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HERANÇA LEGÍTIMA AD TEMPUS - EDIÇÃO 2018

Capítulo 4 - Sucessão Legítima Decorrente da Reprodução Assistida Póstuma


Sumáriobuscar
Capítulo 4 - Sucessão Legítima Decorrente da
Reprodução Assistida Póstuma
Nesta parte do trabalho será abordada a questão central
referente à sucessão legítima em favor do filho póstumo
decorrente de técnica de reprodução assistida post mortem,
porquanto a legislação civil brasileira ainda não apresentou
solução clara e adequada para equacionar a eventual ocorrência
de conflito de interesses entre os herdeiros legítimos
inicialmente vocacionados para a sucessão do falecido e o
herdeiro legítimo concebido e nascido após a morte do autor da
sucessão.
Rememora-se que o direito à herança é assegurado
constitucionalmente (art. 5º, XXX) e que, iluminado pela
funcionalização social dos institutos em geral, ele não se limita à
preservação da propriedade privada para as atuais e futuras
gerações, tendo a função de proteção da pessoa humana de
modo a assegurar-lhe “condições dignas de sobrevivência, e
permitindo o pleno desenvolvimento de suas potencialidades”
[1]1 . Na advertência da doutrina, ao ordenamento jurídico
interessa a destinação dada a determinada situação proprietária
“de acordo com os interesses sociais subjacentes à mesma” e,
assim, a morte do titular, com a consequente transmissão causa
mortis da situação proprietária, pode interferir no cumprimento
da sua função social [2]2 .
A lei civil em vigor reconhece expressamente a condição de filho
presumido àquele que vem a ser concebido e a nascer em
momento posterior à morte do autor da sucessão, abrangendo
as duas hipóteses: a) a reprodução assistida homóloga, ainda
que depois da morte do fornecedor de sêmen; b) a gestação, a
qualquer tempo, de embrião excedentário obtido de material
genético do falecido ( CC, art. 1.597, III e IV) [3]3 . De imediato,
é importante desconsiderar a possibilidade de o filho póstumo,
como regra, somente poder suceder o falecido na sucessão
testamentária – como herdeiro testamentário ou legatário.
Como já foi exposto em outra parte do trabalho, a regra do
Código Civil que trata da capacidade sucessória passiva em geral
(art. 1.798) “disse menos do que queria” e, assim, cabe ao
intérprete proceder à atividade de interpretação de modo a
estender o preceito legal para os casos de crianças
desenvolvidas a partir de embriões já formados ou daqueles
embriões a formar – no caso de material fecundante congelado
–, e não se restringindo aos nascituros [4]4 . A orientação
segundo a qual as técnicas de reprodução assistida póstuma
somente poderão ser consideradas no âmbito da sucessão
testamentária – e não na sucessão legítima –, por óbvio, não se
encontra em consonância com o ordenamento jurídico
brasileiro, eis que haveria, ao menos, violação ao princípio da
igualdade material entre os filhos ( CF, art. 227, § 6º) [5]5 . Em
outras palavras: haveria retorno ao período anterior ao da
Constituição Federal de 1988, época em que alguns filhos “eram
mais filhos do que outros”, eis que havia discriminação quanto à
origem e à espécie de filiação para fins de atribuição e
reconhecimento de determinadas situações jurídicas (incluindo
posições jurídicas ativas), entre as quais o direito sucessório
[6]6 . Há, ainda, a referência normativa da Declaração
Universal dos Direitos do Homem e do Pacto de São José da
Costa Rica que refuta toda distinção fundada na forma de
nascimento da pessoa [7]7 .
E, mesmo que se considerasse a viabilidade de que, por vontade
do autor da sucessão, houvesse deixa testamentária que
buscasse, de algum modo, “compensar” a suposta ausência de
sucessão legítima em favor de pessoa nascida com base em
técnica reprodutiva póstuma, ainda assim haveria violação ao
princípio constitucional da igualdade material entre os filhos.
Tal afronta já seria caracterizada pela desigualdade dos títulos
sucessórios: enquanto alguns filhos seriam herdeiros legítimos
(aqueles já nascidos e existentes, e os nascituros que depois
nasceram com vida), os filhos póstumos seriam herdeiros
testamentários e/ou legatários. Além disso, não haveria divisão
igualitária do acervo hereditário obrigatoriamente,
considerando a dificuldade concreta para a pessoa do testador –
e autor da sucessão – conceber critério objetivo para fins de
partilha dos bens, levando-se em conta a legítima e a parte
disponível. E, ademais, haveria significativo risco de o filho
póstumo nada vir a herdar ou receber em legado devido à
possibilidade de invalidação ou ineficácia em sentido estrito do
testamento ou de parte dele. Outro aspecto importante é a
consideração da interpretação sistemática dos arts. 1.597, III, e
1.798, ambos do Código Civil, para o fim de reconhecer que a
técnica póstuma de reprodução assistida é expressamente
admitida na legislação civil brasileira e, informada pelos
princípios constitucionais, somente pode conduzir à atribuição
dos mesmos direitos assegurados aos filhos existentes no
momento da abertura da sucessão aos filhos póstumos [8]8 .
Parcela da doutrina também recorda que, além de não ser
obrigatória, a sucessão testamentária decorre de disposições de
última vontade em razão de liberalidade do testador, sendo
certo que há casos em que o autor da sucessão nem terá
oportunidade de se manifestar em testamento, como já se
verificou em determinados casos concretos [9]9 . Há, também,
um fator de ordem prática, que é a falta de hábito das pessoas
no Brasil de fazer testamento em razão de aspectos culturais e
psicológicos envolvendo a programação dos efeitos de sua
morte [10]10 . Assim, reconhece-se ao filho póstumo todos “os
direitos sucessórios à criança gerada” a partir de técnica de
reprodução assistida póstuma, levando-se em consideração o
consentimento expresso manifestado em vida pelo autor da
sucessão [11]11 .
É importante o registro que, de lege ferenda, houve projeto de
lei no Brasil – PL 90/99 – que previa a obrigatoriedade do
descarte de gametas e embriões nos casos de falecimento dos
doares do material fecundante ou de uma das pessoas que
deram origem aos embriões congelados (art. 15, § 5º),
criminalizando o comportamento de utilização dos gametas ou
dos embriões quando o agente já sabia da morte da pessoa
fornecedora de seu material. E o referido projeto de lei também
previa que, se ainda assim houvesse a técnica reprodutiva
póstuma, “a criança não se beneficiará de efeitos patrimoniais e
sucessórios em relação ao falecido” (art. 20). Tais propostas se
revelam inconstitucionais – sob a perspectiva da
inconstitucionalidade material –, ao menos por violação aos
princípios do planejamento familiar, da parentalidade
responsável, do melhor interesse da futura criança a nascer, da
sua dignidade e, principalmente, da absoluta igualdade material
entre os filhos [12]12 .
Há outro aspecto a ser considerado no âmbito da sucessão
legítima em favor do filho póstumo que envolve a ordem de
vocação hereditária ( CC, arts. 1.829 e 1.790 [13]13 ). O Código
Civil de 2002 trouxe importantes novidades sobre a matéria,
inserindo, por exemplo, o cônjuge ao lado dos parentes na linha
reta descendente e dos parentes na linha reta ascendente, em
claro prestígio à pessoa do cônjuge (e também do companheiro)
[14]14 . Tal mudança legislativa se baseou na noção de que a
sucessão legítima tem fundamento nas qualidades específicas
dos herdeiros legítimos e seus vínculos com o autor da sucessão
no âmbito da convivência familiar e, por isso, não era possível
continuar tratando o cônjuge em segundo plano na sucessão
legítima. É interessante o registro de que, além de haver alçado
o cônjuge à condição de herdeiro legítimo necessário ( CC, art.
1.845), a lei civil estabeleceu o seu chamamento em
concorrência sucessória com os descendentes – de acordo com
o regime de bens – e com os ascendentes ( CC, art. 1.829, I e II)
e também o contemplou com o direito real de habitação
independentemente do regime de bens ( CC, art. 1.831). A
sucessão legítima, na atualidade, deve se basear na tutela dos
interesses dos herdeiros integrantes da entidade familiar a qual
pertencia o falecido, na busca da concepção instrumental da
entidade familiar que assegura sua assistência na pessoa de
cada um dos seus membros ( CF, art. 226, § 8º) [15]15 .
Ao proceder à análise das novas tendências do Direito das
Sucessões, Ana Luiza Nevares traçou inicialmente um
panorama histórico até se referir ao período revolucionário na
França (século XVIII) com a redução da sucessão hereditária
“exclusivamente ao aspecto patrimonial”, de modo a excluir da
transmissão causa mortis dos bens quaisquer formas de poder
ou de privilégios referentes ao falecido na organização social,
como integrante de determinada família [16]16 . Houve abolição
do sistema de pluralidade de sucessões até então verificado na
França para estabelecer a igualdade completa entre os herdeiros
da mesma classe e mesmo grau, sem distinção de sexo ou idade,
instaurando o sistema da unidade da sucessão e a igualdade
entre os herdeiros [17]17 . Em seguida, o princípio da unidade
da sucessão se espraiou para outros ordenamentos jurídicos da
tradição jurídica do civil law – especialmente no período áureo
das codificações ocidentais – entre os quais o direito brasileiro.
Na contemporaneidade, contudo, faz-se necessário revisitar o
Direito das Sucessões, principalmente quanto ao princípio da
unidade da sucessão, para passar a admitir sua derrogação em
determinados casos em atenção à natureza ou à origem do bem,
ou em virtude das qualidades pessoais do sucessor hereditário,
o que a doutrina passou a denominar “sucessão anômala”
[18]18 . Em virtude da transição do Estado Liberal para o
Estado Social, período caracterizado pela busca da isonomia
material (e não meramente formal), da noção de
funcionalização social dos institutos privados, pela instauração
de relações sociais mais justas, iguais e democráticas e pela
tutela dos mais vulneráveis, as hipóteses de sucessão anômala
passam a ser consideradas para atender a tais exigências,
distinguindo-se em dois grupos:
Num primeiro grupo, o regime especial assegura a destinação
de certos bens à satisfação de necessidades de pessoas
qualificadas por relação de dependência econômica ou de
costume de vida com o defunto; num segundo, o regime especial
tutela o interesse coletivo, a evitar que as mutações da
propriedade se resolvam, pela divisão hereditária, em causa de
desmembramento de unidades econômicas produtivas e, ao
mesmo tempo, de interesses individuais de co-herdeiros a
conservar sua fonte de renda, pois colaboravam na empresa do
de cujus [19]19 .
Desse modo, Ana Luiza Nevares defende que as hipóteses de
sucessão anômala não sejam consideradas mais excepcionais,
eis que no âmbito do Direito das Sucessões é preciso que as
regras de sucessão – legítima e testamentária – atentem para a
pessoa do sucessor, nos seus vários e diversificados interesses,
necessidades, exigências, qualificações individuais, sem
qualquer distinção acerca da espécie de entidade familiar
daquele que é chamado para suceder [20]20 . Do mesmo modo,
é preciso que a natureza dos bens transmitidos por sucessão
causa mortis deva ser considerada no momento da transmissão,
somando-se aos critérios clássicos do estabelecimento da
partilha – maior igualdade possível entre os herdeiros,
comodidade dos herdeiros e prevenção de futuros litígios ( CC,
arts. 2.017 e 2.019)– os critérios mais contemporâneos relativos
às reais necessidades e aos interesses dos sucessores quanto ao
julgamento dos pedidos de preenchimento dos quinhões de
cada sucessor [21]21 .
A lei civil, ao tratar da ordem de vocação hereditária, separa os
herdeiros legítimos em ordens e classes, prevendo uma
hierarquia que deve ser observada quando do efetivo
chamamento deles à sucessão hereditária. Por isso, aplicam-se
as regras tradicionalmente estabelecidas nas legislações que
tratam do Direito das Sucessões nos países ocidentais: a) uma
classe sucessível somente é chamada concretamente quando
não houver qualquer integrante das classes anteriores; b) nas
classes dos parentes, os mais próximos excluem os mais
remotos, salvo nos casos de direito de representação [22]22 .
Desse modo, os herdeiros de cada classe são considerados
preferenciais relativamente aos herdeiros das classes abaixo,
ocasionando, assim, o chamamento de parentes colaterais
apenas na hipótese em que não houver descendentes, cônjuge
(ou companheiro) e ascendentes do autor da sucessão. E, no
interior das classes relativas à ordem de vocação dos parentes
do de cujus, a preferência é estabelecida pela maior
proximidade do grau de parentesco da pessoa em relação ao
autor da sucessão.
Com base em tais premissas que norteiam a sucessão legítima
no Direito brasileiro, deve ser analisado o tema da
superveniência de filhos – parentes na linha reta descendente –
em momento posterior ao do falecimento do seu pai, não
apenas no que tange aos filhos não reconhecidos em vida como
também no caso dos filhos póstumos – fruto de técnicas
reprodutivas póstumas.
Alguns exemplos podem ser analisados para poder pontuar as
diferentes situações verificáveis na prática. O primeiro envolve
o caso de falecimento de pessoa que, em vida, não havia
reconhecido ou tido filhos juridicamente seus, mas que deixou
ascendentes, tratando-se de pessoa solteira (nunca tendo se
casado ou vivido em companheirismo com outra pessoa). Nos
termos da ordem de vocação hereditária da sucessão legítima,
os ascendentes são os herdeiros chamados com base na ordem
legal ( CC, art. 1.829, II). No entanto, havendo o aparecimento
de filho do de cujus que não havia sido reconhecido em vida por
ele, por meio de ação de investigação de paternidade cumulada
com petição de herança, haverá alteração completa do quadro
da sucessão legítima, eis que os descendentes são chamados
antes dos ascendentes na sucessão legítima ( CC, art. 1.829, I).
