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Comecei a pensar sobre o que seria propriamente Filosofia, e fui levado a tentar

categorizar a relação entre «campos» e «tipos» de investigação humana (investigações


que têm interesse na verdade). Alguns exemplos de campos de investigação: Biologia,
História, Ética. Os tipos de investigações creio que são três: ciência empírica, ciência
formal, e ciência filosófica (we'll get to that!).
Pensei numa categorização inicial, muito intuitiva e corrente, e notei que essa
categorização é enganadora. Escrevo para mostrar os erros dessa categorização, e para
defender uma categorização mais iluminadora.
HIGHLIGHTS DO TEXTO: O que é uma investigação filosófica, o porquê da Filosofia ser
parcialmente empírica, e o que são questões propriamente filosóficas. A seção VI é o
clímax.
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I. A categorização a ser rejeitada.
A categorização inicial que eu cheguei foi a seguinte.
- (1) Tipo: ciências empíricas. Campos: por exemplo, Física e Psicologia.
- (2) Tipo: ciências formais. Campos: por exemplo, Lógica e Matemática.
- (3) Tipo: ciências filosóficas. Campos: por exemplo, Ética, Metafísica, e Epistemologia.
As ciências filosóficas seriam aquelas que prosseguem por métodos que não são nem
empíricos nem formais.
(Nota: Chamo Filosofia de 'ciência' tanto em provocação quanto em seriedade. Creio que
(a) a Filosofia busca a verdade, e que (b) a Filosofia frequentemente aplica métodos
epistemicamente confiáveis nesta empreitada. Logo, é uma ciência — só não empírica. A
Matemática é uma ciência pelo mesmo critério, uma ciência formal, e não empírica. Como
'ciência' é uma palavra de muito prestígio, parece adequado que ela seja atribuída a todos
os campos de investigação que buscam a verdade por métodos confiáveis. Ou seja,
campos *sérios* de investigação, que merecem esse prestígio. Assim, esta terminologia
deve ser favorecida.)
Quero transmitir duas coisas neste texto. PRIMEIRO, como dito, que esta categorização é
enganadora. Digo isso pois creio que, em todos os campos de investigação, as questões
próprias de cada campo frequentemente podem ser tratados tanto por métodos empíricos,
quanto por métodos formais, quanto por métodos filosóficos (i.e. nem empíricos, nem
formais). — SEGUNDO, que apesar da falha desta categorização, ainda é possível
distinguir entre uma ciência empírica, uma ciência formal, e uma ciência filosófica. Basta
que permitamos que uma «questão da Física», ou uma «questão da Metafísica», ou uma
«questão da Lógica», sejam tratadas tanto por métodos empíricos, quanto por métodos
formais, quanto por métodos filosóficos.
Este é um texto cheio de exemplos. Primeiro vou dar dois exemplos, e depois mais três.
Essa separação se dá pela ordem com que escrevi o texto aqui no meu computador.
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II. Dois exemplos.
EXEMPLO UM. Para tratar de certas questões da Epistemologia, uma área da Filosofia,
precisamos fazer algumas investigações empíricas. Por exemplo, em vários momentos da
investigação epistemológica se prova útil saber em detalhes como funciona a percepção
humana: nosso maquinário sensorial e de processamento de dados. Isso é algo que só
pode ser descoberto empiricamente.
Por exemplo, alguém poderia ter a tese filosoficamente relevante que nós estamos
percebendo um carro diretamente (e não um 'sense-data' de carro) somente se temos uma
estrutura informacional em mente que é isomórfica ao carro em questão. (Ou coisa assim.
Meus entendimentos de Epistemologia e morfismos são semi-crus.) Neste caso,
precisamos saber como funcionam as estruturas informacionais do cérebro para saber se
existe esse isomorfismo, para então sabermos se percebemos o mundo diretamente ou
não. Devo realçar que o debate entre realismo direto e realismo indireto é muito importante
na Epistemologia.
Assim, há questões filosóficas que precisam de input empírico para serem respondidas, e
deste modo a Filosofia (que trata de questões filosóficas) não é um campo que procede
apenas por métodos não-empíricos e não-formais. Ela parcialmente empírica. Darei outro
exemplo, falando sobre livre-arbítrio, mais abaixo.
