp, 1981. p. '327.

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“move-nos a inquietude e não a segurança; move-nos o suasão para modificar-lhe a mentalidade. Seu sentimento de infe­
medo de perder e não a satisfação de ter ganho; impede- rioridade ante os patrões, criado pelos “vícios” da velha ordem,
nos não o aplauso e o regozijo, mas o receio de que no revertia num espírito de oposição sistemática aos patrões; o advento
mundo em formação dos nossos dias algo se subverta e das instituições corporativas permitira a superação daqueles senti­
pereça, em que o dia de hoje nos faz acreditar" -K. mentos de prevenção e propiciaram o “milagre desses novos tem­
pos . . . que aboliram as distâncias sociais”. A ordem corporativa
Para San Tiago Dantas o espírito cristão encontrava-se de tal encarregara-se de desobstruir a “insularidade social” do operário,
forma embrenhado na cultura ocidental que se torna até mesmo obrigando-o a sair de “sua sociedade”; instituíra uma “organização
difícil reconstituir sua genealogia. Deve-se a associação desse espí­ da capilaridade social da classe trabalhadora” através do incentivo
rito aos movimentos impulsionados pela Igreja porque só ela sabe à livre circulação por todo o corpo social “das capacidades existen­
captar o que “flue do coração humano para ditar critérios e normas tes”. O “Dopolavoro” brasileiro “criava condições para a elevação
de existência”. De outro lado, é a Igreja quem melhor conduz os cultural do trabalhador, oferecia bolsas de estudos, garantia-lhe
movimentos espirituais, sempre mantidos com um “sentido de irre- assistência médica e hospitalar, promovia a sua elevação à categoria
dutibilidade e de afirmação”, a que se junta “um forte espírito de de proprietário e, sinal dos novos tempos, consumava a “capilari­
adaptação às contingências humanas” (p. 98). Das páginas de Rerum dade social”, incentivando a participação do trabalhador na direção
Novarum brota uma “força de persuasão” resultante da “consciên­ dos negócios de Estado. Nesse movimento interno ao corpo social,
cia do possível, do suportável, do provável”. Somente essa “poso­ o operário não deixava de ser operário; nem precisava, porque
logia política” é que pode fazer frente ao sistema lógico que conduz sentia a mudança da dignificação social de sua categoria (pp. 102
o discurso socialista à busca de sua verdade (p. 104). a 106).
Essa é exatamente a “posologia política” que Oliveira Viana
Notável, nessa descrição de Viana, a elaboração imagética
vê aplicada à política social do Estado Novo. Fundamentada nas
encíclicas papais Rerum Novarum e Quadragésimo Anno, a política aplicada à sociedade corporativa; sua “capilosidade” funciona como
na descrição paulina do Corpo Místico de Cristo. Vem do Estado
social do regime não tem outra preocupação senão a de restaurar
a dignidade do trabalhador brasileiro. Ela veio resgatar o espírito (a cabeça) a energia propulsora da mudança; os órgãos desiguais
de fraternidade cristã encontrado nas relações de trabalho das cor­ entre si, uns mais nobres, outros menos, nutrem-se da mesma seiva
que os fazem espiritualmente iguais, sem deixarem de ser órgãos;
porações medievais. . . Viana coteja Augusto Costa, ao referir-se
a solidariedade já é resultado da dignificação de cada órgão, fun­
ao corporativismo português como um sistema que apiicava o dogma
da igualdade, em Cristo, de todos os homens. Salazar também e damento da harmonia de todo o corpo.
sua referência obrigatória no intuito de diferenciar os pressupostos Também notável e surpreendente é a construção do modelo
norteadores da presente política social da anterior a Vargas; antes corporativista de Francisco Campos, todo ele concebido organica­
visava-se a proteção do indivíduo; agora era a pessoa a ser pro­ mente. Sua ordem corporativa funciona como um grande conjunto
tegida n . maquínico, no qual a relação partes/totalidade conjuga-se com per­
O próprio trabalhador, beneficiário da nova ordem, mostrava- feição. Ao contrário do que se poderia esperar de um atento leitor
se arredio e hostil, exigindo do Estado constância e poder de per- de Cari Schmidt, a descentralização económica constituía a viga
mestra da sua montagem. Cada corporação representa um setor da
26. Palavras de San T iago D antas, referindo-se à co m em o ração do c in q u en ­ economia nacional, com poderes para se organizar, se controlar, go­
ten ário da encíclica R erum N o va ru m , de Leão X III. A Encíclica "R erum
N ovarum . Boletim d o M inistério do Trabalho, Indústria e C om ércio. 8
vernar-se, enfim. Cabe ao Estado delegar-lhe as funções de poder
( 9 1 ) : m arço 1942, p. 100. público, não intervir arbitrariamente na economia, nem burocratizá-
27. F ontes: C osta, A ugusto. Fatos e princípios corporativos. Lisboa. 1935. p. la, o que abre caminho para a estatização comunista. O Estado
92. As alusões a S alazar foram retiradas de Pereira, T heotonio. A batalha
d o fu tu ro , Lisboa, 1937. O texto de V iana é o já citado A s novas d iretri­
realiza a arbitragem entre os interesses das categorias, exerce a
zes da política social, pp. 98 a 100. justiça, assiste e superintende. Nessa ordem corporativa a noção

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de liberdade é revista, perdendo o caráter abstrato do liberalismo trões e trabalhadores a se organizarem em associações de classe
para abrir campo de atuação à iniciativa individual dentro das cor­ para fazerem delas órgãos de conciliação e arbitragem: “a técnica
porações (no liberalismo a liberdade é abstratamente estendida a moderna de harmonização das classes” (Citado, pp. 102-3).
todos, mas na prática apenas uma minoria beneficia-se dela) 2!<. As diretrizes sociais do projeto católico de terceira via encon-
Em seu modelo, a livre concorrência e a especulação, "tumores” tram-se circunscritas a uma dimensão moral, que não passou desa­
convertidos em “órgãos permanentes”, são extirpados do corpo na­ percebida aos interessados. Na Quadragésimo Anno, Pio XI deixa
cional. Deste modo, detém-se o circuito que vai da anarquia liberal bem claro que qualquer iniciativa política ficaria invalidada sem
ao seu desdobramento necessário, o comunismo: “Supprimidas as uma “prévia e completa renovação do espírito cristão”. “A desor­
condições criadas pelo liberalismo à implantação do comunismo, o dem das paixões” era a responsável direta pela “defecção da lei
marxismo perdeu a atualidade, passando ao rói das theorias caducas cristã na vida social e económica, e da consequente apostasia da
em que foi tão fértil o século XIX” (Idem, p. 61). O projeto do fé católica para muitos operários”. Algumas consciências calejavam-
corporativismo “puro”, “integral” de Francisco Campos oferece à se ante a facilidade dos lucros, a especulação desenfreada, a irres­
terceira via uma proposta acabada, ampliando-lhe o leque de alter­ ponsabilidade oculta de patrões em instituições não personalizadas.
nativas; ressalte-se a eficiência dos golpes que o autor inflige ao Nas fábricas e oficinas a exploração do trabalho expunha os cos­
espírito rival do cristianismo, nos termos de Laski. tumes dos operários, principalmente os jovens e as mulheres a “gra­
É decisiva a participação da Igreja, cuja doutrina social per­ víssimos perigos morais”, assim como as condições inadequadas de
meia o pensamento dos ideólogos na trilha da terceira via; seja pela habitação dificultavam a unidade da família. A renovação do espí­
sua autoridade moral, seja pelo caráter geral e genérico dos seus rito cristão implicava no respeito à lei de Deus e aos direitos do
princípios, a alguns mais diretamente (os cooperativistas. Oliveira outro; se cumpridos, a aquisição da riqueza e seu uso voltariam aos
Viana, San Tiago Dantas) a outros de modo indireto, o pensamento "limites da equidade e justa distribuição”, abrindo o caminho para
da Igreja penetra pelos poros dessa intelectualidade. Oliveira Viana a realização da justiça social (Citado, pp. 42 a 46).
vê a política social de Vargas como “a nova política de recristiani- Do mundo do trabalho à família, disseminando-se pelos “corpos
zação do trabalho e da vida” M. San Tiago Dantas, por sua vez, intermediários”, o mesmo espírito que anima a organização das
vê a encíclica Rerum Novarum como balizadora das diretrizes sociais corporações travejaria a sociedade, impregnando-a de uma nova
para a terceira via. moralidade. A Roberto Simonsen não escapou a percepção da im­
Para ele, este documento papal recolocara o principio da hie­ portância dessa renovação espiritual; ao lado da “valorização do
rarquia para a regulação das relações sociais, opondo-se às “idéias homem pela técnica, pela alimentação e pelo resguardo de sua
igualitárias”; definira com clareza o papel do Estado como protetor saúde”, asseguraria a superação da crise social, afastando “a deses­
e árbitro das classes. Ficava moralmente justificada a sua interven­ perada corrida atrás da riqueza, a concorrência sem peias, o mate­
ção, da qual não poderia se alienar, face às “lutas e males que a rialismo sem finalidades espirituais” 30. Em relação à organização
vida económica conduz os particulares”; introduzira também uma da família, o artigo 10 do Código Social de Malines exemplifica
outra noção compreensiva das relações de trabalho: elas deixam a direção que a Igreja tomara nessa matéria: “é preciso combater
de ser vistas como um mero contrato locativo, em favor de uma tudo o que a destrói ou abala. . . é preciso louvar e encorajar tudo
“comunhão de interesses”, que dá origem a laços de solidariedade o que favorece sua unidade, sua estabilidade, sua fecundidade”. O
entre as partes; da mesma forma, sua concepção de “salário justo” que é que pode destruir a família? se pergunta um publicista cató­
vinha sobrepor-se à noção liberal de “equidade de salário”; manti­ lico 31. O divórcio, a emancipação da mulher, o seu trabalho fora
vera a defesa da propriedade, para que, pelo trabalho, ficasse aberta 30. Níveis de V ida e a E conom ia N acional. B oletim d o M inistério do Trabalho,
ao operário a possibilidade de usufruí-la; finalmente, convidava pa- Indústria e C om ércio, 9 (9 9 ): novem bro 1942, p. 222.
31. C esarin o Jr., A. I. A fam ília com o objeto do D ireito Social, B oletim do
28. O Estado Nacional, citado, pp. 61 a 64. M inistério do Trabalho, Indústria e C om ércio, 9 (9 9 ) : novem bro 1942,
29. A s novas diretrizes da política social, citado, p. 113 p. 126.

