Capítulo 4 - Sucessão Legítima Decorrente da Reprodução Assistida Póstuma
Sumáriobuscar Capítulo 4 - Sucessão Legítima Decorrente da Reprodução Assistida Póstuma Nesta parte do trabalho será abordada a questão central referente à sucessão legítima em favor do filho póstumo decorrente de técnica de reprodução assistida post mortem, porquanto a legislação civil brasileira ainda não apresentou solução clara e adequada para equacionar a eventual ocorrência de conflito de interesses entre os herdeiros legítimos inicialmente vocacionados para a sucessão do falecido e o herdeiro legítimo concebido e nascido após a morte do autor da sucessão. Rememora-se que o direito à herança é assegurado constitucionalmente (art. 5º, XXX) e que, iluminado pela funcionalização social dos institutos em geral, ele não se limita à preservação da propriedade privada para as atuais e futuras gerações, tendo a função de proteção da pessoa humana de modo a assegurar-lhe “condições dignas de sobrevivência, e permitindo o pleno desenvolvimento de suas potencialidades” [1]1 . Na advertência da doutrina, ao ordenamento jurídico interessa a destinação dada a determinada situação proprietária “de acordo com os interesses sociais subjacentes à mesma” e, assim, a morte do titular, com a consequente transmissão causa mortis da situação proprietária, pode interferir no cumprimento da sua função social [2]2 . A lei civil em vigor reconhece expressamente a condição de filho presumido àquele que vem a ser concebido e a nascer em momento posterior à morte do autor da sucessão, abrangendo as duas hipóteses: a) a reprodução assistida homóloga, ainda que depois da morte do fornecedor de sêmen; b) a gestação, a qualquer tempo, de embrião excedentário obtido de material genético do falecido ( CC, art. 1.597, III e IV) [3]3 . De imediato, é importante desconsiderar a possibilidade de o filho póstumo, como regra, somente poder suceder o falecido na sucessão testamentária – como herdeiro testamentário ou legatário. Como já foi exposto em outra parte do trabalho, a regra do Código Civil que trata da capacidade sucessória passiva em geral (art. 1.798) “disse menos do que queria” e, assim, cabe ao intérprete proceder à atividade de interpretação de modo a estender o preceito legal para os casos de crianças desenvolvidas a partir de embriões já formados ou daqueles embriões a formar – no caso de material fecundante congelado –, e não se restringindo aos nascituros [4]4 . A orientação segundo a qual as técnicas de reprodução assistida póstuma somente poderão ser consideradas no âmbito da sucessão testamentária – e não na sucessão legítima –, por óbvio, não se encontra em consonância com o ordenamento jurídico brasileiro, eis que haveria, ao menos, violação ao princípio da igualdade material entre os filhos ( CF, art. 227, § 6º) [5]5 . Em outras palavras: haveria retorno ao período anterior ao da Constituição Federal de 1988, época em que alguns filhos “eram mais filhos do que outros”, eis que havia discriminação quanto à origem e à espécie de filiação para fins de atribuição e reconhecimento de determinadas situações jurídicas (incluindo posições jurídicas ativas), entre as quais o direito sucessório [6]6 . Há, ainda, a referência normativa da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Pacto de São José da Costa Rica que refuta toda distinção fundada na forma de nascimento da pessoa [7]7 . E, mesmo que se considerasse a viabilidade de que, por vontade do autor da sucessão, houvesse deixa testamentária que buscasse, de algum modo, “compensar” a suposta ausência de sucessão legítima em favor de pessoa nascida com base em técnica reprodutiva póstuma, ainda assim haveria violação ao princípio constitucional da igualdade material entre os filhos. Tal afronta já seria caracterizada pela desigualdade dos títulos sucessórios: enquanto alguns filhos seriam herdeiros legítimos (aqueles já nascidos e existentes, e os nascituros que depois nasceram com vida), os filhos póstumos seriam herdeiros testamentários e/ou legatários. Além disso, não haveria divisão igualitária do acervo hereditário obrigatoriamente, considerando a dificuldade concreta para a pessoa do testador – e autor da sucessão – conceber critério objetivo para fins de partilha dos bens, levando-se em conta a legítima e a parte disponível. E, ademais, haveria significativo risco de o filho póstumo nada vir a herdar ou receber em legado devido à possibilidade de invalidação ou ineficácia em sentido estrito do testamento ou de parte dele. Outro aspecto importante é a consideração da interpretação sistemática dos arts. 1.597, III, e 1.798, ambos do Código Civil, para o fim de reconhecer que a técnica póstuma de reprodução assistida é expressamente admitida na legislação civil brasileira e, informada pelos princípios constitucionais, somente pode conduzir à atribuição dos mesmos direitos assegurados aos filhos existentes no momento da abertura da sucessão aos filhos póstumos [8]8 . Parcela da doutrina também recorda que, além de não ser obrigatória, a sucessão testamentária decorre de disposições de última vontade em razão de liberalidade do testador, sendo certo que há casos em que o autor da sucessão nem terá oportunidade de se manifestar em testamento, como já se verificou em determinados casos concretos [9]9 . Há, também, um fator de ordem prática, que é a falta de hábito das pessoas no Brasil de fazer testamento em razão de aspectos culturais e psicológicos envolvendo a programação dos efeitos de sua morte [10]10 . Assim, reconhece-se ao filho póstumo todos “os direitos sucessórios à criança gerada” a partir de técnica de reprodução assistida póstuma, levando-se em consideração o consentimento expresso manifestado em vida pelo autor da sucessão [11]11 . É importante o registro que, de lege ferenda, houve projeto de lei no Brasil – PL 90/99 – que previa a obrigatoriedade do descarte de gametas e embriões nos casos de falecimento dos doares do material fecundante ou de uma das pessoas que deram origem aos embriões congelados (art. 15, § 5º), criminalizando o comportamento de utilização dos gametas ou dos embriões quando o agente já sabia da morte da pessoa fornecedora de seu material. E o referido projeto de lei também previa que, se ainda assim houvesse a técnica reprodutiva póstuma, “a criança não se beneficiará de efeitos patrimoniais e sucessórios em relação ao falecido” (art. 20). Tais propostas se revelam inconstitucionais – sob a perspectiva da inconstitucionalidade material –, ao menos por violação aos princípios do planejamento familiar, da parentalidade responsável, do melhor interesse da futura criança a nascer, da sua dignidade e, principalmente, da absoluta igualdade material entre os filhos [12]12 . Há outro aspecto a ser considerado no âmbito da sucessão legítima em favor do filho póstumo que envolve a ordem de vocação hereditária ( CC, arts. 1.829 e 1.790 [13]13 ). O Código Civil de 2002 trouxe importantes novidades sobre a matéria, inserindo, por exemplo, o cônjuge ao lado dos parentes na linha reta descendente e dos parentes na linha reta ascendente, em claro prestígio à pessoa do cônjuge (e também do companheiro) [14]14 . Tal mudança legislativa se baseou na noção de que a sucessão legítima tem fundamento nas qualidades específicas dos herdeiros legítimos e seus vínculos com o autor da sucessão no âmbito da convivência familiar e, por isso, não era possível continuar tratando o cônjuge em segundo plano na sucessão legítima. É interessante o registro de que, além de haver alçado o cônjuge à condição de herdeiro legítimo necessário ( CC, art. 1.845), a lei civil estabeleceu o seu chamamento em concorrência sucessória com os descendentes – de acordo com o regime de bens – e com os ascendentes ( CC, art. 1.829, I e II) e também o contemplou com o direito real de habitação independentemente do regime de bens ( CC, art. 1.831). A sucessão legítima, na atualidade, deve se basear na tutela dos interesses dos herdeiros integrantes da entidade familiar a qual pertencia o falecido, na busca da concepção instrumental da entidade familiar que assegura sua assistência na pessoa de cada um dos seus membros ( CF, art. 226, § 8º) [15]15 . Ao proceder à análise das novas tendências do Direito das Sucessões, Ana Luiza Nevares traçou inicialmente um panorama histórico até se referir ao período revolucionário na França (século XVIII) com a redução da sucessão hereditária “exclusivamente ao aspecto patrimonial”, de modo a excluir da transmissão causa mortis dos bens quaisquer formas de poder ou de privilégios referentes ao falecido na organização social, como integrante de determinada família [16]16 . Houve abolição do sistema de pluralidade de sucessões até então verificado na França para estabelecer a igualdade completa entre os herdeiros da mesma classe e mesmo grau, sem distinção de sexo ou idade, instaurando o sistema da unidade da sucessão e a igualdade entre os herdeiros [17]17 . Em seguida, o princípio da unidade da sucessão se espraiou para outros ordenamentos jurídicos da tradição jurídica do civil law – especialmente no período áureo das codificações ocidentais – entre os quais o direito brasileiro. Na contemporaneidade, contudo, faz-se necessário revisitar o Direito das Sucessões, principalmente quanto ao princípio da unidade da sucessão, para passar a admitir sua derrogação em determinados casos em atenção à natureza ou à origem do bem, ou em virtude das qualidades pessoais do sucessor hereditário, o que a doutrina passou a denominar “sucessão anômala” [18]18 . Em virtude da transição do Estado Liberal para o Estado Social, período caracterizado pela busca da isonomia material (e não meramente formal), da noção de funcionalização social dos institutos privados, pela instauração de relações sociais mais justas, iguais e democráticas e pela tutela dos mais vulneráveis, as hipóteses de sucessão anômala passam a ser consideradas para atender a tais exigências, distinguindo-se em dois grupos: Num primeiro grupo, o regime especial assegura a destinação de certos bens à satisfação de necessidades de pessoas qualificadas por relação de dependência econômica ou de costume de vida com o defunto; num segundo, o regime especial tutela o interesse coletivo, a evitar que as mutações da propriedade se resolvam, pela divisão hereditária, em causa de desmembramento de unidades econômicas produtivas e, ao mesmo tempo, de interesses individuais de co-herdeiros a conservar sua fonte de renda, pois colaboravam na empresa do de cujus [19]19 . Desse modo, Ana Luiza Nevares defende que as hipóteses de sucessão anômala não sejam consideradas mais excepcionais, eis que no âmbito do Direito das Sucessões é preciso que as regras de sucessão – legítima e testamentária – atentem para a pessoa do sucessor, nos seus vários e diversificados interesses, necessidades, exigências, qualificações individuais, sem qualquer distinção acerca da espécie de entidade familiar daquele que é chamado para suceder [20]20 . Do mesmo modo, é preciso que a natureza dos bens transmitidos por sucessão causa mortis deva ser considerada no momento da transmissão, somando-se aos critérios clássicos do estabelecimento da partilha – maior igualdade possível entre os herdeiros, comodidade dos herdeiros e prevenção de futuros litígios ( CC, arts. 2.017 e 2.019)– os critérios mais contemporâneos relativos às reais necessidades e aos interesses dos sucessores quanto ao julgamento dos pedidos de preenchimento dos quinhões de cada sucessor [21]21 . A lei civil, ao tratar da ordem de vocação hereditária, separa os herdeiros legítimos em ordens e classes, prevendo uma hierarquia que deve ser observada quando do efetivo chamamento deles à sucessão hereditária. Por isso, aplicam-se as regras tradicionalmente estabelecidas nas legislações que tratam do Direito das Sucessões nos países ocidentais: a) uma classe sucessível somente é chamada concretamente quando não houver qualquer integrante das classes anteriores; b) nas classes dos parentes, os mais próximos excluem os mais remotos, salvo nos casos de direito de representação [22]22 . Desse modo, os herdeiros de cada classe são considerados preferenciais relativamente aos herdeiros das classes abaixo, ocasionando, assim, o chamamento de parentes colaterais apenas na hipótese em que não houver descendentes, cônjuge (ou companheiro) e ascendentes do autor da sucessão. E, no interior das classes relativas à ordem de vocação dos parentes do de cujus, a preferência é estabelecida pela maior proximidade do grau de parentesco da pessoa em relação ao autor da sucessão. Com base em tais premissas que norteiam a sucessão legítima no Direito brasileiro, deve ser analisado o tema da superveniência de filhos – parentes na linha reta descendente – em momento posterior ao do falecimento do seu pai, não apenas no que tange aos filhos não reconhecidos em vida como também no caso dos filhos póstumos – fruto de técnicas reprodutivas póstumas. Alguns exemplos podem ser analisados para poder pontuar as diferentes situações verificáveis na prática. O primeiro envolve o caso de falecimento de pessoa que, em vida, não havia reconhecido ou tido filhos juridicamente seus, mas que deixou ascendentes, tratando-se de pessoa solteira (nunca tendo se casado ou vivido em companheirismo com outra pessoa). Nos termos da ordem de vocação hereditária da sucessão legítima, os ascendentes são os herdeiros chamados com base na ordem legal ( CC, art. 1.829, II). No entanto, havendo o aparecimento de filho do de cujus que não havia sido reconhecido em vida por ele, por meio de ação de investigação de paternidade cumulada com petição de herança, haverá alteração completa do quadro da sucessão legítima, eis que os descendentes são chamados antes dos ascendentes na sucessão legítima ( CC, art. 1.829, I). Em síntese: o herdeiro legítimo que efetivamente receberá toda a herança legítima será o filho reconhecido judicialmente em momento posterior ao da morte do autor da sucessão, caso em que ele