Em síntese: o herdeiro legítimo que efetivamente receberá toda
a herança legítima será o filho reconhecido judicialmente em
momento posterior ao da morte do autor da sucessão, caso em
que ele excluirá os ascendentes do de cujus da sucessão legítima
desse. É certo que, em razão de alguns valores e princípios
fundamentais que devem ser considerados, entre eles a
segurança jurídica, serão exigidas algumas providências para
que seja possível a atribuição da herança legítima ao único filho
deixado pelo falecido, inclusive a observância de prazo
prescricional da petição de herança.
Outra possibilidade de alteração do regime sucessório
envolvendo a herança legítima deixada pelo falecido diz respeito
à hipótese em que ele deixou filhos existentes – ou ao menos já
concebidos – quando da abertura da sucessão e,
posteriormente, surge outro filho por ele não reconhecido em
vida. Nesse caso, será mantido o chamamento dos herdeiros
legítimos da classe e grau dos descendentes-filhos, mas ao
número anterior de filhos será somado o “novo” filho
reconhecido em época posterior ao momento da abertura da
sucessão. Haverá, desse modo, necessidade de proceder à
partilha dos bens com mais um herdeiro legítimo além daqueles
que já tinham sido identificados no momento da morte do autor
da sucessão. Diversamente da primeira hipótese referida, os
herdeiros legítimos na classe dos descendentes e no grau de
parentes em linha reta em primeiro grau não serão excluídos da
sucessão legítima do acervo hereditário deixado pelo de cujus,
mas a divisão deverá ser feita com base no maior número de
beneficiários da sucessão legítima comparativamente ao
quantitativo inicialmente considerado. Pode ocorrer de, no
momento da abertura do inventário judicial em razão da morte
do autor da sucessão, haver sido preterido filho que não foi
indicado entre seus herdeiros legítimos e, desse modo,
mediante habilitação feita nos autos judiciais – sem necessidade
de ação de petição de herança – haver o reconhecimento da sua
qualificação de herdeiro e, assim, sua inclusão no processo para
o fim de haver partilha dos bens deixados.
O mesmo raciocínio anteriormente desenvolvido a respeito do
surgimento do filho não reconhecido em vida pelo falecido após
a sua morte ocorrerá, mutatis mutandis, no caso de se
identificar o surgimento do filho póstumo, ou seja, daquele que
se originou do embrião congelado ou do material fecundante
criopreservado na época da abertura da sucessão. Assim, em
razão do êxito da técnica de reprodução assistida póstuma,
poderão ser excluídos os herdeiros legítimos de classe inferiores
à classe dos descendentes – primeira hipótese – ou ser
considerado o filho póstumo como concorrente sucessório dos
outros filhos existentes do falecido – segunda hipótese – na
sucessão legítima verificada devido à morte da pessoa que
deixou embrião congelado ou material fecundante seu
criopreservado na época da abertura da sucessão.
Ana Cláudia Scalquette, após defender a posição segundo a qual
a sucessão legítima deve ser garantida ao filho póstumo do
autor da sucessão, sustenta que o instituto da ausência ( CC,
arts. 22 a 36) deve servir como paradigma para a tutela dos
interesses sucessórios do filho póstumo [23]23 . Desse modo,
com a morte da pessoa que manifestou consentimento para o
emprego de técnica reprodutiva póstuma, abrir-se-ia sua
sucessão provisória que, após determinado período de tempo,
converter-se-ia em sucessão definitiva. Desse modo, haveria
proteção por tempo determinado dos direitos sucessórios dos
futuros filhos, mesmo após a morte do autor da sucessão, de
modo a propiciar a organização e o planejamento dos efeitos
sucessórios por parte do cônjuge ou companheiro sobrevivente
[24]24 . A ideia de instauração de sucessão provisória pelo
prazo de 3 (três) anos tem como fundamento a busca de
conciliação entre os vários interesses em questão.
Anna Beraldo não concorda com a solução anteriormente
proposta por considerar que, no caso de embriões – e, com
muito mais razão, de material fecundante congelado –, há “uma
vida em potencial”, sendo perfeitamente possível que tanto os
embriões quanto o sêmen (ou óvulo) não venham a ser
aproveitados – ou consigam se desenvolver para gerar uma
criança e permitir seu nascimento [25]25 . De acordo com dados
compilados pela ANVISA – Agência Nacional de Vigilância
Sanitária –, no ano de 2015, estendendo-se até fevereiro de
2016, foram congelados 67.359 embriões em 141 clínicas de
reprodução humana assistida [26]26 , representando um
aumento de 40% do número existente de embriões congelados
no ano de 2014 (47.812). Suponha-se que metade dos cônjuges
ou companheiros supérstites, em razão da morte do autor da
sucessão, resolvesse ter acesso às técnicas de reprodução
assistida post mortem relativamente ao número de embriões
cadastrados na ANVISA. Haveria significativo número de
sucessões abertas com razoável dose de instabilidade e
insegurança jurídica caso se concebesse a aplicação das regras
referentes à sucessão provisória nesses casos.
Ana Luiza Nevares, ao cuidar do fenômeno sucessório e os
diversos estatutos proprietários, observa que são vários os
problemas que podem ocorrer devido à morte do titular de bens
imateriais, tais como ações de grandes sociedades empresárias,
direitos autorais, marcas e patentes, fundos empresariais, fontes
de energia, entre outros, apresentando caso no qual o pai deixou
para um grupo de filhos todas as ações ordinárias de uma
sociedade anônima e para outro grupo de filhos as ações
preferenciais [27]27 . Nesse exemplo, o testador teve por
objetivo transmitir o controle da sociedade empresária para
alguns dos filhos, e não para outros, o que, a princípio, revela-se
possível levando em consideração a natureza e a finalidade dos
bens transmitidos por sucessão causa mortis. A autora ainda
registra que, usualmente, os critérios de classificação dos bens
no âmbito da teoria geral não dão conta da dimensão existencial
que os bens exercem na conservação e promoção da dignidade
da pessoa humana dos herdeiros do falecido:
Nessa perspectiva, a análise da natureza do bem ganha relevo
não pelo bem em si, mas pelo conjunto de interesses que recai
sobre o mesmo, voltado para a concretização da dignidade da
pessoa humana (...).
É o que ocorre, por exemplo, com o imóvel residencial (...), cuja
impenhorabilidade está prevista na Lei n. 8.009/90, e nos arts.
1.711 e seguintes do Código Civil. A tutela diferenciada, a saber,
a impenhorabilidade, é estabelecida em virtude do conjunto de
interesses que recai sobre o aludido bem, ou seja, a garantia da
moradia, indispensável para a concretização de uma vida digna
[28]28 .
Como no Direito das Sucessões busca-se a alocação de bens no
momento posterior ao da morte do titular do patrimônio, é
relevante distinguir as categorias e os tipos de bens
transmitidos de acordo “com o conjunto de interesses a que os
mesmos se referem, de forma a garantir o cumprimento da
função social da situação proprietária na transmissão causa
mortis” [29]29 . Em alguns casos, a verificação da natureza dos
bens é indispensável em razão da finalidade deles e a atividade
desempenhada por alguns herdeiros, de modo a conservar ou
promover suas dignidades com a transmissão hereditária, como
no exemplo dos bens que servem para exploração agrícola.
Como adverte Jose Luis de Los Mozos, relativamente aos bens
que serviam à exploração agrícola antes do falecimento do seu
proprietário, haveria o risco de fragmentação dos aspectos que
compõem os elementos da empresa agrícola caso houvesse
diluição de tais bens e, assim, busca-se a manutenção da
unidade da exploração agrícola, eis que tal medida preserva os
interesses da sociedade [30]30 . Nesse caso, não há interesses
apenas dos sucessores mas também interesses socioeconômicos
relativos à produtividade agrícola, ao uso racional e adequado
da terra e à conservação dos empregos dos trabalhadores rurais
[31]31 . No Direito italiano, há a previsão do direito de
preferência em favor do familiar que trabalha de modo contínuo
na sociedade empresária familiar quanto à divisão da herança a
ser realizada (CC italiano, art. 230 bis) [32]32 .
No âmbito do Direito brasileiro, o princípio da maior igualdade
possível entre os herdeiros – legítimos e testamentários –, para
fins de partilha do acervo hereditário, deve ser compatibilizado
com outros critérios, sendo admissível, inclusive, que o testador
indique bens e valores que devem compor os quinhões
hereditários ( CC, art. 2.014), ressalvado se o valor dos bens não
corresponder às quotas hereditárias estabelecidas – por lei ou
em testamento. Como adverte a doutrina a respeito do tema, a
partilha deve evitar riscos de futuros litígios e, assim, o quinhão
de cada herdeiro deve estar em correspondência com os dos
demais, não apenas quanto ao aspecto do valor dos bens mas
também acerca da qualidade, espécie, destinação, proveito e
outros fatores relativos à “tradicional regra de dar a cada um o
que é seu” [33]33 . Os critérios norteadores da partilha não
recomendam que, no momento da divisão, seja conveniente que
todos os coerdeiros fiquem com fração ideal de cada bem; ao
revés, é recomendado que se evite o condomínio entre aqueles
coerdeiros e, por isso, a partilha deve buscar a “comodidade dos
herdeiros e, tanto quanto o permitir a igualdade a ser
observada, evitar litígios futuros” [34]34 , além de dar
efetividade aos princípios constitucionais atualmente
considerados nas relações privadas, inclusive a função social da
propriedade.
Ao tratar do tema da cessão dos direitos hereditários, Rodrigo
Toscano de Brito observa que, em vários casos, há o interesse de
todos os herdeiros em alienar um bem determinado integrante
da herança devido a uma boa oportunidade de venda, o que
deve ser admitido como modo de facilitar a maior e mais fácil
circulação de riqueza, “dando um dinamismo maior à
transferência da propriedade” [35]35 . O autor observa que, na
disciplina normativa trazida no Código Civil de 2002 (art.
1.793), houve a imposição de limites para a cessão de direitos
hereditários, especialmente quando se pretender singularizar
determinado bem integrante da herança para tal fim. O
coerdeiro pode, livremente, dispor do seu quinhão hereditário
ou de parte dele – desde que observado o direito de preferência
dos demais coerdeiros –, e apenas a título excepcional pode
alienar seu quinhão ou parte dele sobre bem singularizado, caso
haja autorização judicial mediante alvará [36]36 . Como as
operações econômicas relacionadas às alienações patrimoniais
– inclusive de imóveis – são extremamente dinâmicas, deve-se
interpretar as regras legais sobre cessão de direitos hereditários
relacionados a bem considerado singularmente quanto se tratar
de coerdeiro agindo sozinho, ou seja, de modo isolado, mas
nada obsta a que todos os coerdeiros resolvam ceder seus
direitos hereditários relativos à determinado imóvel e, assim, o
contrato será perfeitamente válido e eficaz [37]37 . Zeno Veloso
registra duas hipóteses nas quais a cessão hereditária de bem
individuado será válida e eficaz: a) quando somente houver um
herdeiro na sucessão aberta; b) quando todos os herdeiros
fizerem a cessão em conjunto [38]38 . Tais observações
demonstram como é importante a identificação dos interesses
de terceiros relativamente aos efeitos da sucessão hereditária e,
assim, é fundamental atentar para as repercussões que as
condutas dos herdeiros podem gerar no meio social.
Com base no desenvolvimento das tecnologias na
contemporânea sociedade de informação (e em rede), há quem
defenda a possibilidade de a sucessão hereditária também
abranger determinadas categorias denominadas de “bens
digitais”, ou seja, “conjuntos organizados de instruções, na
forma de linguagem de sobrenível, armazenados em forma
digital”, traduzidos por computadores ou outros dispositivos
semelhantes que produzem funcionalidades determinadas
[39]39 . Assim, a rede mundial de computadores permite o
armazenamento de vários dados e bens digitais, tais como e-
books, músicas, vídeos, jogos, fotografias, além de páginas
virtuais conterem valor patrimonial agregado, com arquivos no
Facebook, Instagram, LinkedIn, Twitter, SoundCloud, entre
outros [40]40 .
No âmbito da sucessão legítima, devem ser ponderados os
interesses das pessoas originalmente chamadas como herdeiras
do falecido, dos terceiros com quem tais pessoas negociaram os
bens integrantes da herança legítima e do herdeiro póstumo
[41]41 . Este trabalho busca, à luz do sistema jurídico em vigor,
apresentar solução para os possíveis conflitos de interesses,
utilizando-se dos instrumentos processuais e institutos jurídicos
disponíveis no Direito brasileiro, em especial com a noção da
propriedade ad tempus identificada nas pessoas originalmente
chamadas concretamente para a sucessão legítima do falecido.
4.1. Admissão de herdeiro legítimo no
inventário judicial
Nos autos do inventário judicial, cabe ao inventariante prestar
as primeiras declarações com os dados e as informações de seu
conhecimento para preparar a posterior partilha dos bens (ou a
adjudicação dos bens ao único herdeiro). Nas primeiras
declarações haverá indicação dos bens, valores e dívidas
deixadas pelo autor da sucessão, além da apresentação do rol
dos sucessores com identidades civis e suas qualificações [42]42
. Os herdeiros que não estiverem representados nos autos, mas
tenham sido referidos pelo inventariante, deverão ser citados
para fins de se habilitarem nos autos.
De acordo com a legislação processual civil, a pessoa que se
considerar preterida poderá requerer sua admissão no
inventário ( CPC/15, art. 628) desde que o faça antes de ser
realizada a partilha dos bens deixados pelo autor da sucessão.
Para tanto, é fundamental que seja demonstrada sua condição
de sucessor universal com base na prova documental
apresentada [43]43 . Assim, após ouvidas as partes do
inventário judicial sobre o pedido de admissão nos autos como
herdeiro legítimo, o juiz decidirá a respeito ( CPC/15, art. 628, §
1º). Até a partilha, assim, qualquer interessado tem legitimação
para requerer seu ingresso no inventário judicial. O que não se
revela possível é a reabertura do processo de inventário já
encerrado para examinar o requerimento de admissão do
herdeiro preterido [44]44 .