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1
de casa, o abandono da família, a licenciosidade dos costumes, o Ao estender o olhar sobre as experiências próximas, a do fas­
alcoolismo. Particularmente com relação à emancipação da mulher, cismo italiano não lhe parece convidativa por julgar “o governo forte
esse autor faz suas as palavras de Leão XIII na encíclica Rerurn demais para que possa coexistir um verdadeiro systema corporativo”.
Novarum, que atribui ao trabalho da mulher fora do lar constituir- Reportando-se a um discurso de Mussolini, de 1933, Gudin não vê
se num “flagelo social”. Vista por essas considerações, a terceira nas exigências de um partido único, Estado totalitário e um “viver
via alternativa compreendia o corporativismo como ordenamento do em estado de alta tensão idealista”, as melhores condições para a
conjunto da sociedade a partir do mundo do trabalho, mas sem implantação do corporativismo (p. 87). A experiência portuguesa,
restringir-se a ele. Nesses termos, torna-se mais clara a observação moderada e gradualista desperta-lhe o entusiasmo. Pelas palavras
de Oliveira Viana que atribuiu à estrutura sindical corporativa cons- de Salazar demonstra sua preocupação em não abafar a livre ini­
tituir-se numa “técnica de organização social do povo” e menos ciativa e a concorrência, assim como de não tocar no regime de
uma “técnica de organização profissional” 3~. Com outras palavras, propriedade. A obrigação de intervir do Estado se limitaria a “re­
também Azevedo Amaral apanharia exatamente esses elementos as­ primir os abusos” e manter o controle da organização corporativa
sinalando, ao demonstrar que o corporativismo. . . “não se restringe (p. 39).
à órbita da organização material da sociedade, mas que abrange nas
suas finalidades uma verdadeira integração das forças espirituais, Pela análise da Carta constitucional de 1937 vê similaridade
morais e materiais da nação em conjunto harmonioso” 3233. entre a experiência portuguesa e a brasileira, a ser implantada. O
artigo 135 tranqúiliza-o em relação à extensão do poder de inter­
Vale a pena deslindar uma outra variante das propostas da venção do Estado no domínio económico, que somente se legitima
terceira via.Como as outras, compartilha das avaliações críticas ao "para supprir as deficiências da iniciativa individual e coordenar
capitalismo monopolista, que Eugênio Gudin chama de capitalismo os factores da produção. . . ”. As determinações dos artigos 60 e
naturalista34. Os elementos da crítica de Gudin são importantes 65 também lhe satisfazem. Através deles ficamos sabendo que o
porque incidem também na sua concepção de solução corporativa. Conselho da Economia Nacional recebia atribuições de poder orga­
Para ele, a economia monopolizada não somente desvirtualizava o nizar os seus conselhos técnicos permanentes, contratar especialistas
capitalismo através da especulação financeira, como suprimia a con­ e elaborar projetos económicos; além disso, todos os projetos de lei
corrência, base do progresso económico (p. 16). Exatamente por relacionados à economia nacional deveriam passar por uma consulta
essa última razão é que o autor desconfia de uma solução corpora­ prévia do Conselho da Economia Nacional, antes de serem delibe­
tiva na qual a economia de mercado fica subordinada à organização rados pelo parlamento (p. 44). Gudin considera que chegara mesmo
das corporações. Enquanto fórmula de conciliação social ou de com- a hora do parlamento ouvir a opinião dos técnicos. Ele, particular­
plementação da ação sindical, o corporativismo lhe parecia uma mente, já tomara parte em comissão especial e comprovara a impor­
experiência válida. As dúvidas crescem no tocante a versões tância da voz dos técnicos para o encaminhamento dos trabalhos
que punham a produção e a comercialização sob a orientação das económicos (p. 43).
corporações. Face a esta restrição, a sua solução preferida conten­
ta-se em reformar a sociedade e a economia e sacrificar a liberdade No que toca particularmente à questão da organização corpo­
política. A subordinação do parlamento ao Conselho da Economia rativa, Gudin mantém seu otimismo. Os artigos 61, letra a, e 140
Nacional lhe parece necessária face às imposições dos novos tempos. ordenavam organizar a economia da produção em corporações, como
entidades representativas do trabalho nacional, colocadas sob a assis­
tência e proteção do Estado. Entretanto, argumenta Gudin, em
32. A política social d a R evolução de 30, In: D ireito d o Trabalho e D e m o ­
cracia Social, citado, p. 82. T rata-se de um a conferência datada de 1939. nenhum dos artigos fica expresso que as corporações tinham o poder
33. Prefácio do livro de M anoilesco, Mihai'1. O século do C orporativism o, de “controlar a produção nem de se substituir às leis geraes da Eco­
citado, p. X II. nomia para fixar preços e quantidades de producção” (p. 44).
34. A sp ecto económ ico d o C orporativism o brasileiro, Rio de Janeiro, 1938.
O a u to r inform a q u e seu artigo foi escrito originalm ente para um a revista O autor se aperta um pouco com o conteúdo do artigo 63,
a ser editada pela C om issão de D o u trin a e P ro p ag an d a do E stado N ovo. que previa poderem ser conferidos ao Conselho da Economia Na-