excluirá os ascendentes do de cujus da sucessão legítima desse. É certo que, em razão de alguns valores e princípios fundamentais que devem ser considerados, entre eles a segurança jurídica, serão exigidas algumas providências para que seja possível a atribuição da herança legítima ao único filho deixado pelo falecido, inclusive a observância de prazo prescricional da petição de herança. Outra possibilidade de alteração do regime sucessório envolvendo a herança legítima deixada pelo falecido diz respeito à hipótese em que ele deixou filhos existentes – ou ao menos já concebidos – quando da abertura da sucessão e, posteriormente, surge outro filho por ele não reconhecido em vida. Nesse caso, será mantido o chamamento dos herdeiros legítimos da classe e grau dos descendentes-filhos, mas ao número anterior de filhos será somado o “novo” filho reconhecido em época posterior ao momento da abertura da sucessão. Haverá, desse modo, necessidade de proceder à partilha dos bens com mais um herdeiro legítimo além daqueles que já tinham sido identificados no momento da morte do autor da sucessão. Diversamente da primeira hipótese referida, os herdeiros legítimos na classe dos descendentes e no grau de parentes em linha reta em primeiro grau não serão excluídos da sucessão legítima do acervo hereditário deixado pelo de cujus, mas a divisão deverá ser feita com base no maior número de beneficiários da sucessão legítima comparativamente ao quantitativo inicialmente considerado. Pode ocorrer de, no momento da abertura do inventário judicial em razão da morte do autor da sucessão, haver sido preterido filho que não foi indicado entre seus herdeiros legítimos e, desse modo, mediante habilitação feita nos autos judiciais – sem necessidade de ação de petição de herança – haver o reconhecimento da sua qualificação de herdeiro e, assim, sua inclusão no processo para o fim de haver partilha dos bens deixados. O mesmo raciocínio anteriormente desenvolvido a respeito do surgimento do filho não reconhecido em vida pelo falecido após a sua morte ocorrerá, mutatis mutandis, no caso de se identificar o surgimento do filho póstumo, ou seja, daquele que se originou do embrião congelado ou do material fecundante criopreservado na época da abertura da sucessão. Assim, em razão do êxito da técnica de reprodução assistida póstuma, poderão ser excluídos os herdeiros legítimos de classe inferiores à classe dos descendentes – primeira hipótese – ou ser considerado o filho póstumo como concorrente sucessório dos outros filhos existentes do falecido – segunda hipótese – na sucessão legítima verificada devido à morte da pessoa que deixou embrião congelado ou material fecundante seu criopreservado na época da abertura da sucessão. Ana Cláudia Scalquette, após defender a posição segundo a qual a sucessão legítima deve ser garantida ao filho póstumo do autor da sucessão, sustenta que o instituto da ausência ( CC, arts. 22 a 36) deve servir como paradigma para a tutela dos interesses sucessórios do filho póstumo [23]23 . Desse modo, com a morte da pessoa que manifestou consentimento para o emprego de técnica reprodutiva póstuma, abrir-se-ia sua sucessão provisória que, após determinado período de tempo, converter-se-ia em sucessão definitiva. Desse modo, haveria proteção por tempo determinado dos direitos sucessórios dos futuros filhos, mesmo após a morte do autor da sucessão, de modo a propiciar a organização e o planejamento dos efeitos sucessórios por parte do cônjuge ou companheiro sobrevivente [24]24 . A ideia de instauração de sucessão provisória pelo prazo de 3 (três) anos tem como fundamento a busca de conciliação entre os vários interesses em questão. Anna Beraldo não concorda com a solução anteriormente proposta por considerar que, no caso de embriões – e, com muito mais razão, de material fecundante congelado –, há “uma vida em potencial”, sendo perfeitamente possível que tanto os embriões quanto o sêmen (ou óvulo) não venham a ser aproveitados – ou consigam se desenvolver para gerar uma criança e permitir seu nascimento [25]25 . De acordo com dados compilados pela ANVISA – Agência Nacional de Vigilância Sanitária –, no ano de 2015, estendendo-se até fevereiro de 2016, foram congelados 67.359 embriões em 141 clínicas de reprodução humana assistida [26]26 , representando um aumento de 40% do número existente de embriões congelados no ano de 2014 (47.812). Suponha-se que metade dos cônjuges ou companheiros supérstites, em razão da morte do autor da sucessão, resolvesse ter acesso às técnicas de reprodução assistida post mortem relativamente ao número de embriões cadastrados na ANVISA. Haveria significativo número de sucessões abertas com razoável dose de instabilidade e insegurança jurídica caso se concebesse a aplicação das regras referentes à sucessão provisória nesses casos. Ana Luiza Nevares, ao cuidar do fenômeno sucessório e os diversos estatutos proprietários, observa que são vários os problemas que podem ocorrer devido à morte do titular de bens imateriais, tais como ações de grandes sociedades empresárias, direitos autorais, marcas e patentes, fundos empresariais, fontes de energia, entre outros, apresentando caso no qual o pai deixou para um grupo de filhos todas as ações ordinárias de uma sociedade anônima e para outro grupo de filhos as ações preferenciais [27]27 . Nesse exemplo, o testador teve por objetivo transmitir o controle da sociedade empresária para alguns dos filhos, e não para outros, o que, a princípio, revela-se possível levando em consideração a natureza e a finalidade dos bens transmitidos por sucessão causa mortis. A autora ainda registra que, usualmente, os critérios de classificação dos bens no âmbito da teoria geral não dão conta da dimensão existencial que os bens exercem na conservação e promoção da dignidade da pessoa humana dos herdeiros do falecido: Nessa perspectiva, a análise da natureza do bem ganha relevo não pelo bem em si, mas pelo conjunto de interesses que recai sobre o mesmo, voltado para a concretização da dignidade da pessoa humana (...). É o que ocorre, por exemplo, com o imóvel residencial (...), cuja impenhorabilidade está prevista na Lei n. 8.009/90, e nos arts. 1.711 e seguintes do Código Civil. A tutela diferenciada, a saber, a impenhorabilidade, é estabelecida em virtude do conjunto de interesses que recai sobre o aludido bem, ou seja, a garantia da moradia, indispensável para a concretização de uma vida digna [28]28 . Como no Direito das Sucessões busca-se a alocação de bens no momento posterior ao da morte do titular do patrimônio, é relevante distinguir as categorias e os tipos de bens transmitidos de acordo “com o conjunto de interesses a que os mesmos se referem, de forma a garantir o cumprimento da função social da situação proprietária na transmissão causa mortis” [29]29 . Em alguns casos, a verificação da natureza dos bens é indispensável em razão da finalidade deles e a atividade desempenhada por alguns herdeiros, de modo a conservar ou promover suas dignidades com a transmissão hereditária, como no exemplo dos bens que servem para exploração agrícola. Como adverte Jose Luis de Los Mozos, relativamente aos bens que serviam à exploração agrícola antes do falecimento do seu proprietário, haveria o risco de fragmentação dos aspectos que compõem os elementos da empresa agrícola caso houvesse diluição de tais bens e, assim, busca-se a manutenção da unidade da exploração agrícola, eis que tal medida preserva os interesses da sociedade [30]30 . Nesse caso, não há interesses apenas dos sucessores mas também interesses socioeconômicos relativos à produtividade agrícola, ao uso racional e adequado da terra e à conservação dos empregos dos trabalhadores rurais [31]31 . No Direito italiano, há a previsão do direito de preferência em favor do familiar que trabalha de modo contínuo na sociedade empresária familiar quanto à divisão da herança a ser realizada (CC italiano, art. 230 bis) [32]32 . No âmbito do Direito brasileiro, o princípio da maior igualdade possível entre os herdeiros – legítimos e testamentários –, para fins de partilha do acervo hereditário, deve ser compatibilizado com outros critérios, sendo admissível, inclusive, que o testador indique bens e valores que devem compor os quinhões hereditários ( CC, art. 2.014), ressalvado se o valor dos bens não corresponder às quotas hereditárias estabelecidas – por lei ou em testamento. Como adverte a doutrina a respeito do tema, a partilha deve evitar riscos de futuros litígios e, assim, o quinhão de cada herdeiro deve estar em correspondência com os dos demais, não apenas quanto ao aspecto do valor dos bens mas também acerca da qualidade, espécie, destinação, proveito e outros fatores relativos à “tradicional regra de dar a cada um o que é seu” [33]33 . Os critérios norteadores da partilha não recomendam que, no momento da divisão, seja conveniente que todos os coerdeiros fiquem com fração ideal de cada bem; ao revés, é recomendado que se evite o condomínio entre aqueles coerdeiros e, por isso, a partilha deve buscar a “comodidade dos herdeiros e, tanto quanto o permitir a igualdade a ser observada, evitar litígios futuros” [34]34 , além de dar efetividade aos princípios constitucionais atualmente considerados nas relações privadas, inclusive a função social da propriedade. Ao tratar do tema da cessão dos direitos hereditários, Rodrigo Toscano de Brito observa que, em vários casos, há o interesse de todos os herdeiros em alienar um bem determinado integrante da herança devido a uma boa oportunidade de venda, o que deve ser admitido como modo de facilitar a maior e mais fácil circulação de riqueza, “dando um dinamismo maior à transferência da propriedade” [35]35 . O autor observa que, na disciplina normativa trazida no Código Civil de 2002 (art. 1.793), houve a imposição de limites para a cessão de direitos hereditários, especialmente quando se pretender singularizar determinado bem integrante da herança para tal fim. O coerdeiro pode, livremente, dispor do seu quinhão hereditário ou de parte dele – desde que observado o direito de preferência dos demais coerdeiros –, e apenas a título excepcional pode alienar seu quinhão ou parte dele sobre bem singularizado, caso haja autorização judicial mediante alvará [36]36 . Como as operações econômicas relacionadas às alienações patrimoniais – inclusive de imóveis – são extremamente dinâmicas, deve-se interpretar as regras legais sobre cessão de direitos hereditários relacionados a bem considerado singularmente quanto se tratar de coerdeiro agindo sozinho, ou seja, de modo isolado, mas nada obsta a que todos os coerdeiros resolvam ceder seus direitos hereditários relativos à determinado imóvel e, assim, o contrato será perfeitamente válido e eficaz [37]37 . Zeno Veloso registra duas hipóteses nas quais a cessão hereditária de bem individuado será válida e eficaz: a) quando somente houver um herdeiro na sucessão aberta; b) quando todos os herdeiros fizerem a cessão em conjunto [38]38 . Tais observações demonstram como é importante a identificação dos interesses de terceiros relativamente aos efeitos da sucessão hereditária e, assim, é fundamental atentar para as repercussões que as condutas dos herdeiros podem gerar no meio social. Com base no desenvolvimento das tecnologias na contemporânea sociedade de informação (e em rede), há quem defenda a possibilidade de a sucessão hereditária também abranger determinadas categorias denominadas de “bens digitais”, ou seja, “conjuntos organizados de instruções, na forma de linguagem de sobrenível, armazenados em forma digital”, traduzidos por computadores ou outros dispositivos semelhantes que produzem funcionalidades determinadas [39]39 . Assim, a rede mundial de computadores permite o armazenamento de vários dados e bens digitais, tais como e- books, músicas, vídeos, jogos, fotografias, além de páginas virtuais conterem valor patrimonial agregado, com arquivos no Facebook, Instagram, LinkedIn, Twitter, SoundCloud, entre outros [40]40 . No âmbito da sucessão legítima, devem ser ponderados os interesses das pessoas originalmente chamadas como herdeiras do falecido, dos terceiros com quem tais pessoas negociaram os bens integrantes da herança legítima e do herdeiro póstumo [41]41 . Este trabalho busca, à luz do sistema jurídico em vigor, apresentar solução para os possíveis conflitos de interesses, utilizando-se dos instrumentos processuais e institutos jurídicos disponíveis no Direito brasileiro, em especial com a noção da propriedade ad tempus identificada nas pessoas originalmente chamadas concretamente para a sucessão legítima do falecido. 