Na eventualidade de a questão suscitada pelo requerente não
poder ser solucionada com base na prova documental, o juiz a
remeterá para as vias ordinárias e, sendo o caso, mandará
reservar o quinhão correspondente à possível parte do
requerente em poder do inventariante até que a lide seja
resolvida ( CPC/15, art. 628, § 2º). O envio das partes às vias
ordinárias é solução legislativa que permite o prosseguimento
do processo de inventário que, assim, não sofrerá solução de
continuidade [45]45 . As questões de alta indagação no âmbito
do Direito Processual Civil, relativamente ao procedimento de
inventário e partilha, são aquelas que não admitem ser
provadas apenas por documentos e, assim, a lei processual civil
determina que tais questões sejam solucionadas em outro
procedimento que não o de inventário judicial ( CPC/15, art.
612). A expressão questão “de alta indagação” – empregada no
art. 984 do CPC/73 – que remetia à noção de conceito jurídico
indeterminado, foi substituída no Código de Processo Civil
atualmente em vigor com base na noção de “fatos relevantes”
prováveis por documento, não exigindo dilação probatória.
Todas as questões – de fato ou de direito –, ainda que
complexas, comprováveis documentalmente e que, portanto,
não exijam fase de abertura e produção de provas outras que
não a documental, devem ser resolvidas no inventário judicial
[46]46 . As questões de direito, por mais complexas que possam
se apresentar, mas dependentes apenas da interpretação e
aplicação das normas jurídicas em vigor, devem ser julgadas
pelo juiz orfanológico que preside o processo de inventário, o
que também se verifica no âmbito das questões de fato do
mesmo modo complexas, inclusive a respeito da admissão do
filho póstumo como herdeiro legítimo (como no exemplo da
incidência do art. 1.597, III, do Código Civil). Kazuo Watanabe
leciona que é possível decisão do juiz orfanológico no caso de
disputa sobre a qualidade de herdeiro nos autos do inventário,
caso haja “elementos bastantes para o estabelecimento do juízo
de certeza”; contudo, “à falta de suporte probatório suficiente
para o convencimento, fica configurada matéria de alta
indagação” [47]47 , hipótese na qual o juiz deverá remeter as
partes às vias ordinárias.
No inventário “tradicional” ou comum, que segue o
procedimento previsto no Código de Processo Civil (arts. 610 a
658), é reconhecida a possibilidade de a pessoa supostamente
preterida requerer sua admissão nos autos do processo ainda
não findo – eis que não realizada a partilha dos bens. Como
registra a doutrina, depois de ouvidos todos os interessados, o
juiz poderá decidir favoravelmente ao pedido de admissão nos
autos, caso em que não será necessária a propositura da ação de
petição de herança [48]48 , devendo haver a retificação das
primeiras declarações prestadas pelo inventariante. Ao revés, se
o juiz considerar que o pedido de admissão da pessoa que alega
ter sido preterida for questão relacionada a fato relevante que
demande dilação probatória e, portanto, dependa de outras
provas que não apenas a documental, deverá remeter o
requerente para as vias ordinárias, podendo determinar a
reserva do quinhão respectivo ao requerente de modo a
aguardar a solução da lide nos outros autos cuja ação deverá ser
ajuizada em até 30 (trinta) dias, sob pena de cessação da
eficácia da medida [49]49 .
Luiz Paulo Vieira de Carvalho observa que, relativamente ao
filho não reconhecido em vida pelo falecido, deve ser produzida
prova documental da paternidade, não sendo bastante o
reconhecimento do seu estado de filiação pelos demais
herdeiros do autor da sucessão, eis que somente os pais podem
reconhecer voluntariamente seus filhos, não sendo possível o
reconhecimento espontâneo dos demais sucessores nos autos
do inventário judicial [50]50 .
No âmbito da sucessão legítima que também envolva filho
resultante de técnica de reprodução assistida póstuma, diante
das alternativas já referidas em outra parte do trabalho, é
possível que o cônjuge supérstite ou seu companheiro consiga
ter acesso à técnica de reprodução assistida póstuma pouco
tempo depois da morte do autor da sucessão e, assim, venha a
permitir o desenvolvimento do futuro filho via gravidez ainda
no período de tramitação do inventário judicial. Em outras
palavras: nesse caso, o embrião se tornou nascituro e, por isso,
deve, imediatamente, ser protegido quanto aos seus interesses,
tanto assim o é que o Código de Processo Civil em vigor
determina que, havendo nascituro entre os interessados no
inventário e partilha, “o quinhão que lhe caberá será reservado
em poder do inventariante até o seu nascimento” (art. 650).
Trata-se de nova incumbência ao inventariante [51]51 devido à
constatação da existência do nascituro no curso de tramitação
do procedimento de inventário e partilha. Mesmo no período
anterior ao advento do Código de Processo Civil de 2015, havia
orientação doutrinária no sentido da viabilidade da reserva de
bens referentes ao possível quinhão em favor do nascituro, com
a possibilidade de se proceder à partilha do remanescente
[52]52 . Nos casos de presunção legal de paternidade em
decorrência das técnicas de reprodução humana homóloga ( CC,
art. 1.597, III e IV) e heteróloga ( CC, art. 1.597, V)
relativamente à pessoa do falecido marido, haverá , assim,
prova documental que embase o status de futuro filho do
nascituro e, portanto, é suficiente o pedido de admissão nos
autos do inventário para fins de recebimento da herança – se
for herdeiro legítimo único – ou do seu quinhão hereditário –
quando houver concorrência sucessória com outros herdeiros
legítimos. O mesmo não ocorrerá no caso de companheiro do
sexo masculino que veio a falecer, porquanto relativamente a ele
não se opera a presunção de paternidade prevista no art. 1.597
do Código Civil [53]53 , levando em consideração a inexistência
do fundamento do dever de fidelidade recíproca no âmbito do
companheirismo.
É até mesmo possível que a criança, fruto de reprodução
assistida póstuma, venha a nascer com vida durante a
tramitação do inventário, levando em conta a previsão contida
na lei processual civil que o inventário judicial poderá se
encerrar até 14 meses a contar da abertura da sucessão – dois
meses para abertura do inventário, e 12 meses subsequentes
para sua ultimação ( CPC/15, art. 611). Nessa hipótese, se houve
preterição do filho póstumo, caberá ao seu representante legal
agir em nome da criança para o fim de requerer sua admissão
nos autos do inventário judicial de modo a poder participar do
processo que preparará a partilha dos bens deixados pelo
falecido.
4.2. Petição de herança
Nos termos da lei civil em vigor a herança defere-se como “um
todo unitário”, mesmo que sejam vários os herdeiros (CC, art.
1.791, caput), sendo que, até o momento da partilha, o direito
dos coerdeiros acerca da propriedade e da posse da herança será
indivisível [54]54 , aplicando-se as normas pertinentes ao
condomínio ( CC, art. 1.791, parágrafo único). No âmbito da
sucessão causa mortis há algumas demandas judiciais que
vinculam aos direitos sucessórios, entre as quais se situa a ação
de petição de herança [55]55 . A petição de herança não tinha
sido formalmente regulada no âmbito do Código Civil de 1916,
diversamente do que se verifica no Código Civil de 2002 (arts.
1.824 a 1.828) [56]56 .
Com base na noção doutrinária, a ação de petição de herança é
aquela atribuída ao herdeiro – legítimo ou testamentário –
contra aquele que, sob o pretexto de ter direito sucessório,
detém os bens da herança no todo ou em parte [57]57 . Trata-se
da ação ajuizada pelo herdeiro ou qualquer dos coerdeiros para
o fim de ter reconhecida sua qualidade de herdeiro e, assim,
reclamar de terceiros a universalidade da herança, ou dos
outros herdeiros seu quinhão hereditário no acervo deixado
pelo falecido. A petição de herança serve para as duas hipóteses
anteriormente referidas: a) o único herdeiro que pretende ter
reconhecida sua condição jurídica para, simultaneamente,
herdar toda a herança e, logicamente, afastar outras pessoas
que até então eram consideradas herdeiras do falecido; b) o
herdeiro que, ao deduzir o pedido de reconhecimento de seu
direito à herança, poderá concorrer com outros herdeiros da
mesma classe na ordem de vocação hereditária, originalmente
chamados concretamente para a sucessão legítima.
Carvalho Santos reputava a ação de petição de herança como
uma ação real “mediante a qual o herdeiro reclama a qualidade
de herdeiro e pede a restituição de tudo o que é parte (res
hereditariae) ou dependência (res hereditatis) da própria
herança” [58]58 . Cuida-se de ação destinada ao
reconhecimento da condição jurídica de sucessor universal
legítimo do autor, objetivando a definição judicial do seu status
do qual derivam a aquisição e a reivindicação dos bens que
integram sua herança legítima [59]59 . A meta do autor da ação
de petição de herança é a tutela de seu direito de propriedade e,
por isso, ela é considerada ação real que, portanto, versa sobre
direitos reais [60]60 . Nem sempre quem requereu a abertura
do inventário judicial (CPC/15, art. 610, caput) ou procurou o
tabelião para lavrar escritura de inventário e adjudicação
extrajudiciais (Lei 11.441/07; CPC/15, art. 610, §§ 1º e 2º) é o
verdadeiro herdeiro legítimo ou testamentário do autor da
sucessão. Assim, havendo omissão ou controvérsia sobre a
qualidade de herdeiro, a pessoa que pretende ver reconhecida
sua condição de sucessor universal do falecido de modo a poder
exercer os direitos sucessórios – em especial ter reconhecida a
aquisição da propriedade dos bens integrantes da herança –,
poderá ajuizar a ação de petição de herança se não teve
oportunidade de requerer sua admissão nos autos do inventário
judicial.
A legitimidade ativa para a ação de petição de herança é
reconhecida a quem alega ser herdeiro do autor da sucessão e,
desse modo, pretende ver reconhecida a sua condição jurídica
de sucessor, ora pretendendo receber a totalidade dos bens da
herança (caso de exclusão das demais pessoas), ora
pretendendo participar da sucessão para receber parte da
herança (devido à existência de outros herdeiros). O legatário
não é legitimado ativo para a ação de petição de herança em
razão de não se tratar de sucessor a título universal, mas, sim,
sucessor a título singular, eis que, caso não seja entregue o bem
deixado em legado em seu favor por disposição de última
vontade do testador, deverá ser ajuizada ação de petição de
legado em face do onerado que se recusou a cumprir a previsão
testamentária (CC, art. 1.934, caput) [61]61 . Reconhece-se a
legitimidade ativa para o inventariante, o administrador da
falência do de cujus ou do herdeiro preterido, o administrador
do concurso de credores na insolvência civil, o testamenteiro e o
curador da herança jacente do falecido ou do herdeiro,
exatamente em razão do interesse patrimonial que existe em
decorrência da ação de petição de herança [62]62 .
No período anterior ao da vigência do Código Civil de 2002,
houve controvérsia acerca de quem seria legitimado passivo na
ação petitio hereditatis, porquanto houve quem defendesse que
a ação somente poderia ser proposta em face daqueles que
afirmavam ser sucessores do autor da sucessão [63]63 . Na
visão doutrinária clássica, a legitimidade passiva na ação de
petição de herança é identificada relativamente ao possuidor: a)
pro herede, isto é, a pessoa que pensa tratar-se de herdeiro, ou
aquele que, não sendo herdeiro, possuir a herança ou o quinhão
hereditário sob a alegada condição de possuidor; b) pro
possessore, a saber, a pessoa que apenas alega ser possuidora
sem alegar qualquer direito seu para continuar com a posse da
herança [64]64 . Mas também poderá ser réu na ação de petição
de herança a pessoa do herdeiro legítimo na mesma classe da
ordem e vocação hereditária do autor da ação, caso em que o
objetivo da demanda é ter reconhecido o direito sucessório do
herdeiro que apareceu após a morte do autor da sucessão para o
fim de receber parte do acervo hereditário (seu quinhão), e não
a totalidade da herança. A doutrina esclarece, ainda, que devem
ser réus na ação de petição de herança, além do possuidor dos
bens sucessíveis, todos os herdeiros do autor da sucessão,
mesmo que todos eles ou alguns deles tenham cedido a herança
renunciado a ela [65]65 . A lei civil em vigor (art. 1.824)
resolveu a celeuma ao prever que a ação de petição de herança
poderá ser proposta tanto em face de quem ostente a qualidade
de herdeiro – possessor pro herede – quanto de terceiro que
tenha bens da herança em seu poder desprovido de título
aquisitivo, apenas sob a alegação de ser possuidor deles –
possessor pro possessore [66]66 .
A ação de petição de herança é ação de caráter universal, eis que
tem por objeto a universalidade dos bens hereditários (ou parte
ideal do acervo), razão pela qual o autor da demanda judicial
não deve indicar determinado bem individualmente
considerado, daí distinguindo-se da ação de reivindicação da
coisa:
A petição de herança é para o direito hereditário o que a
reivindicação é para o direito de propriedade, como muito bem
adverte Maynz, mas o que as distingue nitidamente é o
seguinte: o caráter universal da petição de herança, enquanto a
reivindicatória é uma ação particular [67]67 .
Carlos Roberto Gonçalves registra que, a despeito das
semelhanças, a ação de petição de herança não se confunde com
a ação de reivindicação de coisa em razão de determinadas
características e efeitos [68]68 . Embora ambas as ações
consistam em meios processuais de tutela da propriedade de
bens, a reivindicatória busca o reconhecimento da propriedade
e o retorno de coisa singularmente identificada à esfera
patrimonial do titular da situação jurídica proprietária,
enquanto a petição de herança tem natureza de ação universal,
buscando o retorno do patrimônio hereditário por inteiro ou em
quota ideal para fins de permitir a destinação aos herdeiros
legítimos ou testamentários.