184 185
cional, mediante plebiscito, poderes de legislar sobre matérias de “Os seus característicos principaes são: o nacionalismo de
sua competência, o que significaria o fim do poder parlamentar. que devem inspirar, como fundamento do ideal colletivo;
Gudin se defende com o argumento de que isso era apenas uma a unitariedade, imposta e explicada pelo seu objetivo e
possibilidade. Apoiando-se em declarações de autoridades, inclusive pela sua missão; a totalitariedade, no sentido de que toda
I! e qualquer actividade nacional, útil e necessária será en­
de Francisco Campos, acreditava que o encaminhamento da im­
plantação do corporativismo se faria cautelosamente (p. 45). gendrada no plano do Estado, mesmo que constituíam
funções nacionais muito especiais. . . ” 57.
A proposta de Gudin à primeira vista parece ser a mais con­
tida do material até agora apresentado, devido ao modo como res­ A particularidade desses autores, intimamente ligados ao apa­
tringe a experiência corporativa ao plano social, sobrando para o relho de Estado, é muito ilustrativa do movimento interno das varian­
económico tão somente as reformas cabíveis. Em primeiro lugar, tes da terceira via. Fazem o elogio do poder técnico do Estado; a
é preciso considerar que a concepção de Estado de Gudin é mais ele cabe presidir sobre a livre iniciativa, zelar pela manutenção da
especial do que a de Campos, por exemplo, pelo seu caráter técnico propriedade privada e manter as corporações sob seu controle. À
e pela competência administrativa, aspectos pragmáticos também descentralização corporativa cabe receber e assimilar as iniciativas
realçados por Oliveira Viana e Azevedo Amaral. Discurso por dis­ de ordem pública até então confiadas somente aos políticos e aos
curso, entretanto, o de origem liberal de Gudin é muito mais esta- funcionários. “As corporações invadem o Estado” (p. 45). Aparen­
tista que o de Campos e Viana; o primeiro pelo caráter descentra­ temente, temos pela frente um esforço desordenado de fundir visões
lizado imposto pelas corporações e ambos pela teorização harmo­ e abordagens distintas das teorias corporativistas. Primeiramente, ob-
niosa da relação todo e partes. O sacrifício da democracia em favor serve-se que o material encadeado não procede de matrizes opostas;
da reforma económica é, a meu ver, profundamente inquietante. o aspecto desordenado, por sua vez, indica tensão intelectual premida
Esse é o lugar de uma matriz de pensamento muito especial, íecno- pelo desejo de construir uma totalidade perfeita em funcionamento.
crático e cínico, cujos frutos definitivos floresceriam tempos mais Os elementos trabalhados não procedem necessariamente da visão
tarde. fascista italiana do corporativismo; a ela entretanto, convergem, nesse
movimento de aproximação de formulações muito próximas de pa­
Não deve induzir a enganos o alcance meramente reformista rentesco muito estreito. Lembrando Laski, nestas linhas de pensamento
da ação do Estado, que manteria a propriedade privada e a livre próximas e diferentes temos pela frente uma troca de “segredos”.
iniciativa capitalista :<r‘. Uma comparação com o fascismo italiano
pede esclarecer muito, esse sentido. Os artigos VII e IX da Carta Angulando sob um outro prisma, é perfeitamente cabível tomar
del Lavoro são repetidos quase ipsis litteris no artigo 135 da Cons­ o projeto corporativo como o troco contra-revolucionário a clima re­
tituição de 37 A participação de Gudin no concerto da terceira volucionário predominante na primeira metade do século passado. Esta
via, hesitante, é um momento entre outros, feitos mais de aproxima­ inserção, proposta por Kazumi Munakata, apóia-se em afirmações de
ções e cruzamentos do que de distinções e afastamentos. A ênfase Arno Meyer, para quem a contra-revolução, ao trazer uma proposta
em itens diferentes, o corte incisivo sobre determinadas preocupações de reordenação geral da sociedade, aparecia intimamente associada à
nunca afasta a possibilidade de uma solução de conjunto, definitiva, própria revolução, constituindo-se em resposta ao desejo anterior de
ainda que ela signifique o sacrifício da liberdade política. A solução mudar :|H Hannah Arendt já havia proposto antes essa abordagem ao
corporativa fechada e global aparece, entre outras tantas vezes des­
37 L.acerda. J. M. e M oura. Eloy de. O E stado N o v o (D em ocracia e Cor-
crita dessa maneira:356* p oratism o), R io de Janeiro, 1938, p. 58. Os autores pertenciam respecti-
v am ente ao C onselho Federal do C om ércio E xterior e ao D ep artam en to
35. C onsultar Marcuse H., La lucha del liberalism o en la concepcion to ta li­ N acio n al da Indústria e C om ércio.
tária del Estado, citado, pp. 49 e 51. Nesse texto tam bém é analisad a a 38. M u n ak ata, K azum i. C om prom isso do E stado, In: R evista Brasileira de
m anutenção de valores básicos do capitalism o no regime nazista. H istória 7. Rio de Janeiro, M arco Zero, 1984, p. 68; M eyer, A rn o J.
36. C f: M orais Filho, Evaristo. O p ro b lem a d o sindicato único n o Brasil, D inâm ica da C ontra-R evolução na E uropa, 1870-1956, R io de Janeiro,
São Paulo, Alfa ô m eg a, 1978, 2.a edição, p. 243. P az e T e rra , 1977.

186 187
comentar a afirmação de De Maistre, em oposição à apreciação de proca na proposta corporativa que a terceira via encaminhava para
Condorcet sobre a contra-revolução na Revolução Francesa; para a superação da “anarquia liberal” e o estancamento do avanço do
Condorcet, a contra-revolução era como “uma revolução no sentido comunismo. As condições políticas latentes e indeterminantes de um
contrário”. Para De Maistre, “a contra-revolução não será uma Revo­ povo, agora separado do corpo do rei e autoproclamado da posse
lução ao contrário, mas o contrário da Revolução” de um “poder de ninguém”, punha-o numa situação de risco “de ver
sua função simbólica anulada, de decair nas representações coletivas
A intenção de Kazumi é demonstrar como os projetos revo­ no nível do real, do contingente, quando os conflitos se exasperam
lucionários e contra-revolucionários percorrem os mesmos veios ana­ e conduzem a sociedade ao limite da fratura” (p. 120).
líticos do real e compartilham de soluções semelhantes para os pro­
blemas diagnosticados. Nesse sentido, projetos políticos antagónicos, Desta forma, será a partir da democracia e contra ela que a
ao convergirem para temas comuns, articulá-los de modo similar e contra-revolução corporativa ou totalitária se apresenta. O risco da
investir contra os mesmos ideários, “participam do mesmo universo indeterminação excita as propostas de reordenamento do mundo “a
da contra-revolução” (pp. 69-70). exorcizar essa ameaça, ( . . . ) a soldar novamente o poder e a socie­
dade, a apagar todos os sinais da divisão social, a banir a indeter­
Essa maneira de ver o projeto corporativo contra-revolucionaria- minação que persegue a experiência democrática” (p. 120). Sintoma­
mente ganha ainda mais força se a compreendermos como na relação ticamente, quase todos os teóricos corporativistas não escondem a sua
estabelecida por Lefort entre as perplexidades que a revolução demo­ nostalgia por um tempo perdido, a que se fazia necessário retornar,
crática levantou para si mesma e a resposta que o totalitarismo enca­ o tempo da fraternidade cristã imperante nas relações de trabalho das
minhou a essas questões; ao mesmo tempo em que o totalitarismo corporações medievais, destruídas pela revolução democrática. . .
põe por terra a experimentação democrática, assimila-lhe os traços
principais pautados na “igualização de condições” e os estende infini­
tamente na nova corporização, o “povo-Uno”
Até agora temos nos referido apenas às propostas de “terceira
Ao decepar a cabeça do rei, a experiência democrática promo­ via”, mas no transcorrer da análise aproximamos tais propostas a
vera a dissolução da corporeidade social e desincorporara os indiví­ uma outra, distinta das primeiras, porque vista como representativa
duos, fazendo apagar a identidade do corpo político. A imagem do da “segunda via”, a comunista. Essa aproximação efetivada nos planos
poder ligado ao corpo cedeu lugar à da fragmentação social visuali­ intelectual e político-teológico não implica evidentemente em con­
zada na separação da sociedade civil fora do Estado, na emergência vergência lout court das linhas práticas da direção política que as
de relações sociais compreendidas como relações jurídicas, pedagó­
máquinas de poder imprimiam. Lembrando Guattari, tais conjuntos
gicas, científicas, não mais somente económicas, na compartimentação maquínicos se movem diferentemente e dispõem as suas peças de
das instâncias do poder, da lei e do saber. A unidade não mais pudera acordo com a pressão contraditória dos componentes em luta. Nesse
apagar a divisão social. “A democracia inaugura a experiência de caso, particularizando ao máximo, o componente maquínico divisor
uma sociedade inapreensível, indomesticável, na qual o povo será de águas foi o domínio da fé, da maneira como o compreendeu Laski.
dito soberano, certamente, mas onde não cessará de questionar sua Vai daí a importância que assumiu a participação política da Igreja
identidade, onde esta permanecerá latente. . ” (p. 118). católica nos anos 30.
O que Lefort vê na resposta emitida pelo totalitarismo ao encon­ Na sua luta particular ("empresa espiritual para o bem das
tro das perplexidades da divisão democrática — uma nova corpori­ almas” ) contra o seu inimigo visceral, a Igreja sempre contou como
zação da sociedade, sob a imagem do “povo-Uno” — tem a sua reci-3940 o auxílio do “Estado cristão” 41. Dessa união, entretanto, quer nos
parecer que a sua contribuição tenha sido ainda mais considerável,
39. Sobre la R evolución, M adrid, Ediciones de la Revista de O ccidente, 1967.
pp. 22 e 295. 41 Pio XI. D ivini R ed em p to ris (S obre o C om unism o A teu ), São Paulo, Edi­
4 0 . A im agem do co rp o e o totalitarism o, citado, p. 116. ções Paulinas, 1965, p. 47. E ditada originalm ente em 1937.

