Você está na página 1de 7

Universidade de São Paulo

Departamento de História

História da Cultura II

Profa. Dra. Ana Paula Megiani

Eduardo Tavares Vicente Maria – 8031246

A fonte escolhida como ponto de partida para esta reflexão é uma boneca
mecânica (um autômato) de uma dama cortesã. Os autômatos são máquinas
operadas de forma automática e acionadas por um complexo mecanismo de
engrenagens. No caso da fonte esse mecanismo era ainda mais complexo devido
ao seu tamanho reduzido e pela sensibilidade do objeto. A boneca em questão
hoje em dia encontra-se no Museu de Belas Artes de Viena.

Figura 1 – “Autómata musical de una dama de la corte española con laúd1”

A escolha desta fonte permite o exame de aspectos modernos da corte de Filipe II,
o que julgo chave para entender a relação da corte com a sua produção material
são as práticas de coleções de livros, obras de arte e principalmente de objetos
científicos, iniciada por Carlos V e que Filipe II aperfeiçoará, e enxergar essas
práticas como produto de uma corte humanista e moderna.

O trabalho será dividido em três partes sendo a primeira apresentar as diferenças


entre as práticas colecionistas de Carlos V e Filipe II; apresentar a vida de

1
Site da fundação Gianello Torriano: www.juaneloturriano.com

1
Gianello Turriano e suas principais obras como relojoeiro e engenheiro; e por
último, como a fonte selecionada, na minha interpretação conecta estes dois
pontos.

Podemos descrever o colecionismo como um movimento típico do Renascimento,


mas que tem raízes na baixa Idade Média, época em que a Igreja e o Estado papal
eram os maiores receptores de doações de relíquias, objetos ditos sagrados,
tesouros (por exemplo, o “tesouro de São Pedro”). A partir do século XVI começa
a surgir as primeiras coleções particulares (mais especificamente principescas),
primeiro nas cidades italianas, exemplo de Veneza e Milão e nas regiões francesas
da Borgonha e de Berry. E é neste momento que a variação das coleções passa a
aumentar. Saindo das relíquias canônicas para os mais diversos objetos. Pedras
preciosas, porcelanas, mapas, objetos científicos e astronômicos e como estas
coleções são formadas durante o período da expansão marítima, muitas dessas
coleções possuem objetos das partes do mundo que estavam sendo descobertas2.

Durante o reinado de Carlos V (1500-1558) a coroa espanhola também adere à


moda principesca do colecionismo, tendo como sede da sua coleção o monastério
de Yuste. Ainda com forte influencia da tradição colecionadora medieval, o
acervo de Yuste agrega objetos identificados com conhecimentos alquímicos e
ocultistas (Checa e Morán dão como exemplo dessa tradição medieval a descrição
do primeiro item do inventário de Yuste “uma pedra filosofal aparada em prata3”)
e objetos úteis às ciências da época como astrolábio, cartas de marear e livros
sobre astronomia.

Entretanto a coleção de Carlos V não configura uma Câmara de Maravilhas – por


não seguir critérios organizativos da coleção e também por não possuir uma
divisão temática dos objetos, mas lança as bases das práticas colecionista de
Filipe II. Yuste é importante para as práticas colecionistas posteriores para
entendermos as coleções como um agrupamento de uma gama de livros, objetos
científicos, objetos místicos e/ou “mágicos”, objetos exóticos que levará à extensa

2
SUANO, Marlene. O Que É Museu. Ed. Brasiliense, 1986. São Paulo. pp. 10-21.
3
CHECA, Fernando e MORÁN, J. Miguel. El colecionismo em España: De la Câmara de
Maravilas a la Galeria de Pinturas. Catedras Ensayos Arte. Madrid. pp. 55.

2
coleção filipina; esta mais organizada e seguindo certos critérios que veremos
mais adiante. Podemos elencar os legados da coleção de Yuste na sua vasta
coleção de pinturas (uma espécie de galeria de pinturas) compostas por obras de
artistas importantes do começo do século XVI (Ticiano, Von Eyck, António
Moro). Analisando esta “galeria” de uma perspectiva de trocas culturais e
artísticas, o intercâmbio entre as cidades do norte da Itália e os Países Baixos na
baixa Idade Média e início da Era Moderna foi importantíssimo para moldar o
gosto artístico dos séculos XV, XVI e XVII. As obras de arte de Ticiano e Von
Eyck (um veneziano e um flamenco, respectivamente) davam um ar moderno à
coleção de Carlos V e pode ser visto como um indício da transição entre as
Wunderkammer e as galerias de arte contemporâneas4.