A ação de petição de herança compreende dois pedidos: (i) o de
declaração ou reconhecimento da relação jurídica na qual o
autor da demanda seja herdeiro do falecido; (ii) o de que lhe
seja entregue o respectivo quinhão hereditário ou haja o repasse
de determinados bens que integram a herança ou,
eventualmente, toda a herança, caso ele seja herdeiro único
[69]69 .
De acordo com a disciplina legal em vigor, devido ao caráter
universal e indivisível da herança, qualquer um dos coerdeiros
poderá demandar, por meio da petição de herança, a entrega de
todos os bens hereditários, mesmo que seja o único entre os
herdeiros a acionar o réu que pode ser terceiro estranho à
sucessão ( CC, art. 1.825). Desse modo, por exemplo, na
eventualidade de o falecido haver deixado três filhos sem
reconhecimento de paternidade em vida, qualquer um dos três
poderá promover a ação de petição de herança para o fim de
exigir a devolução de todo o acervo hereditário do parente
colateral que havia recebido os bens na integralidade devido ao
não aparecimento de qualquer dos herdeiros das classes
antecedentes da ordem de vocação hereditária quando da
abertura da sucessão [70]70 .
A ação de petição de herança pode ser proposta em juízo antes
ou depois de realizados o inventário e a partilha (ou
adjudicação) dos bens hereditários, obviamente levando em
conta as circunstâncias do caso, ressalvada a possibilidade de
haver admissão do herdeiro preterido nos autos da ação de
inventário judicial ( CPC/15, art. 628). Os limites subjetivos da
coisa julgada impedem que sejam produzidos efeitos da partilha
julgada por sentença, ou mesmo da homologação de acordo
feita em juízo. Assim, no caso de reconhecimento do direito do
autor da demanda, deverá ser realizada nova partilha ou
poderão os bens ser adjudicados exclusivamente ao herdeiro
único. Antes do encerramento do inventário e da partilha
judiciais, é cabível o pedido de concessão de tutela de urgência
em favor do herdeiro preterido para o fim de obtenção de
reserva de bens para o caso de haver êxito na ação de
investigação de paternidade cumulada com petição de herança,
por exemplo.
À luz do Código Civil em vigor (art. 1.824), Francisco Cahali
observa que, em uma leitura interpretativa mais apressada,
poder-se-ia cogitar que a norma permite que, via ação de
petição de herança, seja imediatamente outorgado ao autor da
demanda seu quinhão hereditário na sucessão legítima, no caso
em que ele concorra com outros herdeiros, e não venha a ser
reconhecido como herdeiro único [71]71 . Corretamente, o autor
considera que não é no bojo da ação de petição de herança que
será realizado o inventário e a partilha, e sim a definição da
ineficácia do inventário e da partilha (ou adjudicação)
anteriormente feitos, de modo a permitir que haja a restituição
dos bens da herança ou de parte dela ao monte-mor para o fim
de promover a correta divisão por sentença no processo de
inventário e partilha ou, eventualmente, por escritura pública
na qual também participará o herdeiro anteriormente ignorado
[72]72 .
Desse modo, o cumprimento da sentença de procedência do
pedido da ação de petição de herança consistirá no réu restituir
os bens que até então possuía ao acervo hereditário para o fim
de retomar a fase do inventário dos bens e sucessores para o fim
de preparar a divisão patrimonial entre eles. O herdeiro
preterido objetiva, via ação de petição de herança, o
reconhecimento da sua condição de sucessor e,
simultaneamente, a devolução ao acervo da herança os bens que
porventura já tinham sido destinados concretamente a outras
pessoas.
A ação de petição de herança também poderá ser proposta para
o fim de ser reconhecido se tratar de hipótese de rompimento de
testamento, além da condição de herdeiro legítimo do autor da
demanda ( CC, art. 1.973). O descendente sucessível que
sobrevém à morte do testador pode propor a demanda para o
fim de pedir não somente a declaração da relação jurídica na
qual é herdeiro legítimo mas também o reconhecimento de que
houve rompimento das disposições testamentárias com o efeito
automático da invalidação da partilha, caso ela tenha sido
realizada [73]73 .
No caso de os herdeiros que se apresentaram pretenderem
realizar inventário e partilha por escritura pública (Lei
11.441/07; CPC/15, art. 610, § 1º), a ação de petição de herança
pode ser ajuizada no momento da preparação do instrumento
público pelo tabelião com a atuação do advogado dos herdeiros
existentes ou mesmo em momento posterior ao da realização da
escritura pública [74]74 .
Acerca da competência para a ação de petição de herança, cabe
à lei de organização judiciária de cada Estado (e do Distrito
Federal) discipliná-la ( CF, art. 125, § 1º). No âmbito do Estado
do Rio de Janeiro, o Código de Organização e Divisão Judiciária
prevê competir aos juízes de família conhecer e julgar as ações
de investigação de paternidade cumuladas com petição de
herança (art. 87, I, b), e aos juízes orfanológicos as ações de
petição de herança não cumuladas com outros pedidos (art. 87,
I, c). No caso de cumulação dos pedidos de investigação de
paternidade e petição de herança, pode o julgador determinar
que se oficie ao juízo orfanológico para o fim de reservar o
possível correspondente quinhão hereditário do autor da ação
que tramita no juízo de família até que haja definição do tema
vinculado à paternidade/filiação [75]75 .
Na vigência do Código Civil de 1916, mesmo sem disciplina legal
expressa a respeito da questão, considerava-se o prazo de 20
(vinte) anos para o ingresso com a ação de petição de herança,
ou seja, a utilização do prazo prescricional geral para a
demanda, normalmente computado a partir do momento da
abertura da sucessão [76]76 . Com as alterações introduzidas
pelo Código Civil de 2002, o prazo prescricional geral passou a
ser de 10 (dez) anos, aplicável também às pretensões
relacionadas à ação de petição de herança ( CC, art. 205).
4.2.1. Efeitos da petição de herança no plano
interno
A lei civil cuida, de modo pioneiro, dos efeitos do êxito da
demanda de petição de herança ( CC, art. 1.826 [77]77 ), ao
estabelecer que o então possuidor da herança fica obrigado a
entregar os bens do acervo hereditário ao herdeiro, sendo o grau
de sua responsabilidade medido de acordo com a qualificação
de sua posse sobre a herança ( CC, arts. 1.214 a 1.222). Logo,
dependendo da modalidade da posse anterior exercida pelo réu
da ação de petição de herança (posse de boa ou de má-fé, entre
outras), haverá efeitos diferentes relacionados à petição de
herança.
De modo resumido, ao possuidor de boa-fé são reconhecidos os
seguintes efeitos na legislação civil em vigor: a) direito aos
frutos percebidos; b) direito à indenização pelas despesas de
produção e custeio referentes aos frutos pendentes quando da
cessação da boa-fé; c) irresponsabilidade pela perda ou
deterioração da coisa a que não deu causa; d) direito à
indenização, pelo valor atual de mercado, das benfeitorias
necessárias e úteis; e) direito ao levantamento das benfeitorias
voluptuárias, se não lhe forem pagas e se não gerar dano à
substância do bem principal; f) direito de retenção pelo valor de
indenização das benfeitorias necessárias e úteis. Relativamente
ao possuidor de má-fé são reconhecidos os seguintes efeitos: a)
responsabilidade de restituir os frutos colhidos e percebidos e
aqueles que, por culpa sua, deixou de perceber: b) direito à
indenização pelo valor das despesas de produção e custeio dos
referidos frutos; c) responsabilidade pela perda ou deterioração
da coisa, ainda que acidentais, salvo a prova de que o dano
ocorreria mesmo se a coisa tivesse sido entregue ao autor da
demanda; d) direito à indenização das benfeitorias necessárias,
sem direito de retenção [78]78 .
Trata-se de aplicação específica dos dispositivos legais que
tratam dos efeitos da posse no âmbito do Direito das Coisas
(arts. 1.214 a 1.222) que, na realidade, vem a reforçar os
estreitos vínculos entre as normas de Direito das Sucessões e de
Direitos Reais [79]79 .
Na visão da doutrina clássica, considera-se possuidor de boa-fé
o herdeiro aparente que tenha adquirido a posse da herança e
que, em razão de erro invencível e escusável, acreditava ser o
verdadeiro herdeiro, como no exemplo do irmão do de cujus
que desconhecia a existência de descendentes do falecido ou
mesmo de outros integrantes de classes anteriores da ordem de
vocação hereditária [80]80 . Em matéria de herança aparente,
Carvalho Santos apontou os pressupostos para o
reconhecimento da boa-fé do herdeiro aparente: a) ter a posse
dos bens hereditários a título de herdeiro; b) ser o título hábil,
em tese, para transferir-lhe o domínio dos bens (vocação legal
ou testamentária); c) desconhecer a existência de vício original
do título sucessório em seu favor [81]81 . A doutrina observa
que a pessoa que se encontra na posse da herança como se sua
fosse, aparentando ser herdeiro, tem seus negócios e atos
protegidos juridicamente em benefício dos terceiros de boa-fé
que com a primeira tenham contato [82]82 . O herdeiro
aparente é aquele “que nunca foi herdeiro pela essência, mas o
foi pela aparência” [83]83 , ou seja, é exatamente o possuidor
pro herede, aparecendo “perante todos como adquirente por
causa de morte, a título universal” [84]84 , tendo posse dos
bens hereditários.
Logo, devido à presença do título de suposto herdeiro, seja em
razão da lei civil, seja do testamento, o possuidor que será réu
na ação de petição de herança acredita ser herdeiro do falecido e
vem a descobrir a ausência de seu direito sucessório ou da
menor extensão deste em seu favor somente em momento bem
posterior ao início de sua posse. Ao revés, será possuidor de má-
fé aquela pessoa que, sabendo da existência do outro (único)
herdeiro do acervo, tinha ciência do obstáculo à regular
aquisição da herança, ou foi negligente acerca da investigação
das circunstâncias que ensejariam dúvidas a respeito do seu
título sucessório.
De acordo com a legislação em vigor, o momento da cessação da
boa-fé e da configuração de mora do possuidor é a época da
citação do réu, efetivada em razão da ação de petição de
herança, pressupondo êxito na demanda ajuizada ( CC, art.
1.826, parágrafo único). Com o recebimento da contrafé com
cópia da petição inicial, o possuidor toma ciência dos vícios
objetivos de sua posse, daí a transformação do ânimo de sua
posse no momento do seu chamamento para o processo por
meio da citação [85]85 .
4.2.2. Efeitos da petição de herança no plano
externo
É possível que, em razão do inventário e da partilha (ou
adjudicação) dos bens integrantes da herança em favor dos
pretensos herdeiros (ou do pretenso herdeiro) da ação de
petição de herança, seja verificado que houve atos de alienação
de bens a terceiros. Nesse caso, há a questão de verificar os
efeitos da petição da herança relativamente aos terceiros em
caso de procedência da demanda. Nos termos da lei civil em
vigor, o herdeiro preterido poderá, via ação de petição de
herança, demandar os bens que integravam o acervo
hereditário, ainda que em poder de terceiros, ressalvadas as
alienações a título oneroso feitas pelo herdeiro aparente ao
terceiro de boa-fé ( CC, art. 1.827). A regra é a de que o herdeiro
real, anteriormente preterido, possa exigir do terceiro a entrega
dos bens hereditários por este adquiridos. No entanto, caso a
alienação tenha sido feita a título oneroso, tendo como alienante
o herdeiro aparente e como adquirente terceiro que agiu de boa-
fé, não haverá êxito na recuperação do bem, devido à eficácia
definitiva da transferência do bem feita ao terceiro adquirente.
Com base na teoria da aparência, reconhece-se a eficácia (e a
validade) das transmissões feitas a título oneroso e inter vivos
realizadas pelo possuidor – como herdeiro aparente – ao
terceiro de boa-fé que incorreu em erro invencível e comum
[86]86 .
Contudo, se o terceiro adquirente agiu de má-fé – mesmo na
aquisição a título oneroso –, incorreu em erro vencível e
incomum ou adquiriu o bem a título gratuito – a despeito de sua
boa-fé e do erro a que incorreu no negócio –, será obrigado a
entregar o bem ao herdeiro reivindicante, autor da ação de
petição de herança.
Na eventualidade de ser aplicada a exceção à regra da entrega
do bem pelo terceiro adquirente ao herdeiro preterido ( CC, art.
1.827, parágrafo único), cabe a este demandar ao herdeiro
aparente o valor dos bens alienados a título oneroso, sendo
relevante identificar sua boa ou má-fé para poder, também,
cobrar a reparação por perdas e danos no caso de sua má-fé na
transferência do bem ao terceiro adquirente que, por sua vez,
estava de boa-fé. Caso o herdeiro aparente tenha agido com
boa-fé, o efeito somente será o de ter a obrigação de pagar o
valor do preço recebido na alienação ao terceiro, sem perdas e
danos, devido à regra que veda o enriquecimento sem causa. O
objetivo principal da petição de herança é a restituição da
herança ou respectiva quota parte ao herdeiro preterido
inicialmente, mas, eventualmente, não havendo mais os bens,
ele poderá exigir o equivalente pecuniário referente ao bem,
com possibilidade de indenização do prejuízo sofrido se houve
má-fé do alienante [87]87 .
A lei civil ainda regula a hipótese da entrega do bem deixado em
legado pelo herdeiro aparente que agiu de boa-fé ( CC, art.