188 189
mais prestando serviços do que recebendo compensações. São dois
camente pelos ideólogos do poder. Esse intercâmbio pode ser visto
os planos de auxílio que a Igreja prestou ao Estado no Brasil dos
como ameaçador para a teologia católica, na medida que seus con­
anos 30: o primeiro, de caráter mais constitucional, significou um
teúdos, sofrendo intensa secularização, se descaracterizassem. O
apoio político decisivo em momentos cruciais da década; o segundo,
modo como foram utilizados exaustivamente não demonstra apenas
não menos importante, relacionou-se à função milenar e indispensável
quanto penetrou nos poros culturais do país o legado teológico cató­
de domesticação das consciências.
lico, mas principalmente o quanto a Igreja, sob noção de risco,
O agudo anticomunismo, que atendia aos interesses imediatos preferiu investir naquela composição maquínica do poder, seu aliado
da Igreja enquanto instituição em nível mundial, serviria aqui de efi­ certo contra o inimigo certo.
ciente instrumento para denunciar, isolar, desmoralizar o adversário Exemplifiquemos, inicialmente, com a construção da imagem
e fornecer ao Estado uma legitimidade especial para as suas práticas
na nação, atentos para os recursos religiosos empregados:
repressivas. Dos movimentos religiosos de rua do início da década,
passando pela atuação da Liga Eleitoral Católica, até 1937, a Igreja “Há na Constituição brasileira um admirável preceito que
cerrou fileiras junto ao poder; talvez os momentos mais significativos devemos ter sempre presente: um preceito que deveria ser
residam a partir de 1935, quando em plena vigência da LSN, a Igreja a luz da nossa aurora espiritual, cada manhã, e o nosso
imprimiu uma nova diretriz à Ação Católica, estimulando mais a angelus civico de cada tarde. E aquele que manda intro­
espiritualidade e o trabalho de apostolado entre os leigos, o que os duzir no jogo nossas competições, o pensamento dos inte­
desmotivava para manterem a mobilização dos anos anteriores 4243. resses da Nação.
(...)
Já em 1937, enquanto o regime preparava nos seus porões o
Plano Cohen, a Igreja lança uma Carta Pastoral aos católicos do país, Ninguém consegue excluir-se dos anais da vida nacional.
toda ela centrada na luta contra o comunismo, abrindo legitimidade Cada pensamento humano, cada gesto individual, cada tra­
moral para o golpe 4-j. Seu conteúdo acompanha o texto da encíclica ço quotidiano — a enxada que bate sobre o solo, o ruído
Divini Redemptoris, de Pio XI; lá e cá abjura-se o comunismo como de um tear, a rês que é sangrada, o anzol que se levanta,
um inimigo mortal, o primeiro de todos, realizador, como nunca a fatura que se expede, o sulco de um caminhão na es­
antes, de uma “conjunção tão vasta e tão organizada das paixões trada — está escrevendo a história nacional.
humanas contra a soberania de Deus e o reinado de Cristo” (p. 287).
O dia de uma grande Nação não é senão a integração de
Não se pense que o documento se restringia a uma condenação apenas
milhões de pequeninos dias individuais” 44.
de ordem religiosa; veja-se o que era recomendado aos fiéis e à
comunidade católica em geral: Chama a atenção de imediato o erigir da nação como
objeto religioso, a quem se venera a quem são dirigidos as preces
“Pedi a Deus que preserve do flagelo do comunismo ateu
cotidianas, como um preceito religioso. Ao mesmo tempo que ente
o nosso querido Brasil; pedi-lhe que assista as nossas auto­
sagrado, a nação também é pensamento, energia, ação, matéria. Estão
ridades no cumprimento dos árduos deveres de conservar
dadas, portanto, as duas naturezas distintas desse corpo único, reli­
a ordem social e defender o património da nossa civiliza­
ção ameaçada” (p. 290). gioso e social. Sua dimensão material é focalizada pelos humildes ele­
mentos humanos desse conjunto, que vêem sua contribuição, não
Tão ou mais decisivo foi o apoio intelectual prestado pela somente se transformar em necessária para o todo, como necessária
Igreja, cujo estoque de imagens e símbolos foi utilizado estrategi­ uns para os outros. Finalmente, de volta à primeira condição, a nação
alça-se a uma posição divina, que tudo vê do alto, por mais insigni-
42. Beozzo, J. Oscar. A Igreja entre a R evolução de 1930, O listad o Novo
e a Redem ocratização, citado, p. 323.
44. M arcondes F ilh o . F alan d o aos trabalhadores brasileiros, Boletim do M i­
43. O C om unism o A te u (C a rta pastoral e m an d am en to do episcopado b rasi­
nistério do Trabalho, Indústria e C om ércio, 8 (9 1 ) : m arço 1942, pp.
leiro), A Ordem, 17 (1 8 ): o u tu b ro 1937.
340 e 342.