Durante o reinado de Filipe II (1556-1598) surge uma nova forma de organização


das coleções particulares. Oriundo do colecionismo “italiano”, mais
especificamente da cidade de Florença, e que se espalha por toda a Europa. Os
studiolos eram pequenos espaços privados de casas e palácios dos nobres e
letrados e tinham como “etiqueta” de decoração a utilização de objetos raros,
exóticos, místicos, mas que, não mais como as câmaras de maravilhas, os objetos
seguiam regras de organização nos armários de acordo com a sua origem5.

Na corte de Filipe II esse período de mudanças no colecionismo durante o século


XVI pode ser sintetizada na construção do monastério real de San Lorenzo de El
Escorial em 1584. O Escorial é emblemático por conter, desde a sua concepção, a
ideia de agrupar em um mesmo complexo, várias construções com
funcionalidades diferentes (biblioteca, monastério, basílica, wunderkammer,
jardim botânico, laboratório de alquimia). Dentro da chamada câmara de
maravilhas, outros aposentos mais específicos destinados cada um a uma parte do
saber humanista, a sala de antiguidades, galeria de pintura de homens ilustres,
coleções de medalhas, de objetos de prata, de moedas, das ciências naturais.

4
AIKEMA, Bernard. Netherlandish painting and early Renassaince Italy: artistic rapports in a
historiographical perspective. In Cultural Exchange in Early Modern Europe, Volume IV: Forging
European Identities, 1400-1700. Cambridge Press, 2007. pp. 100-137.
5
CHECA, Fernando e MORÁN, J. Miguel. op. cit. pp. 92.

3
Além das obras arquitetônicas do El Escorial, os indivíduos que gerenciavam o
monastério também tinham por característica a formação humanista, no que diz
respeito à biblioteca, podemos citar o caso de dois biblistas erasmistas, José de
Sigüenza e Arias Montano. Este último, com papel mais importante, também foi,
além de biblista, organizador da biblioteca d’El Escorial. Montano que tinha
contatos com as teorias de Erasmo desde o seu bacharelado em Artes na
Universidade de Alcalá, se notabilizou como estudioso bíblico devido às suas
interpretações mais literais, se afastando da visão escolástica clássica, que via nas
escrituras sentidos místicos, alegóricos6. Montano assume a direção da edição da
Bíblia Régia, obra encomendada e patrocinada por Filipe II, e que consistia em
versões da bíblia traduzidas para o hebraico, siríaco e com um apêndice, escrito
por Montano, com reflexões sobre a língua santa, linguagem de gestos, disposição
do tempo. Esta obra, por colecionar saberes de matrizes religiosas diferentes do
catolicismo enfrentou resistência para ser publicada e passou pelo julgamento
inquisitorial e segundo Bataillon “foram necessárias a morte do papa Pio V e toda
a diplomacia de A. Montano para ter de Roma a aprovação da sua obra
terminada7”.

Gianello nasceu na cidade de Cremona, na região da Lombardia, entre os anos de


1500 e 1510; a documentação disponível não permite afirmar uma data com
precisão. Atuava em Cremona como relojoeiro e engenheiro e um de seus
trabalhos mais importantes foi a restauração de um relógio do século XIV (o
relógio mecânico de Giovanni Dondi). Este relógio seria dado de presente por
Francisco II Sforza, duque de Milão, ao imperador Carlos V em sua coroação
como imperador do Sacro Império em Bolonha em 1530. Além de presente pela
coroação, Francisco ofereceria o objeto como agradecimento ao imperador
Habsburgo que havia vencido a Guerra de Pávia e expulsado os franceses da
região. E é neste momento, quando Carlos V está em Milão, que ele conhece
Gianello, o responsável por reformar e automatizar o seu relógio. Com a entrega
do presente ao imperador Gianello passa a receber uma pensão de cento e

6
BATAILLON, Marcel. Erasmo y España. Fondo de Cultura Económica, Madrid. 1966. pp. 738-
740.
7
BATAILLON, Marcel. op. cit. p. 741.