1.828). O herdeiro aparente que também era possuidor de boa-
fé, ao entregar o bem indicado pelo testador ao legatário, não se
torna devedor da obrigação de pagar o equivalente pecuniário
referente ao bem entregue ao sucessor real – herdeiro ou
legatário –, eis que agiu de boa-fé, não tendo recebido qualquer
vantagem em troca ao pagamento do legado [88]88 . Tal
hipótese pode ser exemplificada com o caso de legado instituído
em testamento que, posteriormente à entrega do bem ao
legatário, vem a se descobrir que foi revogado por outro. Na
hipótese contemplada na lei, o sucessor real – herdeiro ou
legatário – poderá agir contra aquele que indevidamente
recebeu o pagamento do legado do testamento anterior, com
base na regra que veda o enriquecimento sem causa.
4.2.3. Petição de herança e reprodução
assistida póstuma
Delineados os principais aspectos referentes à petição de
herança, revela-se importante a análise da questão
contextualizada sob o enfoque da sucessão legítima que possa
ter como possível herdeiro legítimo o filho póstumo, nos casos
em que não foi possível sua admissão como herdeiro legítimo
nos autos do inventário judicial. Há grande semelhança entre a
hipótese do filho póstumo com a do descendente concebido e
nascido durante a vida do autor da sucessão, mas que não foi
por ele reconhecido. Nesse caso, após a morte do de cujus, o
filho poderá ter êxito na investigação de paternidade – hipótese
de filho póstumo de companheiro falecido – e,
simultaneamente, na petição de herança, de modo a assegurar
todos os efeitos – existenciais e patrimoniais – decorrentes da
sua condição de filho jurídico da pessoa do autor da sucessão. E,
relativamente à eventual dúvida sobre a vontade do falecido ao
deixar em depósito seu material fecundante e a dignidade da
pessoa humana da criança nascida com base em técnica de
reprodução assistida póstuma, deve prevalecer o direito à
filiação com todas as consequências – existenciais e
patrimoniais – em favor da criança [89]89 . A noção referente à
petição de herança deduzida pelo filho não reconhecido como
tal em vida se assemelha bastante à hipótese do filho póstumo,
ainda que haja diferenças relativas a determinados pontos,
como a contagem do prazo prescricional – termo inicial,
impedimento de cômputo do prazo, entre outros aspectos, o que
será objeto de abordagem em momento oportuno.
No âmbito das Jornadas de Direito Civil do Conselho da Justiça
Federal houve a aprovação do seguinte Enunciado
interpretativo n. 267 sobre o tema:
A regra do art. 1.798 do Código Civil deve ser estendida aos
embriões formados mediante o uso das técnicas de reprodução
assistida, abrangendo, assim, a vocação hereditária da pessoa
humana a nascer cujos efeitos patrimoniais se submetem às
regras previstas para a petição de herança [90]90 .
Anna Beraldo concorda com tal orientação, defendendo a busca
constante pela equalização dos direitos entre os filhos da
mesma pessoa – ainda que esta tenha falecido –, devido à
irrelevância da origem da filiação, bem como do momento do
estabelecimento do vínculo parental [91]91 . Desse modo, o filho
nascido com base em técnica de reprodução assistida post
mortem precisa, inicialmente, ter estabelecida sua paternidade
ou maternidade com base nos critérios atualmente considerados
– presunção de paternidade, reconhecimento judicial de
paternidade ou maternidade etc. –, pois, uma vez estabelecido o
seu status de filiação, terá condições de vindicar sua herança
legítima ou seu quinhão hereditário na herança legítima. É
possível a cumulação do pedido de petição de herança com a
investigação de paternidade ou maternidade, se for o caso,
inclusive com o requerimento de concessão de tutela de
urgência de modo a reservar toda a herança ou quinhão
respectivo em seu favor até que haja a solução definitiva da lide
processual [92]92 . Se ainda estiver tramitando o inventário
judicial, é cabível a reserva do quinhão do futuro filho se já
houver nascituro no momento anterior ao da realização da
partilha, conforme previsão contida na legislação processual
civil ( CPC/15, art. 650).
Ao tratar do tema, Anna Beraldo registra que, no âmbito das
técnicas de reprodução assistida post mortem, é provável que o
herdeiro póstumo venha a ser concebido e nasça após vários
anos da abertura da sucessão em razão da viabilidade de o
congelamento do embrião ou mesmo do material fecundante
(sêmen e óvulo) durar por muito tempo e, ainda assim, mostrar-
se viável para desenvolvimento da futura pessoa humana [93]93
. Por isso, revela-se possível que, no momento do início da
gravidez ou mesmo na época do nascimento da criança, já tenha
ocorrido a partilha (ou adjudicação) dos bens, além da
possibilidade de haver ocorrido transferência de parcela ou de
todos os bens para terceiros que agiram de boa-fé nas
aquisições.
Quanto aos terceiros adquirentes dos bens que integravam a
herança, é viável que os negócios que serviram de título de
aquisição patrimonial tenham sido realizados antes das
providências tendentes ao emprego das técnicas reprodutivas
póstumas, ou seja, antes mesmo do descongelamento do
embrião ou do material fecundante criopreservado até então.
Assim, não há como conceber hipótese de identificação de má-fé
ou mesmo negligência nos negócios realizados e, por isso, não
há como invalidá-los, tampouco reconhecê-los como ineficazes
em sentido estrito.
Parcela da doutrina ainda registra que, relativamente aos
herdeiros legítimos originais (ou mesmo testamentários), nos
casos de emprego das técnicas reprodutivas post mortem,
sequer há de se cogitar de herança aparente em favor deles, e
sim de herança real, pois, no momento da abertura da sucessão,
ainda não havia ocorrido a concepção e, muito menos, o
nascimento da criança fruto de técnica de reprodução assistida
post mortem [94]94 . Tal aspecto revela uma importante
diferença entre os casos de petição de herança decorrentes de
pessoas existentes (ou ao menos já concebidas) na época da
abertura da sucessão e as hipóteses das pessoas originadas com
base nas técnicas de reprodução assistida post mortem. Ou seja:
enquanto na primeira hipótese pode-se cogitar da existência de
propriedade aparente adquirida por força da sucessão aberta
com a morte do autor da sucessão em razão das pessoas que até
então eram identificadas como herdeiras legítimas e
testamentárias do falecido, na segunda hipótese não há que
conceber hipótese de propriedade aparente, mas, sim, de
propriedade real adquirida pelos herdeiros – legítimos e/ou
testamentários – diante das pessoas existentes ou, ao menos, já
concebidas e em desenvolvimento como nascituros. Na última
hipótese não havia ainda a pessoa concebida e se desenvolvendo
no corpo feminino, mas, sim, um embrião congelado ou o
material fecundante do falecido que se encontrava
criopreservado.
4.3. Prazo prescricional relativo à petição de
herança e intercorrências
Identificada a petição de herança que pode ser utilizada pelo
filho póstumo para fins do reconhecimento do seu direito à
sucessão legítima aberta anteriormente em razão da morte do
autor da sucessão, cumpre tratar de aspectos relacionados ao
prazo para ajuizamento da demanda, suas intercorrências, entre
outras questões importantes para a solução dos possíveis
conflitos instaurados.
Como já foi observado em trabalho anterior, “deve-se admitir a
petição de herança, com a pretensão deduzida dentro do prazo
prescricional de dez anos a contar do falecimento do autor da
sucessão”, de modo a buscar o equilíbrio dos interesses da
pessoa que se desenvolveu com base na técnica de reprodução
assistida póstuma – a partir do embrião ou do material
fecundante da pessoa falecida – e dos interesses dos herdeiros
até então identificados [95]95 .
Antes de proceder à análise específica do prazo de prescrição
envolvendo o surgimento do filho póstumo para promover a
ação de petição de herança, é oportuno pontuar aspectos mais
gerais relacionados à prescrição da pretensão decorrente da
preterição do direito à sucessão legítima. Na vigência do Código
Civil de 1916 foi instaurada polêmica a respeito da
prescritibilidade (ou não) da pretensão referente à petição de
herança. Parcela da doutrina considerou que havia confusão de
noções e conceitos acerca das ações de estado e ações de petição
de herança, estas últimas como representativas do efeito
patrimonial daquelas [96]96 .
No escólio doutrinário de Orlando Gomes, a pretensão deduzida
na ação de petição de herança não se sujeitava a prazo
prescricional, eis que o reconhecimento da condição de herdeiro
não poderia estar atrelado ao decurso do tempo. O autor
considerava que “não é a ação que prescreve, mas a exceção de
usucapião que inutiliza” [97]97 . No mesmo sentido era a
orientação adotada por Silvio Rodrigues, que, valendo-se das
referências contidas nos Códigos Civis italiano e português –
acerca da imprescritibilidade da “ação” de petição de herança –,
considerou que a ação poderia ser ajuizada a qualquer tempo,
ressalvada a possibilidade de o possuidor já ter adquirido a
propriedade da coisa que possuía em razão da usucapião [98]98
.
Em direção contrária à sustentada pelos autores anteriormente
referidos, Caio Mário da Silva Pereira defendeu a prescrição da
eficácia da pretensão relativa à petição de herança, ao
considerar que o status é imprescritível, mas não a eficácia da
pretensão econômica judicialmente exigível, como ocorre em
qualquer outro caso de pretensão econômica que se sujeita ao
fenômeno prescricional [99]99 . Assim, a condição jurídica de
filho não se sujeita à prescrição, eis que o filho terá ação a todo
tempo para poder ter reconhecido seu status vinculado à
filiação. Contudo, a pretensão à herança não terá como ser
exigida após o decurso do prazo de 10 (dez) anos ( CC, art. 205)
a contar da abertura da sucessão via petição de herança
[100]100 .
A polêmica não se restringiu ao debate doutrinário no Direito
brasileiro e, por isso, o Supremo Tribunal Federal, na época em
que também tinha competência recursal para o fim de
uniformizar a interpretação da lei federal, após haver proferido
julgados a respeito do tema, editou a Súmula 149 , do seguinte
teor: “É imprescritível a ação de investigação de paternidade,
mas não o é a petição de herança”. O STF, ao tratar da ação de
petição de herança, fundamentou sua orientação no sentido de
considerar que a pretensão deduzida na ação tem natureza
pessoal, e não real, levando em conta haver concluído que o
prazo prescricional era o de 20 (vinte) anos, e não de 10 (dez)
ou de 15 (quinze) anos ( CC/1916 , art. 177) [101]101 . Na
legislação posterior à Constituição Federal de 1988, o Estatuto
da Criança e do Adolescente estabeleceu expressamente que o
reconhecimento do estado de filiação é “direito personalíssimo,
indisponível e imprescritível”, exercitável contra os pais ou seus
herdeiros, sem qualquer restrição, inclusive temporal (Lei
8.069/90, art. 27). Tal regra confirmou parte substancial do
enunciado sumular referido relativamente à ausência de prazo
prescricional quanto ao estado de filiação.
Algumas observações devem ser feitas à luz da compreensão do
tema sob o enfoque do Supremo Tribunal Federal, em especial
ao empregar a expressão “ações imprescritíveis” que,
comumente, consideram-se aquelas não sujeitas a prazo
prescricional nem decadencial [102]102 . Agnelo Amorim Filho,
em clássico trabalho escrito a respeito do tema, apresentou
crítica à referida expressão, devido à ausência de
correspondência à sua compreensão lógica e gramatical e,
assim, sugeriu sua substituição pela denominação “ações
perpétuas” [103]103 . Desse modo, ações perpétuas são as ações
constitutivas que não têm prazo especial relacionado ao
exercício do direito potestativo [104]104 bem como as ações
declaratórias, eis que nestas o plano de atuação é o da certeza
jurídica que não se vincula à eficácia temporal. A noção
conceitual de pretensão é empregada para distinguir os direitos
subjetivos propriamente ditos dos direitos potestativos. Assim,
tal como previsto no ECA (Lei 8.069/90), o direito à filiação (ou
ao estado de filho) não se sujeita a prazo decadencial, muito
menos prescricional, eis que consiste em direito potestativo de
natureza declaratória, proporcionando uma ação perpétua.
Assim, a ação de investigação de paternidade, como ação de
estado, não se sujeita a prazo extintivo, sendo que os efeitos da
procedência do pedido se operam retroativamente (eficácia ex
tunc), já que a paternidade, a maternidade e a filiação não se
estabeleceram na época da sentença, mas, sim, no momento da
concepção, tendo a sentença o papel de proceder ao
reconhecimento judicial da relação jurídica anteriormente
constituída [105]105 . Contudo, a pretensão patrimonial
decorrente da negativa do reconhecimento do direito à herança
se sujeita a prazo de prescrição, com fundamento na segurança
jurídica.
Ao proceder à análise das questões surgidas com o início de
vigência do Código Civil de 2002 – inclusive quanto ao prazo
geral de prescrição de 10 (dez) anos, à luz do art. 205 –, Luiz
Paulo Vieira de Carvalho retoma a ideia de que “as ações de
petição de herança são imprescritíveis”, podendo o réu alegar
em sede de defesa apenas a exceção de usucapião que,
atualmente, no âmbito da aquisição da propriedade imobiliária,
pode ter o prazo de, no máximo, 15 (quinze) anos (CC, art.
1.238, caput) [106]106 . Para tanto, o autor observa que as
pretensões reais não se sujeitam à prescrição extintiva e, por
isso, estão relacionadas aos prazos da usucapião [107]107 .
Contudo, ainda que se considere a posição majoritária na
doutrina – acerca da prescritibilidade da eficácia da pretensão
relativa à petição de herança –, o autor registra que, na hipótese
de cumulação com a investigação de paternidade, o prazo
prescricional de 10 (dez) anos deve ser iniciado após o trânsito
em julgado da sentença que declarar a relação jurídica de
filiação, e não da data da abertura da sucessão, pois o termo
inicial somente pode ser identificado quando houver a lesão ao
direito alheio [108]108 . Em posição assemelhada, Anna
Beraldo observa que, uma vez intentada ação de investigação de
paternidade, o correto seria impedir a contagem do prazo
prescricional da ação de petição de herança até o julgamento
definitivo da primeira demanda, com base na integração
analógica a partir da regra codificada em matéria de não
contagem do prazo prescricional na pendência de processo
criminal quando houver ação baseada em fato que deva ser
apurado em juízo criminal ( CC, art. 200) [109]109 .