EXEMPLO DOIS. Para tratar de questões da Economia, precisamos (ou ao menos
*podemos*) fazer estudos formais sobre a estrutura de sistemas complexos (quaisquer
que sejam estes sistemas). Sentadas em nossas poltronas, imagino que consigamos
chegar em teses verdadeiras sobre os limites, ou algo sobre a lógica interna, de qualquer
sistema econômico. Estou quase chutando, mas parece plausível: existem muito trabalho
formal feito sobre auto-organização, por exemplo, e eu suponho que existam teoremas
limitativos.
Fato é que nosso cérebro é um bom entendedor — não devemos negligenciar, em virtude
de um empirismo barato, sua capacidade de entender que certas coisas têm que ser
verdadeiras só pensando. (Só temos que tomar cuidado com *quais* coisas queremos
alegar que temos justificação a priori para crer.)
Agora darei, com um pouco mais de sistematicidade, três exemplos adicionais de como os
três tipos de investigação — empírico, formal, e filosófico — aparecem em alguns campos
de estudo.
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III. Três tipos de investigações na Física.
Definição: "fazer Física" é tratar sobre questões físicas (com um certo rigor).
Consideremos a questão: "Como são os elemento mais básicos da realidade?"
Esta questão tem um componente empírico: fazemos teorias microfísicas e as testamos
amplamente, e assim chegamos em caracterizações detalhadas sobre coisas como
elétrons. // Ela também tem um componente formal: usamos um formalismo matemático
para construir nossas teorias, e deduzimos muitas coisas substanciais usando o
formalismo. // Por fim, ela tem um componente filosófico: para interpretar o nosso
formalismo matemático e entender a realidade que é descrita pela nossa teoria, *algumas*
vezes nos deparamos com duas interpretações distintas que possuem as mesmas
implicações empíricas. Assim, os experimentos não podem decidir entre as duas
interpretaçoes. Neste caso, nós tentamos decidir qual das duas interpretações é mais
provável ou plausível, mais simples ou econômica, e para tomar esta decisão nossos
métodos não são nem empíricos (por hipótese) nem formais. Então são filosóficos.
Um exemplo famoso são interpretações distintas da mecânica quântica. Eu suponho que
há também interpretações distintas do que é o espaço-tempo na relatividade geral. Assim,
temos uma questão física, "Como são os elementos mais básicos da realidade?" (como
são quarks, campos de força, elétrons, fótons, o espaço-tempo?), sendo tratada por
métodos empíricos, formais, e filosóficos (nem empírico, nem formal).
LIÇÃO: Se 'Física' for tudo envolvido na resolução de questões físicas (e.g. "Como
funciona a causalidade física?"), então em certos momentos fazemos Física fazendo
Matemática, e em outros fazemos Física fazendo o que chamamos de Filosofia da Física.
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IV. Três tipos de investigações na Lógica.
Definição: "fazer Lógica" é tratar sobre questões lógicas (com um certo rigor).
Consideremos a questão: "Qual o formalismo apropriado para capturar a 'lógica' (lato
sensu) da realidade?"
Esta questão tem um componente empírico: nossa crença no Princípio do Terceiro
Excluído, ou no Princípio da Não-Contradição, ou no Princípio da Bivalência, pode ser
rejeitada em virtude do resultado de uma investigação empírica. Por exemplo, pode ser
que, num dado momento, uma partícula esteja tanto no lugar A quanto fora do lugar A —
ou pode ser que seja simplesmente *indeterminado* se a partícula está em A ou não. O
desenvolvimento da mecânica quântica é crucial para saber se estas coisas acontecem.
(Por exemplo, um paper sobre a lógica da MQ que eu não li: von Neumann & Birkhoff
1936.)
Ela (a questão) também tem um componente formal: precisamos construir uma lógica, e
(na medida do possível) dar-lhe poder de expressão, consistência, e completude. Isso é
um trabalho eminentemente formal. // Por fim, neste caso *talvez* ela tenha também um
componente filosófico: precisamos fazer Filosofia da Física para decidirmos por uma
interpretação da mecânica quântica, e duas interpretações diferentes podem ser
descritíveis por formalismos lógicos diferentes. (Se eu tivesse lido o livro com o sugestivo
título «Quantum Ontology: A Guide to the Metaphysics of Quantum Mechanics», de um
sujeito chamado Peter J. Lewis, eu saberia pensar melhor sobre isso.)
Para deixar bem claro esta ideia, que eu acho interessante, consideremos outra questão
lógica que mais certamente tem um input filosófico: "Qual o formalismo aprioriado para
capturar a 'lógica' (lato sensu) das boas inferências e bons argumentos?"