4.1. Admissão de herdeiro legítimo no inventário judicial Nos autos do inventário judicial, cabe ao inventariante prestar as primeiras declarações com os dados e as informações de seu conhecimento para preparar a posterior partilha dos bens (ou a adjudicação dos bens ao único herdeiro). Nas primeiras declarações haverá indicação dos bens, valores e dívidas deixadas pelo autor da sucessão, além da apresentação do rol dos sucessores com identidades civis e suas qualificações [42]42 . Os herdeiros que não estiverem representados nos autos, mas tenham sido referidos pelo inventariante, deverão ser citados para fins de se habilitarem nos autos. De acordo com a legislação processual civil, a pessoa que se considerar preterida poderá requerer sua admissão no inventário ( CPC/15, art. 628) desde que o faça antes de ser realizada a partilha dos bens deixados pelo autor da sucessão. Para tanto, é fundamental que seja demonstrada sua condição de sucessor universal com base na prova documental apresentada [43]43 . Assim, após ouvidas as partes do inventário judicial sobre o pedido de admissão nos autos como herdeiro legítimo, o juiz decidirá a respeito ( CPC/15, art. 628, § 1º). Até a partilha, assim, qualquer interessado tem legitimação para requerer seu ingresso no inventário judicial. O que não se revela possível é a reabertura do processo de inventário já encerrado para examinar o requerimento de admissão do herdeiro preterido [44]44 . Na eventualidade de a questão suscitada pelo requerente não poder ser solucionada com base na prova documental, o juiz a remeterá para as vias ordinárias e, sendo o caso, mandará reservar o quinhão correspondente à possível parte do requerente em poder do inventariante até que a lide seja resolvida ( CPC/15, art. 628, § 2º). O envio das partes às vias ordinárias é solução legislativa que permite o prosseguimento do processo de inventário que, assim, não sofrerá solução de continuidade [45]45 . As questões de alta indagação no âmbito do Direito Processual Civil, relativamente ao procedimento de inventário e partilha, são aquelas que não admitem ser provadas apenas por documentos e, assim, a lei processual civil determina que tais questões sejam solucionadas em outro procedimento que não o de inventário judicial ( CPC/15, art. 612). A expressão questão “de alta indagação” – empregada no art. 984 do CPC/73 – que remetia à noção de conceito jurídico indeterminado, foi substituída no Código de Processo Civil atualmente em vigor com base na noção de “fatos relevantes” prováveis por documento, não exigindo dilação probatória. Todas as questões – de fato ou de direito –, ainda que complexas, comprováveis documentalmente e que, portanto, não exijam fase de abertura e produção de provas outras que não a documental, devem ser resolvidas no inventário judicial [46]46 . As questões de direito, por mais complexas que possam se apresentar, mas dependentes apenas da interpretação e aplicação das normas jurídicas em vigor, devem ser julgadas pelo juiz orfanológico que preside o processo de inventário, o que também se verifica no âmbito das questões de fato do mesmo modo complexas, inclusive a respeito da admissão do filho póstumo como herdeiro legítimo (como no exemplo da incidência do art. 1.597, III, do Código Civil). Kazuo Watanabe leciona que é possível decisão do juiz orfanológico no caso de disputa sobre a qualidade de herdeiro nos autos do inventário, caso haja “elementos bastantes para o estabelecimento do juízo de certeza”; contudo, “à falta de suporte probatório suficiente para o convencimento, fica configurada matéria de alta indagação” [47]47 , hipótese na qual o juiz deverá remeter as partes às vias ordinárias. No inventário “tradicional” ou comum, que segue o procedimento previsto no Código de Processo Civil (arts. 610 a 658), é reconhecida a possibilidade de a pessoa supostamente preterida requerer sua admissão nos autos do processo ainda não findo – eis que não realizada a partilha dos bens. Como registra a doutrina, depois de ouvidos todos os interessados, o juiz poderá decidir favoravelmente ao pedido de admissão nos autos, caso em que não será necessária a propositura da ação de petição de herança [48]48 , devendo haver a retificação das primeiras declarações prestadas pelo inventariante. Ao revés, se o juiz considerar que o pedido de admissão da pessoa que alega ter sido preterida for questão relacionada a fato relevante que demande dilação probatória e, portanto, dependa de outras provas que não apenas a documental, deverá remeter o requerente para as vias ordinárias, podendo determinar a reserva do quinhão respectivo ao requerente de modo a aguardar a solução da lide nos outros autos cuja ação deverá ser ajuizada em até 30 (trinta) dias, sob pena de cessação da eficácia da medida [49]49 . Luiz Paulo Vieira de Carvalho observa que, relativamente ao filho não reconhecido em vida pelo falecido, deve ser produzida prova documental da paternidade, não sendo bastante o reconhecimento do seu estado de filiação pelos demais herdeiros do autor da sucessão, eis que somente os pais podem reconhecer voluntariamente seus filhos, não sendo possível o reconhecimento espontâneo dos demais sucessores nos autos do inventário judicial [50]50 . No âmbito da sucessão legítima que também envolva filho resultante de técnica de reprodução assistida póstuma, diante das alternativas já referidas em outra parte do trabalho, é possível que o cônjuge supérstite ou seu companheiro consiga ter acesso à técnica de reprodução assistida póstuma pouco tempo depois da morte do autor da sucessão e, assim, venha a permitir o desenvolvimento do futuro filho via gravidez ainda no período de tramitação do inventário judicial. Em outras palavras: nesse caso, o embrião se tornou nascituro e, por isso, deve, imediatamente, ser protegido quanto aos seus interesses, tanto assim o é que o Código de Processo Civil em vigor determina que, havendo nascituro entre os interessados no inventário e partilha, “o quinhão que lhe caberá será reservado em poder do inventariante até o seu nascimento” (art. 650). Trata-se de nova incumbência ao inventariante [51]51 devido à constatação da existência do nascituro no curso de tramitação do procedimento de inventário e partilha. Mesmo no período anterior ao advento do Código de Processo Civil de 2015, havia orientação doutrinária no sentido da viabilidade da reserva de bens referentes ao possível quinhão em favor do nascituro, com a possibilidade de se proceder à partilha do remanescente [52]52 . Nos casos de presunção legal de paternidade em decorrência das técnicas de reprodução humana homóloga ( CC, art. 1.597, III e IV) e heteróloga ( CC, art. 1.597, V) relativamente à pessoa do falecido marido, haverá , assim, prova documental que embase o status de futuro filho do nascituro e, portanto, é suficiente o pedido de admissão nos autos do inventário para fins de recebimento da herança – se for herdeiro legítimo único – ou do seu quinhão hereditário – quando houver concorrência sucessória com outros herdeiros legítimos. O mesmo não ocorrerá no caso de companheiro do sexo masculino que veio a falecer, porquanto relativamente a ele não se opera a presunção de paternidade prevista no art. 1.597 do Código Civil [53]53 , levando em consideração a inexistência do fundamento do dever de fidelidade recíproca no âmbito do companheirismo. É até mesmo possível que a criança, fruto de reprodução assistida póstuma, venha a nascer com vida durante a tramitação do inventário, levando em conta a previsão contida na lei processual civil que o inventário judicial poderá se encerrar até 14 meses a contar da abertura da sucessão – dois meses para abertura do inventário, e 12 meses subsequentes para sua ultimação ( CPC/15, art. 611). Nessa hipótese, se houve preterição do filho póstumo, caberá ao seu representante legal agir em nome da criança para o fim de requerer sua admissão nos autos do inventário judicial de modo a poder participar do processo que preparará a partilha dos bens deixados pelo falecido. 4.2. Petição de herança Nos termos da lei civil em vigor a herança defere-se como “um todo unitário”, mesmo que sejam vários os herdeiros (CC, art. 1.791, caput), sendo que, até o momento da partilha, o direito dos coerdeiros acerca da propriedade e da posse da herança será indivisível [54]54 , aplicando-se as normas pertinentes ao condomínio ( CC, art. 1.791, parágrafo único). No âmbito da sucessão causa mortis há algumas demandas judiciais que vinculam aos direitos sucessórios, entre as quais se situa a ação de petição de herança [55]55 . A petição de herança não tinha sido formalmente regulada no âmbito do Código Civil de 1916, diversamente do que se verifica no Código Civil de 2002 (arts. 1.824 a 1.828) [56]56 . Com base na noção doutrinária, a ação de petição de herança é aquela atribuída ao herdeiro – legítimo ou testamentário – contra aquele que, sob o pretexto de ter direito sucessório, detém os bens da herança no todo ou em parte [57]57 . Trata-se da ação ajuizada pelo herdeiro ou qualquer dos coerdeiros para o fim de ter reconhecida sua qualidade de herdeiro e, assim, reclamar de terceiros a universalidade da herança, ou dos outros herdeiros seu quinhão hereditário no acervo deixado pelo falecido. A petição de herança serve para as duas hipóteses anteriormente referidas: a) o único herdeiro que pretende ter reconhecida sua condição jurídica para, simultaneamente, herdar toda a herança e, logicamente, afastar outras pessoas que até então eram consideradas herdeiras do falecido; b) o herdeiro que, ao deduzir o pedido de reconhecimento de seu direito à herança, poderá concorrer com outros herdeiros da mesma classe na ordem de vocação hereditária, originalmente chamados concretamente para a sucessão legítima. Carvalho Santos reputava a ação de petição de herança como uma ação real “mediante a qual o herdeiro reclama a qualidade de herdeiro e pede a restituição de tudo o que é parte (res hereditariae) ou dependência (res hereditatis) da própria herança” [58]58 . Cuida-se de ação destinada ao reconhecimento da condição jurídica de sucessor universal legítimo do autor, objetivando a definição judicial do seu status do qual derivam a aquisição e a reivindicação dos bens que integram sua herança legítima [59]59 . A meta do autor da ação de petição de herança é a tutela de seu direito de propriedade e, por isso, ela é considerada ação real que, portanto, versa sobre direitos reais [60]60 . Nem sempre quem requereu a abertura do inventário judicial (CPC/15, art. 610, caput) ou procurou o tabelião para lavrar escritura de inventário e adjudicação extrajudiciais (Lei 11.441/07; CPC/15, art. 610, §§ 1º e 2º) é o verdadeiro herdeiro legítimo ou testamentário do autor da sucessão. Assim, havendo omissão ou controvérsia sobre a qualidade de herdeiro, a pessoa que pretende ver reconhecida sua condição de sucessor universal do falecido de modo a poder exercer os direitos sucessórios – em especial ter reconhecida a aquisição da propriedade dos bens integrantes da herança –, poderá ajuizar a ação de petição de herança se não teve oportunidade de requerer sua admissão nos autos do inventário judicial. A legitimidade ativa para a ação de petição de herança é reconhecida a quem alega ser herdeiro do autor da sucessão e, desse modo, pretende ver reconhecida a sua condição jurídica de sucessor, ora pretendendo receber a totalidade dos bens da herança (caso de exclusão das demais pessoas), ora pretendendo participar da sucessão para receber parte da herança (devido à existência de outros herdeiros). O legatário não é legitimado ativo para a ação de petição de herança em razão de não se tratar de sucessor a título universal, mas, sim, sucessor a título singular, eis que, caso não seja entregue o bem deixado em legado em seu favor por disposição de última vontade do testador, deverá ser ajuizada ação de petição de legado em face do onerado que se recusou a cumprir a previsão testamentária (CC, art. 1.934, caput) [61]61 . Reconhece-se a legitimidade ativa para o inventariante, o administrador da falência do de cujus ou do herdeiro preterido, o administrador do concurso de credores na insolvência civil, o testamenteiro e o curador da herança jacente do falecido ou do herdeiro, exatamente em razão do interesse patrimonial que existe em decorrência da ação de petição de herança [62]62 . No período anterior ao da vigência do Código Civil de 2002, houve controvérsia acerca de quem seria legitimado passivo na ação petitio hereditatis, porquanto houve quem defendesse que a ação somente poderia ser proposta em face daqueles que afirmavam ser sucessores do autor da sucessão [63]63 . Na visão doutrinária clássica, a legitimidade passiva na ação de petição de herança é identificada relativamente ao possuidor: a) pro herede, isto é, a pessoa que pensa tratar-se de herdeiro, ou aquele que, não sendo herdeiro, possuir a herança ou o quinhão hereditário sob a alegada condição de possuidor; b) pro possessore, a saber, a pessoa que apenas alega ser possuidora sem alegar qualquer direito seu para continuar com a posse da herança [64]64 . Mas também poderá ser réu na ação de petição de herança a pessoa do herdeiro legítimo na mesma classe da ordem e vocação hereditária do autor da ação, caso em que o objetivo da demanda é ter reconhecido o direito sucessório do herdeiro que apareceu após a morte do autor da sucessão para o fim de receber parte do acervo hereditário (seu quinhão), e não a totalidade da herança. A doutrina esclarece, ainda, que devem ser réus na ação de petição de herança, além do possuidor dos bens sucessíveis, todos os herdeiros do autor da sucessão, mesmo que todos eles ou alguns deles tenham cedido a herança renunciado a ela [65]65 . A lei civil em vigor (art. 1.824) resolveu a celeuma ao prever que a ação de petição de herança poderá ser proposta tanto em face de quem ostente a qualidade de herdeiro – possessor pro herede – quanto de terceiro que tenha bens da herança em seu poder desprovido de título aquisitivo, apenas sob a alegação de ser possuidor deles – possessor pro possessore [66]66 . A ação de petição de herança é ação de caráter universal, eis que tem por objeto a universalidade dos bens hereditários (ou parte ideal do acervo), razão pela qual o autor da demanda judicial não deve indicar determinado bem individualmente considerado, daí distinguindo-se da ação de reivindicação da coisa: A petição de herança é para o direito hereditário o que a reivindicação é para o direito de propriedade, como muito bem adverte Maynz, mas o que as distingue nitidamente é o seguinte: o caráter universal da petição de herança, enquanto a reivindicatória é uma ação particular [67]67 . Carlos Roberto Gonçalves registra que, a despeito das semelhanças, a ação de petição de herança não se confunde com a ação de reivindicação de coisa em razão de determinadas características e efeitos [68]68 . Embora ambas as ações consistam em meios processuais de tutela da propriedade de bens, a reivindicatória busca o reconhecimento da propriedade e o retorno de coisa singularmente identificada à esfera patrimonial do titular da situação jurídica proprietária, enquanto a petição de herança tem natureza de ação universal, buscando o retorno do patrimônio hereditário por inteiro ou em quota ideal para fins de permitir a destinação aos herdeiros legítimos