Tais questões se revelam bastante polêmicas, mas não há como
concordar com as orientações expostas no parágrafo
antecedente. A distinção entre a imprescritibilidade relativa ao
estado de filiação e a prescritibilidade da eficácia da pretensão
[110]110 referente à petição de herança se baseia, obviamente,
no valor da segurança jurídica que deve existir nas relações civis
em geral e, como tal, já foi objeto de pronunciamento pela mais
alta Corte do país quando dos julgados que basearam a edição
da Súmula 149 do STF. A respeito do início da contagem do
prazo prescricional referente à petição de herança, a lesão ao
direito à herança se deu no momento em que ocorre a abertura
da sucessão – morte do autor da sucessão –, época em que os
herdeiros adquirem concretamente o direito à herança, com a
transmissão da propriedade e da posse dos bens integrantes do
acervo hereditário em seu favor. E também não há que
desconsiderar causa de impedimento da contagem do prazo
prescricional devido à circunstância de haver sido ajuizada ação
de investigação de paternidade, porquanto a suposta lesão ao
direito à herança ocorreu no momento da abertura da sucessão,
sendo possível a cumulação dos pedidos investigatório e de
petição de herança ou, ainda, a propositura de duas ações em
separado com eventual suspensão do processo referente à
petição de herança devido à prejudicialidade identificada. As
hipóteses de causas de impedimento, suspensão e interrupção
dos prazos prescricionais são excepcionais e, como tais, não
comportam interpretação ampliativa, tampouco integração por
analogia.
Anna Beraldo observa que o reconhecimento da condição
jurídica de herdeiro, na ação de petição de herança, não se
sujeita a prazo extintivo; contudo, a produção de efeitos de tal
reconhecimento – a pretensão de satisfação do direito à
herança, com a condenação do réu a adimplir uma prestação –
prescreve em 10 (dez) anos a contar da abertura da sucessão
[111]111 . No mesmo sentido é a orientação adotada por Heloisa
Helena Barboza, para quem a filiação gera efeitos pessoais e
patrimoniais, mas a igualdade material entre os filhos não pode
implicar o afastamento do prazo prescricional referente à
pretensão da petição de herança [112]112 . De modo a
configurar a prescrição, exigem-se os seguintes elementos: i) a
lesão a um direito subjetivo, a ensejar o nascimento de uma
pretensão de reparação da referida lesão; ii) a não exigência do
cumprimento do respectivo dever jurídico, ou do ressarcimento
do dano; iii) o decurso do prazo legal para que seja deduzida tal
exigência [113]113 . E, no caso da preterição do herdeiro,
encontram-se reunidos tais elementos, daí a justificativa para
identificação de que se trata de prescrição devido à necessidade
de segurança e certeza jurídicas.
O prazo prescricional geral (ou comum) de 10 (dez) anos ( CC,
art. 205) abrange qualquer hipótese na qual a lei ( Código Civil
ou lei especial) não tenha previsto prazo menor, e a sua redução
operada pela norma codificada em vigor se baseou nas
transformações econômicas e sociais verificadas no mundo
contemporâneo [114]114 . No caso da petição de herança, não
houve o estabelecimento de qualquer prazo especial de
prescrição pelo Código Civil ou por lei especial, razão pela qual
incide a regra do art. 205, anteriormente referido.
A respeito do início da contagem do prazo prescricional de 10
(dez) anos, há orientação doutrinária majoritária no sentido de
que, em relação à petição de herança, o termo inicial do prazo é
a data da abertura da sucessão que corresponde exatamente ao
fato jurídico morte do autor da sucessão e que, em tese, serve
para a imediata aquisição do direito à herança. Não se pode
postular acerca de herança de pessoa viva, e, por isso, não há
como cogitar do início do prazo de prescrição antes da morte do
autor da sucessão [115]115 . Assim, a lesão ao direito sucessório
do herdeiro legítimo – tal como também em relação ao herdeiro
testamentário – verifica-se no momento da abertura da
sucessão [116]116 . Com base na regra da saisine, em razão da
morte do titular do patrimônio ocorre a transmissão automática
e imediata da propriedade e da posse dos bens integrantes da
herança aos herdeiros – legítimos e testamentários –, sem
necessidade de qualquer manifestação de vontade destes,
formando uma situação jurídica de comunhão hereditária até o
momento da divisão do acervo patrimonial com a partilha de
bens. Giselda Hironaka recorda que, com o falecimento do autor
da sucessão, a herança “se transfere de pleno direito e
imediatamente aos herdeiros legais ou instituídos, ainda que
estes não tenham sequer tomado conhecimento da morte”
verificada e mesmo que eles venham a falecer
supervenientemente sem ciência do passamento do autor da
primeira sucessão [117]117 . Logo, caso venha a ser instaurado o
inventário judicial, ou mesmo realizado o inventário
extrajudicial – devido ao acordo dos herdeiros que
compareceram ao tabelião, sem incapazes ou testamento
envolvidos –, com a preterição daquele que sustenta ter a
condição jurídica de herdeiro, considera-se que a lesão ao
direito à herança dele ocorreu no momento do falecimento do
autor da sucessão, razão pela qual tal época configura o início
da contagem do prazo prescricional referente à pretensão da
petição de herança.
Anna Beraldo recorda que, como regra, o herdeiro que foi
preterido do inventário e da partilha já existia (ou seja, havia
nascido com vida) quando ocorreu a abertura da sucessão ( CC,
art. 1.798). Contudo, devido aos avanços científicos na área da
reprodução humana assistida, há questões relacionadas à
circunstância de não ter havido nascimento, e muito menos a
concepção do embrião (ou o início da gravidez), na época da
morte do autor da sucessão. E, assim, a autora indaga: “poderia
haver a contagem do prazo prescricional de maneira
diferenciada para esse filho?” [118]118 A doutrina majoritária
observa que a contagem de prazos de prescrição é iniciada
quando determinado sujeito tem condições de, sem qualquer
empecilho, deduzir sua pretensão em juízo [119]119 . Contudo,
levando em conta que não havia sequer nascituro na época da
abertura da sucessão – na hipótese do filho póstumo
desenvolvido a partir do embrião ou do material fecundante
congelado na época da morte do autor da sucessão –, como se
poderia cogitar da existência de pretensão cuja eficácia se
sujeitaria a prazo prescricional? Anna Beraldo observa que
“somente quando há o nascimento com vida e a verificação de
que este herdeiro não consta como sucessor no inventário é que
se pode falar em lesão ao direito” [120]120 . Há clara omissão
normativa a respeito do tema na legislação civil brasileira
porquanto, a despeito da referência pontual acerca da
reprodução assistida póstuma no segmento da presunção de
paternidade do homem casado ( CC, art. 1.597), o Código Civil
não foi explícito a respeito das questões atinentes à sucessão
legítima relacionada ao herdeiro que corresponde ao filho
póstumo.
De todo modo, considerando a ficção jurídica estabelecida
quanto à paternidade e filiação – e, por consequência, à
maternidade e à filiação, com base na igualdade material entre
os sexos – tratadas no art. 1.597 do Código Civil, para
considerar que o vínculo de parentesco do pai com seu filho
(originário de técnica de reprodução assistida) se constituiu no
curso da vida comum do casal, mesmo no caso de técnica post
mortem, a solução para a questão será considerar que a lesão
teria realmente ocorrido na data da morte do autor da sucessão
devido à sua preterição. Em outras palavras: a ficção do
momento do estabelecimento do vínculo de parentesco em
primeiro grau entre pais e filhos, com base na regra legal,
também será considerada para fins da produção de efeitos na
sucessão legítima, inclusive quanto à possível preterição no
inventário – judicial ou extrajudicial.
A conclusão a que se chega é a de que, mesmo sem expressa
previsão legal a respeito, o início da contagem do prazo
prescricional geral para não permitir o encobrimento da eficácia
da pretensão relativa à petição de herança é exatamente a data
da abertura da sucessão. Logo, se entre a data da abertura da
sucessão e o momento em que se caracteriza o decurso do prazo
de 10 (dez) anos não houver concepção do embrião com o início
da gravidez da mulher que poderá gestar o filho póstumo, terá
se operado a prescrição decenal referente à eficácia da
pretensão da petição da herança.
Outro aspecto importante se refere à causa impeditiva de
contagem do prazo prescricional consistente na
insuscetibilidade de curso de prazo prescricional contra os
absolutamente incapazes ( CC, art. 198, I). O tratamento legal a
respeito das causas de impedimento, suspensão e interrupção
do prazo prescricional segue, basicamente, a seguinte lógica: a)
no impedimento ou suspensão o prazo não flui, mas, após a
cessação da causa impeditiva ou suspensiva, o prazo se inicia –
caso de impedimento – ou volta a correr – caso de suspensão;
b) na interrupção, devido à verificação da causa interruptiva, o
prazo volta a ser contado novamente, de maneira integral – ou
parcial –, desconsiderando por completo o período anterior ao
momento da interrupção [121]121 . As causas de impedimento e
de suspensão do curso do prazo prescricional se fundamentam
seja em razões de ordem moral, seja em virtude da necessidade
de proteção dos interesses das pessoas que não teriam
condições de acompanhar a situação jurídica da qual são
titulares ou por outros motivos previstos na lei civil. O art. 198
do Código Civil se baseia na ideia de proteção e defesa dos
interesses das pessoas nele indicadas.
Assim, por exemplo, no caso de ocorrer a abertura da sucessão
de pessoa que teve filho há menos de 1 (um) ano – mas não o
reconheceu pois foi gerado fora do casamento –, não será
iniciada a contagem do prazo prescricional diante da regra legal,
aguardando-se o decurso de, ao menos, 15 (quinze) anos a
contar da abertura da sucessão para o fim de poder ser iniciada
a contagem do prazo de 10 (dez) anos para promover a ação de
petição de herança na hipótese de ter o filho sido preterido no
inventário e na partilha. Ou seja: apenas a partir da verificação
de que o filho não reconhecido em vida completar 16 (dezesseis)
anos de idade, tornando-se relativamente incapaz, será iniciado
o curso do prazo prescricional de 10 (dez) anos para a ação de
petição de herança. Assim, somente quando o herdeiro
absolutamente incapaz por idade completar 16 (dezesseis) anos
de idade poder-se-á cogitar do início da contagem do prazo
prescricional.
Logo, não corre prazo prescricional contra os absolutamente
incapazes, pois há “fato obstativo para o início da contagem do
prazo, qual seja, a incapacidade absoluta do herdeiro” [122]122 .
Por óbvio que, se não há contagem de prazo prescricional contra
absolutamente incapaz, não é possível ser iniciada a contagem
de prazo relativamente ao nascituro, razão pela qual é caso de
impedimento [123]123 da contagem do prazo prescricional. E,
imaginando-se, no caso das técnicas de reprodução assistida
post mortem, que o embrião congelado venha a ser utilizado no
mês seguinte à morte do autor da sucessão, haverá necessidade
de aguardar o nascimento com vida, o decurso do período de 16
(dezesseis) anos para, em seguida, ser possível a contagem do
prazo prescricional para a ação de petição de herança. E, na
eventualidade de o embrião ser formado e implantado no corpo
feminino após 9 (nove) anos e 11 (onze) meses da morte do
autor da sucessão, será necessário esperar o nascimento com
vida do filho póstumo, o decurso do período de 16 (dezesseis)
anos para, em seguida, ser possível a contagem do prazo de
prescrição da petição de herança, cujo termo final, em tese,
poderá ocorrer quase 36 (trinta e seis) anos após o falecimento
do autor da sucessão: 9 (nove) anos e 11 (onze) meses iniciais –
período da concepção e início da gravidez da mulher –, 16
(dezesseis) anos – correspondente à absoluta incapacidade do
filho póstumo – e 10 (dez) anos – decurso do prazo
prescricional referente à eficácia da pretensão relativa à petição
de herança.
Tal aspecto temporal referente à dedução da pretensão da
petição de herança em juízo não foi desconsiderado por parcela
da doutrina, pois, efetivamente, “o prazo para definição da
situação pode estender-se por décadas após o falecimento do
genitor”, considerando a possibilidade de o embrião ou o
material fecundante deixado pelo falecido ficar congelado por
quase 10 (dez) anos depois da morte deste, a incidência da
causa impeditiva de contagem do prazo prescricional contra
absolutamente incapaz e a contagem do prazo prescricional de
10 (dez) anos para promover a ação de petição de herança. De
todo modo, a grande diferença dessa hipótese para aquela
envolvendo o filho havido por reprodução carnal pouco antes da
morte de seu pai que não o reconheceu em vida será o prazo
adicional de quase dez anos da morte do falecido – período do
congelamento do embrião ou do material fecundante utilizado
em técnica reprodutiva póstuma. Anna Beraldo ainda se refere à
dificuldade prática quanto ao tempo de duração do processo no
Brasil, eis que há “longa fase de recursos processuais”, além da
circunstância de verificar “sucessivas gestações” no período
posterior ao falecimento do autor da sucessão [124]124 .
Verifica-se que há questões bastante complexas sob o prisma do
Direito das Sucessões relacionadas às intercorrências referentes
ao prazo prescricional da petição de herança, tal como
anteriormente analisadas. É certo que, como os temas tratados
neste trabalho ainda são relativamente recentes, não houve
posicionamento dos tribunais brasileiros a respeito da sucessão
legítima do filho póstumo decorrente de técnica de reprodução
assistida e a busca de conciliação dos vários interesses
envolvidos. Diante do “estado da arte” sobre o tema central do
trabalho ainda comportar várias polêmicas, Anna Beraldo
sugere que haja uma revisão sobre a prática da reprodução post
mortem para, se for o caso, vedá-la no ordenamento jurídico
brasileiro [125]125 .