Esta questão pode ter um componente empírico: pode ser que investigações empíricas
sobre a neuropsicologia da percepção, ou sobre a prática científica em geral
('metaciência'), nos ajudem a descobrir *quais* são os bons princípios e rules-of-thumb de
inferência. // Ela certamente tem um componente lógico: precisamos desenvolver o
formalismo, como coloquei no exemplo anterior. // Por fim, ela certamente tem um
componente filosófico: precisamos nos perguntar o que é um princípio de inferência
confiável e um bom argumento, e nem sempre podemos fazer isso empiricamente.
Precisamos decidir 'a priori' por certos princípios de inferência para *começar* a fazer
ciência (pace Quine), e em muitos casos me parece que seres humanos têm uma
capacidade muito boa de *perceber* o que é um bom argumento e uma boa inferência
sem precisar submeter seu julgamento intuitivo à verificação empírica.
LIÇÃO: Podemos fazer qualquer formalismo que quisermos, basta estipularmos os
axiomas e definições que quisermos — respeitando a consistência, completude, etc. na
medida do possível. No entanto, se queremos fazer um formalismo que se adequa a algo
externo ao formalismo, como confiabilidade de inferência ou a metafísica, temos que sair
do formalismo e aplicar métodos empíricos e filosóficos de investigação. Em outras
palavras, não é uma questão 'formal' ou 'estipulativa' se uma dada inferência é confiável,
ou se um dado axioma descreve a 'lógica' (lato sensu) da realidade.
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V. Três tipos de investigação na Metafísica.
Consideremos uma categoria notoriamente mais remendada do que minha bermuda:
questões filosóficas. Definição: "fazer Filosofia" é tratar sobre questões filosóficas (com um
certo rigor). Tomemos a questão da Metafísica: "Temos livre-arbítrio?"
Desta vez, inverto a ordem de exposição. Primeiro, essa questão pode ser tratada por
métodos filosóficos: (i) tentamos esclarecer o que nós queremos dizer por livre-arbítrio, e
talvez (ii) entender as conexões entre livre-arbítrio e responsabilidade moral (cf. McKenna
& Pereboom, 2016), e (iii) tentamos descobrir que tipo de critérios uma criatura teria que
satisfazer para ter livre-arbítrio. Não parece que estas três questões são respondíveis ou
tratáveis formalmente ou empiricamente.
Essa questão também tem um componente empírico. Não estamos nos perguntando "O
que é livre-arbítrio?", mas sim "TEMOS livre-arbítrio?" — Para responder isso, precisamos
saber que tipo de criaturas nós somos, como nossos cerébros funcionam, para ver se nos
adequados aos critérios-para-livre-arbítrio que havíamos estabelecido. // Neste caso, não
sei se há um componente formal. Podemos fazer uma lógica modal deôntica para
esclarecer o que é responsabilidade moral, e assim esclarecer o que é livre-arbítrio, não
sei.
Quem é mais treinada em Metafísica do que eu será capaz de dizer como um formalismo
bem-feito pode ajudar a fazer metafísica analítica, mesmo que a metafísica analítica não
seja uma questão formal.
LIÇÃO: Questões filosóficas frequentemente precisam de investigações empíricas para
serem respondidas.
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VI. Nova categorização.
Ok, então vimos que não está claro que podemos responder uma questão tão
característica da Física como "O que é um elétron?" sem fazer aplicar métodos filosóficos
de investigação, e que não podemos responder uma questão tão característica da Filosofia
como "Temos livre-arbítrio?" sem métodos empíricos de investigação. Lição: as coisas se
misturam, e a divisão entre Filosofia e Física (por exemplo) é bem mais nítida nos
departamentos das universidades do que nos tipos de métodos necessários para resolver
as questões que nos interessam.
Proponho então a seguinte categorização dos tipos e campos de investigação, para que
fique mais claro como essas coisas são.
CIÊNCIA OU INVESTIGAÇÃO EMPÍRICA. Definição: Uma pessoa está fazendo uma
«ciência/investigação» empírica quando tenta responder (com rigor) uma questão, de
qualquer natureza, por «métodos» empíricos. No caso, comparando teses (modelos,
hipóteses, teorias) com observações e experimentos.
Podemos dizer que a Física é primariamente uma ciência empírica: o grosso do trabalho
para resover questões físicas é empírico. Mas ainda podemos aceitar que há um quê de
ciência formal e de ciência filosófica na Física. Ao tratar de «questões físicas», como "O
que é uma partícula fundamental?", por vezes PRECISAMOS aplicar métodos formais e
filosóficos de investigação.