ou testamentários. A ação de petição de herança compreende dois pedidos: (i) o de declaração ou reconhecimento da relação jurídica na qual o autor da demanda seja herdeiro do falecido; (ii) o de que lhe seja entregue o respectivo quinhão hereditário ou haja o repasse de determinados bens que integram a herança ou, eventualmente, toda a herança, caso ele seja herdeiro único [69]69 . De acordo com a disciplina legal em vigor, devido ao caráter universal e indivisível da herança, qualquer um dos coerdeiros poderá demandar, por meio da petição de herança, a entrega de todos os bens hereditários, mesmo que seja o único entre os herdeiros a acionar o réu que pode ser terceiro estranho à sucessão ( CC, art. 1.825). Desse modo, por exemplo, na eventualidade de o falecido haver deixado três filhos sem reconhecimento de paternidade em vida, qualquer um dos três poderá promover a ação de petição de herança para o fim de exigir a devolução de todo o acervo hereditário do parente colateral que havia recebido os bens na integralidade devido ao não aparecimento de qualquer dos herdeiros das classes antecedentes da ordem de vocação hereditária quando da abertura da sucessão [70]70 . A ação de petição de herança pode ser proposta em juízo antes ou depois de realizados o inventário e a partilha (ou adjudicação) dos bens hereditários, obviamente levando em conta as circunstâncias do caso, ressalvada a possibilidade de haver admissão do herdeiro preterido nos autos da ação de inventário judicial ( CPC/15, art. 628). Os limites subjetivos da coisa julgada impedem que sejam produzidos efeitos da partilha julgada por sentença, ou mesmo da homologação de acordo feita em juízo. Assim, no caso de reconhecimento do direito do autor da demanda, deverá ser realizada nova partilha ou poderão os bens ser adjudicados exclusivamente ao herdeiro único. Antes do encerramento do inventário e da partilha judiciais, é cabível o pedido de concessão de tutela de urgência em favor do herdeiro preterido para o fim de obtenção de reserva de bens para o caso de haver êxito na ação de investigação de paternidade cumulada com petição de herança, por exemplo. À luz do Código Civil em vigor (art. 1.824), Francisco Cahali observa que, em uma leitura interpretativa mais apressada, poder-se-ia cogitar que a norma permite que, via ação de petição de herança, seja imediatamente outorgado ao autor da demanda seu quinhão hereditário na sucessão legítima, no caso em que ele concorra com outros herdeiros, e não venha a ser reconhecido como herdeiro único [71]71 . Corretamente, o autor considera que não é no bojo da ação de petição de herança que será realizado o inventário e a partilha, e sim a definição da ineficácia do inventário e da partilha (ou adjudicação) anteriormente feitos, de modo a permitir que haja a restituição dos bens da herança ou de parte dela ao monte-mor para o fim de promover a correta divisão por sentença no processo de inventário e partilha ou, eventualmente, por escritura pública na qual também participará o herdeiro anteriormente ignorado [72]72 . Desse modo, o cumprimento da sentença de procedência do pedido da ação de petição de herança consistirá no réu restituir os bens que até então possuía ao acervo hereditário para o fim de retomar a fase do inventário dos bens e sucessores para o fim de preparar a divisão patrimonial entre eles. O herdeiro preterido objetiva, via ação de petição de herança, o reconhecimento da sua condição de sucessor e, simultaneamente, a devolução ao acervo da herança os bens que porventura já tinham sido destinados concretamente a outras pessoas. A ação de petição de herança também poderá ser proposta para o fim de ser reconhecido se tratar de hipótese de rompimento de testamento, além da condição de herdeiro legítimo do autor da demanda ( CC, art. 1.973). O descendente sucessível que sobrevém à morte do testador pode propor a demanda para o fim de pedir não somente a declaração da relação jurídica na qual é herdeiro legítimo mas também o reconhecimento de que houve rompimento das disposições testamentárias com o efeito automático da invalidação da partilha, caso ela tenha sido realizada [73]73 . No caso de os herdeiros que se apresentaram pretenderem realizar inventário e partilha por escritura pública (Lei 11.441/07; CPC/15, art. 610, § 1º), a ação de petição de herança pode ser ajuizada no momento da preparação do instrumento público pelo tabelião com a atuação do advogado dos herdeiros existentes ou mesmo em momento posterior ao da realização da escritura pública [74]74 . Acerca da competência para a ação de petição de herança, cabe à lei de organização judiciária de cada Estado (e do Distrito Federal) discipliná-la ( CF, art. 125, § 1º). No âmbito do Estado do Rio de Janeiro, o Código de Organização e Divisão Judiciária prevê competir aos juízes de família conhecer e julgar as ações de investigação de paternidade cumuladas com petição de herança (art. 87, I, b), e aos juízes orfanológicos as ações de petição de herança não cumuladas com outros pedidos (art. 87, I, c). No caso de cumulação dos pedidos de investigação de paternidade e petição de herança, pode o julgador determinar que se oficie ao juízo orfanológico para o fim de reservar o possível correspondente quinhão hereditário do autor da ação que tramita no juízo de família até que haja definição do tema vinculado à paternidade/filiação [75]75 . Na vigência do Código Civil de 1916, mesmo sem disciplina legal expressa a respeito da questão, considerava-se o prazo de 20 (vinte) anos para o ingresso com a ação de petição de herança, ou seja, a utilização do prazo prescricional geral para a demanda, normalmente computado a partir do momento da abertura da sucessão [76]76 . Com as alterações introduzidas pelo Código Civil de 2002, o prazo prescricional geral passou a ser de 10 (dez) anos, aplicável também às pretensões relacionadas à ação de petição de herança ( CC, art. 205). 4.2.1. Efeitos da petição de herança no plano interno A lei civil cuida, de modo pioneiro, dos efeitos do êxito da demanda de petição de herança ( CC, art. 1.826 [77]77 ), ao estabelecer que o então possuidor da herança fica obrigado a entregar os bens do acervo hereditário ao herdeiro, sendo o grau de sua responsabilidade medido de acordo com a qualificação de sua posse sobre a herança ( CC, arts. 1.214 a 1.222). Logo, dependendo da modalidade da posse anterior exercida pelo réu da ação de petição de herança (posse de boa ou de má-fé, entre outras), haverá efeitos diferentes relacionados à petição de herança. De modo resumido, ao possuidor de boa-fé são reconhecidos os seguintes efeitos na legislação civil em vigor: a) direito aos frutos percebidos; b) direito à indenização pelas despesas de produção e custeio referentes aos frutos pendentes quando da cessação da boa-fé; c) irresponsabilidade pela perda ou deterioração da coisa a que não deu causa; d) direito à indenização, pelo valor atual de mercado, das benfeitorias necessárias e úteis; e) direito ao levantamento das benfeitorias voluptuárias, se não lhe forem pagas e se não gerar dano à substância do bem principal; f) direito de retenção pelo valor de indenização das benfeitorias necessárias e úteis. Relativamente ao possuidor de má-fé são reconhecidos os seguintes efeitos: a) responsabilidade de restituir os frutos colhidos e percebidos e aqueles que, por culpa sua, deixou de perceber: b) direito à indenização pelo valor das despesas de produção e custeio dos referidos frutos; c) responsabilidade pela perda ou deterioração da coisa, ainda que acidentais, salvo a prova de que o dano ocorreria mesmo se a coisa tivesse sido entregue ao autor da demanda; d) direito à indenização das benfeitorias necessárias, sem direito de retenção [78]78 . Trata-se de aplicação específica dos dispositivos legais que tratam dos efeitos da posse no âmbito do Direito das Coisas (arts. 1.214 a 1.222) que, na realidade, vem a reforçar os estreitos vínculos entre as normas de Direito das Sucessões e de Direitos Reais [79]79 . Na visão da doutrina clássica, considera-se possuidor de boa-fé o herdeiro aparente que tenha adquirido a posse da herança e que, em razão de erro invencível e escusável, acreditava ser o verdadeiro herdeiro, como no exemplo do irmão do de cujus que desconhecia a existência de descendentes do falecido ou mesmo de outros integrantes de classes anteriores da ordem de vocação hereditária [80]80 . Em matéria de herança aparente, Carvalho Santos apontou os pressupostos para o reconhecimento da boa-fé do herdeiro aparente: a) ter a posse dos bens hereditários a título de herdeiro; b) ser o título hábil, em tese, para transferir-lhe o domínio dos bens (vocação legal ou testamentária); c) desconhecer a existência de vício original do título sucessório em seu favor [81]81 . A doutrina observa que a pessoa que se encontra na posse da herança como se sua fosse, aparentando ser herdeiro, tem seus negócios e atos protegidos juridicamente em benefício dos terceiros de boa-fé que com a primeira tenham contato [82]82 . O herdeiro aparente é aquele “que nunca foi herdeiro pela essência, mas o foi pela aparência” [83]83 , ou seja, é exatamente o possuidor pro herede, aparecendo “perante todos como adquirente por causa de morte, a título universal” [84]84 , tendo posse dos bens hereditários. Logo, devido à presença do título de suposto herdeiro, seja em razão da lei civil, seja do testamento, o possuidor que será réu na ação de petição de herança acredita ser herdeiro do falecido e vem a descobrir a ausência de seu direito sucessório ou da menor extensão deste em seu favor somente em momento bem posterior ao início de sua posse. Ao revés, será possuidor de má- fé aquela pessoa que, sabendo da existência do outro (único) herdeiro do acervo, tinha ciência do obstáculo à regular aquisição da herança, ou foi negligente acerca da investigação das circunstâncias que ensejariam dúvidas a respeito do seu título sucessório. De acordo com a legislação em vigor, o momento da cessação da boa-fé e da configuração de mora do possuidor é a época da citação do réu, efetivada em razão da ação de petição de herança, pressupondo êxito na demanda ajuizada ( CC, art. 1.826, parágrafo único). Com o recebimento da contrafé com cópia da petição inicial, o possuidor toma ciência dos vícios objetivos de sua posse, daí a transformação do ânimo de sua posse no momento do seu chamamento para o processo por meio da citação [85]85 . 4.2.2. Efeitos da petição de herança no plano externo É possível que, em razão do inventário e da partilha (ou adjudicação) dos bens integrantes da herança em favor dos pretensos herdeiros (ou do pretenso herdeiro) da ação de petição de herança, seja verificado que houve atos de alienação de bens a terceiros. Nesse caso, há a questão de verificar os efeitos da petição da herança relativamente aos terceiros em caso de procedência da demanda. Nos termos da lei civil em vigor, o herdeiro preterido poderá, via ação de petição de herança, demandar os bens que integravam o acervo hereditário, ainda que em poder de terceiros, ressalvadas as alienações a título oneroso feitas pelo herdeiro aparente ao terceiro de boa-fé ( CC, art. 1.827). A regra é a de que o herdeiro real, anteriormente preterido, possa exigir do terceiro a entrega dos bens hereditários por este adquiridos. No entanto, caso a alienação tenha sido feita a título oneroso, tendo como alienante o herdeiro aparente e como adquirente terceiro que agiu de boa- fé, não haverá êxito na recuperação do bem, devido à eficácia definitiva da transferência do bem feita ao terceiro adquirente. Com base na teoria da aparência, reconhece-se a eficácia (e a validade) das transmissões feitas a título oneroso e inter vivos realizadas pelo possuidor – como herdeiro aparente – ao terceiro de boa-fé que incorreu em erro invencível e comum [86]86 . Contudo, se o terceiro adquirente agiu de má-fé – mesmo na aquisição a título oneroso –, incorreu em erro vencível e incomum ou adquiriu o bem a título gratuito – a despeito de sua boa-fé e do erro a que incorreu no negócio –, será obrigado a entregar o bem ao herdeiro reivindicante, autor da ação de petição de herança. Na eventualidade de ser aplicada a exceção à regra da entrega do bem pelo terceiro adquirente ao herdeiro preterido ( CC, art. 1.827, parágrafo único), cabe a este demandar ao herdeiro aparente o valor dos bens alienados a título oneroso, sendo relevante identificar sua boa ou má-fé para poder, também, cobrar a reparação por perdas e danos no caso de sua má-fé na transferência do bem ao terceiro adquirente que, por sua vez, estava de boa-fé. Caso o herdeiro aparente tenha agido com boa-fé, o efeito somente será o de ter a obrigação de pagar o valor do preço recebido na alienação ao terceiro, sem perdas e danos, devido à regra que veda o enriquecimento sem causa. O objetivo principal da petição de herança é a restituição da herança ou respectiva quota parte ao herdeiro preterido inicialmente, mas, eventualmente, não havendo mais os bens, ele poderá exigir o equivalente pecuniário referente ao bem, com possibilidade de indenização do prejuízo sofrido se houve má-fé do alienante [87]87 . A lei civil ainda regula a hipótese da entrega do bem deixado em legado pelo herdeiro aparente que agiu de boa-fé ( CC, art. 1.828). O herdeiro aparente que também era possuidor de boa- fé, ao entregar o bem indicado pelo testador ao legatário, não se torna devedor da obrigação de pagar o equivalente pecuniário referente ao bem entregue ao sucessor real – herdeiro ou legatário –, eis que agiu de boa-fé, não tendo recebido qualquer vantagem em troca ao pagamento do legado [88]88 . Tal hipótese pode ser exemplificada com o caso de legado instituído em testamento que, posteriormente à entrega do bem ao legatário, vem a se descobrir que foi revogado por outro. Na hipótese contemplada na lei, o sucessor real – herdeiro ou legatário – poderá agir contra aquele que indevidamente recebeu o pagamento do legado do testamento anterior, com base na regra que veda o enriquecimento sem causa. 