190
191
I

ficante que seja o detalhe, que tudo compreende, que tudo assimila. balho e domicílios particulares de todo o país, assim como estátuas
Enquanto totalidade, a nação parece assemelhar-se à crença cristã e bustos localizados estrategicamente nas praças e logradouros pú­
da total visibilidade a que o fiel se submete aos olhos de Deus: “Deus blicos. Essas imagens quase sempre restringem-se a focalizar a cabeça.
*tt
me ve . Também é significativo absorver a imagem de Cristo sendo entro­
I nizada nas fábricas, uma espécie de símbolo de apoio, em que a
Nessa relação entre todo e partes constitutiva de nação, falta
neste texto, de acordo com a imagem do corpo místico cristão, o cabeça espiritual sobrepõe-se à temporal para reforçar sua função
lugar da cabeça, o órgão dos cinco sentidos que preside ao funciona- , simbólica num meio mais crítico do que outros espaços sociais. Ou
mento de todo o corpo. Na verdade, esse é um tema recorrente da seria uma demonstração de que finalmente estava assimilada e aben­
teologia política, como já pudemos analisar em outra passagem, ao çoada pela Igreja a racionalidade da produção capitalista, a que eram
nos referirmos à getulização da política. Entre aqueles que sé ocupa­ feitas tantas restrições? Essa é uma época especial de revivescimento
ram do tema, Francisco Campos elaborou a imagem mais radical das imagens religiosas e pagãs. Elas convidam ao culto dos retratados
dessa cabeça dirigente. Entre o mito da nação e o mito da personali­ mas também demarcam o espaço social e espiritual entre a cabeça
dade (mito compreendido como o meio disciplinador dos “elementos e os órgãos e repõem, sem cessar, a lembrança do lugar hierárquico
arcáicos da alma humana”). A segunda é tecida de elementos menos que cada um ocupa na totalidade.
abstratos e de expressão simbólica maior. Por essa razão, o “mitho Era enorme o esforço desenvolvido pelas agências de propaganda
da nação, que constituía o dogma central da theoria política. . . já e informação do regime no intuito de moldar a cabeça de Vargas
se encontra abaixo da linha do horizonte enquanto assistimos à as­ de modo a que ela fosse reveladora de facetas que escapassem da
censão do mytho solar da personalidade, em cuja máscara de Gorgona esfera do homem comum. O lado humano não era negligenciado:
as massas procuram ler os decretos do destino” 4S46. Vargas surge sempre sorridente, jovial, confiante 47. Entretanto, é mais
A essa cabeça carismática, que também é corpo, as massas en- constante nessa composição o casamento de perfis derivados da excep-
contram-se sob efeito de fascinação, diz Campos. E complementa: cionalidade de sua pessoa com os perfis de homem público, desdo­
há uma relação de contraponto entre massa e Cesar”. É marcante em brados ao político capaz e reformador social. Ao se tentar uma síntese
sua obra essa feição positiva das massas no cenário político. Simonsen, da construção da figura mítica de Vargas, observou-se estar ela aco­
ao contrário, por ter lido as massas pelos olhos de Ortega y Gasset, plada em dois planos distintos: “de um lado a magia, a intuição, a
desconfia profundamente da psicologia do “homem massa", que se profecia e a predestinação; de outro, prevalece o espírito de raciona­
tornou um ser indócil, rebelde à dominação de “minorias superiores"; lidade, de. planificação e de previsão” 4>t.
o homem massa “se imagina com todos os direitos, capaz de todas A irresistível atração entre Cesar e as massas percebida por
as idéias, e sem a nítida noção das obrigações para com o meio que Francisco Campos é também divisionada através da vontade incons­
encontrou e em que vive” 4tí. ciente das massas que “reside no corpo étnico”, pressentida pela intui­
É bem verdade que, para Campos, a atração das massas por ção do líder, que a fez vir à luz. “Como conseguiu tornar consciente
Cesar seja estimulada e direcionada pelos meios técnicos de propa­ o inconsciente? E como conseguiu transformá-lo em ação? Ocorre
ganda. O fundamental dessa relação dá-se em dois momentos distintos: que o líder “é uma parte desse povo”; ele próprio “é corporificação
a imersão das massas no corpo da nação, cuja vontade total passa do seu povo” em toda a sua complexidade. No líder revive conden-
a ser a vontade da parte desejante; a submissão das partes à cabeça,
cuja ‘vontade dura e poderosa” imprime comando a esse corpo. 47. U m a face pouco ou q uase nad a ex p lo rad a nos estudos acadêm icos é a
do V arg as sim pático, galante, de so rriso sem pre aberto, de constantes ap a­
Dá motivos a indagações a infindável quantidade de retratos de rições em lugares públicos e em espetáculos artísticos. Esta sua faceta era,
Vargas espalhados por repartições, casas de comércio, locais de tra- e n tre ta n to , explorada intensam ente pelos m eios de com unicação e, sem
d úvida, visava alcançar um a identificação cada vez m aior entre o líder
e as m assas.
45. O Estado N acional, citado, pp. 15 e 16. 4 8 . V elloso, M ônica Pim enta. C u ltu ra e poder político, In: E stado N o vo
46. R u m o à Verdade, São Paulo, 1933, p. 38. Ideologia e Poder, R io de Janeiro, Z ahar, 1982, p. 97.

192 193
sado o passado do país, como nele se encarna o presente e traz com a imagem do Filho, líder que intervém na estória, predestinada-
consigo os traços do futuro 49. mente, o Messias que veio para mudar seu fluxo e afastar outros inter­
mediários; ora corresponde à figura do Espírito a iluminar os cami­
O caráter predestinado do líder para intervir na história \olta
nhos dos seus subordinados para uma nova ordem, amparada por
aqui com toda a força; ganha ainda mais realce a afirmação da pro­
outras luzes. Até mesmo a grandeza futura da pátria parece asseme­
priedade deste líder de corporificar em si a complexidade da socie­
lhar-se ao tempo da escatologia, em que a bem-aventurança é final­
dade e ser capaz, portanto, de desarmar os seus focos geradores de
mente alcançada ,l.
tensão. Fica posto em relevo o dom em posse do líder de intuir e
extrair do inconsciente o desejo socialmente contido e realizá-lo. Esta Toda a trama da identificação do liderado com o líder passa
representação física do “todo”, essa incorporação da brasilidade do necessariamente pela compreensão da relação hierarquizada entre o
brasileiro médio e dos traços nacionais levados às raias do absurdo todo, a cabeça e as partes. Esse é o terreno em que o poder opera
tece uma senda incrivelmente mistificadora das relações sociais, de com o pretenso novo com que tenciona transformar a sociedade. E
sua dinâmica e das possibilidades de seu controle. Vargas, por isso mesmo, é sempre apresentado como o líder que
As imagens não se acumulam indiscriminadamente; apesar de trabalha, exemplo vivo para a nova sociedade projetada, modelo
sua multiplicidade, elas aparecem selecionadas e articuladas de modo ímpar de constituição do homem novo que se pretende construir. Os
especial, pondo-se em realce aquelas mais caras ao imaginário religioso textos de divulgação do Estado Novo demonstram nítida tensão entre
e católico do povo brasileiro. Ali se encontra o culto do amor à a visão disciplinada e moralizada do trabalho e a dimensão humanís-
pátria, a fé na prática e no futuro, o apostolado para a pátria, a tica que se propagandeia. O diagnóstico da sociedade do trabalho é
predestinação do líder, o fim dos antigos intermediários entre o poder “realista”, até mesmo crítica e de denúncia. O lenitivo aplicado, no
e o povo e a nova relação — de comunhão — entre Getúlio e as entanto, acaba por não penetrar no mundo do trabalho coisificado,
massas, as novas leis, atos e atitudes aprovados por todos, concreti­ nem se aproximar do trabalhador fragmentado e feito fator de pro­
zação da universalidade eclesial ( “Pai, que todos sejam um” ). O dução. A fábrica e suas relações de poder não contam; a ação trans­
discurso do poder penetra e caminha por dentro do conjunto de sím­ formadora do novo circula pelo geral da sociedade, escamoteando o
bolos, imagens e personagens familiares ao imaginário cristão 50*. Sem mundo particular da exploração do trabalho. Vejamos como atua
querer calcar imagens sobre imagens (o discurso do poder opera esse mecanismo de ocultamento em texto estratégico: “A crise do
muito mais à vontade com o movimento ambíguo delas) é possível mundo moderno é originada pela desintegração do homem do todo
perceber uma projeção da pessoa de Getúlio a um plano de divini­ universal. O homem criou a máquina e a máquina tomou o seu lugar.
zação, desdobrável em uma trindade de imagens que se interpenetram O homem cede lugar a um 'autómato cruel’, que a disciplina converte
e se contêm em uma só: Getúlio ora corresponde à imagem do Pai, num resíduo, num corpo dominado pelas reações nervosas e muscu­
que vela e protege pelos filhos, imagem que recebe seu acabamento lares. . O mundo da máquina deforma o corpo e a vontade do
principal na figura do grande legislar social; ora identifica-se mais
51 Sobre a questão da am biguidade discursiva, veja-se o artig o de Eni P.
49. H arnish, Wolfgang H offm an. G etú lio V argas e o Brasil, ln : C ultura Polí­ O ila n d i. O discurso religioso, In: A linguagem e seu fu n cio n a m en to . São
tica, 3 (2 7 ): maio 1943, p. 36. P au lo , Brasiliense. 1983. Para esta au to ra, o discurso au to ritá rio e o dis­
50. E copia deliberadam ente sua técnica de inculcação repressiva. V eja-se o c u rso religioso coincidem na não reversibilidade discursiva, pois fixam , de
C atecism o Cívico do Brasil N o v o , no qual a teologia do poder rep res­ fo rm a categórica, o locutor no lugar do locutor e o ouvinte no lugar do
sivo é apresentada através de d ez cu rto s capítulos, escritos no tradicional ouvinte. O discurso au to ritá rio sustenta-se, entretanto, por um a ilusão da
estilo de pergunta/resposta. E sta técnica é especialm ente fechada em si reversibilidade. Já no discurso religioso observa-se “um desnivelam ento
m esm a; as perguntas são selecionadas de m odo a se g aran tir um controle fu n d am en tal na relação entre lo cu to r e ouvinte: o locutor é do plano
absoluto da resposta. N a verdade, o texto é de feição tipicam ente to ta li­ esp iritu al (o Sujeito. D eus) e o ouvinte é do plano tem poral (os sujeitos,
tária, pois as perguntas só podem ser aquelas m esm as, previam ente d ete r­ os h o m en s). Isto é, locutor e ouvinte pertencem a duas ord en s de m undo
m inadas; a dúvida é absorvida p o r elas e cessa nelas. A través do "cate­ to talm en te diferentes e afetad as por um valor hierárquico, por um a desi­
cismo", o poder visa autolegitim ar-se religiosam ente, colocando-se fo ra d a g u ald ad e em sua relação: o m u n d o espiritual dom ina o tem p o ral . C itado.
possibilidade de questionam ento. — D N P , n.° 43, 1939. p. 218.