Em outros casos, não é necessário averiguar as coisas filosoficamente, mas certamente é
*possível*. Sempre se lembrem que o sr. Kant chegou a conclusões corretas e fantásticas
sobre a psicologia da percepção sem fazer testes empíricos. Reitero que cérebros
humanos são ótimos entededores, e não devemos deixar um empirismo barato nublar o
óbvio: nosso cérebro tem insights confiáveis sobre muitas coisas, e temos justificação para
crer nas nossas intuições em muitos casos.
A Psicologia foi, por muito tempo, feita primariamente por métodos filosóficos. Em outras
palavras, questões psicológicas eram tratadas por métodos filosóficos. (Deve-se dizer que
ela não era muito boa nessa época, mas também não era muito ruim.) Hoje, muitas
pessoas nas ciências cognitivas são também filósofas da mente e filósofas da linguagem.
CIÊNCIA OU INVESTIGAÇÃO FORMAL. Uma pessoa está fazendo uma
«ciência/investigação» formal quando tenta responder (com rigor) uma questão, de
qualquer natureza, por «métodos» formais. — Notem que a Lógica é uma ciência
primariamente formal, mas ainda podemos dizer que ela tem um quê de ciência empírica e
um quê de ciência filosófica: investigando o mundo e pensando sobre boas inferências,
podemos tratar «questões lógicas» como "Qual o melhor formalismo para ______?".
CIÊNCIA OU INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA. Definição: Uma pessoa está fazendo uma
«ciência/investigação» filosófica quando tenta responder (com rigor) uma questão, de
qualquer natureza, por «métodos» nem empíricos, nem formais. — Questões filosóficas
são tratadas primariamente por métodos filosóficos, mas também são tratadas por
métodos empíricos e métodos formais. Portanto, a Filosofia é um «campo misto» de
investigação.
Acho que vale considerar o que seriam «questões» propriamente filosóficas. Eu não sei
dizer. Tentativas:
(A) Talvez seriam questões que *atualmente* nossa linha de ataque mais promissora é
pela investigação filosófica, ou seja, por métodos nem empiricos, nem formais — mesmo
que hajam componentes empíricos ou formais mais-ou-menos importantes na resolução
da questão.
(B) Talvez seriam questões que *nunca* poderiam ser decididas inteiramente
empiricamente ou formalmente — questões com um componente ineliminável de
investigação filosófica. Notem que isso é compatível com o fato da Filosofia ser
parcialmente empírica: estas questões maiores podem não ser *inteiramente* respondidas
por métodos empíricos ou formais, mas elas possuem «sub-questões» que são
respondíveis (somente) por métodos empíricos ou formais. O livre-arbítrio é um bom
exemplo.
Acredito mais na tese B.
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VII. Conclusões.
- (1) Os «tipos» de ciência se definem pelo seu «método» empregado.
- (2) A Física é um campo de tipo misto, mas primariamente uma ciência empírica. Creio
que vários os outros campos primariamente empíricos (como a Psicologia e a Biologia)
são mistos.
- (3) A Filosofia é um campo de tipo misto, admitindo de muito input formal e empírico, mas
é primariamente uma ciência filosófica.
- (4) A Lógica é um campo de misto, mas primariamente uma ciência formal.
Uma ressalva: devemos tomar cuidado ao dizer que ciências formais investigam
proposições analiticamente verdadeiras. Analiticidade é um conceito muito estranho e
elusivo. A Matemática, por exemplo, parece formal, mas definitivamente não parece
analítica.
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Nota: a leitora atenta deve ter notado que eu caracterizei a Física, a Lógica, e a Filosofia
como a tentativa de responder certas questões (respectivamente físicas, lógicas, e
filosóficas) com um certo rigor. Botei este critério para que não digamos que eu estou
fazendo Psicologia quando observo amadoristicamente meu cachorro, ou que não-sei-
quem está fazendo Filosofia quando pensa sobre a vida. Lidamos com questões físicas,
psicológicas, lógicas, epistêmicas, éticas, metafísicas, e matemáticas em vários momentos
durante nossa vida comum, mas dificilmente estamos fazendo Física, Psicologia, Lógica, e
Filosofia nesses momentos.