4.2.3. Petição de herança e reprodução assistida póstuma Delineados os principais aspectos referentes à petição de herança, revela-se importante a análise da questão contextualizada sob o enfoque da sucessão legítima que possa ter como possível herdeiro legítimo o filho póstumo, nos casos em que não foi possível sua admissão como herdeiro legítimo nos autos do inventário judicial. Há grande semelhança entre a hipótese do filho póstumo com a do descendente concebido e nascido durante a vida do autor da sucessão, mas que não foi por ele reconhecido. Nesse caso, após a morte do de cujus, o filho poderá ter êxito na investigação de paternidade – hipótese de filho póstumo de companheiro falecido – e, simultaneamente, na petição de herança, de modo a assegurar todos os efeitos – existenciais e patrimoniais – decorrentes da sua condição de filho jurídico da pessoa do autor da sucessão. E, relativamente à eventual dúvida sobre a vontade do falecido ao deixar em depósito seu material fecundante e a dignidade da pessoa humana da criança nascida com base em técnica de reprodução assistida póstuma, deve prevalecer o direito à filiação com todas as consequências – existenciais e patrimoniais – em favor da criança [89]89 . A noção referente à petição de herança deduzida pelo filho não reconhecido como tal em vida se assemelha bastante à hipótese do filho póstumo, ainda que haja diferenças relativas a determinados pontos, como a contagem do prazo prescricional – termo inicial, impedimento de cômputo do prazo, entre outros aspectos, o que será objeto de abordagem em momento oportuno. No âmbito das Jornadas de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal houve a aprovação do seguinte Enunciado interpretativo n. 267 sobre o tema: A regra do art. 1.798 do Código Civil deve ser estendida aos embriões formados mediante o uso das técnicas de reprodução assistida, abrangendo, assim, a vocação hereditária da pessoa humana a nascer cujos efeitos patrimoniais se submetem às regras previstas para a petição de herança [90]90 . Anna Beraldo concorda com tal orientação, defendendo a busca constante pela equalização dos direitos entre os filhos da mesma pessoa – ainda que esta tenha falecido –, devido à irrelevância da origem da filiação, bem como do momento do estabelecimento do vínculo parental [91]91 . Desse modo, o filho nascido com base em técnica de reprodução assistida post mortem precisa, inicialmente, ter estabelecida sua paternidade ou maternidade com base nos critérios atualmente considerados – presunção de paternidade, reconhecimento judicial de paternidade ou maternidade etc. –, pois, uma vez estabelecido o seu status de filiação, terá condições de vindicar sua herança legítima ou seu quinhão hereditário na herança legítima. É possível a cumulação do pedido de petição de herança com a investigação de paternidade ou maternidade, se for o caso, inclusive com o requerimento de concessão de tutela de urgência de modo a reservar toda a herança ou quinhão respectivo em seu favor até que haja a solução definitiva da lide processual [92]92 . Se ainda estiver tramitando o inventário judicial, é cabível a reserva do quinhão do futuro filho se já houver nascituro no momento anterior ao da realização da partilha, conforme previsão contida na legislação processual civil ( CPC/15, art. 650). Ao tratar do tema, Anna Beraldo registra que, no âmbito das técnicas de reprodução assistida post mortem, é provável que o herdeiro póstumo venha a ser concebido e nasça após vários anos da abertura da sucessão em razão da viabilidade de o congelamento do embrião ou mesmo do material fecundante (sêmen e óvulo) durar por muito tempo e, ainda assim, mostrar- se viável para desenvolvimento da futura pessoa humana [93]93 . Por isso, revela-se possível que, no momento do início da gravidez ou mesmo na época do nascimento da criança, já tenha ocorrido a partilha (ou adjudicação) dos bens, além da possibilidade de haver ocorrido transferência de parcela ou de todos os bens para terceiros que agiram de boa-fé nas aquisições. Quanto aos terceiros adquirentes dos bens que integravam a herança, é viável que os negócios que serviram de título de aquisição patrimonial tenham sido realizados antes das providências tendentes ao emprego das técnicas reprodutivas póstumas, ou seja, antes mesmo do descongelamento do embrião ou do material fecundante criopreservado até então. Assim, não há como conceber hipótese de identificação de má-fé ou mesmo negligência nos negócios realizados e, por isso, não há como invalidá-los, tampouco reconhecê-los como ineficazes em sentido estrito. Parcela da doutrina ainda registra que, relativamente aos herdeiros legítimos originais (ou mesmo testamentários), nos casos de emprego das técnicas reprodutivas post mortem, sequer há de se cogitar de herança aparente em favor deles, e sim de herança real, pois, no momento da abertura da sucessão, ainda não havia ocorrido a concepção e, muito menos, o nascimento da criança fruto de técnica de reprodução assistida post mortem [94]94 . Tal aspecto revela uma importante diferença entre os casos de petição de herança decorrentes de pessoas existentes (ou ao menos já concebidas) na época da abertura da sucessão e as hipóteses das pessoas originadas com base nas técnicas de reprodução assistida post mortem. Ou seja: enquanto na primeira hipótese pode-se cogitar da existência de propriedade aparente adquirida por força da sucessão aberta com a morte do autor da sucessão em razão das pessoas que até então eram identificadas como herdeiras legítimas e testamentárias do falecido, na segunda hipótese não há que conceber hipótese de propriedade aparente, mas, sim, de propriedade real adquirida pelos herdeiros – legítimos e/ou testamentários – diante das pessoas existentes ou, ao menos, já concebidas e em desenvolvimento como nascituros. Na última hipótese não havia ainda a pessoa concebida e se desenvolvendo no corpo feminino, mas, sim, um embrião congelado ou o material fecundante do falecido que se encontrava criopreservado. 4.3. Prazo prescricional relativo à petição de herança e intercorrências Identificada a petição de herança que pode ser utilizada pelo filho póstumo para fins do reconhecimento do seu direito à sucessão legítima aberta anteriormente em razão da morte do autor da sucessão, cumpre tratar de aspectos relacionados ao prazo para ajuizamento da demanda, suas intercorrências, entre outras questões importantes para a solução dos possíveis conflitos instaurados. Como já foi observado em trabalho anterior, “deve-se admitir a petição de herança, com a pretensão deduzida dentro do prazo prescricional de dez anos a contar do falecimento do autor da sucessão”, de modo a buscar o equilíbrio dos interesses da pessoa que se desenvolveu com base na técnica de reprodução assistida póstuma – a partir do embrião ou do material fecundante da pessoa falecida – e dos interesses dos herdeiros até então identificados [95]95 . Antes de proceder à análise específica do prazo de prescrição envolvendo o surgimento do filho póstumo para promover a ação de petição de herança, é oportuno pontuar aspectos mais gerais relacionados à prescrição da pretensão decorrente da preterição do direito à sucessão legítima. Na vigência do Código Civil de 1916 foi instaurada polêmica a respeito da prescritibilidade (ou não) da pretensão referente à petição de herança. Parcela da doutrina considerou que havia confusão de noções e conceitos acerca das ações de estado e ações de petição de herança, estas últimas como representativas do efeito patrimonial daquelas [96]96 . No escólio doutrinário de Orlando Gomes, a pretensão deduzida na ação de petição de herança não se sujeitava a prazo prescricional, eis que o reconhecimento da condição de herdeiro não poderia estar atrelado ao decurso do tempo. O autor considerava que “não é a ação que prescreve, mas a exceção de usucapião que inutiliza” [97]97 . No mesmo sentido era a orientação adotada por Silvio Rodrigues, que, valendo-se das referências contidas nos Códigos Civis italiano e português – acerca da imprescritibilidade da “ação” de petição de herança –, considerou que a ação poderia ser ajuizada a qualquer tempo, ressalvada a possibilidade de o possuidor já ter adquirido a propriedade da coisa que possuía em razão da usucapião [98]98 . Em direção contrária à sustentada pelos autores anteriormente referidos, Caio Mário da Silva Pereira defendeu a prescrição da eficácia da pretensão relativa à petição de herança, ao considerar que o status é imprescritível, mas não a eficácia da pretensão econômica judicialmente exigível, como ocorre em qualquer outro caso de pretensão econômica que se sujeita ao fenômeno prescricional [99]99 . Assim, a condição jurídica de filho não se sujeita à prescrição, eis que o filho terá ação a todo tempo para poder ter reconhecido seu status vinculado à filiação. Contudo, a pretensão à herança não terá como ser exigida após o decurso do prazo de 10 (dez) anos ( CC, art. 205) a contar da abertura da sucessão via petição de herança [100]100 . A polêmica não se restringiu ao debate doutrinário no Direito brasileiro e, por isso, o Supremo Tribunal Federal, na época em que também tinha competência recursal para o fim de uniformizar a interpretação da lei federal, após haver proferido julgados a respeito do tema, editou a Súmula 149 , do seguinte teor: “É imprescritível a ação de investigação de paternidade, mas não o é a petição de herança”. O STF, ao tratar da ação de petição de herança, fundamentou sua orientação no sentido de considerar que a pretensão deduzida na ação tem natureza pessoal, e não real, levando em conta haver concluído que o prazo prescricional era o de 20 (vinte) anos, e não de 10 (dez) ou de 15 (quinze) anos ( CC/1916 , art. 177) [101]101 . Na legislação posterior à Constituição Federal de 1988, o Estatuto da Criança e do Adolescente estabeleceu expressamente que o reconhecimento do estado de filiação é “direito personalíssimo, indisponível e imprescritível”, exercitável contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, inclusive temporal (Lei 8.069/90, art. 27). Tal regra confirmou parte substancial do enunciado sumular referido relativamente à ausência de prazo prescricional quanto ao estado de filiação. Algumas observações devem ser feitas à luz da compreensão do tema sob o enfoque do Supremo Tribunal Federal, em especial ao empregar a expressão “ações imprescritíveis” que, comumente, consideram-se aquelas não sujeitas a prazo prescricional nem decadencial [102]102 . Agnelo Amorim Filho, em clássico trabalho escrito a respeito do tema, apresentou crítica à referida expressão, devido à ausência de correspondência à sua compreensão lógica e gramatical e, assim, sugeriu sua substituição pela denominação “ações perpétuas” [103]103 . Desse modo, ações perpétuas são as ações constitutivas que não têm prazo especial relacionado ao exercício do direito potestativo [104]104 bem como as ações declaratórias, eis que nestas o plano de atuação é o da certeza jurídica que não se vincula à eficácia temporal. A noção conceitual de pretensão é empregada para distinguir os direitos subjetivos propriamente ditos dos direitos potestativos. Assim, tal como previsto no ECA (Lei 8.069/90), o direito à filiação (ou ao estado de filho) não se sujeita a prazo decadencial, muito menos prescricional, eis que consiste em direito potestativo de natureza declaratória, proporcionando uma ação perpétua. Assim, a ação de investigação de paternidade, como ação de estado, não se sujeita a prazo extintivo, sendo que os efeitos da procedência do pedido se operam retroativamente (eficácia ex tunc), já que a paternidade, a maternidade e a filiação não se estabeleceram na época da sentença, mas, sim, no momento da concepção, tendo a sentença o papel de proceder ao reconhecimento judicial da relação jurídica anteriormente constituída [105]105 . Contudo, a pretensão patrimonial decorrente da negativa do reconhecimento do direito à herança se sujeita a prazo de prescrição, com fundamento na segurança jurídica. Ao proceder à análise das questões surgidas com o início de vigência do Código Civil de 2002 – inclusive quanto ao prazo geral de prescrição de 10 (dez) anos, à luz do art. 205 –, Luiz Paulo Vieira de Carvalho retoma a ideia de que “as ações de petição de herança são imprescritíveis”, podendo o réu alegar em sede de defesa apenas a exceção de usucapião que, atualmente, no âmbito da aquisição da propriedade imobiliária, pode ter o prazo de, no máximo, 15 (quinze) anos (CC, art. 1.238, caput) [106]106 . Para tanto, o autor observa que as pretensões reais não se sujeitam à prescrição extintiva e, por isso, estão relacionadas aos prazos da usucapião [107]107 . Contudo, ainda que se considere a posição majoritária na doutrina – acerca da prescritibilidade da eficácia da pretensão relativa à petição de herança –, o autor registra que, na hipótese de cumulação com a investigação de paternidade, o prazo prescricional de 10 (dez) anos deve ser iniciado após o trânsito em julgado da sentença que declarar a relação jurídica de filiação, e não da data da abertura da sucessão, pois o termo inicial somente pode ser identificado quando houver a lesão ao direito alheio [108]108 . Em posição assemelhada, Anna Beraldo observa que, uma vez intentada ação de investigação de paternidade, o correto seria impedir a contagem do prazo prescricional da ação de petição de herança até o julgamento definitivo da primeira demanda, com base na integração analógica a partir da regra codificada em matéria de não contagem do prazo prescricional na pendência de processo criminal quando houver ação baseada em fato que deva ser apurado em juízo criminal ( CC, art. 200) [109]109 . Tais questões se revelam bastante polêmicas, mas não há como concordar com as orientações expostas no parágrafo antecedente. A distinção entre a imprescritibilidade relativa ao estado de filiação