4.4. Propriedade temporária (ou ad tempus)
dos herdeiros legítimos originais
De modo a poder encaminhar a solução para as questões
referentes à sucessão legítima do filho póstumo, em razão das
questões analisadas durante o desenvolvimento do trabalho, o
encaminhamento de solução que, com base nos valores e
princípios constitucionais atualmente considerados, deve ser
buscado é o de compatibilizar os vários interesses em jogo, não
apenas os dos filhos póstumos mas também os dos herdeiros
legítimos originalmente vocacionados – que não eram herdeiros
aparentes, e sim reais – e dos terceiros com quem estes
negociaram e adquiriram bens anteriormente integrantes da
herança deixada pelo autor da sucessão. Assim, não apenas se
atende aos princípios constitucionais da isonomia material
entre os filhos no que se refere às situações jurídicas que
envolvam seus pais – inclusive e, no caso específico, o direito à
herança na sucessão legítima –, da dignidade da futura criança
a nascer, da parentalidade responsável – relacionados ao filho
póstumo – mas também da segurança jurídica, da estabilidade
das situações jurídicas que se consolidaram – relativos aos
herdeiros legítimos originalmente vocacionados e aos terceiros
com quem eles tiveram contato jurídico.
A solução para as maiores polêmicas identificadas se encontra
na consideração de que a propriedade adquirida pelos herdeiros
legítimos originariamente chamados à sucessão – devido à
regra da saisine – seja qualificada como propriedade ad tempus
(CC, art. 1.360) e, assim, duas principais ordens de efeitos
poderão sobrevir na eventualidade da concepção,
desenvolvimento da gravidez e nascimento da criança fruto de
técnica de reprodução assistida póstuma: a) o proprietário ad
tempus perderá a propriedade em favor do proprietário que, no
caso, é o herdeiro legítimo póstumo, caso o bem ainda esteja no
patrimônio daquele; b) o terceiro adquirente do bem, por título
anterior à resolução da propriedade ad tempus, será
considerado proprietário perfeito, cabendo à pessoa do herdeiro
legítimo póstumo em cujo benefício teria ocorrido a resolução
da propriedade ad tempus, haver o valor da coisa do ex-
proprietário ad tempus.
Ao transplantar as duas ordens de efeitos da propriedade ad
tempus para os casos relacionados à superveniência da
concepção, gravidez e nascimento com vida do filho póstumo,
pode-se considerar o seguinte regime jurídico: a) caso o bem
fruto de inventário e partilha em favor do herdeiro legítimo
originário – proprietário ad tempus – ainda integre seu
patrimônio, mesmo após quase 36 (trinta e seis) anos da data da
abertura da sucessão do autor da sucessão – observados os
prazos analisados anteriormente –, o herdeiro legítimo póstumo
poderá obter o reconhecimento da sua condição jurídica de
sucessor do falecido na sucessão legítima e, assim, exigir a
devolução do bem ao acervo hereditário de modo a poder herdá-
lo sozinho (como herdeiro único) ou participar da partilha dos
bens integrantes da herança (caso de comunhão hereditária
com outros herdeiros); b) caso o bem fruto do inventário e da
partilha já tenha sido transferido ao terceiro adquirente em
momento anterior ao da produção dos efeitos da ação de petição
de herança, nas demais condições referidas, caberá ao herdeiro
legítimo póstumo exigir a reposição do valor correspondente ao
bem transferido ao terceiro do herdeiro legítimo originário, de
modo a recebê-lo integralmente (como herdeiro único) ou a
poder participar da nova partilha daquilo que for obtido em
decorrência da procedência do pedido da ação de petição de
herança.
A solução hermenêutica proposta se encaixa perfeitamente na
noção da propriedade ad tempus, a ensejar o reconhecimento
de que a sucessão legítima em favor dos herdeiros
originariamente vocacionados na sucessão aberta pela morte do
autor da sucessão que, posteriormente, ensejou o emprego de
embrião congelado ou material fecundante criopreservado para
fins de concepção, gravidez e nascimento com vida do filho
póstumo como herdeiro legítimo do de cujus, é modo de
aquisição de propriedade ad tempus com a produção dos efeitos
acima indicados. Na propriedade ad tempus nada há
anteriormente ao título de constituição da propriedade que,
voluntariamente, tenha previsto sua extinção, diversamente do
que ocorre na propriedade resolúvel propriamente dita ( CC,
art. 1.359). Cuida-se de extinção da propriedade em razão de
evento previsto em lei que é considerado relevante o suficiente
para atenuar a característica da perpetuidade da propriedade
[126]126 .
A doutrina costuma exemplificar os casos de propriedade ad
tempus com os casos de doação pura e simples e sua posterior
revogação devido a ato de ingratidão do donatário ( CC, arts.
555 e 557), de doação modal na qual não houve cumprimento
do encargo ( CC, art. 555) e do legado cujo encargo imposto no
testamento não foi cumprimento pelo legatário ( CC, art. 1.938)
[127]127 . A tais hipóteses doravante deverá se somar a sucessão
legítima como modo de transmissão da propriedade sobre os
bens da herança aos herdeiros originalmente vocacionados, nos
casos em que se verificar a reprodução assistida póstuma. Como
se sabe, a propriedade ad tempus é modalidade de propriedade
que não é adquirida para durar certo tempo – diversamente do
que acontece na propriedade resolúvel propriamente dita –,
mas se apresenta potencialmente temporária, podendo o
proprietário perder a titularidade da situação jurídica por força
de certos acontecimentos previstos na lei. A eventualidade da
perda do direito de propriedade na modalidade ad tempus não
constitui objeto de cláusula negocial e, por isso, afirma-se que
não é a propriedade em si que é temporária, mas, sim, seu
exercício por tal ou qual sujeito [128]128 .
Na propriedade ad tempus o fato extintivo do direito de
propriedade somente produz efeitos para o futuro, ou seja, é de
eficácia ex nunc [129]129 , diversamente do que ocorre na
propriedade resolúvel propriamente dita cuja resolução produz
efeitos retroativos – eficácia ex tunc. Quando a propriedade se
resolve por causa superveniente – não prevista no título de sua
aquisição –, proveniente de fato posterior à transmissão da
propriedade, ela não é resolúvel na sua origem, mas se revoga
de fato [130]130 . Desse modo, na hipótese de a coisa recebida
em razão de cessão dos direitos hereditários dos então únicos
herdeiros legítimos ou de transferência feita após a realização
da partilha cuja atribuição ocorreu em favor dos então únicos
herdeiros legítimos, mas antes do conhecimento a respeito da
pretensão deduzida pelo filho póstumo, a alienação feita ao
terceiro serviu de título aquisitivo da propriedade da coisa, não
podendo ser desfeita a propriedade em favor do terceiro. Ao
revés, se a coisa ainda estiver em poder do herdeiro legítimo
originário e, assim, ocorrer o surgimento do herdeiro legítimo
póstumo, a ação de petição de herança poderá ensejar a
consequência de reaver a coisa, seja para ser titularizada
exclusivamente pelo herdeiro legítimo único (no caso de não
haver outros descendentes que possam concorrer com o filho
póstumo), seja para ser refeita a partilha dos bens integrantes
da herança legítima (na hipótese de verificação da concorrência
sucessória entre o filho póstumo e outros filhos – ou outros
descendentes por direito de representação). No caso da
necessidade de realização de nova partilha de bens – com a
inclusão do filho póstumo entre os herdeiros legítimos –, deve-
se atentar para os critérios comumente seguidos na divisão dos
bens – igualdade na divisão e comodidade na atribuição dos
bens que ofereçam melhor serventia a cada herdeiro legítimo de
acordo com o tipo de bem e os interesses dos herdeiros
[131]131 .
É fundamental observar que, no caso do filho póstumo, sua
concepção, a gravidez a ele relacionada e seu nascimento com
vida deverão ocorrer dentro do prazo de 10 (dez) anos a contar
da abertura da sucessão, sob pena de não haver como se atribuir
direito à herança legítima em seu favor, conforme
anteriormente explicitado.
Deve-se deixar assentado que o instituto ora identificado como
viabilizador da solução das questões mais complexas da
sucessão legítima relacionada à herança identificada em favor
do filho póstumo não é o da propriedade aparente, como
apressadamente se poderia supor.
A configuração da propriedade aparente requer que o suposto
(ou aparente) proprietário esteja convencido de que o bem
objeto da situação proprietária realmente lhe pertença e, por
isso, adota comportamento tal que induza as demais pessoas a
se enganarem a respeito da real situação relacionada àquela
propriedade [132]132 . Os princípios jurídicos que
fundamentam a teoria da aparência são: a) o da boa-fé; b) o
error communis facit ius [133]133 . Assim, o adquirente do bem
deve estar convicto de que a transmissão da propriedade foi
feita pelo verdadeiro proprietário do bem ou que o bem foi
adquirido por direito incontestável, o que caracteriza sua boa-fé.
Ademais, o erro cometido pelo adquirente deve ser comum e
invencível, a saber, o erro da espécie que qualquer pessoa de
inteligência comum (ou mediana) teria incorrido. Entre as
hipóteses de propriedade aparente costuma-se usar como
exemplo a do herdeiro aparente [134]134 , como ocorre no caso
de pessoa que recolheu a herança legítima, mas não tinha
direito em razão do sucessor existente que a exclui – a
identificação superveniente de filho do de cujus que exclui seu
tio, irmão do falecido, como parente na linha reta descendente
em primeiro grau na ordem de vocação hereditária. Outras
hipóteses envolvem casos de indignidade, nos quais o herdeiro
vocacionado à sucessão é excluído por força de sentença que
reconhece a prática de ato de indignidade ( CC, art. 1.817), e de
pessoa indicada como herdeira testamentária ou legatária cujo
benefício testamentário é atingido pela nulidade da cédula
testamentária.
Eduardo de Oliveira Leite, ao analisar a regra contida no art.
1.827 do Código Civil, observa que o preceito normativo trata da
possibilidade de o bem que integrava a herança já não mais se
encontrar em poder do possuidor, mas, sim, de terceiro
[135]135 . A este caberá, após devolver o bem ao acervo
hereditário em razão da postulação feita pelo autor da ação de
petição de herança, propor ação regressiva contra o possuidor
alienante do bem em seu favor, ressalvada a possibilidade de a
alienação ter sido feita por herdeiro aparente, com base em
negócio realizado a título oneroso, e o terceiro haver atuado de
boa-fé [136]136 . Débora Gozzo registra, ao comentar o mesmo
preceito legal, que, se a alienação do bem pelo herdeiro
aparente ao terceiro se deu a título gratuito, o negócio será
ineficaz relativamente ao herdeiro real que, por isso, poderá
obter o bem diretamente do terceiro adquirente [137]137 .
Todo o contexto relacionado à propriedade aparente não se
verifica relativamente aos casos de sucessão legítima
relacionada à vocação hereditária do filho póstumo. Nesse caso,
a herança legítima é deferida efetivamente aos vocacionados na
lei civil que existiam (ou ao menos eram nascituros) na época da
abertura da sucessão. E, concretamente, não havia ainda o filho,
que somente veio a ser concebido, desenvolvido e a nascer em
momentos posteriores ao do falecimento do autor da sucessão.
Logo, não há que se cogitar de propriedade aparente
relativamente aos herdeiros legítimos originários, e sim
propriedade real, mas que se sujeita à ocorrência de evento
superveniente que gerar a resolução dessa propriedade. A
propriedade revogável por causa superveniente é, portanto,
hipótese de propriedade real, e não de propriedade aparente. É
certo que ambas as propriedades – aparente e ad tempus –
fundamentam-se no valor da segurança jurídica, especialmente
relacionada aos terceiros com quem os então proprietários
aparente ou ad tempus mantiveram contato jurídico. Mas não
há como confundir as duas situações jurídicas, inclusive com
incidência de regras jurídicas distintas: propriedade ad tempus,
à luz do art. 1.360 do Código Civil, e propriedade aparente, à luz
dos arts. 1.827, parágrafo único, e 1.828 do Código Civil, entre
outras.
Ainda que na perspectiva do Direito Tributário Humberto Ávila
defina o princípio da segurança jurídica como o princípio que,
“sobre fundar a validade e instrumentalizar a eficácia das
normas jurídicas, exige a transparente respeitabilidade da ação
do cidadão-contribuinte, e da argumentação que lhe é
concernente, por meio da moderação estatal” [138]138 . E, em
outras conclusões acerca da segurança jurídica, o autor leciona:
Como o princípio da segurança jurídica exige a realização
conjunta de vários estados de coisas, uns intermediários, outros
finais, que não necessariamente coincidem, pode ocorrer que,
em razão de um caso a decidir, surja uma espécie de conflito da
segurança jurídica consigo, no sentido de que a promoção de
um estado de coisas implique a restrição de outro estado de
coisas que se apresenta concreta e diametralmente oposto. A
solução está em equilibrar esses estados ideais de modo que a
busca da segurança jurídica provoque um incremento no seu
conjunto, isto é, que a utilização do princípio da segurança
jurídica como fundamento de uma dada decisão conduza a uma
realização média maior dos estados ideais que o compõem do
que o contrário [139]139 .
O princípio da segurança jurídica é essencial para a confiança
no sistema judicial e no Estado de Direito, além de ser
fundamental para a constituição e desenvolvimento dos
negócios, o desenvolvimento e progresso social e econômico.
Para tanto, o Estado – inclusive o Poder Judiciário – deve
buscar respeitar e aplicar as normas jurídicas de maneira
previsível, não apenas em razão do prévio conhecimento do
conteúdo das normas, mas, principalmente, ser previsível
quanto aos efeitos decorrentes delas [140]140 . Além de
identificar os elementos estruturantes do fenômeno
prescricional – presença de uma pretensão; inércia do titular da
pretensão; continuidade da inércia por lapso de tempo previsto
na lei; ausência de fato impeditivo ou suspensivo da contagem
–, é vital que o aplicador da norma jurídica possa discernir a
respeito da seguinte questão: “é necessário consolidar uma
determinada situação jurídica para que se produza segurança?”