Se alguém quiser usar a terminologia para dizer que sim, estamos fazendo Física, Lógica,
etc. nesses momentos, tudo bem também. Basta deixar claro que não estamos fazendo
Física *boa* ou *rigorosa*, nem Filosofia *boa* ou *rigorosa*, ou coisa assim.
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Foto: Nós, palhaças que caímos no conto dos campos de investigação nitidamente
separados em departamentos nas universidades. Things are much messier.  =P

Clareza, precisão, e rigor.


Uma empreitada possui fins epistêmicos se e somente se tem como objetivo avaliar o quanto uma
tese se aproxima de seu objeto. Uma tese é uma tentativa de descrever algum aspecto da realidade, e
chamemos de 'valor de verdade' a medida em que uma tese descreve corretamente este aspecto. O
valor de verdade de uma tese pode ser avaliado indiretamente, por meio de características como (i)
apoio em julgamentos sóbrios e competentes, (ii) apoio em evidências empíricas, (iii) probabilidade,
(iv) capacidade explanatória, (v) consistência interna, (vi) consistência (e coerência) com nossas
crenças de fundo epistemicamente justificadas, (vii) plausibilidade, (viii) o valor de verdade de suas
consequências dedutivas e indutivas – e talvez algumas outras coisas. (É claro que não está tão claro
o que algumas destas coisas são, como 'competência', 'plausibilidade', ou 'explicação'.)
Abaixo, caracterizo o que são clareza, precisão, e rigor. Então, argumento que são fortemente
benéficas para atingir fins epistêmicos, isto é, avaliar o valor de verdade de descrições da realidade.
Parece algo que não requereria defesa, pois ninguém pensaria em negar isto, mas mais de meia dúzia
de vezes tive de defender em detalhes esse tipo de coisa. Este texto servirá de referência para
conversas futuras.
Antes de começar, um breve comentário: A ausência significativa de uma destas três características
pode fazer com que um campo de investigação se desenvolva em uma direção completamente
errada, sem que ninguém tenha ferramentas intelectuais para descobrir o erro e sua origem. Isto
parece ocorrer com algumas correntes intelectuais, tanto populares quanto acadêmicas, e nestes
casos parece que sua difusão e seu prestígio se mantêm muito mais por mecanismos sociológicos do
que por mérito epistêmico. (Observadores atentos da física especulativa, da genética, da psicologia,
da filosofia, e das ciências humanas em geral atestarão a existência deste fenômeno.)
—–
I. «Clareza» é uma medida do quão bem interlocutores (competentes e atentos) conseguem
compreender o que está sendo dito (expresso, afirmado, descrito, postulado, avançado, defendido,
criticado, etc.). Creio que isto inclui o próprio falante: pode não estar claro para ele o que ele está
dizendo ou até pensando.
A clareza é epistemicamente importante. A razão é que, caso não se «compreenda» bem o que está
sendo dito, não se poderá «avaliar» bem o que está sendo dito. Sem compreender bem o que foi dito,
pode ser difícil ou impossível avaliar se é consistente (consigo mesmo ou com outras teses), avaliar
quais evidências e argumentos poderiam apoiar ou refutar o que foi dito, ou descobrir quais são as
consequências daquilo que foi dito, dentre outras coisas.
Uma pessoa pensadora com ideias ótimas, mas com expressão pouco clara, perde algo que uma
pensadora com expressão mais clara não perde. Ela e suas interlocutoras são menos capazes de
avaliar o valor de verdade das teses que as interessam. Ao menos se trata de uma perda caso a pessoa
pensadora possua fins epistêmicos – como quase sempre é o caso. (Mesmo quem diz não querer
descobrir a verdade, ou até afirmar não existir verdade, ainda faz dúzias de afirmações controversas
sobre temas fundamentais. Quem faz sinceramente uma afirmação crê que as coisas são conforme
foi afirmado.)
Note que clareza também é uma medida de argumentos e outros tipos de «razões» que podemos
oferecer para teses (como evidências, contra-exemplos, avaliações explanatórias, e assim por diante).
A ligação entre uma consideração e a tese em questão pode não estar clara; ou a própria
consideração em questão (a premissa, a observação, o contra-exemplo, etc.) pode não ter sido
expressa claramente.