e a prescritibilidade da eficácia da pretensão [110]110 referente à petição de herança se baseia, obviamente, no valor da segurança jurídica que deve existir nas relações civis em geral e, como tal, já foi objeto de pronunciamento pela mais alta Corte do país quando dos julgados que basearam a edição da Súmula 149 do STF. A respeito do início da contagem do prazo prescricional referente à petição de herança, a lesão ao direito à herança se deu no momento em que ocorre a abertura da sucessão – morte do autor da sucessão –, época em que os herdeiros adquirem concretamente o direito à herança, com a transmissão da propriedade e da posse dos bens integrantes do acervo hereditário em seu favor. E também não há que desconsiderar causa de impedimento da contagem do prazo prescricional devido à circunstância de haver sido ajuizada ação de investigação de paternidade, porquanto a suposta lesão ao direito à herança ocorreu no momento da abertura da sucessão, sendo possível a cumulação dos pedidos investigatório e de petição de herança ou, ainda, a propositura de duas ações em separado com eventual suspensão do processo referente à petição de herança devido à prejudicialidade identificada. As hipóteses de causas de impedimento, suspensão e interrupção dos prazos prescricionais são excepcionais e, como tais, não comportam interpretação ampliativa, tampouco integração por analogia. Anna Beraldo observa que o reconhecimento da condição jurídica de herdeiro, na ação de petição de herança, não se sujeita a prazo extintivo; contudo, a produção de efeitos de tal reconhecimento – a pretensão de satisfação do direito à herança, com a condenação do réu a adimplir uma prestação – prescreve em 10 (dez) anos a contar da abertura da sucessão [111]111 . No mesmo sentido é a orientação adotada por Heloisa Helena Barboza, para quem a filiação gera efeitos pessoais e patrimoniais, mas a igualdade material entre os filhos não pode implicar o afastamento do prazo prescricional referente à pretensão da petição de herança [112]112 . De modo a configurar a prescrição, exigem-se os seguintes elementos: i) a lesão a um direito subjetivo, a ensejar o nascimento de uma pretensão de reparação da referida lesão; ii) a não exigência do cumprimento do respectivo dever jurídico, ou do ressarcimento do dano; iii) o decurso do prazo legal para que seja deduzida tal exigência [113]113 . E, no caso da preterição do herdeiro, encontram-se reunidos tais elementos, daí a justificativa para identificação de que se trata de prescrição devido à necessidade de segurança e certeza jurídicas. O prazo prescricional geral (ou comum) de 10 (dez) anos ( CC, art. 205) abrange qualquer hipótese na qual a lei ( Código Civil ou lei especial) não tenha previsto prazo menor, e a sua redução operada pela norma codificada em vigor se baseou nas transformações econômicas e sociais verificadas no mundo contemporâneo [114]114 . No caso da petição de herança, não houve o estabelecimento de qualquer prazo especial de prescrição pelo Código Civil ou por lei especial, razão pela qual incide a regra do art. 205, anteriormente referido. A respeito do início da contagem do prazo prescricional de 10 (dez) anos, há orientação doutrinária majoritária no sentido de que, em relação à petição de herança, o termo inicial do prazo é a data da abertura da sucessão que corresponde exatamente ao fato jurídico morte do autor da sucessão e que, em tese, serve para a imediata aquisição do direito à herança. Não se pode postular acerca de herança de pessoa viva, e, por isso, não há como cogitar do início do prazo de prescrição antes da morte do autor da sucessão [115]115 . Assim, a lesão ao direito sucessório do herdeiro legítimo – tal como também em relação ao herdeiro testamentário – verifica-se no momento da abertura da sucessão [116]116 . Com base na regra da saisine, em razão da morte do titular do patrimônio ocorre a transmissão automática e imediata da propriedade e da posse dos bens integrantes da herança aos herdeiros – legítimos e testamentários –, sem necessidade de qualquer manifestação de vontade destes, formando uma situação jurídica de comunhão hereditária até o momento da divisão do acervo patrimonial com a partilha de bens. Giselda Hironaka recorda que, com o falecimento do autor da sucessão, a herança “se transfere de pleno direito e imediatamente aos herdeiros legais ou instituídos, ainda que estes não tenham sequer tomado conhecimento da morte” verificada e mesmo que eles venham a falecer supervenientemente sem ciência do passamento do autor da primeira sucessão [117]117 . Logo, caso venha a ser instaurado o inventário judicial, ou mesmo realizado o inventário extrajudicial – devido ao acordo dos herdeiros que compareceram ao tabelião, sem incapazes ou testamento envolvidos –, com a preterição daquele que sustenta ter a condição jurídica de herdeiro, considera-se que a lesão ao direito à herança dele ocorreu no momento do falecimento do autor da sucessão, razão pela qual tal época configura o início da contagem do prazo prescricional referente à pretensão da petição de herança. Anna Beraldo recorda que, como regra, o herdeiro que foi preterido do inventário e da partilha já existia (ou seja, havia nascido com vida) quando ocorreu a abertura da sucessão ( CC, art. 1.798). Contudo, devido aos avanços científicos na área da reprodução humana assistida, há questões relacionadas à circunstância de não ter havido nascimento, e muito menos a concepção do embrião (ou o início da gravidez), na época da morte do autor da sucessão. E, assim, a autora indaga: “poderia haver a contagem do prazo prescricional de maneira diferenciada para esse filho?” [118]118 A doutrina majoritária observa que a contagem de prazos de prescrição é iniciada quando determinado sujeito tem condições de, sem qualquer empecilho, deduzir sua pretensão em juízo [119]119 . Contudo, levando em conta que não havia sequer nascituro na época da abertura da sucessão – na hipótese do filho póstumo desenvolvido a partir do embrião ou do material fecundante congelado na época da morte do autor da sucessão –, como se poderia cogitar da existência de pretensão cuja eficácia se sujeitaria a prazo prescricional? Anna Beraldo observa que “somente quando há o nascimento com vida e a verificação de que este herdeiro não consta como sucessor no inventário é que se pode falar em lesão ao direito” [120]120 . Há clara omissão normativa a respeito do tema na legislação civil brasileira porquanto, a despeito da referência pontual acerca da reprodução assistida póstuma no segmento da presunção de paternidade do homem casado ( CC, art. 1.597), o Código Civil não foi explícito a respeito das questões atinentes à sucessão legítima relacionada ao herdeiro que corresponde ao filho póstumo. De todo modo, considerando a ficção jurídica estabelecida quanto à paternidade e filiação – e, por consequência, à maternidade e à filiação, com base na igualdade material entre os sexos – tratadas no art. 1.597 do Código Civil, para considerar que o vínculo de parentesco do pai com seu filho (originário de técnica de reprodução assistida) se constituiu no curso da vida comum do casal, mesmo no caso de técnica post mortem, a solução para a questão será considerar que a lesão teria realmente ocorrido na data da morte do autor da sucessão devido à sua preterição. Em outras palavras: a ficção do momento do estabelecimento do vínculo de parentesco em primeiro grau entre pais e filhos, com base na regra legal, também será considerada para fins da produção de efeitos na sucessão legítima, inclusive quanto à possível preterição no inventário – judicial ou extrajudicial. A conclusão a que se chega é a de que, mesmo sem expressa previsão legal a respeito, o início da contagem do prazo prescricional geral para não permitir o encobrimento da eficácia da pretensão relativa à petição de herança é exatamente a data da abertura da sucessão. Logo, se entre a data da abertura da sucessão e o momento em que se caracteriza o decurso do prazo de 10 (dez) anos não houver concepção do embrião com o início da gravidez da mulher que poderá gestar o filho póstumo, terá se operado a prescrição decenal referente à eficácia da pretensão da petição da herança. Outro aspecto importante se refere à causa impeditiva de contagem do prazo prescricional consistente na insuscetibilidade de curso de prazo prescricional contra os absolutamente incapazes ( CC, art. 198, I). O tratamento legal a respeito das causas de impedimento, suspensão e interrupção do prazo prescricional segue, basicamente, a seguinte lógica: a) no impedimento ou suspensão o prazo não flui, mas, após a cessação da causa impeditiva ou suspensiva, o prazo se inicia – caso de impedimento – ou volta a correr – caso de suspensão; b) na interrupção, devido à verificação da causa interruptiva, o prazo volta a ser contado novamente, de maneira integral – ou parcial –, desconsiderando por completo o período anterior ao momento da interrupção [121]121 . As causas de impedimento e de suspensão do curso do prazo prescricional se fundamentam seja em razões de ordem moral, seja em virtude da necessidade de proteção dos interesses das pessoas que não teriam condições de acompanhar a situação jurídica da qual são titulares ou por outros motivos previstos na lei civil. O art. 198 do Código Civil se baseia na ideia de proteção e defesa dos interesses das pessoas nele indicadas. Assim, por exemplo, no caso de ocorrer a abertura da sucessão de pessoa que teve filho há menos de 1 (um) ano – mas não o reconheceu pois foi gerado fora do casamento –, não será iniciada a contagem do prazo prescricional diante da regra legal, aguardando-se o decurso de, ao menos, 15 (quinze) anos a contar da abertura da sucessão para o fim de poder ser iniciada a contagem do prazo de 10 (dez) anos para promover a ação de petição de herança na hipótese de ter o filho sido preterido no inventário e na partilha. Ou seja: apenas a partir da verificação de que o filho não reconhecido em vida completar 16 (dezesseis) anos de idade, tornando-se relativamente incapaz, será iniciado o curso do prazo prescricional de 10 (dez) anos para a ação de petição de herança. Assim, somente quando o herdeiro absolutamente incapaz por idade completar 16 (dezesseis) anos de idade poder-se-á cogitar do início da contagem do prazo prescricional. Logo, não corre prazo prescricional contra os absolutamente incapazes, pois há “fato obstativo para o início da contagem do prazo, qual seja, a incapacidade absoluta do herdeiro” [122]122 . Por óbvio que, se não há contagem de prazo prescricional contra absolutamente incapaz, não é possível ser iniciada a contagem de prazo relativamente ao nascituro, razão pela qual é caso de impedimento [123]123 da contagem do prazo prescricional. E, imaginando-se, no caso das técnicas de reprodução assistida post mortem, que o embrião congelado venha a ser utilizado no mês seguinte à morte do autor da sucessão, haverá necessidade de aguardar o nascimento com vida, o decurso do período de 16 (dezesseis) anos para, em seguida, ser possível a contagem do prazo prescricional para a ação de petição de herança. E, na eventualidade de o embrião ser formado e implantado no corpo feminino após 9 (nove) anos e 11 (onze) meses da morte do autor da sucessão, será necessário esperar o nascimento com vida do filho póstumo, o decurso do período de 16 (dezesseis) anos para, em seguida, ser possível a contagem do prazo de prescrição da petição de herança, cujo termo final, em tese, poderá ocorrer quase 36 (trinta e seis) anos após o falecimento do autor da sucessão: 9 (nove) anos e 11 (onze) meses iniciais – período da concepção e início da gravidez da mulher –, 16 (dezesseis) anos – correspondente à absoluta incapacidade do filho póstumo – e 10 (dez) anos – decurso do prazo prescricional referente à eficácia da pretensão relativa à petição de herança. Tal aspecto temporal referente à dedução da pretensão da petição de herança em juízo não foi desconsiderado por parcela da doutrina, pois, efetivamente, “o prazo para definição da situação pode estender-se por décadas após o falecimento do genitor”, considerando a possibilidade de o embrião ou o material fecundante deixado pelo falecido ficar congelado por quase 10 (dez) anos depois da morte deste, a incidência da causa impeditiva de contagem do prazo prescricional contra absolutamente incapaz e a contagem do prazo prescricional de 10 (dez) anos para promover a ação de petição de herança. De todo modo, a grande diferença dessa hipótese para aquela envolvendo o filho havido por reprodução carnal pouco antes da morte de seu pai que não o reconheceu em vida será o prazo adicional de quase dez anos da morte do falecido – período do congelamento do embrião ou do material fecundante utilizado em técnica reprodutiva póstuma. Anna Beraldo ainda se refere à dificuldade prática quanto ao tempo de duração do processo no Brasil, eis que há “longa fase de recursos processuais”, além da circunstância de verificar “sucessivas gestações” no período posterior ao falecimento do autor da sucessão [124]124 . Verifica-se que há questões bastante complexas sob o prisma do Direito das Sucessões relacionadas às intercorrências referentes ao prazo prescricional da petição de herança, tal como anteriormente analisadas. É certo que, como os temas tratados neste trabalho ainda são relativamente recentes, não houve posicionamento dos tribunais brasileiros a respeito da sucessão legítima do filho póstumo decorrente de técnica de reprodução assistida e a busca de conciliação dos vários interesses envolvidos. Diante do “estado da arte” sobre o tema central do trabalho ainda comportar várias polêmicas, Anna Beraldo sugere que haja uma revisão sobre a prática da reprodução post mortem para, se for o caso, vedá-la no ordenamento jurídico brasileiro [125]125 . 