[141]141 A segurança jurídica é compatível com uma visão mais
democrática do Direito e da vida social e aponta para melhorar
a vida das pessoas, propiciando uma vida “sem danos”, ou com
menores danos possíveis; e quando estes ocorram, que haja
uma condigna reparação [142]142 .
A segurança jurídica traduz não apenas a paz, a ordem, a
estabilidade e perenidade mas também a certeza da realização
do Direito, abrangendo o conhecimento dos direitos e deveres, a
convicção dos efeitos do seu exercício e cumprimento e, ainda, a
previsibilidade dos efeitos do comportamento pessoal de cada
um [143]143 . O princípio da segurança jurídica, aliado à
proteção da confiança legítima, congrega as noções de
calculabilidade e previsibilidade acerca dos efeitos jurídicos dos
atos e negócios jurídicos em geral, inclusive envolvendo o poder
público [144]144 . A certeza jurídica propicia à pessoa que ela
planeje e calcule em longo prazo, constituindo vínculos
baseados na estabilidade e na calculabilidade do direito em jogo
[145]145 .
De modo a contextualizar a análise feita a respeito do tema, é
oportuna a utilização de exemplo concreto trazido à colação por
Anna Beraldo [146]146 . O caso pode assim ser resumido: um
casal buscou, durante período aproximadamente de 12 anos, ter
filhos via da procriação carnal, sendo que, em abril de 2006,
resolveu procurar auxílio de clínica de reprodução assistida.
Após terem passado por dois ciclos de inseminação artificial,
dois ciclos de fertilização in vitro – com o congelamento do
sêmen do marido, enquanto se aguardava a captação de óvulos
da esposa –, no ano de 2007 houve morte abrupta do marido
em razão de acidente. A viúva, assim, decidiu receber o sêmen
criopreservado do seu falecido marido para procriar e, como
não havia manifestação expressa por ele deixada em vida para
tanto, ela obteve autorização judicial para a continuidade do
tratamento referente à técnica de reprodução medicamente
assistida, com expedição de alvará com prazo de duração de um
ano a contar da expedição da autorização judicial. No caso
concreto o falecido não havia deixado filhos dele, tampouco
autorização expressa para utilização do sêmen congelado, e
tinha pais vivos que sobreviveram à morte dele. Não se tem
notícia se houve sucesso na concepção, início da gravidez e
nascimento de criança em razão da técnica de reprodução
assistida póstuma, mas resta claramente identificada hipótese
que comportaria o aparecimento de polêmicas em matéria de
sucessão legítima, desde o reconhecimento do direito à herança
em favor do filho póstumo (com exclusão dos ascendentes do
falecido), o prazo para efetiva concepção, gravidez e nascimento
com vida do herdeiro descendente único. Assim, a título de
suposição, Anna Beraldo observa que, nesse caso, pela teoria da
aparência, qualquer negócio eventualmente celebrado entre os
herdeiros originais e os terceiros de boa-fé seria válido e eficaz,
restando ao filho póstumo, por meio da petição de herança,
pleitear seu quinhão hereditário e, caso os bens não mais
estivessem em poder do herdeiro aparente, requerer o
ressarcimento pelo valor correspondente [147]147 . Na
realidade, a conclusão se assenta na incidência ao caso da regra
do art. 1.827, parágrafo único, do Código Civil, a respeito dos
efeitos das alienações dos bens da herança, a título oneroso,
pelo herdeiro aparente ao terceiro de boa-fé.
Relativamente ao herdeiro legítimo originário, não há que se
cogitar da figura da herança aparente, mas, sim, de herança real
e, por isso, a regra que efetivamente deve incidir na espécie é a
do art. 1.360 do Código Civil, que prescinde da existência de
onerosidade do negócio para gerar consequências favoráveis ao
terceiro quanto à efetiva aquisição da propriedade do bem,
entre outros aspectos. Não há, portanto, apenas distinções
conceituais entre a propriedade aparente e a propriedade ad
tempus, mas, claramente, repercussões distintas que geram
posições jurídicas nem sempre coincidentes, havendo maior
proteção ao terceiro adquirente com base nos efeitos da
propriedade ad tempus comparativamente aos efeitos da
propriedade aparente. Uma das distinções acerca dos efeitos se
relaciona às transferências feitas pelo herdeiro real ao terceiro
adquirente por negócio a título gratuito – como no exemplo da
doação –, que não serão atingidas no caso de revogação da
propriedade ad tempus, diversamente do que ocorreria no caso
de propriedade aparente (CC, art. 1.827, parágrafo único, a
contrario sensu).
Há dois fatores temporais que deverão ser rigorosamente
observados para ensejar o efeito da revogação da propriedade
ad tempus do herdeiro legítimo originalmente vocacionado na
sucessão legítima. Inicialmente, é vital que haja observância do
prazo de 10 (dez) anos a contar da abertura da sucessão para o
fim de haver a concepção e, ao menos o início da gravidez em
razão de técnica de reprodução assistida post mortem, sob pena
de não ser mais viável o reconhecimento do direito à herança
em favor de filho concebido em momento subsequente ao
decurso desse prazo inicial de 10 (dez) anos. Além disso, haverá
o impedimento da contagem do prazo prescricional caso seja
verificada a gravidez dentro do decênio a contar da morte do
autor da sucessão até que o filho póstumo complete 16
(dezesseis) anos de idade, momento em que será iniciado novo
prazo prescricional de 10 (dez) anos para que não haja o
encobrimento da eficácia da pretensão relativa à petição de
herança. A circunstância de haver, na última hipótese, um prazo
mais dilatado em nada interferirá nas consequências da
revogação da propriedade ad tempus na hipótese da sucessão
legítima em que se identifique a superveniência vocação
hereditária do filho póstumo, devido à incidência dos efeitos
previstos no art. 1.360 do Código Civil.
Parcela da doutrina tem defendido que, mesmo na sucessão
legítima – e não apenas na hipótese de sucessão testamentária
em favor de filho eventual de pessoa existente na época da
abertura da sucessão ( CC, arts. 1.799, I, e 1.800, § 4º)– seja
fixado um prazo pelo legislador para a utilização do material
fecundante ou do embrião congelado para reprodução assistida
póstuma [148]148 . O raciocínio se fundamenta, entre outros
aspectos, na circunstância de não se mostrar coerente que, sob a
alegação de desenvolvimento do projeto parental, somente
muitos anos depois da morte do cônjuge ou companheiro haja o
interesse de gerar filho jurídico do autor da sucessão. Assim,
sugere-se, de lege ferenda, a fixação de um marco temporal
entre 6 (seis) meses e 2 (dois) anos a contar da abertura da
sucessão, tal como ocorre no Direito belga, que prevê tais prazos
para implantação do embrião ou fertilização do gameta
feminino com formação do feto e início da gravidez de modo a
viabilizar a geração e o nascimento de filho póstumo [149]149 .
Contudo, no estágio atual do Direito Civil brasileiro não há tal
restrição temporal para concepção, gestação e nascimento da
criança fruto de técnica de reprodução assistida póstuma na
sucessão aberta pelo falecimento de alguém que deixou embrião
congelado ou seu material fecundante criopreservado no bojo
do seu projeto parental que estava em desenvolvimento com seu
cônjuge ou companheiro. E, por isso, a solução das questões
polêmicas na atualidade sugere uma combinação dos aspectos
relacionados ao Direito das Sucessões sob influxo dos Direitos
Reais e do Direito de Família, tal como se procurou analisar
durante todo o curso do trabalho.
A proposta de limitação temporal – tal como feita na legislação
belga (utilização do material até dois anos a contar da abertura
da sucessão) – não há como ser acolhida no Direito brasileiro.
Márcio Delfim apresenta exemplo hipotético, mas que
demonstra o desacerto da limitação em até dois anos quanto ao
uso do embrião ou do material congelado. Imagine-se o caso de
uma mulher casada que, juntamente com seu marido, vem
desenvolvendo o projeto parental para ter filhos por meio de
técnicas de reprodução assistida. Em determinado dia, ambos
são vítimas de um acidente automobilístico; o marido vem a
falecer e a esposa, bastante ferida, consegue sobreviver, mas fica
em coma por dois anos, período em que o sêmen colhido do seu
marido ainda vivo (em razão de um dos procedimentos
realizados no curso do processo de acesso à técnica reprodutiva)
fica congelado [150]150 . Caso venha a ser adotado marco
temporal do Direito belga, por exemplo, a viúva já não mais
poderia ultimar o projeto parental do casal e, por isso, deve-se
admitir que não haja qualquer limitação temporal para que o
cônjuge ou companheiro sobrevivente possa dar efetividade ao
projeto parental com a técnica de reprodução assistida póstuma,
apenas atentando para o prazo de 10 (dez) anos quanto à
petição de herança para o fim de ser iniciada a gravidez que
redundará no nascimento do filho póstumo.
A sucessão legítima está fundada nas noções de propriedade e
de família, já que são as situações proprietárias aquelas que,
normalmente, podem ser transmitidas causa mortis, bem como
são os vínculos de família que são considerados para fixação dos
critérios de modo a organizar e estabelecer a ordem de vocação
hereditária – na perspectiva do chamamento concreto dos
herdeiros legítimos [151]151 . Assim, a solução que harmonize
os princípios constitucionais da dignidade e da igualdade
material do herdeiro legítimo fruto de técnica de reprodução
assistida póstuma, do direito à herança em favor dos herdeiros
existentes e/ou nascituros na época da abertura da sucessão e
da segurança jurídica dos terceiros com quem estes
estabeleceram vínculos jurídicos de natureza patrimonial, é
aquela que deva ser alcançada. Devido à constatação de que a
Constituição e o Direito Civil se revelam partes de uma ordem
jurídica unitária, há complementação, apoio e condicionamento
recíprocos entre os dois setores, sendo certo que a Constituição
assegura os fundamentos do Direito Privado, além de atuar com
função de guia, oferecendo diretrizes e impulsos importantes
para sua evolução [152]152 .
Os aspectos destacados no percurso deste capítulo que se
relacionam à sucessão legítima reconhecida em favor do
descendente na linha reta em primeiro grau do autor da
sucessão que somente foi concebido, gestado e tenha nascido
após a morte do seu pai ou de sua mãe revelam a importância
da compatibilização dos interesses jurídicos postos em suposto
conflito. Assim, somente à luz da dimensão concreta e humana
das pessoas envolvidas, devido às suas peculiaridades e
diversidades, é possível alcançar soluções hermenêuticas
consonantes com os direitos fundamentais [153]153 – garantia
da propriedade privada, direito à igualdade material, direito à
segurança jurídica, direito à herança, entre outros – que devem
ser considerados no âmbito da sucessão legítima. As
ponderações relacionadas aos direitos fundamentais, quando
envolvem relações privadas, revelam-se sempre complexas e
multidimensionais, eis que costumam se vincular a diversos
valores. A complexidade e a multidimensão exigem o
estabelecimento de parâmetros racionais e objetivos, de modo a
informar a determinação da incidência das normas de direitos
fundamentais no âmbito das relações entre particulares
[154]154 . Como registra Ingo Wolfgang Sarlet, a eficácia direta
das normas constitucionais de direitos fundamentais nas
relações privadas se justifica em razão da necessidade de
limitação do poder social e em resposta às desigualdades
sociais, culturais e econômicas, especialmente em sociedades
periféricas, como é o caso da brasileira [155]155 . A revisão do
Direito das Sucessões com base na metodologia civil-
constitucional, inclusive sob o influxo do Direito de Família e
dos Direitos Reais, é imperiosa, tal como adverte Ana Luiza
Nevares [156]156 .
O vetor interpretativo utilizado para desenvolver os caminhos e
as soluções hermenêuticas para as questões surgidas foi o de
compatibilização dos vários interesses jurídicos em jogo,
iniciando com a pessoa do filho póstumo e sua possível
condição de herdeiro legítimo, passando pelas pessoas dos
herdeiros legítimos originalmente vocacionados no momento da
abertura da sucessão e terminando pelos terceiros adquirentes
de bens que integravam a herança deixada pelo autor da
sucessão e que se tornaram proprietários perfeitos (ou plenos e
perpétuos) com base na eficácia da propriedade ad tempus
relativamente a eles ( CC, art. 1.360). A hermenêutica, em razão
de ser necessariamente crítica, está umbilicalmente ligada à
abertura e ao diálogo [157]157 .
Cuida-se de reafirmar, com base nas lições de Gustavo
Tepedino, que a propriedade atualmente se caracteriza como
“direito subjetivo dúctil, cujo conteúdo pode-se definir somente
na relação concreta, no momento em que se compatibilizam as
várias situações jurídicas constitucionalmente protegidas
[158]158 . Há clara preocupação constitucional com a dimensão
existencial em grau maior comparativamente à dimensão
patrimonial no âmbito jurídico, sendo que, mesmo no campo
econômico, o contrato, a propriedade e a empresa devem ser
funcionalizadas à efetivação dos valores existenciais. Nessa
perspectiva deve-se compreender a função social da
propriedade, a função social do contrato, a função social da
família, a função social da sucessão hereditária, a distinção
entre as várias propriedades (e seus diversos estatutos), a
diferenciação entre os vários tipos de contrato (de uso, de
consumo, de serviço), a objetivação e socialização da
responsabilidade civil [159]159 . O sistema jurídico no âmbito
do Direito Civil se caracteriza pela abertura aos valores ético-
políticos, aos fatos da vida real e cotidiana e pela superação do
pensamento sistemático em favor do pensamento problemático,
a propiciar novo paradigma para o Direito Civil contemporâneo
[160]160 .

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