194 195
ser humano, que acaba por perder “o domínio que vem da experiência
__ A organização nacional instituída em 10 de novembro
da unidade e da totalidade”. A solução: o homem precisa ser recon­
veio amparar melhor os interesses das massas popu­
duzido à unidade e à totalidade de si mesmo y~.
lares?
O que o Estado Novo oferece? “Os fins do Estado Novo são
fins de humanização; o atual regime político do Brasil busca a huma­ A resposta enfatiza o abandono em que os trabalhadores se
nização do Estado. Tal regime se pauta por uma filosofia sadia e encontravam durante a vigência do Estado liberal. Enumera todos os
construtora, que é vida; de uma filosofia de caminhos certos, de benefícios trabalhistas que tinham sido concedidos. Afasta a possibr-
“rumos definidos”, lastreada na compreensão da história do país e lidade dos politiqueiros voltarem de novo à cena política para enganar
na procura de sua alma. “O Estado integrou-se na vida popular, hu- o povo. Mostra convincentemente que o país se encontrava muito
manizou-se, fortaleceu-se no seu verdadeiro papel de organização bem defendido de qualquer ameaça externa.
diretora dos destinos dos povos. . . Através das fórmulas políticas Da confiança, o texto desliza insidiosamente para um estado de
o que se quer é atingir a própria alma nacional. Há algo de formidável fé, crença no futuro, melhoria de todos.
a se formar nas entranhas do organismo nacional vigente" (Idem,
p. 136). __ Podem, hoje, os brasileiros encarar com tranquilidade
e esperança o futuro da nossa Pátria?
Refaçamos o percurso. Do diagnóstico da crise da civilização,
que é a crise do trabalho/trabalhador coisificado, a recuperação da A resposta sempre é afirmativa. E sabemos bem por quê. A fé
unidade do mundo do trabalho é perseguida pela via institucional opera em terreno que não permite a dúvida e só semeia certezas.
do Estado. Sendo o trabalho o pivô da crise geral da civilização, Da forma como se demonstra que o Estado Novo superou os impasses
transformando-a pela via política ficaria assegurada a reversão da do passado e a ameaça de caos iminente, poder-se-ia falar que “não
crise no mundo do trabalho. Em linha direta, o trabalho mecanizado há salvação fora dele. . . ”. O importante, parece-me, é que as vir­
e atomizado recuperaria a dimensão humana na medida em que a tudes da confiança e da fé implicam no envolvimento, emocional e
totalidade do poder atingisse a alma nacional. A proposição não deixa ativo, dos seus cultuadores. Como na doutrina do Corpo Místico de
margem à dúvida: a alma nacional, o corpo espiritual da nação tem Cristo, cada um dos interpelados é convidado a retribuir, ciente de
o dom de reverter a crise no mundo do trabalho. Mais uma vez. que sua passividade reverteria negativamente para si mesmo e para
como se vê, o domínio da teoria é preenchido com elementos expli­ os que lhe estão próximos.
cadores da realidade extraídos do corpo teológico e não originalmente __ De que depende, porém, a realização de todos esses
políticos mas politizados. Ao lembrar com Roberto Romano que o empreendimentos que tornarão o Brasil forte, prós­
discurso teológico opera fora da história e do choque das consciências,
torna-se mais clara a razão do imbricamento dos discursos secular pero e feliz?
e religioso, relativam-se as diferenças em favor da finalidade comum __ Da manutenção da ordem interna e da cooperação do
de condensação do poder e de manutenção da ordem estabelecida. povo com o governo. Um grandioso futuro delinea-se
A reincidência do uso de conteúdos e técnicos milenares atende deante de nós. Mas a realização dessas esplendidas pos­
evidentemente a facilitar o inculcamento persuasivo de pontos básicos sibilidades só será possível se a ordem interna não
do ideário do Estado Novo. O cotejamento intermitente da teologia for alterada. Para isto, é imprescindível que, tanto as
católica parece seduzir os teóricos e propagandistas pelo clima de forças armadas como o povo, num movimento de coe­
confiança que ela transmite. No Catecismo Cívico perguntas como são patriótica em torno do Presidente da República,
essas são colocadas:52 se disponham a manter a ordem a todo o transe e a
reprimir quaisquer tentativas de indisciplina e de opo­
52. Figueiredo, Paulo A ugusto. O E stado N ovo e o H om em N ovo, C ultura sição ao Estado Novo, que é a própria expressão orgâ­
Política, I (1 ) m arço 1941, p. 135.
nica da Nação.
196
197
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Elias Canetti, em Massa e Poder, tece agudas reflexões sobre o


domínio da ordem a que o ser humano é submetido desde tenra idade 1.
A ordem é o retrato vivo de um quadro cristalizado de relações de
poder que reverte incessantemente no seu próprio crescimento. Ela
se põe como algo que sempre existiu; rápida, clara e concisa, a ordem
não admite réplica, nem abre possibilidade de explicação, de discus­
são, ou de ser colocada em dúvida. Ela se apresenta como indispen­
sável, natural, e cuida em não deixar vestígio de sua vinculação ao
sistema de dominação do qual emana.
Toda a ordem, diz Canetti, compreende um impulso, de quem
o emite, e um aguilhão, de quem o recebe. O aguilhão fica secreto,
quase que imperceptível, um sinal positivo e consumado de que a
ordem atingiu seu alvo. Ocorre, no entanto, que o aguilhão penetra
fundo, permanece imutável e conserva para sempre o conteúdo ori­
ginal da ordem. “Ordem alguma se perde”; em situações similares a
que foi emitida, ela será expulso num novo impulso e criará novo
aguilhão; o ato de expulsão é criador de uma “das grandes fontes de
energia psíquica do homem”. O mais impressionante dessa exposição
é o modo como Canetti arma o circuito aguilhão-ordem, um dispo­
sitivo de micropoder que opera reversivamente como reforço, não
simplesmente da ordem em si mas sim da Ordem que a compreende.
Todo aquele que acatou uma ordem “conserva sua resistência como
aguilhão, como espinho dentro de si, um duro cristal de rancor”.
Conseguirá desfazer-se dele somente quando vier a emitir uma ordem
semelhante.
O soldado é o exemplo mais acabado daquele que acata ordens,
sempre à espera consciente de recebê-las. O soldado é um prisioneiro
que vive um cotidiano altamente disciplinarizado, “um prisioneiro que
está satisfeito". Mas além da disciplina declarada a que está subme­
tido, uma outra disciplina — secreta — o envolve: trata-se da “dis-1