4.4. Propriedade temporária (ou ad tempus) dos herdeiros legítimos originais De modo a poder encaminhar a solução para as questões referentes à sucessão legítima do filho póstumo, em razão das questões analisadas durante o desenvolvimento do trabalho, o encaminhamento de solução que, com base nos valores e princípios constitucionais atualmente considerados, deve ser buscado é o de compatibilizar os vários interesses em jogo, não apenas os dos filhos póstumos mas também os dos herdeiros legítimos originalmente vocacionados – que não eram herdeiros aparentes, e sim reais – e dos terceiros com quem estes negociaram e adquiriram bens anteriormente integrantes da herança deixada pelo autor da sucessão. Assim, não apenas se atende aos princípios constitucionais da isonomia material entre os filhos no que se refere às situações jurídicas que envolvam seus pais – inclusive e, no caso específico, o direito à herança na sucessão legítima –, da dignidade da futura criança a nascer, da parentalidade responsável – relacionados ao filho póstumo – mas também da segurança jurídica, da estabilidade das situações jurídicas que se consolidaram – relativos aos herdeiros legítimos originalmente vocacionados e aos terceiros com quem eles tiveram contato jurídico. A solução para as maiores polêmicas identificadas se encontra na consideração de que a propriedade adquirida pelos herdeiros legítimos originariamente chamados à sucessão – devido à regra da saisine – seja qualificada como propriedade ad tempus (CC, art. 1.360) e, assim, duas principais ordens de efeitos poderão sobrevir na eventualidade da concepção, desenvolvimento da gravidez e nascimento da criança fruto de técnica de reprodução assistida póstuma: a) o proprietário ad tempus perderá a propriedade em favor do proprietário que, no caso, é o herdeiro legítimo póstumo, caso o bem ainda esteja no patrimônio daquele; b) o terceiro adquirente do bem, por título anterior à resolução da propriedade ad tempus, será considerado proprietário perfeito, cabendo à pessoa do herdeiro legítimo póstumo em cujo benefício teria ocorrido a resolução da propriedade ad tempus, haver o valor da coisa do ex- proprietário ad tempus. Ao transplantar as duas ordens de efeitos da propriedade ad tempus para os casos relacionados à superveniência da concepção, gravidez e nascimento com vida do filho póstumo, pode-se considerar o seguinte regime jurídico: a) caso o bem fruto de inventário e partilha em favor do herdeiro legítimo originário – proprietário ad tempus – ainda integre seu patrimônio, mesmo após quase 36 (trinta e seis) anos da data da abertura da sucessão do autor da sucessão – observados os prazos analisados anteriormente –, o herdeiro legítimo póstumo poderá obter o reconhecimento da sua condição jurídica de sucessor do falecido na sucessão legítima e, assim, exigir a devolução do bem ao acervo hereditário de modo a poder herdá- lo sozinho (como herdeiro único) ou participar da partilha dos bens integrantes da herança (caso de comunhão hereditária com outros herdeiros); b) caso o bem fruto do inventário e da partilha já tenha sido transferido ao terceiro adquirente em momento anterior ao da produção dos efeitos da ação de petição de herança, nas demais condições referidas, caberá ao herdeiro legítimo póstumo exigir a reposição do valor correspondente ao bem transferido ao terceiro do herdeiro legítimo originário, de modo a recebê-lo integralmente (como herdeiro único) ou a poder participar da nova partilha daquilo que for obtido em decorrência da procedência do pedido da ação de petição de herança. A solução hermenêutica proposta se encaixa perfeitamente na noção da propriedade ad tempus, a ensejar o reconhecimento de que a sucessão legítima em favor dos herdeiros originariamente vocacionados na sucessão aberta pela morte do autor da sucessão que, posteriormente, ensejou o emprego de embrião congelado ou material fecundante criopreservado para fins de concepção, gravidez e nascimento com vida do filho póstumo como herdeiro legítimo do de cujus, é modo de aquisição de propriedade ad tempus com a produção dos efeitos acima indicados. Na propriedade ad tempus nada há anteriormente ao título de constituição da propriedade que, voluntariamente, tenha previsto sua extinção, diversamente do que ocorre na propriedade resolúvel propriamente dita ( CC, art. 1.359). Cuida-se de extinção da propriedade em razão de evento previsto em lei que é considerado relevante o suficiente para atenuar a característica da perpetuidade da propriedade [126]126 . A doutrina costuma exemplificar os casos de propriedade ad tempus com os casos de doação pura e simples e sua posterior revogação devido a ato de ingratidão do donatário ( CC, arts. 555 e 557), de doação modal na qual não houve cumprimento do encargo ( CC, art. 555) e do legado cujo encargo imposto no testamento não foi cumprimento pelo legatário ( CC, art. 1.938) [127]127 . A tais hipóteses doravante deverá se somar a sucessão legítima como modo de transmissão da propriedade sobre os bens da herança aos herdeiros originalmente vocacionados, nos casos em que se verificar a reprodução assistida póstuma. Como se sabe, a propriedade ad tempus é modalidade de propriedade que não é adquirida para durar certo tempo – diversamente do que acontece na propriedade resolúvel propriamente dita –, mas se apresenta potencialmente temporária, podendo o proprietário perder a titularidade da situação jurídica por força de certos acontecimentos previstos na lei. A eventualidade da perda do direito de propriedade na modalidade ad tempus não constitui objeto de cláusula negocial e, por isso, afirma-se que não é a propriedade em si que é temporária, mas, sim, seu exercício por tal ou qual sujeito [128]128 . Na propriedade ad tempus o fato extintivo do direito de propriedade somente produz efeitos para o futuro, ou seja, é de eficácia ex nunc [129]129 , diversamente do que ocorre na propriedade resolúvel propriamente dita cuja resolução produz efeitos retroativos – eficácia ex tunc. Quando a propriedade se resolve por causa superveniente – não prevista no título de sua aquisição –, proveniente de fato posterior à transmissão da propriedade, ela não é resolúvel na sua origem, mas se revoga de fato [130]130 . Desse modo, na hipótese de a coisa recebida em razão de cessão dos direitos hereditários dos então únicos herdeiros legítimos ou de transferência feita após a realização da partilha cuja atribuição ocorreu em favor dos então únicos herdeiros legítimos, mas antes do conhecimento a respeito da pretensão deduzida pelo filho póstumo, a alienação feita ao terceiro serviu de título aquisitivo da propriedade da coisa, não podendo ser desfeita a propriedade em favor do terceiro. Ao revés, se a coisa ainda estiver em poder do herdeiro legítimo originário e, assim, ocorrer o surgimento do herdeiro legítimo póstumo, a ação de petição de herança poderá ensejar a consequência de reaver a coisa, seja para ser titularizada exclusivamente pelo herdeiro legítimo único (no caso de não haver outros descendentes que possam concorrer com o filho póstumo), seja para ser refeita a partilha dos bens integrantes da herança legítima (na hipótese de verificação da concorrência sucessória entre o filho póstumo e outros filhos – ou outros descendentes por direito de representação). No caso da necessidade de realização de nova partilha de bens – com a inclusão do filho póstumo entre os herdeiros legítimos –, deve- se atentar para os critérios comumente seguidos na divisão dos bens – igualdade na divisão e comodidade na atribuição dos bens que ofereçam melhor serventia a cada herdeiro legítimo de acordo com o tipo de bem e os interesses dos herdeiros [131]131 . É fundamental observar que, no caso do filho póstumo, sua concepção, a gravidez a ele relacionada e seu nascimento com vida deverão ocorrer dentro do prazo de 10 (dez) anos a contar da abertura da sucessão, sob pena de não haver como se atribuir direito à herança legítima em seu favor, conforme anteriormente explicitado. Deve-se deixar assentado que o instituto ora identificado como viabilizador da solução das questões mais complexas da sucessão legítima relacionada à herança identificada em favor do filho póstumo não é o da propriedade aparente, como apressadamente se poderia supor. A configuração da propriedade aparente requer que o suposto (ou aparente) proprietário esteja convencido de que o bem objeto da situação proprietária realmente lhe pertença e, por isso, adota comportamento tal que induza as demais pessoas a se enganarem a respeito da real situação relacionada àquela propriedade [132]132 . Os princípios jurídicos que fundamentam a teoria da aparência são: a) o da boa-fé; b) o error communis facit ius [133]133 . Assim, o adquirente do bem deve estar convicto de que a transmissão da propriedade foi feita pelo verdadeiro proprietário do bem ou que o bem foi adquirido por direito incontestável, o que caracteriza sua boa-fé. Ademais, o erro cometido pelo adquirente deve ser comum e invencível, a saber, o erro da espécie que qualquer pessoa de inteligência comum (ou mediana) teria incorrido. Entre as hipóteses de propriedade aparente costuma-se usar como exemplo a do herdeiro aparente [134]134 , como ocorre no caso de pessoa que recolheu a herança legítima, mas não tinha direito em razão do sucessor existente que a exclui – a identificação superveniente de filho do de cujus que exclui seu tio, irmão do falecido, como parente na linha reta descendente em primeiro grau na ordem de vocação hereditária. Outras hipóteses envolvem casos de indignidade, nos quais o herdeiro vocacionado à sucessão é excluído por força de sentença que reconhece a prática de ato de indignidade ( CC, art. 1.817), e de pessoa indicada como herdeira testamentária ou legatária cujo benefício testamentário é atingido pela nulidade da cédula testamentária. Eduardo de Oliveira Leite, ao analisar a regra contida no art. 1.827 do Código Civil, observa que o preceito normativo trata da possibilidade de o bem que integrava a herança já não mais se encontrar em poder do possuidor, mas, sim, de terceiro [135]135 . A este caberá, após devolver o bem ao acervo hereditário em razão da postulação feita pelo autor da ação de petição de herança, propor ação regressiva contra o possuidor alienante do bem em seu favor, ressalvada a possibilidade de a alienação ter sido feita por herdeiro aparente, com base em negócio realizado a título oneroso, e o terceiro haver atuado de boa-fé [136]136 . Débora Gozzo registra, ao comentar o mesmo preceito legal, que, se a alienação do bem pelo herdeiro aparente ao terceiro se deu a título gratuito, o negócio será ineficaz relativamente ao herdeiro real que, por isso, poderá obter o bem diretamente do terceiro adquirente [137]137 . Todo o contexto relacionado à propriedade aparente não se verifica relativamente aos casos de sucessão legítima relacionada à vocação hereditária do filho póstumo. Nesse caso, a herança legítima é deferida efetivamente aos vocacionados na lei civil que existiam (ou ao menos eram nascituros) na época da abertura da sucessão. E, concretamente, não havia ainda o filho, que somente veio a ser concebido, desenvolvido e a nascer em momentos posteriores ao do falecimento do autor da sucessão. Logo, não há que se cogitar de propriedade aparente relativamente aos herdeiros legítimos originários, e sim propriedade real, mas que se sujeita à ocorrência de evento superveniente que gerar a resolução dessa propriedade. A propriedade revogável por causa superveniente é, portanto, hipótese de propriedade real, e não de propriedade aparente. É certo que ambas as propriedades – aparente e ad tempus – fundamentam-se no valor da segurança jurídica, especialmente relacionada aos terceiros com quem os então proprietários aparente ou ad tempus mantiveram contato jurídico. Mas não há como confundir as duas situações jurídicas, inclusive com incidência de regras jurídicas distintas: propriedade ad tempus, à luz do art. 1.360 do Código Civil, e propriedade aparente, à luz dos arts. 1.827, parágrafo único, e 1.828 do Código Civil, entre outras. Ainda que na perspectiva do Direito Tributário Humberto Ávila defina o princípio da segurança jurídica como o princípio que, “sobre fundar a validade e instrumentalizar a eficácia das normas jurídicas, exige a transparente respeitabilidade da ação do cidadão-contribuinte, e da argumentação que lhe é concernente, por meio da moderação estatal” [138]138 . E, em outras conclusões acerca da segurança jurídica, o autor leciona: Como o princípio da segurança jurídica exige a realização conjunta de vários estados de coisas, uns intermediários, outros finais, que não necessariamente coincidem, pode ocorrer que, em razão de um caso a decidir, surja uma espécie de conflito da segurança jurídica consigo, no sentido de que a promoção de um estado de coisas implique a restrição de outro estado de coisas que se apresenta concreta e diametralmente oposto. A solução está em equilibrar esses estados ideais de modo que a busca da segurança jurídica provoque um incremento no seu conjunto, isto é, que a utilização do princípio da segurança jurídica como fundamento de uma dada decisão conduza a uma realização média maior dos estados ideais que o compõem do que o contrário [139]139 . O princípio da segurança jurídica é essencial para a confiança no sistema judicial e no Estado de Direito, além de ser fundamental para a constituição e desenvolvimento dos negócios, o desenvolvimento e progresso social e econômico. Para tanto, o Estado – inclusive o Poder Judiciário – deve buscar respeitar e aplicar as normas jurídicas de maneira previsível, não apenas em razão do prévio conhecimento do conteúdo das normas, mas, principalmente, ser previsível quanto aos efeitos decorrentes delas [140]140 . Além de identificar os elementos estruturantes do fenômeno prescricional – presença de uma pretensão; inércia do titular da pretensão; continuidade da inércia por lapso de tempo previsto na lei; ausência de fato impeditivo ou suspensivo da contagem –, é vital que o aplicador da norma jurídica possa discernir a respeito da seguinte questão: “é necessário consolidar uma determinada situação jurídica para que se produza segurança?” [141]141 A segurança jurídica é compatível com uma visão mais democrática do Direito e da vida social e aponta para melhorar a vida das pessoas, propiciando uma vida “sem danos”, ou com menores danos possíveis; e quando estes ocorram, que haja uma condigna reparação [142]142 . A segurança jurídica traduz não apenas a paz, a ordem, a estabilidade e perenidade mas também a certeza da realização do Direito, abrangendo o conhecimento dos direitos e deveres, a convicção dos efeitos do seu exercício e cumprimento e, ainda, a previsibilidade dos efeitos do comportamento pessoal de cada um [143]143 . O princípio da segurança jurídica, aliado à proteção da confiança legítima, congrega as noções de calculabilidade e previsibilidade acerca dos efeitos jurídicos dos atos e negócios jurídicos em geral, inclusive envolvendo o poder público [144]144 . A certeza jurídica propicia à pessoa que ela planeje e calcule em longo prazo, constituindo vínculos baseados na estabilidade e na calculabilidade do direito em jogo [145]145 . De modo a contextualizar a análise feita a respeito do tema, é oportuna a utilização de exemplo concreto trazido à colação por Anna Beraldo [146]146 . O caso pode assim ser resumido: um casal buscou, durante período aproximadamente de 12 anos, ter filhos via da procriação carnal, sendo que, em abril de 2006, resolveu procurar auxílio de clínica de reprodução assistida. Após terem passado por dois ciclos de inseminação artificial, dois ciclos de fertilização in vitro – com o congelamento do sêmen do marido, enquanto se aguardava a captação de óvulos da esposa –, no ano de 2007 houve morte abrupta do marido em razão de acidente. A viúva, assim, decidiu receber o sêmen criopreservado do seu falecido marido para procriar e, como não havia manifestação expressa por ele deixada em vida para tanto, ela obteve autorização judicial para a continuidade do tratamento referente à técnica de reprodução medicamente assistida, com expedição de alvará com prazo de duração de um ano a contar da expedição da autorização judicial. No caso concreto o falecido não havia deixado filhos dele, tampouco autorização expressa para utilização do sêmen congelado, e tinha pais vivos que sobreviveram à morte dele. Não se tem notícia se houve sucesso na concepção, início da gravidez e nascimento de criança em razão da técnica de reprodução assistida póstuma, mas resta claramente identificada hipótese que comportaria o aparecimento de polêmicas em matéria de sucessão legítima, desde o reconhecimento do direito à herança em favor do filho póstumo (com exclusão dos ascendentes do falecido), o prazo para efetiva concepção, gravidez e nascimento com vida do herdeiro descendente único. Assim, a título de suposição, Anna Beraldo observa que, nesse caso, pela teoria da aparência, qualquer negócio eventualmente celebrado entre os herdeiros originais e os terceiros de boa-fé seria válido e eficaz, restando ao filho póstumo, por meio da petição de herança, pleitear seu quinhão hereditário e, caso os bens não mais estivessem em poder do herdeiro aparente, requerer o ressarcimento pelo valor correspondente [147]147 . Na realidade, a conclusão se assenta na incidência ao caso da regra do art. 1.827, parágrafo único, do Código Civil, a respeito dos efeitos das alienações dos bens da herança, a título oneroso, pelo herdeiro aparente ao terceiro de boa-fé. Relativamente ao herdeiro legítimo originário, não há que se cogitar da figura da herança aparente, mas, sim, de herança real e, por isso, a regra que efetivamente deve incidir na espécie é a do art. 1.360 do Código Civil, que prescinde da existência de onerosidade do negócio para gerar consequências favoráveis ao terceiro quanto à efetiva aquisição da propriedade do bem, entre outros aspectos. Não há, portanto, apenas distinções conceituais entre a propriedade aparente e a propriedade ad tempus, mas, claramente, repercussões distintas que geram posições jurídicas nem sempre coincidentes, havendo maior proteção ao terceiro adquirente com base nos efeitos da propriedade ad tempus comparativamente aos efeitos da propriedade aparente. Uma das distinções acerca dos efeitos se relaciona às transferências feitas pelo herdeiro real ao terceiro adquirente por negócio a título gratuito – como no exemplo da doação –, que não serão atingidas no caso de revogação da propriedade ad tempus, diversamente do que ocorreria no caso de propriedade aparente (CC, art. 1.827, parágrafo único, a contrario sensu). Há dois fatores temporais que deverão ser rigorosamente observados para ensejar o efeito da revogação da propriedade ad tempus do herdeiro legítimo originalmente vocacionado na sucessão legítima. Inicialmente, é vital que haja observância do prazo de 10 (dez) anos a contar da abertura da sucessão para o fim de haver a concepção e, ao menos o início da gravidez em razão de técnica de reprodução assistida post mortem, sob pena de não ser mais viável o reconhecimento do direito à herança em favor de filho concebido em momento subsequente ao decurso desse prazo inicial de 10 (dez) anos. Além disso, haverá o impedimento da contagem do prazo prescricional caso seja verificada a gravidez dentro do decênio a contar da morte do autor da sucessão até que o filho póstumo complete 16 (dezesseis) anos de idade, momento em que será iniciado novo prazo prescricional de 10 (dez) anos para que não haja o encobrimento da eficácia da pretensão relativa à petição de herança. A circunstância de haver, na última hipótese, um prazo mais dilatado em nada interferirá nas consequências da revogação da propriedade ad tempus na hipótese da sucessão legítima em que se identifique a superveniência vocação hereditária do filho póstumo, devido à incidência dos efeitos previstos no art. 1.360 do Código Civil. Parcela da doutrina tem defendido que, mesmo na sucessão legítima – e não apenas na hipótese de sucessão testamentária em favor de filho eventual de pessoa existente na época da abertura da sucessão ( CC, arts. 1.799, I, e 1.800, § 4º)– seja fixado um prazo pelo legislador para a utilização do material fecundante ou do embrião congelado para reprodução assistida póstuma [148]148 . O raciocínio se fundamenta, entre outros aspectos, na circunstância de não se mostrar coerente que, sob a alegação de desenvolvimento do projeto parental, somente muitos anos depois da morte do cônjuge ou companheiro haja o interesse de gerar filho jurídico do autor da sucessão. Assim, sugere-se, de lege ferenda, a fixação de um marco temporal entre 6 (seis) meses e 2 (dois) anos a contar da abertura da sucessão, tal como ocorre no Direito belga, que prevê tais prazos para implantação do embrião ou fertilização do gameta feminino com formação do feto e início da gravidez de modo a viabilizar a geração e o nascimento de filho póstumo [149]149 . Contudo, no estágio atual do Direito Civil brasileiro não há tal restrição temporal para concepção, gestação e nascimento da criança fruto de técnica de reprodução assistida póstuma na sucessão aberta pelo falecimento de alguém que deixou embrião congelado ou seu material fecundante criopreservado no bojo do seu projeto parental que estava em desenvolvimento com seu cônjuge ou companheiro. E, por isso, a solução das questões polêmicas na atualidade sugere uma combinação dos aspectos relacionados ao Direito das Sucessões sob influxo dos Direitos Reais e do Direito de Família, tal como se procurou analisar durante todo o curso do trabalho. A proposta de limitação temporal – tal como feita na legislação belga (utilização do material até dois anos a contar da abertura da sucessão) – não há como ser acolhida no Direito brasileiro. Márcio Delfim apresenta exemplo hipotético, mas que demonstra o desacerto da limitação em até dois anos quanto ao uso do embrião ou do material congelado. Imagine-se o caso de uma mulher casada que, juntamente com seu marido, vem desenvolvendo o projeto parental para ter filhos por meio de técnicas de reprodução assistida. Em determinado dia, ambos são vítimas de um acidente automobilístico; o marido vem a falecer e a esposa, bastante ferida, consegue sobreviver, mas fica em coma por dois anos, período em que o sêmen colhido do seu marido ainda vivo (em razão de um dos procedimentos realizados no curso do processo de acesso à técnica reprodutiva) fica congelado [150]150 . Caso venha a ser adotado marco temporal do Direito belga, por exemplo, a viúva já não mais poderia ultimar o projeto parental do casal e, por isso, deve-se admitir que não haja qualquer limitação temporal para que o cônjuge ou companheiro sobrevivente possa dar efetividade ao projeto parental com a técnica de reprodução assistida póstuma, apenas atentando para o prazo de 10 (dez) anos quanto à petição de herança para o fim de ser iniciada a gravidez que redundará no nascimento do filho póstumo. A sucessão legítima está fundada nas noções de propriedade e de família, já que são as situações proprietárias aquelas que, normalmente, podem ser transmitidas causa mortis, bem como são os vínculos de família que são considerados para fixação dos critérios de modo a organizar e estabelecer a ordem de vocação hereditária – na perspectiva do chamamento concreto dos herdeiros legítimos [151]151 . Assim, a solução que harmonize os princípios constitucionais da dignidade e da igualdade material do herdeiro legítimo fruto de técnica de reprodução assistida póstuma, do direito à herança em favor dos herdeiros existentes e/ou nascituros na época da abertura da sucessão e da segurança jurídica dos terceiros com quem estes estabeleceram vínculos jurídicos de natureza patrimonial, é aquela que deva ser alcançada. Devido à constatação de que a Constituição e o Direito Civil se revelam partes de uma ordem jurídica unitária, há complementação, apoio e condicionamento recíprocos entre os dois setores, sendo certo que a Constituição assegura os fundamentos do Direito Privado, além de atuar com função de guia, oferecendo diretrizes e impulsos importantes para sua evolução [152]152 . Os aspectos destacados no percurso deste capítulo que se relacionam à sucessão legítima reconhecida em favor do descendente na linha reta em primeiro grau do autor da sucessão que somente foi concebido, gestado e tenha nascido após a morte do seu pai ou de sua mãe revelam a importância da compatibilização dos interesses jurídicos postos em suposto conflito. Assim, somente à luz da dimensão concreta e humana das pessoas envolvidas, devido às suas peculiaridades e diversidades, é possível alcançar soluções hermenêuticas consonantes com os direitos fundamentais [153]153 – garantia da propriedade privada, direito à igualdade material, direito à segurança jurídica, direito à herança, entre outros – que devem ser considerados no âmbito da sucessão legítima. As ponderações relacionadas aos direitos fundamentais, quando envolvem relações privadas, revelam-se sempre complexas e multidimensionais, eis que costumam se vincular a diversos valores. A complexidade e a multidimensão exigem o estabelecimento de parâmetros racionais e objetivos, de modo a informar a determinação da incidência das normas de direitos fundamentais no âmbito das relações entre particulares [154]154 . Como registra Ingo Wolfgang Sarlet, a eficácia direta das normas constitucionais de direitos fundamentais nas relações privadas se justifica em razão da necessidade de limitação do poder social e em resposta às desigualdades sociais, culturais e econômicas, especialmente em sociedades periféricas, como é o caso da brasileira [155]155 . A revisão do Direito das Sucessões com base na metodologia civil- constitucional, inclusive sob o influxo do Direito de Família e dos Direitos Reais, é imperiosa, tal como adverte Ana Luiza Nevares [156]156 . O vetor interpretativo utilizado para desenvolver os caminhos e as soluções hermenêuticas para as questões surgidas foi o de compatibilização dos vários interesses jurídicos em jogo, iniciando com a pessoa do filho póstumo e sua possível condição de herdeiro legítimo, passando pelas pessoas dos herdeiros legítimos originalmente vocacionados no momento da abertura da sucessão e terminando pelos terceiros adquirentes de bens que integravam a herança deixada pelo autor da sucessão e que se tornaram proprietários perfeitos (ou plenos e perpétuos) com base na eficácia da propriedade ad tempus relativamente a eles ( CC, art. 1.360). A hermenêutica, em razão de ser necessariamente crítica, está umbilicalmente ligada à abertura e ao diálogo [157]157 . Cuida-se de reafirmar, com base nas lições de Gustavo Tepedino, que a propriedade atualmente se caracteriza como “direito subjetivo dúctil, cujo conteúdo pode-se definir somente na relação concreta, no momento em que se compatibilizam as várias situações jurídicas constitucionalmente protegidas [158]158 . Há clara preocupação constitucional com a dimensão existencial em grau maior comparativamente à dimensão patrimonial no âmbito jurídico, sendo que, mesmo no campo econômico, o contrato, a propriedade e a empresa devem ser funcionalizadas à efetivação dos valores existenciais. Nessa perspectiva deve-se compreender a função social da propriedade, a função social do contrato, a função social da família, a função social da sucessão hereditária, a distinção entre as várias propriedades (e seus diversos estatutos), a diferenciação entre os vários tipos de contrato (de uso, de consumo, de serviço), a objetivação e socialização da responsabilidade civil [159]159 . O sistema jurídico no âmbito do Direito Civil se caracteriza pela abertura aos valores ético- políticos, aos fatos da vida real e cotidiana e pela superação do pensamento sistemático em favor do pensamento problemático, a propiciar novo paradigma para o Direito Civil contemporâneo [160]160 .
A Obrigatoriedade da Guarda Compartilhada em Contraposição ao Princípio do Superior Interesse da Criança: uma análise do Ordenamento Jurídico Brasileiro