4
cinquenta ducados anuais e é nomeado “relojoeiro real” da corte de Carlos V.
Dada a abdicação de Carlos V em 1556, Gianello o acompanha até o monastério
de Yuste e ficará ali até a morte do imperador em 1558.8

A partir da abdicação de Carlos V e do reinado de Filipe II, Gianello ainda se


encontra dentro do ambiente de corte, mas não mais exercendo a função de
relojoeiro real. Ele continua construindo máquinas, autômatos, planetários etc.
Também teve sua expertise requerida pelo arquiteto real Juan de Herrera –
arquiteto do palácio de San Lorenzo de El Escorial para projetar algumas partes
do edifício. Entretanto, a sua obra de engenharia mais famosa foi um aqueduto
para a cidade de Toledo e o palácio de Alcázar. Iniciada em 1565, a complexa
obra consistia em uma série de mecanismos para levar água do rio Tejo para o
palácio real. Foi firmado um acordo entre o rei, a cidade e Torriano que estipulava
o pagamento do engenheiro em relação ao volume de água que chegasse à cidade
e ao palácio. A construção acabou levando um volume maior do que àquele
previsto inicialmente, mas o pagamento combinado com Torriano não foi
realizado. Essa obra foi o começo do sofrimento e de Gianello. Em 1575 é
firmado um novo acordo para fazer um novo sistema para Toledo e deixando o
antigo exclusivo para o palácio. Estas novas obras terminam em 1581, mas
novamente Gianello não recebe o pagamento prometido. Ele morre em 1585 em
Toledo e sem o prestígio que teve por onde passou, seja em Cremona, Milão ou
nas cortes de Carlos V ou Filipe II.

Para concluirmos a reflexão podemos apontar que o colecionismo de obras de arte


com Carlos V (a sua “galeria de homens ilustres”, as pinturas de Ticiano, de Von
Eyck etc) e depois expandido por Filipe II traz ao reino obras de pintores de
regiões diferentes e que contribuem para o desenvolvimento da produção e da
guarda dessas obras dentro do ambiente cortesão.

A meu ver, a fonte mencionada no início do texto representa, portanto, o influxo


de outros conhecimentos diferentes para a península ibérica. A abertura do leque

8
POL, Bernardo Revuelta e MUÑOZ, Dolores Romero Muñoz, “Juanelo Turriano.Relojero e
ingeniero cremonés”, em Realismo y espiritualidad Campi, Anguissola, Caravaggio y otros
artistas cremoneses y españoles en los siglos XVI-XVIII, Valencia. 2007, pp. 73-81

5
de objetos colecionados por Filipe II, em especial dos objetos científicos, trouxe
para a corte engenheiros e construtores (principalmente da Lombardia espanhola)
e Gianello era um destes.

Portanto a sua obra pode ser enxergada como produto do aumento da


concentração de intelectuais de diversas áreas na Espanha do século XVI e no
caso da fonte, a produção material está diretamente ligada ao colecionismo.

Bibliografia

1) AIKEMA, Bernard. Netherlandish painting and early Renassaince Italy:


artistic rapports in a historiographical perspective. In Cultural Exchange in

6
Early Modern Europe, Volume IV: Forging European Identities, 1400-
1700. Cambridge Press, 2007.

2) BATAILLON, Marcel. Erasmo y España. Fondo de Cultura Económica,


Madrid. 1966.

3) CHECA, Fernando e MORÁN, J. Miguel. El colecionismo em España: De


la Câmara de Maravilas a la Galeria de Pinturas. Catedras Ensayos Arte.
Madrid.

4) POL, Bernardo Revuelta e MUÑOZ, Dolores Romero Muñoz, “Juanelo


Turriano.Relojero e ingeniero cremonés”, em Realismo y espiritualidad
Campi, Anguissola, Caravaggio y otros artistas cremoneses y españoles en
los siglos XVI-XVIII, Valencia. 2007

5) SUANO, Marlene. O Que É Museu. Ed. Brasiliense, São Paulo. 1986.

6) Site da fundação Gianello Torriano: http://www.juaneloturriano.com

Você também pode gostar