1. Cf. o capítulo “A O rd em ”, pp. 337 a 371.

199
ciplina de promoção”. Pois que, ascendendo na hierarquia, o soldado de origem estavam em guerra com o Brasil, e que ficavam submetidas
fará de seus aguilhões novas ordens. Como não deixa de receber à “ação pedagógica” do exército. Nos termos de Canetti, tratava-se
ordens de cima, novos aguilhões o ferem, mas lhe resta a oportuni­ de inserir o imigrante recém-chegado no circuito ordem-aguilhão da
dade de impulsioná-los adiante. Encontra-se, pois, situado em pleno nacionalidade. . .
circuito do aguilhão-ordem.
O circuito descrito por Canetti não se restringe exatamente ao
As reflexões de Canetti sobre esse circuito são extensíveis ao contexto histórico que viemos enfocando; sua aplicação é-lhe, no
contexto de militarização do corpo e do trabalho por nós percebidas entanto, extremamente pertinente, maxirne no que tange às implica­
ao longo dos anos 30; lá se elaborava uma psicologia do soldado- ções de uma estratégia de militarização do cotidiano. Apreciação seme­
modelo, a ser imitada como padrão de comportamento para o tra­ lhante pode ser estendida a outro circuito similar ao descrito por
balhador e para o cidadão comum. Numa sociedade profundamente Canetti: refiro-me aquele que principia num impulso negativo, já
hierarquizada, porque compreendida corporativamente, na qual cada que tem início na ordem proibitiva de não pecar; sua infração acar­
um sabe o lugar que ocupa, esperava-se que cada cidadão estivesse reta o aguilhão da culpa. O debelamento do aguilhão só se torna
atento e receptivo a ordens a serem acatadas. Nesse contexto social possível com o acatamento da ordem, que repercute inevitavelmente
de “militarização espiritual”, o circuito aguilhão-ordem atuava como no arrependimento e no respeito à Ordem estabelecida. Enquanto
apreciável ordenador das relações moleculares de poder, uma cadeia dispositivo de dominação, este aqui denota tanta ou maior eficácia,
de vigilância e rancor, funcional na estratégia política mais ampla pois a expulsão do aguilhão só pode ser alcançada através do
de dominação social. perdão da autoridade religiosa, ficando a consciência da vítima do
aguilhão-culpa diretamente subordinada a ela.
Procede daí a preocupação externada por Azevedo Amaral no
tocante aos possíveis efeitos da desmilitarização da sociedade. Em Nem esses são os únicos mecanismos utilizáveis no movimento de
suas palavras, “os sentimentos patrióticos de um povo desmilitari­ disciplinarização do cotidiano, nem as respostas e as resistências pos­
zado diluem-se e tornam-se ineficazes, não podendo jamais constituir síveis inexistem, face à mecânica implacável e à eficácia desses dispo­
o elemento inspirador e animador de um verdadeiro civismo” -. O sitivos. Não é conveniente, entretanto, subestimar sua eficácia num
envolvimento simbólico desse clima patriótico de militarização podia contexto social em que os componentes maquínicos de fascistização
dar lugar, como vimos, a um quadro de exigências estabelecidas, se encontram em estado de excitação. Além do que, nos termos de
como no caso da "economia de guerra”, quando os trabalhadores Verilio, é preciso lembrar da “pura velocidade” que já vinha sendo
foram submetidos a um trem de produção e a determinações discipli­ imprimida nos anos 30 ao conjunto da sociedade, automovida pela
nares específicas. Como também o poder não perdeu de vista disse­ economia de guerra, que anunciava e instituía o complexo industrial-
minar pela sociedade aquilo que Canetti julgou ser restrito ao “aspecto militar. Concomitantemente à instalação de um sistema de “produ­
anguloso do soldado”, cuja “figura estereometrica se anima e se ção da destruição”, cuja velocidade destrutiva patenteia-se na invenção
coloca em movimento ao ouvir a voz de comando”. Falando aos imi­ de novos armamentos/tecnologia de ponta, mais a tecnologia de morte
grantes alemães em Santa Catarina, Vargas referia-se à ação do exér­ (vide campos de concentração), uma “lógica tecnológica” começava
cito na educação dos indivíduos de origem estrangeira: “nos países a se impor sem que as pessoas reconhecessem a “parte militarizada
novos, às forças militares cabe alta função educadora e nacionaliza- de sua identidade, de sua consciência” 4.
dora. Pelos quartéis passam, todos os anos, milhares de jovens que
aprendem a servir ao Brasil” É sabido da entrega ao exército o Enquanto busca da ordem, o totalitarismo opera, no plano dis­
cuidado e vigilância das comunidades estrangeiras do sul, cujos países cursivo, com a representação de uma “ordem natural” que move a
sociedade por si mesma; nas palavras de Lefort, o totalitarismo supõe
a concepção de uma sociedade que se vê auto-suficiente, capaz de
- C itado por M acedo, Sérgio. G etúlio Vargas e u cu lto à nacionalidade. Rio
de Janeiro. D IP, 1941. p. 211.
3. O sentim ento de brasilidade em B lum enau, In: A nova política d o Brasil, 4 . V erilio, Paul e Lotringer, Sylvere. G uerra Pura, São Paulo, Brasiliense,
obra e docum entos citados, p. 198. 1984. C itação à p. 20.