——
II. «Precisão» (ou exatidão) é uma medida do quão determinada é a tese que está sendo expressa. É
possível ser muito claro e muito impreciso ao mesmo tempo. Uma tese é imprecisa quando ela falha
em selecionar uma dentre duas ou mais teses possíveis, como quando se diz que x é ruim, mas não se
especifica «como» x é ruim. (É injusto? É desonesto? Falha em cumprir seus objetivos? É feio? Tem
gosto ruim? É pouco prático? É objetivamente ruim?) Uma tese pouco precisa é ambígua entre
múltiplas teses mais precisas. Essa ambiguidade se apresenta tanto para o falante quanto para quem
escuta, mesmo em casos de grande clareza.
A precisão é epistemicamente importante. A razão é que duas teses similares, ou que poderiam ser
expressas conjuntamente por uma única tese ambígua, frequentemente acarretam avaliações de seus
valores de verdade diferentes. Teses diferentes costumam ter probabilidade, apoio empírico,
capacidade explanatória, etc. distintas. Teses muito parecidas com as teses mais plausíveis, ou muito
parecidas com teses verdadeiras, podem ser falsas e muito implausíveis. Sendo assim, segue que em
muitos casos pouca precisão implica dificuldade em avaliar (epistemicamente) o que está sendo dito,
já que a avaliação de uma tese imprecisa só pode ser feita confiavelmente ao avaliarmos uma de suas
(múltiplas) interpretações mais precisas.
Note que precisão também é uma medida de razões. Pode não estar bem especificado qual a ligação
entre uma consideração (premissa, observação, etc.) e a tese em questão, como pode não estar bem
especificado qual é esta consideração. E isto pode ser o caso mesmo que o falante tenha expresso de
maneira muito clara a razão (vaga) que ele tem mente.
——
III. «Rigor» é uma medida da qualidade de um raciocínio. Alguém pode ser claro e preciso quanto às
razões que oferece mesmo que sejam más razões. Eis alguns exemplos esquemáticos de raciocínios
de baixa qualidade. (i) Se pode omitir distinções relevantes, como quando se diz que as únicas
possibilidades são que A e que B, e como não é o caso que A, segue-se que B, – sendo que na
verdade há a terceira possibilidade que C. (ii) Ignorar evidências e argumentos relevantes é
igualmente um erro epistêmico, visto que estas evidências e argumentos podem alterar
signifiticativamente a avaliação das teses em análise. (iii) Falta de rigor também inclui realizar saltos
inferenciais que preservam pouco valor de verdade entre premissa e conclusão. (iv) Por fim, se pode
tomar como evidência algo que não é, ou tomar como consequência de uma tese algo que não é. –
ou, em todo caso, tomar algo como apoiando ou refutando uma tese sem explicitar porquê há esta
relação de apoio ou refutação.
Nota: O termo 'rigor' também é empregado como expressando uma medida da correção que alguém
faz da descrição de um fenômeno diretamente observável. Uma pessoa pouco rigorosa neste sentido
pode reportar incorretamente a visão de outra autora, ou descrever de maneira distorcida alguma
coisa que poderia ser melhor descrita com facilidade. Para a prática de evitar estes tipos de deslizes
epistêmicos reservo nomes como 'correção', ao invés de 'rigor', querendo dizer que em seu raciocínio
a pessoa parte de premissas e dados confiáveis.
——
IV. Termino esta postagem com uma citação do ensaio Must Do Better, de Timothy Williamson. (O
encontrei como posfácio de seu livro The Philosophy of Philosophy, de 2007.)
"How can we do better? We can make a useful start by getting the simple things right. Much even of
analytic philosophy moves too fast in its haste to reach the sexy bits. Details are not given the care
they deserve: crucial claims are vaguely stated, significantly different formulations are treated as
though they were equivalent, examples are under-described, arguments are gestured at rather than
properly made, their form is left unexplained, and so on. A few resultant errors easily multiply to
send inquiry in completely the wrong direction. Shoddy work is sometimes masked by
pretentiousness, allusiveness, gnomic concision, or winning informality. But often there is no special
disguise: producers and consumers have simply not taken enough trouble to check the details. We
need the unglamorous virtue of patience to read and write philosophy that is as perspicuously
structured as the difficulty of the subject requires, and the austerity to be dissatisfied with appealing
prose that does not meet those standards. The fear of boring oneself or one’s readers is a great enemy
of truth. Pedantry is a fault on the right side."
E um trecho de uma outra parte do texto, para realçar que não é sem esforço consciente que uma
comunidade intelectual preserva clareza, precisão, e rigor: "Even if Frege’s exceptional clarity and
rigor required innate genius (...) after his example they can now be effectively taught. Some graduate
schools communicate something like his standards, others notably fail to do so."

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