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dispor de sua própria organização. Ela se rege pela imagem de um haveria pátria, família, igreja, se não renovasse, pelo pen­
corpo instituído sem divisão, relacionada consigo mesma em todas as samento ou pelo espírito, o acto de sua fundação. Neste
suas partes, soldada por uma aliança de identificação com o poder que ponto, a igreja e a família constituem exemplos de funda­
a rege, sempre movida pela tendência de homogeneizar o espaço so­ ção perpétuos, que repousam a sua perpetuidade na reno­
cial \ vação quotidiana do voto de fundação. Não há igreja, não
há família, não há pátria que se funde num dia para sem­
Mas provém do mesmo Lefort a observação da impossibilidade
pre, se o ato de fundação não se repete ou se renova com
do acabamento da ordem totalitária; a imersão do indivíduo na lógica
a fé, a confiança, a fidelidade do primeiro dia.” 789
de dominação resvala permanentemente no “intolerável distanciamen­
to do sujeito e do discurso”; sem poder escapar à ameaça da divisão As palavras de Francisco Campos remetem a uma constatação
social, a ordem totalitária inscreve o indivíduo, simbólica e contra­ que reiteradamente viemos propondo ao longo deste trabalho: a ordem
ditoriamente, em dupla necessidade de representação: seja para in- totalitária aparenta-se forte e definitiva. Nesse caso, não se trata ape­
cluí-lo como para excluí-lo absolutamente, de modo a “imprimi-lo na nas de reiteração discursiva; mais que isso, trata-se de buscar a ajuda
lógica da organização e de negá-lo absolutamente como potência de de uma outra ordem, que a subsidie e sustente: a ordem sobrenatural.
desordem" *. Da mesma forma que, para escapar ao circuito aguilhão- Seja através de uma nova religiosidade criada, seja a religiosidade
ordem de Canetti basta ao indivíduo pôr-se criticamente diante da milenar do cristianismo, a ordem totalitária não abre mão da ordem
hierarquia, ao invés de simplesmente galgá-la; ou no outro caso co­ sobrenatural. Vem de sua força o fascínio que as formas institucionais
mentado, desvencilhar-se do ônus psicológico da culpa do pecado e de poder lhe dedicam; como é sua qualidade que permite a teóricos
tornar sem sentido a consulta à autoridade espiritual que lhe concede­ católicos ponderar sobre a “independência” do catolicismo em relação
ria o perdão. ao poder temporal e, ao mesmo tempo, apontar-lhe a necessidade de
Nos lermos de Lefort, a ordem totalitária se pretende mecânica, cortejar o poder religioso, com fins de sua sustentação. Alceu Amo­
absoluta, um fluxo natural que, se contestada, expõe a dimensão de roso Lima falará exemplarmente na década de 30 sobre a “natu­
“lógica do absurdo”; o discurso de poder, que a justifica, não pode reza divina da condição humana” que o Estado não podia abarcar e
deixar de manifestar-se senão como mentira generalizada. Esse tipo que ficava na alçada da Igreja, o que lhe permitia “coexistir” com o
de contradição foi intuída por Francisco Campos, a quem não es­ Estado, com “independência”. De modo semelhante, para o mesmo
capou perceber quais os marcos necessários à fundação da “ordem líder católico, o domínio da política submetia-se ao da ética, confor­
nacional” no país. Campos não apanha exatamente eventos políticos mada pela ordem sobrenatural: “a política, a moral e a teologia for­
e grandes acontecimentos históricos; ao contrário, releva a fé, a con­ mam, portanto, uma cadeia não interrompida. . . ” *.
fiança, a fidelidade. Ao invés de tomar a ordem funcionando natural­ Procede dessa matriz de pensamento a repulsa de Maritain con­
mente, ou reiterá-la como retórica de poder, Campos funda-a e a tra o ativismo de Gentile, que pregava a necessidade do espiritual se
repõe incessantemente no cotidiano, através dos valores discrimina­ integrar e servir ao “Estado ou ao espírito do povo” B. Os facistas
dos, fundamentos da Ordem desejada: italianos, por sinal, mostravam-se ávidos em capturar a fé e instru­
"Hm um certo sentido, somos todos fundadores. Fundar é mentalizá-la como relação de poder: “o fascismo é uma fé, é uma or­
dedicar o pensamento, a vontade e o coração. E todas as
instituições humanas somente vivem porque se renova to­ 7 . O s valores espirituaes (discurso p ro ferid o em 2 6 .7 .1 9 3 6 ) , In : E ducação
dos os dias esse acto de dedicação e de fidelidade. Não e Cultura, Rio de Janeiro, L. J. O lym pio E., 1940, p. 149.
8 . C f. Política, Rio de Janeiro, G . M. C osta, 1939. 3.a ed., pp. 175-9 e 2 1 .2 .
A m bas as citações encontram -se em M edeiros, Jarb as. Ideologia a u to ritá ­
5. A lógica totalitária. In: A invenção dem ocrática. São Paulo, B rasiliense ria n o Brasil, 1930/1943, R io de Jan eiro , F G V , 1979, pp. 249 e 243. A
1983. pp. 81 a 83. p rim eira edição do livro de A m o ro so Lim a é de 1932.
6. Esboço de uma génese da ideologia nas sociedade m odernas. In: A s fo r­ 9 . M aritain, Jacques. H u m a n ism o integral, São P aulo, D om inus, 1962, p.
m as da História, São Paulo, B rasiliense. 1979, pp. 331, 332. 225. Publicado originalm ente em 1936.

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dem moral” 10*. Para este educador italiano, o fascismo apresentava-se Trazendo para o seu domínio a força da fé, o poder temporal
principalmente como um grande “fato educativo”, da mesma propor­ não vê, no entanto, assegurada a certeza de sua estabilidade e pro­
ção da pregação pedagógica do cristianismo. Se Mussolini trouxera o gressão pelo simples motivo de que, remetida ao terreno das paixões
lema Ordem, Autoridade e Justiça para substituir o lema individualista humanas, a fé se faz acompanhar do seu contrário, a dúvida, e com
da Revolução Francesa, considerava que um outro deveria desdobrar- ela a incerteza diante do imprevisto, do vir a ser. Starobinsky notara
se do sugerido por Mussolini: Crer, Obedecer, Combater, inspirado a correspondência do jogo de claro/escuro na arte produzida no calor
na tradição “revolucionária” do cristianismo, com a qual o fascismo da Revolução Francesa, indicação de um estado de espírito coletivo
“mantinha pontos de contato”. E justificava sua oferta nos seguintes subjacente à perplexidade que tomara conta da sociedade, face a um
termos: se uma “nova ordem” tinha sido estabelecida, impunha-se o mundo que desabava e ao pronunciamento indeciso e indeterminado
dever de acreditar nela, da mesma forma que criada a autoridade, do “novo” que germinava 13. Ettore Scolla retratou com perfeição em
cabia obedecer-lhe sem restrições; de outro lado, fundada a justiça, La Nuit de Varennes o clima denso de ameaça e esperança que con­
fazia-se necessário combater por ela e pô-la em prática em todos os vulsionava a sociedade francesa naquele momento. Já um romântico
campos de atividade (p. 17). como Novalis, face ao mundo sem Deus pregado pelas Luzes, descre­
Maritain, preocupado em marcar distância do fascismo, também ve um quadro sombrio de desesperança, uma premonição do movimen­
evidencia a necessidade de fazer desaparecer o “homem velho” (o to soturno que os impulsos totalitários tomariam décadas depois:
burguês) para dar lugar ao “homem novo”, tema caro às experiên­ “Penetremos no Reino da Noite, separemo-nos de nossa
cias totalitárias (Citado, p. 74). Pio XII, na encíclica Mystici Corporis vontade, experimentemos as delícias da morte.
Chrisli, refere-se explicitamente ao homem novo como o “Cristo ca­ (■■ ■)
beça e corpo, o Cristo Total” (Citado, p. 40). A “totalidade mística”
da Igreja era proposta nos mesmos marcos das “totalidades políticas” Que pressentimento é este que sinto, a invadir surdamente
mutantes. Já Alceu Amoroso Lima, ao pregar a necessidade da con­ meu coração e a envolver esta tênue atmosfera de triste­
tra-revolução, considerava o integralismo ligado ao catolicismo por za? Sombria Noite: não terás alguma complacência a nos­
“laços indestrutíveis”, pelos inimigos comuns e pelos amigos também so respeito? Que carregas sob teu manto? (. . .) Quanto
comuns: “Deus, Pátria, Família. . . defesa da autoridade, da ordem, me parece pobre e pueril, no presente, esta luz■ Feliz e
da hierarquia, do dever” 11. bendita a despedida do dia!" M.
A pedagogia fascista mantém-se indecisa diante da necessidade
da fé, nos termos de como obtê-la, ou de criá-la, forjando-a. O ideal
é que a fé brotasse expontaneamente; daí o recurso de apelar à peda­
gogia cristã, cultivando a fé tenramente nas crianças. Entre os român­
ticos encontraremos a fonte dessa estratégia pedagógica, ancorada so­
bre a concepção do “povo criança”, desenvolvida por Novalis. Nessas
mesmas águas é que esse autor faz navegar a imagem da Igreja Ca­
tólica como portadora do Eterno, a “nova fundadora do mundo”, mo­
delo de reconstrução da sociedade pós o cataclisma das luzes 12.

10. R om anini. Luigi. / principi clet fascism o nel cam po deli' E ducazione, To-
rino, Paravia, 1935, p. 252.
I 1 Indicações políticas: da revolução à constituição, Rio de Janeiro. C iv ili­
zação Brasileira. 1936, pp. 190-5; citado por M edeiros, Jarbas, citado,
p. 269.
13. S tarobinsky, Jean. 1789 L es cm blèrnes de la raison. Paris, Flam m arion,
12. Cf. R om ano. R oberto. C o nservadorism o R om ântico, C itado, pp. 99. 102- 1979.
103.
14. R om ano, R., citado, p. 103.

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